GALVES, C. M. C. . A ênclise no português clássico

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A ênclise no português clássico: variação, gramática e uso
Charlotte Galves
Unicamp
In the speech of popular characters of Gil Vicente plays, Martins (2011) finds a frequency
of enclisis much higher than what has been observed in other texts of the same period. She
concludes that there are two different grammars at that time: one representative of the
vernacular (enclitic) grammar and the other produced by “the pan-iberic grammar” that
underlies the written language. Using the distinction between two types of enclisis/proclisis
variation contexts, we argue that the discrepancy between Gil Vicente’s popular characters
and other texts is not due to the existence of two different grammars but to different uses of
the same grammar.
clitic-placement, Classical Portuguese, Gil Vicente plays, grammatical change.
colocação de clíticos, Português Clássico, Teatro de Gil Vicente, mudança gramatical.
I. Introdução
O objetivo deste texto é trazer elementos para a discussão da história grammatical do
português, e, mais especificamente, discutir a hipótese recentemente colocada por Ana Maria
Martins (Martins, 2011) de que na época clássica, há – pelo menos no que diz respeito à
colocação de clíticos - duas gramáticas distintas do português, uma correspondendo às
classes cultas, e outra às classes populares. Procurarei trazer evidências de que a clivagem
popular/erudito deve ser substituída por considerações prosódico/discursivas que se
articulam com uma gramática única para produzir os contrastes observados.
O texto se organiza da seguinte maneira. A Secção II consiste numa descricão da
colocação de clíticos no período clássico, com base em Galves et al. (2005), em que se
introduz a distinção entre dois tipos de contextos de variação ênclise/próclise. Na Secção III,
apresenta-se a análise de Martins (2011) a respeito da variação ênclise/próclise nas
personagens populares do teatro vicentino. A Secção IV propõe em seguida uma descrição
alternativa desses dados com base na distinção entre os dois contextos de variação. A Secção
V concluí o texto, argumentando que o Português Clássico se presta a variações
discursivamente e prosodicamente motivadas.
II. Variação ênclise/próclise em português clássico
Galves et al. (2005) argumentam que a variação ênclise/próclise observada em
Português Clássico (doravante PCl) tem que ser dividida em dois grupos de contextos. No
primeiro grupo, que as autoras chamam de contextos de Variação I, o verbo é imediatamente
precedido por um sujeito, um advérbio, ou um sintagma preposicional, como ilustrado em
(1)-(6), todas sentenças extraídas dos Sermões do Padre Vieira.
(1) As outras prophecias cumprem-se a seu tempo
(2) Estes thesouros, pois, que agora estão cerrados, se abrirão a seu tempo
(3) Lá ha se de esperar o tempo que basta para os fructos verdes amadurecerem
(4) Agora o vereis
(5) Dos outros salvar-se-ha ametade; e dos grandes e poderosos quantos?
(6) De umas se não sabem os logares onde estiveram; d'outras se lavram,
semeam, e plantam os mesmos logares, sem mais vestigios de haverem sido, os que
encontram os arados, quando rompem a terra.
Como já tinha sido observado por vários trabalhos (cf. Martins, 1994; Torres Moraes,
1995), nesse contexto, a ênclise é marginal no período clássico. Isso pode ser verificado na
Figura 1, tirada de Galves et al. (2005), onde, até 1700, à exceção dos 45% de ênclise dos
Sermões de Vieira sobre os quais voltaremos, os autores usam essa colocação em menos de
20%, e na grande maioria em menos de 10%, dos casos.
Figura 1: ênclise/próclise em Contextos de Variação I – séc 16-19
(Corpus Tycho Brahe; Galves, Britto e Paixão de Sousa, 2005)
Por contraste, Galves et al. (2005) chamam de contextos de Variação II os casos em
que o verbo é imediatamente precedido por orações dependentes ou por conjunções de
coordenação, como ilustrado nas sentenças (7)-(10), também tiradas do Sermões de Vieira:
(7) E porque não teve boa informação de seus procedimentos , o chamou á sua
presença
(8) e se sois e fostes sempre bom, julgam-vos mal…
(9) e lhe pediu conta …
(10) Deus julga os pensamentos , mas conhece-os
Nesses contextos, a imagem da variação é muito diferente. Primeiro, encontramos no
período clássico frequências de ênclise de até 80%. Segundo, observamos uma variação
muito grande entre autores. Isso é mostrado pelas Figuras 2 e 3 abaixo.
Figura 2: Variação ênclise/próclise com orações adjuntas precedendo imediatamente o verbo
(Corpus Tycho Brahe; Galves, Britto e Paixão de Sousa, 2005)
Figura 3: Variação ênclise/próclise em coordenadas V1
(Corpus Tycho Brahe; Galves, Britto e Paixão de Sousa, 2005)
A diferença observada entre a Figura 1, de um lado, e as Figuras 2 e 3, do outro, é que
sustenta a distinção entre dois contextos de variação ênclise/próclise. Com efeito,
percebemos que, pelo menos para alguns autores, a ênclise se torna um fenômeno frequente
quando o elemento que precede o verbo é uma oração adjunta ou uma conjunção de
coordenação. Percebemos também que, nesse caso, a gramática não atua de maneira tão
restritiva quanto no caso que chamamos de Variação I, uma vez que a escolha entre
colocação pré-verbal e colocação pós-verbal varia drasticamente de um autor para o outro,
parecendo muito mais uma questão de estilo do que de sintaxe. Em outras palavras, a ênclise
deixa de ser um construção tão marcada nos contextos de Variação II quanto ela é nos
contextos de Variação I. Galves et al. (2005) argumentam que a colocação de clíticos em
PCl é regida pela lei de Tobler-Mussafia, ou seja, que se trata de um fenômeno sensível às
fronteiras prosódicas.1 Se o verbo e o sintagma que o precede se acham dentro do mesmo
contorno entoacional, ou seja numa mesma Frase Entoacional (IntP), o clítico é pré-verbal.
Se eles são separados por uma fronteira de IntP, o clítico é pós-verbal. Em outras palavras, a
ênclise em construções com o verbo em segunda posição (V2) é um caso particular da
ênclise em V1.
Voltaremos na seção final ao fundamento sintático e prosódico da distinção entre os
dois contextos de variação.
III. A variação ênclise/próclise nas personagens populares de Gil Vicente
1
Essa análise é retomada e formalizada em Galves & Sandalo (2012).
Martins (2011) descreve a colocação de clíticos em 48 personagens populares de 9
peças de Gil Vicente. Os exemplos a seguir ilustram a variação ênclise/próclise encontrada
nessas personagens.2
(11) Eu quero-me aqui deitar [E111]
(12) Eu vos trago um bom marido [P16]
(13) Porém pude-me valer sem me ninguém acudir [E37]
(14) Amenhã vo-los darão [P26]
(15) E a mim hão-me de comprar uma coifinha lavrada [E157]
(16) Neste seu livro o lerás [P7]
(17) Porém prazendo a Jesu Cristo quero-m’ ir fazer sobre isto dois pares de
trovezinhas [E 107]
(18)… e casar-vos-ei com ela [E 174]
O ponto enfatizado pela autora é que, nessas personagens, a taxa de ênclise é muito
alta, como se pode verificar no quadro 1 (Martins, 2011:87, quadro 1).
Total de ocorrências
Ênclise
Próclise
245 (100%)
177 (72,24%)
68 (27,76%)
Contextos de
potencial variação
ênclise/próclise
Quadro 1: A variação ênclise/próclise em 48 personagens populares de Gil Vicente
2
A numeração entre colchetes é a de Martins (2011)
Martins interpreta essa alta taxa de ênclise como o efeito de uma sintaxe de colocação
diferenciada nas classes populares da época: Ela afirma que “num sector da sociedade
portuguesa medieval, a sintaxe dos clíticos evoluiu na mesma direcção que em outras línguas
ibéricas, como o espanhol e o catalão; num outro sector da sociedade portuguesa medieval,
evoluiu no sentido da actual gramática do português europeu. A gramática “proclítica”, a que
poderíamos chamar “pan-ibérica”, era a das classes social e culturalmente dominantes
(tipicamente, alfabetizadas e produtoras de escrita), a gramática mais especificamente
portuguesa era a das classes populares (tipicamente, não alfabetizadas e com acesso muito
limitado à produção escrita). São factores sócio-culturais os que determinam que no
português quinhentista (e também quatrocentista e seiscentista) seja extremamente reduzida a
visibilidade da gramática em que a ênclise se terá mantido essencialmente estável ao longo
do tempo.”Martins (2011: 86).
Na próxima seção, argumentarei que essa discrepância não se deve a uma sintaxe
diferente mas ao uso diferente de uma mesma sintaxe, ou seja de uma mesma gramática.
Nessa discussão, a distinção entre os dois tipos de contextos de variação apresentados acima
desempenhará um papel determinante.
IV. Uma descrição alternativa3
O primeiro ponto a chamar a atenção nos dados apresentados por Martins é que, nos
contextos de Variação II definidos acima, a ênclise é categórica nas personagens populares
de Gil Vicente. Ou seja, quando uma oração adjunta ou uma conjunção de coordenação
3
É importante ressaltar que essa descrição alternativa só foi possível porque Martins (2011) disponibiliza a
integralidade dos seus dados em anexo ao seu artigo.
precede imediatamente o verbo (cf. os exemplos 17 e 18 acima), a colocação pós-verbal do
clítico ocorre em 100% dos casos. 4
Há outros contextos, não levados em consideração por Galves et al. por serem
construções inexistentes ou muito marginais no Corpus considerado pelas autoras, em que a
ênclise é categórica, ou se aproxima de 100%, no Corpus estudado por Martins. São estes:
- as orações incisas (todas com o verbo ‘rogar’) – 100% de ênclise:
(19) Hilária: Sabes mana que eu farei?
Juliana: Dize rogo-to e veremos. (Romagem dos Agravados) [E17]
(20) A nau vem bem carregada?
marido: Vem tão doce embandeirada.
ama : Vamo-la, rogo-vo-lo, ver ...(Auto da Índia) [E31]
(21) Joane: Oh pesar de mim comigo / di rogo-to Cismeninha / viste-m’a minha
burrinha? (Comédia de Rubena) [E149]
(22) Velho: Ide-lhe rogo-vo-lo falar (Velho da Horta) [E175]
- Sentenças em que o verbo imediatamente precedido de vocativo ou interjeição –
100% de ênclise:5
(23) Mãe: Mana conhecia-t’ele? (Inês Pereira) [E38]
(24) Pero Marques: Pois senhora quero-m’ir / antes que venha o escuro. (Inês Pereira)
[E53]
(25) Vidal: Judeu queres-me leixar? (Inês Pereira) [E57]
(26) Marta Gil: Melhor creo eu que será / Jesu Jesu benzo-m’eu. ( Barca do
4
5
Repare-se porém num caso de próclise com a conjunção ‘e’, contabilizado com o imperativo, cf. o exemplo (31).
Note-se nessa categoria, um caso de próclise, que contabilizamos com as imperativas V2, cf. o exemplo (30).
Purgatório) [E120]
(27) Cismena: Dous porquinhos trosquiados / coinchar nam nos ouvistes? / Oh dou ò
decho am dos tristes / amo vistes-mos pacer? (Comédia de Rubina) [E147]
(28) Velho: Senhora eis-me eu aqui/ que nam sei senam amar / ó meu rosto d’alfeni /
que em forte ponto vos vi / neste pomar. (Velho da Horta) [E162]
- Orações imperativas nas quais o verbo está em segunda posição (imperativas V2).
Nesse contexto, encontramos 5 casos de próclise em 62 ocorrências (94% de ênclise):
(29) Juiz: Ora traga vossa mercê / um banco e ũa esteira / e ũa cortiça inteira. / E vossa
mercê me dê / licença que o requeira / ide logo sem tardar. (Juiz da Beira) [P38]
(30) Brigoso: Este asno deve ser meu / e vós assi mo julgai / que eu fui honra de meu
pai / e assi o provarei eu / o asno juiz me dai (Juiz da Beira) [P49]
(31) Velho: amen por tua grandeza / e nos livre tua alteza / da tristeza sem medida
(Velho da Horta) [P56]
(32) Branca Gil: E vós sentida / santa dona Margarida / de Sousa lhe socorrê / se lhe
puderdes dar vida / porque está já de partida / sem porquê (Velho da Horta) [P64]
(33) Juiz: Ora assim que de maneira minha hospeda Inês Pereira Deos a benza sabe ler
(Juiz da Beira) [E85]
Note-se que em textos literários representativos do Português Clássico, esse é um
contexto de alta frequência de ênclise. Em Sousa (n. 1556), por exemplo, encontra-se nele
50% de ênclise (10/20) contra 12% nos Contextos de Variação I.
Se agora nos restringirmos aos casos restantes, ou seja aos contextos de Variação I,
ilustrados em (11)-(16), constatamos primeiro que correspondem a menos da metade da
totalidade dos dados: 102 em 245. Nesse conjunto, encontramos somente 38 casos de ênclise,
ou seja 37,2% do total. O quadro 2 sintetiza a distribuição dos dados pelos diferentes
contextos.
Quadro 2: A variação ênclise/próclise nas personagens populares de Gil Vicente conforme o tipo
de variação
O quadro 2 mostra claramente a existência de uma polarização da colocação de clíticos
em dois conjuntos claramente distintos. No que chamamos de contextos de Variação II, a
ênclise domina absolutamente, com 123 ocorrências em 128 sentenças, ou seja 96%. Nos
Contexto de Variação I, a próclise é largamente dominante, com 72,8% dos casos. Desse
ponto de vista, a diferença com os autores eruditos não é tão grande como afirmado por
Martins (2011). O que constatamos, é, primeiro, uma radicalização da diferença entre os dois
tipos de contextos de variação já que a ênclise se torna categórica quando orações adjuntas e
conjunção de coordenação precedem imediatamente o verbo, o que não se verifica em
autores eruditos. Segundo, é justo dizer que nos Contextos de Variação I, a ênclise é mais
frequente nestas personagens do que nos textos escritos descritos até então. Mas essa
diferença não chega a obliterar o fato de que, nesse caso, como nos autores eruditos, a
próclise é dominante.
Chegamos à conclusão que a diferença entre autores letrados e
personagens populares é mais quantitativa do que qualitativa. Há mais ênclise, é verdade,
mas o padrão de distribuição dessa ênclise é comparável ao padrão encontrado nos autores
do séc. 16 e 17 considerados por Galves et al. Na próxima e última seção deste texto,
discutem-se as implicações desta análise para a compreensão da história do português.
V. Conclusões: Fala popular, discurso e gramática
Resumindo o que foi visto até agora, as personagens populares de Gil Vicente
apresentam a mesma distribuição da variação ênclise/próclise que muitos autores eruditos da
mesma época: ênclise majoritária nos contextos de Variação II, próclise majoritária nos
contextos de Variação I. A diferença é que nos dois casos, a frequência da ênclise é maior.
Para Martins (2011), essa taxa maior de ênclise caracteriza uma gramática “mais
especificamente portuguesa… a das classes populares (tipicamente, não alfabetizadas e com
acesso muito limitado à produção escrita)”. É interessante notar que a mesma distribuição,
com valores muito semelhantes, se encontra na Arte da cozinha do séc. 17 estudado por
Rocha (2009), mencionado por Martins (2011) como um outro caso de gramática enclítica.
Nesse texto, segundo a descrição de Rocha, quando o verbo é precedido pelo sujeito ou por
um PP, encontra-se por volta de 30% de ênclise. Quando é precedido por uma oração adjunta
ou por uma conjunção de coordenação, a taxa de ênclise é de cerca de 80%. Uma das
semelhanças entre a Arte da cozinha e a fala das personagens populares de Gil Vicente, é a
frequência alta de imperativo, que se explica no primeiro pelo caráter injuntivo do texto.
Porém, apesar do seu assunto ligado à vida cotidiana, é difícil enquadrar a Arte da cozinha na
categoria “fala popular”.
Os Sermões de Vieira (cf. Martins, 1994, 2011) instanciam um outro caso de alta
frequência de ênclise. Esses, claramente, não podem ser enquadrados na categoria “fala
popular”. Também não correspondem ao padrão descrito até agora. A alta incidência de
ênclise em Vieira não afeta somente os contextos de Variação II, mas também os contextos
de Variação I. Galves (2002) mostra que, de maneira categórica, as orações enclíticas são
aquelas em que o verbo é precedido por um tópico contrastivo:
(34) Elles conheciam-se, como homens, Christo conhecia-os, como Deus.
(35) Deus julga-nos a nós por nós; os homens julgam-nos a nós por si.
A discrepante taxa de ênclise nos Sermões se explica assim pela recorrência das
oposições entre termos que caracteriza o estilo barroco. Os exemplos (34) e (35), onde os
períodos se constrõem na oposição entre ‘Deus/Cristo’ e ‘os homens’ ilustram bem esse
ponto,
Qual é portanto o ponto comum entre a ênclise dos Sermões, da Arte da cozinha, e das
personagens de Gil Vicente? É ser produzida por uma gramática em que a colocação de
clíticos é sensível à prosódia, e portanto ao discurso. Como já mencionamos acima, há vários
índices que, no PCl, a ênclise é desencadeada pela aplicação da Lei de Tobler-Mussafia, isso
é, deriva de o clítico não poder aparecer no início de uma frase entoacional.6 Prevê-se que
esta gramática produza uma grande variação na colocação de clíticos, em função de variáveis
discursivas.
Primeiro, podemos pensar que é a prosódia, articulada à sintaxe, que é sub-jacente à
6
Galves e Sandalo (2012) propõem que os clíticos em PCl são deslocados por uma regra pós-sintática quando estão
em posição inicial de IntP. Uma análise similar é proposta para o português europeu moderno (PE) por Pilar
Barbosa em vários trabalhos (cf., entre outros, Barbosa 2000) Porém, Galves e Sandalo argumentam
própria distinção entre contextos de Variação I e Variação II. Nos primeiros, os elementos
que precedem o verbo têm uma relação sintática forte com o verbo por serem elementos
deslocados de posições internas ao sintagma verbal.7 É natural que estejam compartilhando a
mesma frase entoacional. Nos segundos, a relação é de adjunção, abrindo espaço para maior
variação na realização prosódica da frase. No que diz respeito às orações adjuntas préverbais, Galves et al. (2005) mostram que, nos autores dos séculos 16 e 17, a taxa de ênclise
é sensível ao comprimento da oração. Assim, com as orações de 9 palavras e mais, a
frequência de ênclise é sensivelmente mais alta do que com as orações de até 8 palavras. É
natural pensar que o comprimento das orações influi sobre a organização prosódica da frase
inteira. Quanto maior for a frase, maior será sua tendência a constituir um domínio
entoacional independente, forçando o clítico a se deslocar para depois do verbo. Note-se que
a ênclise no verbo inicial das orações incisas (cf. exemplos 19-22) recebe uma explicação
análoga, uma vez que a própria noção de incisa implica a presença de uma curva entoacional
independente do resto da sentença.
Frascarelli e Hinterholzl (2007) mostram que em italiano e em alemão, os tópicos
contrastivos são associados a contornos entoacionais independentes. Tudo indica que isso é
se verifica em PCl também, o que dá conta da alta frequência da ênclise nos Sermões. Nesse
caso, estamos frente a uma construção marcada, uma vez que afeta elementos normalmente
incluidos no contorno entoacional que contém o verbo. Essa marcação tem uma razão
discursiva de ser: a presença do contraste no sintagma inicial.
Enfim, o imperativo, largamente responsável pela frequência de ênclise na Arte da
cozinha estudado por Rocha, se caracteriza pelo fato de ser naturalmente uma construção em
que o verbo está em primeira posição. Quando ele é precedido por algum sintagma, essa
propriedade tende a ser preservada na entoação, pela criação de uma fronteira entoacional
que, nessa língua, a colocação de clíticos não é sensível à prosódia, uma vez que todos os argumentos empíricos
para tal afirmação observados no PCl deixam de existir no PE.
7
Não cabe aqui uma discussão da sintaxe do PCl. Seguindo vários trabalhos, assumimos aqui que o PCl tem uma
gramática de tipo V2, na qual o verbo se move para C nas orações matriz, e algum elemento interno à oração se
move para uma posição dentro da camada CP. Cf., inter alios, Paixão de Sousa, (2004), Antonelli (2011).
entre o elemento pré-verbal e o verbo. Pela lei de Tobler-Mussafia, a presença dessa fronteira
torna obrigatória a posição pós-verbal do clítico.
Na fala popular vicentina, encontramos uma conjunção desses mesmos fatores
favorecedores da ênclise, acrescentados do caráter oral do gênero teatral.8 Pela ligação que a
sintaxe de colocação do PCl estabelece entre a ênclise e processos de marcação, de ênfase,
de contraste, é natural fazer a hipótese de que a oralidade desse período é mais enclítica do
que a escrita.9 É o que Paixão de Sousa (2004) observa no estudo dos textos setecentistas das
Mãos Inábeis de Marquilhas (2001).10
Em resumo, não estamos frente a gramáticas distintas mas a usos distintos da mesma
gramática. Isso é coerente com a observação de Martins (2011) de que a sintaxe de colocação
das personagens populares de Gil Vicente é distinta tanto do português arcaico quanto do
português europeu moderno. Isso decorre naturalmente do fato de que a gramática do PCl é
distinta tanto do português arcaico quanto do português europeu moderno.
Referências bibliográficas
Antonelli, André (2011) Sintaxe de posição do verbo e mudança gramatical na história do
português europeu, Tese de doutoramento inédita, Universidade de Campinas.
Barbosa, Pilar (2000)
“Clitics: a window into the null subject property”. In: João Costa
(Ed.), Portuguese Syntax. Oxford University Press, Oxford/New York, pp. 31–93.
Frascarelli, Mara & Roland Hinterholzl (2007) Types of topics in German and Italian. In: S.
8
Não entraremos aqui em considerações rítmicas ligadas à métrica dos versos, que podem ter um efeito também
sobre a colocação dos clíticos.
9
Além do mais, concordo com a idéia defendida por Martins (2011) que a escrita possa sofrer uma influência do
castelhano no sentido de um uso maior da próclise em contextos de variação.
Winkler, & K.Schwabe On Information Structure, Meaning and Form. John Benjamins,
pp. 87-116.
Galves, Charlotte (2002) “Syntax and style in Pe Antonio Vieira”, Santa Barbara
Portuguese Studies, 6, pp. 387-403.
Galves, Charlotte H. Britto & Maria Clara Paixão de Sousa (2005) “The change in clitic
placement from Classical Portuguese to Modern European Portuguese: Results from the
Tycho Brahe Corpus”, Journal of Portuguese Linguistics, 4 (1), pp.39-67.
Galves, Charlotte & Filomena Sandalo (2012) “From intonational phrase to syntactic phase:
the grammaticalization of enclisis in the history of Portuguese”, Língua, 122 (8), pp.
952-974.
Martins, Ana Maria (1994) Clíticos na história do português. Dissertação de Doutoramento,
Universidade de Lisboa.
Martins, Ana Maria (2011) “Clíticos na história do português à luz do teatro vicentino”,
Estúdios de linguística galega 3, pp. 83-109.
Marquilhas, Rita (2001) A Faculdade das Letras, Lisboa: INCM.
Paixão de Sousa, Maria Clara (2004) Língua barroca: o português dos seiscentos.
Dissertação de Doutoramento, Universidade de Campinas.
Rocha, Nil (2009) Clíticos: Ingrediente na Cozinha Portuguesa do século XVII. Dissertação
de Mestrado, Universidade Federal da Bahia.
Torres Moraes, Maria Aparecida (1995) Do português clássico ao português europeu
moderno, um estudo diacrônico da cliticização e do movimento do verbo. Dissertação de
Doutoramento, Universidade de Campinas.
Corpus Tycho Brahe www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus
9
É interessante notar que, apesar de encontrar uma sintaxe de colocação mais enclítica do que a dos autores
eruditos da época, Paixão de Sousa encontra nos textos das mãos inábeis uma sintaxe de posição do sujeito
idêntica. Isso sugere que estamos frente à mesma gramática, com um uso mais recorrente da ênclise.
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