Seminário Cultura e Alimentação S E S C V i l a Ma r i a n a | o u t u b r o 2 0 0 6 UTOPIAS ALIMENTARES E VIDA COTIDIANA Wanessa Asf ora Utopia: do grego ou, não + tópos, lugar. O não lugar. Lugar inexistente. Por extensão, o termo utopia é utilizado para exprimir a idéia de algo impossível, inacessível, porém desejado, sonhado, seja do ponto de vista individual ou social. Entretanto, embora fixa a etimologia, a noção de utopia é historicamente referendada. Assim, diferentes contextos históricos, diferentes dinâmicas sócio-culturais, diferentes utopias. No ocidente cristão medieval, por exemplo, pode-se dizer que sonhar a abundância tenha sido uma das grandes utopias do período. Em termos alimentares, viver em abundância significava, em um primeiro momento, viver sem a ameaça de fomes ou carestias que, de fato, constituíam uma realidade sem distinção social no período. No entanto, pensar a utopia alimentar na Idade Média é ir além dessa primeira associação meramente quantitativa. A população medieval não foi sempre constituída por camponeses de olhos esbugalhados e famintos, monges comedores de raízes e verduras, e nobres grosseiros e engolidores de caça. Esses são estereótipos que, assim como tantos outros, impedem um conhecimento mais preciso acerca daquele período. Em termos alimentares, é interessante atentar para o peso das especificidades geográficas, sociais, econômicas, políticas e culturais que pontuam os quase mil anos de história da Idade Média ocidental (grosso modo, do século V ao XV). São essas especificidades que fazem nuançar a idéia de abundância como única opção de utopia 1 alimentar. A ela deve-se somar, necessariamente, a utopia do “comer bem”. O que, para os medievais, significava consumir, adequadamente, alimentos de qualidade. Para diferenciar o peso que quantidade e qualidade exerceram nas utopias alimentares do período, é necessário olhar mais de perto para os discursos alimentares associados aos diferentes grupos sociais que compunham a totalidade da população medieval. São várias as clivagens possíveis e que opõem, em tese, uma série de categorias: laicos e religiosos, guerreiros e camponeses, pobres e ricos, homens e mulheres, adultos e crianças, doentes e sãos, moradores dos campos e habitantes das cidades. À medida que é possível observar mais de perto a vida cotidiana de homens e mulheres daquela época, percebemos que, de maneira geral, durante os primeiros cinco séculos da Idade Média, os discursos alimentares valorizavam a quantidade em detrimento da qualidade na configuração da dieta ideal. Independentemente do grupo de pertença social do indivíduo, comer muito era um ideal a ser perseguido. Lembremos, nesse sentido, que as elites da sociedade guerreira daquele período, a Alta Idade Média, identificavam a si mesmo através da quantidade de alimentos ingeridos (um rei poderoso era um rei que, dentre outras virtudes, comia muito). Os pobres, porque desprovidos de poder, comiam pouco (ainda que com variedade). Monges e outros religiosos, representantes do poder espiritual, escolhiam renunciar à quantidade em um difícil combate à desmedida, ao exagero, em última instância, ao pecado da gula. A partir do século IX, o ocidente medieval experimentou uma fase de crescimento demográfico, progressos técnicos e com eles, um novo modelo de organização social se delineou. Uma separação cada vez mais rígida posicionava trabalhadores, senhores da nobreza e os homens de Deus em lugares distintos na sociedade. Essa ideologia das três ordens, válida para refletir sobre uma boa parte da Europa medieval, se estendeu também à mesa. Lentamente, a antiga idéia de abundância perde forças em detrimento de um critério cada vez mais qualitativo para justificar as práticas alimentares pouco igualitárias em vigor. Apoiadas na tradição médica hipocrática, são fortalecidas crenças de que cada grupo social possui qualidades compatíveis com certos tipos de 2 alimentos: os cereais aos trabalhadores, a carne aos poderosos senhores, e o vegetarianismo (ou a abstinência) aos religiosos. Assim, para se compreender as utopias alimentares da Idade Média, é preciso procurar nas mesas de sua população, as ausências provocadas pelas desigualdades sociais. Vazios materiais e imateriais; pois se utopia é o inexistente desejado, no plano alimentar, ela pode ser traduzida por um banquete de comidas festivas e inacessíveis para os pobres e desqualificados sociais, uma refeição pantagruélica e carnívora para os religiosos, ou uma ceia celestial para os pios e nobres de espírito. Referências Bibliográficas COSMAN, Madeleine. Fabulous Feasts. Medieval Cookery and Ceremony. New York: George Braziller, 2002. FLANDRIN, Jean-Louis ; MONTANARI, Massimo (dir.). História da Alimentação. Trad., Petrópolis : Estação Liberdade, 1998. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha, a história de um país imaginário. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. LAURIOUX, Bruno. Idade Média à mesa. Trad, Lisboa: Publicações Europa-América, 1992 MONTANARI Massimo. A fome e a abundância. História da alimentação na Europa. Trad. Bauru: Edusc, 2003. STRONG, Roy. Banquete. Uma história ilustrada da culinária, dos costumes e da fartura à mesa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 3