qualidade Ferramentas para avaliação da qualidade das matérias-primas Parte 1 A aplicação de técnicas em várias etapas do desenvolvimento de um produto permite uma melhoria na padronização e na qualidade dos produtos e dos processos de produção Jamile Barbosa, Bruno G. Pereira e Sílvia L. Fialho Introdução C o n t r o l e d e C o n t a m i n a ç ã o 11 8 A indústria farmacêutica utiliza a caracterização das matérias-primas para a sua especificação e também na etapa de pré-formulação de um medicamento. Ambos os processos se cruzam na medida em que certas análises não descritas na monografia farmacopéica podem ser definidas durante a pré-formulação como forma de garantir as características adequadas ao produto e ao processo. No estudo de pré-formulação são definidas as características físicoquímicas necessárias à matéria-prima do princípio ativo e aos excipientes, complementando os ensaios descritos na monografia farmacopéica. Ela é parte integrante do processo de desenvolvimento de uma formulação e seu objetivo consiste em fornecer informações no sentido de serem elaboradas formulações robustas para que o produto tenha uma performan30 Fevereiro 2009 ce adequada tanto no processo produtivo, quanto na sua estabilidade e eficácia terapêutica. Para isso, alguns parâmetros são comumente analisados na etapa de pré-formulação: solubilidade, estabilidade, coeficiente de partição, constante de ionização, densidade e propriedades do estado sólido tais como a forma do cristal, polimorfismo, área superficial, tamanho e forma da partícula, adsorção de água, entre outros (GIRON, 2003). Alguns desses ensaios já se encontram descritos na farmacopéia americana (United States Pharmacopeia - USP 31), em seu Capítulo Geral e tem sido cada vez mais utilizados. Dentre eles, destacam-se as seguintes técnicas: determinação de tamanho de partícula por difração a laser, microscopia óptica, área superficial específica, análises térmicas, difração de raio-X, infravermelho médio e próximo, espectroscopia Raman, dissolução intrínseca e densidade compactada e aparente. A tabela 1 é um resumo dessas principais técnicas e suas aplicações. Além disso, serão apresentadas nesse artigo algumas dessas técnicas com um pouco mais de detalhes. Um parâmetro de grande impacto no produto de uso oral é a solubilidade do princípio ativo pois, juntamente com a sua característica de permeabilidade, será decisivo para a sua absorção no trato gastroinstestinal. Nesse sentido, Amidon e colaboradores (1995) propuseram a classificação dos fármacos em função de sua solubilidade e permeabilidade gastrointestinal, que se tornou conhecida como o Sistema de Classificação Biofarmacêutico (SCB), o qual foi reconhecido pela agência regulatória americana (Food and Drug Association – FDA). De acordo com essa classificação, fármacos pouco solúveis apresentam a solubilização do ativo como uma etapa limitante na absorção. Para esse tipo de fármaco, características como o tamanho da partícula e a estrutura cristalina assumem grande importância. Assim, atenção especial deve ser despendida ao desenvolvimento da pré-formulação e de métodos de dissolução para esses fármacos (BROWN et al., 2004a). A especificação de uma matériaprima busca a manutenção das suas características críticas, o que impacta na qualidade do produto e na eficiência dos processos produtivos que foram estabelecidos nas etapas de desenvolvimento. Elas são descritas detalhadamente nas monografias farmacopéicas e precisam ser revisadas periodicamente para que sejam atualizadas conforme as edições mais recentes dos compêndios oficiais, sejam eles nacionais ou internacionais. Além das revisões de cunho farmacopéico, é importante também a realização de estudos periódicos, pela avaliação do comportamento das matérias-primas durante o processo produtivo e da qualidade do produto final, frente às variações nas características dos diferentes lotes de matérias-primas. Essa etapa é importante porque torna-se possível mostrar pontos que podem não ter sido contemplados durante os estudos de pré-formulação e que serão constatados à medida que se tem um histórico maior de produção. qualidade Tabela 1 - Principais Técnica técnicas de caracterização de matérias - primas e suas aplicações Símbolo Faixa de Fundamento Aplicação trabalho DIDR Determinação de tamanho de partícula por difração a laser --- Microscopia óptica MO Calorimetria exploratória diferencial DSC Análise térmica dife- DTA rencial Termogravimetria TG Infravermelho próximo NIR ~ 250mg da matéria-prima por pastilha 0,1mm a 3mm Avaliação de cristalinidade (polimorfismo), solubilidade, determinação do meio de dissolução. Determinação e manutenção das características do produto (p.ex. aspecto, dureza, uniformidade de mistura, friabilidade, aderência aos punções, perfil de dissolução). >1mm Baseia-se na visualização de partículas Estudo da morfologia das partículas, através de lentes que proporcionam polimorfismo, determinação diferentes aumentos do material, de distribuição de tamanho de utilizando-se para isso de uma fonte de partícula, outros. luz e um condensador. -180ºC a 725ºC Variação do fluxo de calor entre a Avaliação de interações sólido-sólido, amostra e a substância de referência. pureza e identidade de substâncias, estudos de polimorfismo, hidratação de moléculas, entre outros. -180ºC a 1600ºC Variação de temperatura entre a Semelhante à DSC. amostra e a substância de referência. Temperatura Variações de massa ocorridas na Estudos de estabilidade térmica; ambiente a amostra. perfil de decomposição; composição 1600ºC. qualitativa e quantitativa das amostras. Identificação de compostos 750 a 2500 nm. A luz infravermelha próxima, ao orgânicos, distribuição de tamanho incidir sobre a amostra, promove excitações moleculares de sobretons e de partícula, medição quantitativa combinações de vibrações, as quais são de grupos funcionais orgânicos muito mais fracas do que as ocorridas no IV médio. Um aspecto importante nos estudos de pré-formulação e na definição da especificação das matérias-primas sólidas é o polimorfismo, uma vez que os polimorfos podem apresentar características físicas e químicas diferentes. Essas variações podem ser benéficas quando previamente planejadas ao se escolher determinada forma de acordo com sua característica, mas também podem gerar grandes transtornos se ocorrerem inadvertidamente. Portanto, é necessário conhecer as possíveis formas, como e quanto diferem entre si e se as mesmas podem alterar a qualidade dos medicamentos. Vários são os fármacos que apresentam polimorfismo, entre eles podemos citar como exemplos a carbamazepina, o mebendazol, a glibenclamida, o fenobarbital e a espironolactona (BRITTAIN, 1999). A presença de um polimorfo ina- Velocidade de dissolução da matériaprima sob condição de área superficial constante. Difração ocorrida com um feixe de laser quando incidido sobre as partículas. dequado pode comprometer a qualidade do medicamento, já que ele pode apresentar solubilidade, estabilidade, forma e dureza do cristal e temperatura de fusão diferente. Desta forma, as conseqüências do polimorfismo são encontradas em todas as etapas da produção e estocagem das matérias-primas e dos produtos (GIRON, 2003). Técnicas de análise matérias - primas de Dissolução Intrínseca A dissolução intrínseca é uma técnica que tem sido muito empregada nos estudos de pré-formulação para a caracterização de fármacos sólidos. Ela é definida como a velocidade de dissolução da substância pura em forma de pastilhas, em que a área superficial é constante. É executada em dis- solutores tradicionais equipados com uma aparelhagem de agitação especial (Aparelhagem de Wood), que permite a avaliação das características associadas à matéria-prima (YU et al, 2004). A dissolução intrínseca assim como a permeabilidade são fenômenos dinâmicos, enquanto a solubilidade é um fenômeno de equilíbrio. Portanto, acredita-se que este parâmetro deve estar mais bem correlacionado com a dissolução in vivo que a solubilidade. A partir disso, YU e colaboradores (2004), fazendo uma correlação entre os resultados encontrados nos testes de dissolução intrínseca de 15 fármacos com aqueles já descritos conforme o SCB, sugeriram o uso da dissolução intrínseca como forma de estimar a solubilidade de fármacos. Alguns exemplos de aplicação da técnica de dissolução intrínseca incluem a determinação da velocidade Fevereiro 2009 C o n t r o l e d e C o n t a m i n a ç ã o 11 8 Dissolução intrínseca 31 qualidade Figura 1 - Perfil de dissolução de pilotos de Glibenclamida 5mg, produzidos com diferentes lotes da matéria- prima (GLB 1 e GLB 2). Condições de análise: meio de dissolução tampão fosfato pH 6,8 com surfactante 0,5%, 500 m L, aparelho 2, velocidade de agitação 75rpm 100 Cedência % 80 60 Pi 1 Pi 2 40 20 0 0 10 20 30 40 50 Tempo de dissolução (min.) 60 70 Figura 2 - Perfil de distribuição de tamanho de partícula (µ m) da matéria- prima glibenclamida , lotes GLB 1 (−) e GLB 2 (−). Para GLB 1: d0,1=1,871; d0,5=7,732; d0,9 =17,13 e para GLB 2: d0,1=1,540; d 0,5 =7,223; d 0,9 =27,341 C o n t r o l e d e C o n t a m i n a ç ã o 11 8 Volume % Distribuição de tamanho de partícula 9,5 9 8,5 8 7,5 7 6,5 6 5,5 5 4,5 4 3,5 3 2,5 2 1,5 1 0,5 0 0,01 0,1 1 10 100 Tamanho de partícula (µm) de dissolução de acordo com o pH, a investigação de fenômenos de transferência de massa durante a dissolução, o estudo dos efeitos de surfactantes e do pH na solubilização de fármacos pouco solúveis e o entendimento da relação entre a velocidade de dissolução e a forma cristalina (YU et al, 2004). 32 Fevereiro 2009 1000 3000 O teste de dissolução intrínseca revela-se muito útil no desenvolvimento da pré-formulação e da especificação de um fármaco pouco solúvel (classes II ou IV do SCB). Durante a realização dos estudos, diferentes lotes da matéria-prima podem ser testados e os resultados correlacionados com as velocidades de dissolução. A maior velocidade de dissolução intrínseca muitas vezes é desejável para formas farmacêuticas de liberação imediata. Assim, as matérias-primas com resultados de dissolução intrínseca adequados devem ser selecionadas. A dissolução intrínseca pode ser utilizada nos testes de rotina de controle de qualidade, no entanto, por se tratar de um teste geralmente demorado, outras técnicas podem ser preferidas. Para isso é importante buscar correlações entre os resultados da dissolução intrínseca e os resultados das outras técnicas cuja aplicação em rotina sejam mais facilmente implantadas (p.ex. microscopia óptica, calorimetria exploratória diferencial, infravermelho médio). Determinação de Tamanho de Partícula por Difração a Laser Segundo a USP 31, a difração a laser é uma das técnicas atualmente mais usadas para a determinação do tamanho de partículas. O método é muito rápido e fácil de ser executado, podendo ser adaptado para analisar amostras presentes em diversas formas físicas. A técnica se baseia no fenômeno de difração ocorrido com um feixe de laser que é incidido sobre as partículas. Como o padrão de difração é característico do tamanho de partícula, uma análise matemática pode fornecer com exatidão e repetibilidade o perfil da distribuição de tamanho das partículas de determinada matéria-prima. Os equipamentos atuais trabalham com faixas que variam de 0,1µm a 3mm e os modelos ópticos para tratamento do sinal são baseados na teoria de Mie em conjunto com a aproximação de Fraunhofer (USP 31). Alguns equipamentos apresentam condições diferenciadas que permitem análises em faixas mais amplas, por exemplo, de 0,02µm a 2mm. Os equipamentos disponíveis para a realização dos testes trabalham tanto com a matéria-prima na forma de pó (“módulo seco”) quanto com ela qualidade em suspensão (“módulo úmido”) e o melhor método a ser empregado deve ser definido durante o desenvolvimento de cada análise, de acordo com as características de cada uma. A distribuição de tamanho das partículas de uma determinada matéria-prima é apresentada pelo software na forma de um gráfico e ainda pelos valores de percentil (p. ex.: d0,1, d0,5 e d0,9). Esses valores indicam a população de partículas que se encontra abaixo de determinado tamanho, por exemplo: d0,9 = 100µm indica que 90% do volume total de partículas analisadas se apresentam com um tamanho igual ou inferior a 100µm. Da mesma forma d0,1, d0,5 devem ser interpretados (USP 31). A medida do tamanho de partícula é um importante aspecto na caracterização da matéria-prima e de formulações, encontrando aplicabilidade principalmente para apresentações sólidas. Na indústria farmacêutica a determinação de tamanho de partículas assume grande importância devido a sua influência em várias etapas, desde a produção de um medicamento até aos estudos de bioequivalência. Assim temos que distribuições estreitas, ou seja, com pequena faixa de tamanho de partícula minimizam problemas de segregação que podem ocorrer durante os processos de mistura das formulações. Além disso, o tamanho da partícula pode influenciar na dureza de um comprimido, fato de relevância principalmente para os excipientes. Podemos citar também a sua contribuição para a obtenção de perfis de dissolução adequados e, neste caso, tem-se o exemplo da sua influência em formulações contendo o fármaco Glibenclamida (classe II do SCB), onde a definição do tamanho de partícula é essencial para que o produto consiga bons resultados de dissolução (LACHMAN, LIEBERMAN, KANIG, 1986). Para se avaliar o efeito da distribuição de tamanho de partícula no perfil de dissolução de uma formulação contendo glibenclamida foram feitos dois pilotos (Pi1 e Pi2) de Glibenclamida 5mg. Em cada piloto, Pi1 e Pi2, foram usados lotes diferentes do fármaco, GLB1 e GLB2, respectivamente. Pode-se observar na Figura 1 que Pi1 apresenta maior cedência do fármaco que Pi2. Avaliando-se a distribuição de tamanho de partícula dos dois lotes de GLB (Figura 2), verifica-se que GLB1 apresenta menor valor de d0,9 em relação a GLB2 e ambas apresentam os outros parâmetros (d0,1 e d0,5) bem semelhantes. Considerando-se os perfis de dissolução e a distribuição de tamanho de partícula dos lotes de GLB analisados, pode-se perceber que o piloto (Pi1) produzido com o menor tamanho de partícula apresen- qualidade Figura 3 - Microscopia óptica com luz polarizada da matériaprima A mido de M ilho dispersa em óleo, evidenciando o fenômeno da cruz negra , aumento 200X tou a maior cedência do fármaco e, portanto, o valor de d0,9 de GLB1 é mais adequado que o de GLB2. Microscopia Óptica C o n t r o l e d e C o n t a m i n a ç ã o 11 8 Como já mencionado anteriormente, as propriedades cristalinas podem influenciar na velocidade de dissolução de um fármaco, impactando em sua biodisponibilidade. Já do ponto de vista tecnológico, o hábito cristalino pode influenciar na compressibilidade e nas propriedades de fluidez da matéria-prima (FLORENCE, ATTWOOD, 2003). Por hábito cristalino entendem-se as diferentes formas que um cristal pode apresentar, tais como as formas aciculares, prismáticas, piramidais, tabulares, colunares e lamelares. Assim, um cristal hexagonal pode apresentar, por exemplo, os seguintes hábitos cristalinos: tabular, prismático ou acicular; já um cristal ortorrômbico pode apresentar os hábitos tabular, prismático ou cúbico (FLORENCE, ATTWOOD, 2003). Em se tratando da forma do cristal, as partículas esféricas são consideradas ideais para os processos de mistura de pós secos, enquanto que as formas aciculares dificultam esse processo. A maioria dos compostos 34 Fevereiro 2009 farmacêuticos se encontra entre esses dois extremos, sendo então importante, do ponto de vista farmacotécnico, uma avaliação microscópica da forma da partícula nos estudos de pré-formulação (AHMED, NAINI, WADGAONKAR, 2005). Além dos fatores já citados, a microscopia óptica apresenta também aplicabilidade em estudos de polimorfismo. Entretanto, esta técnica não é a mais empregada nesses casos, dando-se preferência para aquelas que apresentam resultados mais precisos, como a difração de raio-X ou mesmo a DSC. A pesquisa de polimorfos usando a microscopia é possível na medida em que eles apresentam diferentes arranjos e/ou conformações das moléculas na estrutura do cristal, resultando em hábitos cristalinos diferentes os quais apresentam estruturas internas diferentes. Essas diferenças na forma do cristal podem, em muitos casos, serem identificadas em análises de microscopia. (LACHMAN, LIEBERMAN, KANIG, 1986). Pode-se ainda utilizar um polarizador acoplado ao microscópio óptico a fim de avaliar a birrefringência e sua relação com a estrutura cristalina do polimorfo. Por outro lado, quando a matéria-prima passa por processo de micronização torna-se impossível avaliar o hábito cristalino e sua aplicação na pesquisa de polimorfos. Uma outra aplicabilidade da microscopia óptica é a determinação da distribuição de tamanho de partícula, que pode ser feita manualmente ou de forma automatizada. A primeira é realizada com o auxílio de um software específico para fazer as medições, mas dificilmente proporciona uma amostragem muito representativa, é demorada e apresenta baixa resolução. Já a forma automatizada conta com microscópios que dispõem de acessórios para a realização desse tipo de análise, onde, ao invés de uma lâmina comum, é utilizada uma cela bem maior, na qual é possível a análise de até cerca de 1 milhão de partículas. Como o processo é automatizado, ele proporciona resultados em intervalos de tempo bem menores que da forma manual. Entretanto, ainda assim trabalha com uma amostragem bem menor que a utilizada, por exemplo, na técnica de difração a laser. É possível a introdução de análises microscópicas na rotina dos laboratórios de controle de qualidade, podendo ser empregada inclusive para a identificação das matérias-primas. O amido, por exemplo, apresenta o chamado fenômeno da cruz negra, o qual fica evidenciado na microscopia com luz polarizada, mostrando em cada partícula a formação de uma cruz negra em um fundo azulado (Figura 3). Tal fenômeno se extingue quando o amido passa pelo processo de pré-gelatinização. Na próxima edição da revista Controle de Contaminação, a segunda e última parte deste artigo falará sobre outras duas ferramentas para análise de matérias-primas: as análises térmicas e a técnica de espectroscopia no infravermelho próximo. Jamile Barbosa Bruno G. Pereira Sílvia L. Fialho Divisão de Desenvolvimento Farmacotécnico e Biotecnológico, Fundação Ezequiel Dias/FUNED [email protected]