Relações Oficiais e Diplomáticas

Propaganda
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
parte 2
Relações Oficiais
e Diplomáticas
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
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A diplomacia brasileira perante o potencial e as pretensões belgas
Pa u l o R o b e r t o d e A l m e i d a
Preliminares
de Antuérpia (Onody, 1973, p. 281). Os contatos devem ter continuado, e se ampliado, durante a ocupação holandesa do Nordeste
brasileiro, com as interrupções e rupturas que se seguiram às guerras prolongadas e à reconquista final do território pelas forças da
metrópole portuguesa e dos residentes locais. A presença, nos dois
lados, de famílias judias e cristãs-novas dedicadas ao comércio e
às finanças deve ter assegurado a manutenção de vários tipos de
vínculos entre a economia exportadora do Brasil e os grandes núcleos de comércio controlados pelas companhias dos Países Baixos
na Europa setentrional: os portos sob sua “jurisdição” comercial
sempre foram grandes distribuidores do açúcar brasileiro e de outros produtos exportados pela colônia. A ascensão subsequente dos
interesses comerciais ingleses, no seguimento da derrota e da associação dos grandes comerciantes holandeses àqueles depois das
guerras mercantilistas travadas entre as duas maiores potências comerciais da Europa do norte, podem ter consolidado alguns desses
laços, a despeito da política exclusivista da metrópole portuguesa,
mesmo a partir dos crescentes vínculos de dependência lusitana
em relação à Inglaterra depois da Restauração (1640).
O
Reino da Bélgica ocupa, na história econômica do Brasil,
uma importância especial, provavelmente similar àquela
ocupada por Portugal na história mundial das navegações e dos
descobrimentos: dois pequenos países, de dimensões geograficamente reduzidas e dispondo de recursos econômicos e humanos
bastante limitados, mas que, no entanto, desempenharam, em
suas esferas respectivas, papéis significativos na abertura de novos horizontes econômicos e na exploração de novas atividades
humanas.
Portugal, um reino periférico, com uma sociedade ainda bastante atrasada, mas dotado de um Estado relativamente “moderno” para os padrões da baixa Idade Média, avançou decisivamente,
desde o início do século 15, na conquista de novos territórios, a
partir de seu posicionamento geográfico ímpar e apoiado numa
aliança entre seus mercadores e líderes políticos dotados de grande
élan empreendedor, embora também animados pela fé missionária típica do espírito das cruzadas.
A Bélgica, constituída como Estado independente vários séculos depois de Portugal, e oito anos depois do Império do Brasil,
desempenhou, no entanto, mesmo antes de sua autonomia política, mas sobretudo depois, um papel de destaque na primeira revolução industrial (a do carvão e do aço) e avançou, já no contexto
da segunda revolução industrial (a da química e da eletricidade),
para posições relevantes na industrialização e modernização da
infraestrutura do Brasil. De forma não surpreendente, portanto,
os vínculos diplomáticos entre os dois países se contam entre os
mais duradouros, estáveis e promissores nas suas histórias diplomáticas respectivas e nas suas relações bilaterais, de todos os tipos.
As relações Brasil-Bélgica no século 19
As relações oficiais, de governo a governo, começam logo
após o rápido reconhecimento pelo Brasil do novo Estado europeu, o que se deve tanto ao alinhamento do primeiro reinado à
política inglesa para o continente europeu quanto o desejo de
ampliar o reconhecimento diplomático do novo Império sul-americano no contexto europeu (Stols, 1999, p. 210). O Brasil manteve, quase sempre, diplomatas profissionais à frente da legação
em Bruxelas, sendo que já mantinha um cônsul de carreira desde
antes da independência belga. O reino também despachou representante ao Brasil assim que foi possível fazê-lo (1834), logrando-se, logo em seguida, a assinatura de um tratado de comércio
(Stols, 1999, p. 209-210).
Comércio à parte, muitos jovens brasileiros fizeram estudos
universitários em diversas instituições belgas, geralmente em medicina ou nas escolas politécnicas das universidades de Bruxelas e
O quadro histórico
São antigas as relações, geralmente comerciais, entre o território da Flândria e a maior colônia do Império português. Um
historiador informa que, já no século 16, o engenho de açúcar de
Erasmo, em Santos, tinha relações financeiras com a casa Schetz,
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
a ­Grã-Bretanha, no seguimento da chamada Questão Christie
(Stols, 1973, p. 259), o que certamente agregou ao capital de simpatia de que dispunha o pequeno reino entre os brasileiros em
geral, e entre os diplomatas em particular. Pedro II visitou várias
vezes a Bélgica, no curso de suas diversas viagens internacionais.
A partir de então, iniciativas belgas para efetuar negócios e empreender investimentos diretos no Brasil sempre foram acolhidas
com boa vontade, a exemplo de projetos em estradas de ferro, da
navegação do Paraguai e da exploração e transformação de recursos naturais no Mato Grosso (Garcia, 2009; Stols, 1987).
Menor sucesso, porém, tiveram as investidas e os projetos
colonialistas de Leopoldo II em direção do Brasil (Stols, 1987;
1999, p. 231), inclusive porque o Brasil não podia ser equiparado às terras incógnitas da Ásia ou da África, como os diplomatas
brasileiros não deixavam de recordar. Os empreendimentos claramente capitalistas crescem então em importância: um primeiro
investimento direto, na Société Anonyme du Gaz de Rio de Janeiro, é feito desde 1886 (Onody, 1973, p. 300), seguido de diversos
outros, sobretudo no setor ferroviário. Ocorre então uma vaga
de investimentos belgas no Brasil no final do século 19 e início
do 20, paralelamente a outros investimentos belgas efetuados na
Rússia, no Congo, no Egito, entre outros países: Stols identifica
pelo menos 57 companhias belgas autorizadas a operar no Brasil
entre 1876 e 1920, disseminadas por quase todo o território brasileiro (1973, p. 262-265).
Carro Imperial construído em 1886 na Bélgica para servir ao Imperador Pedro II.
Gand (Stols, 1999, p. 211). O Brasil, obviamente, vendia sobretudo café – não apenas para a Bélgica, mas a partir da Bélgica para
diversos outros clientes na Europa do norte – e adquiria do país
materiais diversos, entre eles equipamentos militares, como armas
de guerra, especialidade das fábricas de Liège.
O primeiro estudo sério das contas públicas brasileiras foi efetuado no início do segundo império pelo ministro belga no Rio
de Janeiro, o Conde Auguste Van der Straten Ponthoz, em três
grossos volumes: Le Budget du Brésil (1847). Pelo exame da distribuição de recursos entre as legações e os consulados do Brasil no
exterior se podia constatar a hierarquia diplomática estabelecida
pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros: as despesas alocadas,
conjuntamente com as representações na Bélgica e na Holanda
ascendiam a 5,3 contos de réis, em paridade com os recursos atribuídos à representação em Montevidéu e pouco abaixo de Assunção, mas bem abaixo (num distante 15º lugar) dos montantes
alocados à primeira legação em importância, Londres, que recebia 16,4 contos no orçamento de 1846-47 (Ponthoz, 1847: 169).
À margem das observações críticas que o ministro belga fazia
sobre o orçamento brasileiro, o interesse maior – dos dois países,
aliás – estava concentrado no comércio e, do lado brasileiro, na
imigração belga para o Brasil, embora a permanência do tráfico,
primeiro, e da escravidão, durante quase todo o século 19, tenha
limitado bastante as possibilidades de cooperação nesse particular.
Mas a Bélgica podia servir de centro de recrutamento para agricultores da Alemanha e de outras regiões da Europa, da mesma
forma como os portos da Bélgica e da Holanda eram receptores
e distribuidores dos principais produtos brasileiros de exportação
nas mesmas regiões (Almeida, 2005).
Há também o registro positivo da arbitragem efetuada em 1863
pelo rei da Bélgica, Leopoldo I, em favor do Brasil, no caso do
conflito político e do rompimento de relações diplomáticas com
Os investimentos belgas no Brasil no início do
século 20
Os investimentos se diversificam no início do século 20, mas
o destaque cabe, sem qualquer hesitação, ao setor mineral e metalúrgico, ramo no qual a companhia Belgo-Mineira pode ser
considerada como a pioneira efetiva do início dessa indústria no
Brasil (Stols, 2013). A indústria leve de transformação – têxtil,
vidro, confecções, marcenaria, papelaria e impressão – e os serviços comerciais e financeiros também concentram a atenção dos
investidores belgas, que chegam a representar parte substancial
dos investimentos diretos estrangeiros no Brasil nesse período
(embora com presença mais modesta na vertente dos empréstimos puramente financeiros, a despeito mesmo da participação
de bancos belgas em algumas operações de valorização do café,
conduzidas nessa época).
Deve-se considerar, também, que muitos interesses belgas estavam representados por, ou associados a, capitais e companhias
inglesas, francesas ou holandesas, e que boa parte dos aportes diretos foram feitos em capital humano, embutido nos trabalhadores
e técnicos especializados que emigraram ao Brasil, cuja dimensão
econômica é de difícil avaliação (Stols, 1973, 1999).
Essa presença dispunha da simpatia manifesta da diplomacia
brasileira, que sempre manteve em Bruxelas diplomatas experientes. A reciprocidade nessa área se deu sobretudo pela participação
brasileira em exposições universais e outras mostras internacionais
que eram realizadas na Bélgica, na época áurea do exibicionismo
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Carro utilizado pelo Rei Alberto I, da Bélgica, em sua visita ao Brasil em 1920. Construído nas oficinas do Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. O autor do projeto art
nouveau do carro não foi identificado.
O desenvolvimento das relações nos últimos
cem anos
burguês (Pesavento, 1997). O engajamento do Brasil nesse tipo
de empreendimento se deveu em grande medida a diplomatas
brasileiros, a exemplo de Brazílio Itiberê da Cunha, ministro em
Bruxelas e grande entusiasta dos congressos de “expansão econômica”, tal como ele havia visto e participado em Gand, no início
do século (Cunha, 1907).
O auge do bom relacionamento diplomático ficou claramente evidenciado pela visita de alto nível, inédita, de um soberano
europeu, feita ao Brasil em 1920 pelo Rei Alberto I, cuja comitiva
deslocou-se inclusive ao Estado do Presidente Artur Bernardes,
Minas Gerais, visita da qual resultou justamente a criação da
Companhia Belgo-Mineira (aliás, belgo-luxemburguesa) no ano
seguinte (Stols, 2013). O convite formal para a visita de Estado
tinha sido formulado pelo delegado do Brasil na conferência de
Versalhes, Epitácio Pessoa, no contexto da enorme popularidade do “rei-soldado” que tinha despertado a admiração de todos
os brasileiros por sua corajosa participação na resistência militar
do exército belga contra a ofensiva alemã na Primeira Guerra
Mundial (Baptista, 2008).
No curso do século 20, o Brasil continuou a marcar sua presença político-diplomática na Bélgica, pela participação, por exemplo, em feiras e exposições universais organizadas no reino, bem
como no terreno econômico, pela organização de mostras especiais de seu esforço de expansão comercial – como a “Brasil Export”, de 1973, perturbada pelas manifestações contra a ditadura
militar – e pela instalação de companhias brasileiras em sua capital, entre elas a grande exportadora de minério de ferro, Vale
do Rio Doce. A Companhia Belgo-Mineira, por sua vez, sempre
representou bem mais do que uma simples siderúrgica – setor no
qual, aliás, ela colocou o Brasil à frente de todos os outros países
latino-americanos – e soube se integrar perfeitamente à paisagem
mineira e à economia brasileira em seu esforço de industrialização, sem descuidar das atividades culturais e esportivas.
Trata-se de uma das mais longas relações diplomáticas mantidas bilateralmente pelo Brasil de forma ininterrupta desde a cria-
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ção do reino – à exceção de pequeno período de ausência física
durante a Segunda Guerra Mundial, sem que isso, porém, significasse rompimento diplomático –, numa interação que alimentou,
igualmente, um dos mais profícuos exemplos de cooperação cultural e educacional em benefício do Brasil: milhares de estudantes
brasileiros, em todas as épocas, formaram-se no terceiro ciclo e/ou
aperfeiçoaram-se cientificamente nas mais diversas instituições superiores da Bélgica, o que também confirma o argumento que iniciou este pequeno ensaio: a despeito de ser um país relativamente
pequeno, a Bélgica ocupa um peso e uma importância desproporcionais no processo de modernização econômica brasileira e na
sua presença político-diplomática, educacional e cultural mundial.
BAPTISTA, Paulo Francisco Donadio. “Tem Rei no Mar”, Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 34, julho 2008. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.
br/secao/artigos/tem-rei-no-mar>.
CUNHA, Brazílio Itiberê da. Expansão Econômica Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1907.
GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Território e negócios na “Era dos Impérios”: os belgas
na fronteira Oeste do Brasil. Brasília: Funag, 2009.
ONODY, Oliver, “Quelques Aspects Historiques des Capitaux Étrangers au Brésil”. In:
Colloques Internationaux du Centre National de la Recherche Scientifique, n. 543,
L’Histoire Quantitative du Brésil de 1800 a 1930. Paris: Éditions du Centre National
de la Recherche Scientifique, 1973, p. 269-314.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: espetáculos da modernidade do século
XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
PONTHOZ, Comte Auguste Van der Straten. Le Budget du Brésil ou recherches sur les
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digital disponível na Bayerische StaatsBibliothek. Disponível em: <http://reader.digitale-sammlungen.de/resolve/display/bsb10310302.html>. STOLS, Eddy, “Présence et activités diplomatiques de l’Empire du Brésil dans le Royaume de Belgique
(1830-1889)”. In: MATTOSO, Katia de Queirós; DOS SANTOS, Idelette MuzartFonseca; ROLLAND, Denis (orgs.). Le Brésil, l’Europe et les équilibres internationaux XVIe-XXe siècles. Paris: Presses Universitaires de France, Centre d’Études sur
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STOLS, Eddy. “Les Belges au Mato Grosso et en Amazonie, ou la récidive de l’aventure
congolaise”. In: DUMOULIN, Michel; STOLS, Eddy (orgs.). La Belgique et l’étranger au XIXe et XXe siècles. Louvain-La-Neuve:Collège Érasme; Éditions Nauwelaerts,
1987, p. 77-112.
STOLS, Eddy. “Les Investissements Belges au Brésil (1830-1914)”. In: Colloques Internationaux du Centre National de la Recherche Scientifique, n. 543, L’Histoire Quantitative du Brésil de 1800 a 1930. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche
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STOLS, Eddy. “Présences belges et luxemburgeoises dans la modernisation et l’industrialisation du Brésil”. In DE PRINS, Bart; STOLS, Eddy; VERBERCKMOES, Johan
(orgs.). Brasil, Cultures et Economies de Quatre Continents. Lovaina, Acco, 2001,
p. 121-164.
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Livre de Bruxelas (1984); Mestre em Planejamento Econômico pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade
do Estado de Antuérpia (1977); Bacharel em Ciências Sociais pela
Universidade Livre de Bruxelas (1975); diplomata de carreira desde
1977; professor nos programas de Mestrado e Doutorado em Direito
do Centro Universitário de Brasília (Uniceub); autor de diversas obras
de Relações Internacionais, especialmente na vertente econômica, sobre a integração regional e de história diplomática brasileira; página
pessoal: www.pralmeida.org.
Referências
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações
econômicas internacionais no Império. 2. ed.; São Paulo/Brasília: Senac-SP/Funag,
2005.
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Dois diplomatas belgas no Brasil imperial: Edouard de Jaegher
(1839-1843) e Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz (1845-1849)
M i lt o n C a r l o s C o s ta
Introdução
Jaegher deteve-se na análise das relações entre o Brasil e a Inglaterra. “Há uma potência da qual o dedo está gravado sobre os
principais acontecimentos do Brasil: a Inglaterra”, afirmou Jaegher
em 1º de agosto de 1840. Na mesma carta, o diplomata afirma que
a Inglaterra impediu a recolonização do Brasil e conseguiu uma
sólida posição no país com os tratados de 1810 e 1826, que lhe
deram favores excepcionais, garantindo seus interesses de potência
comercial, industrial e colonial.
Para Jaegher, a posição privilegiada da Inglaterra sofreu uma
degradação com o tempo: de um lado, devido ao desenvolvimento
do país (produção agrícola etc.), de outro, com a concorrência, a
partir de 1836, de países como Portugal, França, Estados Unidos.
Ademais, o Brasil deixara claro seu desejo de não renovar os tratados existentes.
Jaegher tratou em sua correspondência, largamente, dos conflitos platinos, detendo-se muitas vezes na análise de Rosas e de sua
política. O diplomata faz dele uma caracterização completa, um
retrato brilhante, não isento de fascínio pelo retratado, em cartas
de 16 e 24 de setembro de 1840:
“Rosas, de seu lado, escuta o ministro da Inglaterra, mas só
segue suas opiniões na medida em que elas correspondem a suas
ideias pessoais. Impassível no meio dos perigos que o ameaçam,
ele parece não preocupar-se com sua grandeza; indiferente a tudo o que atrás dele cairia com ela, ele retomaria, meio selvagem
ainda como ele as deixou, suas emboscadas, suas armas de caça;
intrépido cavaleiro, combatente astuto, ele não teme seu homem
quem quer que ele seja; ele sempre será o chefe dos caçadores do
touro selvagem, se ele não é mais o chefe de sua República. Com
homens como esses, que não recuam diante de nada, que sabem
espalhar, sucessivamente e segundo as fraquezas, o ouro e o terror,
não há nunca nada de positivo antes de ocorrer. Dez dias de demora, num golpe repentino como o de Lavalle, diante de um homem
oportunista como Rosas, é excessivo.”
Quanto ao Império brasileiro, Jaegher insistiu muito na necessidade de reformas institucionais, o que parecia estar ligado à sua
concepção de um equilíbrio constitucional necessário ao funcionamento harmônico das instituições brasileiras.
O diplomata parecia inclinar-se por uma monarquia forte, ativa, ilustrada e popular. Era obcecado pela manutenção da monarquia brasileira e pelo fantasma do republicanismo. A análise que
fez da guerra em geral e das rebeliões brasileiras – e também dos
conflitos platinos – mostra como ele esteve atento à sua consideração como fenômeno global, tratando tanto da crônica militar
quanto da influência dos fatores políticos, das finanças, do contrabando e do comércio.
A
reconstituição e análise da visão do Império brasileiro pelos
diplomatas belgas acreditados no País permite apreciar a história brasileira e platina da época – um período particularmente
complexo e desafiante – a partir de um ângulo diferente: de uma
perspectiva europeia.
Neste artigo apresentamos uma síntese interpretativa da correspondência política enviada para o governo belga sobre o Brasil
imperial por dois diplomatas dos mais interessantes que estiveram
no Brasil: Edouard de Jaegher e Van der Straten Ponthoz.
Edouard de Jaegher (27/07/1806 – 06/03/1883)
Edouard de Jaegher substituiu Benjamin Mary como encarregado de negócios da Bélgica no Brasil. Nasceu em Bruges. Entrou
muito cedo na administração do Brabante Meridional. Por Arrêté
Royal do Rei Guilherme I, de 20 de agosto de 1825, juntou-se à
missão do Visconde L. P. J. Dubus de Ghisignies, governador do
Brabante Meridional, o qual acabava de ser nomeado ComissárioGeral para as Índias Orientais Holandesas.
Jaegher fazia parte do grupo de cinco funcionários que assessoravam aquela autoridade colonial. Permaneceu no posto do
começo de 1826, quando chegou às Índias Orientais, a junho de
1830, data de seu retorno à Bélgica.
Após a Revolução da Independência belga, Jaegher entrou na
administração do país tornando-se comissário distrital em Oudenarde, função na qual permaneceu até 1839. Em 9 de junho de
1835 foi eleito deputado por sua comuna e esteve na Câmara de
Deputados até 11 de junho de 1839.
O novo diplomata chegou ao Rio de Janeiro em 2 de outubro
de 1839, permanecendo no Brasil até novembro de 1843.
Nomeado encarregado de negócios junto às cortes da Suécia
e da Noruega, estabeleceu-se em Estocolmo e aí ficou até o fim
de 1847. Sua nomeação como ministro residente junto à corte de
Madri foi feita em 12 de novembro de 1847. Permaneceu pouco
tempo na Espanha sendo chamado à Bélgica para ocupar um alto
posto administrativo.
Nomeado governador da Flandres Oriental em 1º de setembro de 1848, passou a exercer a função no dia 6 do mesmo mês
e permaneceu no cargo por 23 anos, até agosto de 1831, quando
sua demissão honrosa por motivo de idade foi aceita.
Uma nota de 1878 mostrava-o vivendo em Bruxelas como aposentado do Estado belga. Sua morte ocorreu em Uccle, a 6 de
março de 1883, segundo informação de seu irmão.
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz
(14/09/1812 – 23/02/1900)
Ele via com muita clareza o fenômeno do expansionismo
americano e foi crítico em relação a certos aspectos da realidade
norte-americana. Tais posições são devidas, provavelmente, à sua
permanência durante certo tempo nos Estados Unidos. Foi o único dos representantes belgas no Brasil que atribuiu a uma causa
econômica as rebeliões que sacudiram o País entre 1831 e 1849.
Afirma ele em carta de 26/2/1849 que “[...] a população das
províncias não cessa de girar num círculo de desordens que são produzidas pela falta de atividades econômicas das quais essas desordens impedem todo impulso”. Ponthoz esteve longe da obsessão de
Jaegher em relação à permanência e consolidação da monarquia
brasileira. Assim, ele viu de maneira realista um possível desmembramento do Sudoeste brasileiro do resto do País, contando com
a emigração europeia para apoiar os interesses da Europa no caso
da concretização da hipótese.
Interessante é sua ideia de que os fatores pessoais dominavam
no Brasil os negócios do Estado, chamando a atenção para um
fenômeno realmente importante da história brasileira.
O diplomata deixou uma análise bastante clara dos partidos
políticos do Império. Em carta de 7/10/1848, ele traçou a origem
dos dois partidos do Brasil monárquico:
“A influência que trouxe a independência do Império em 1822
e a abdicação de D. Pedro I em 1831 exagerando suas doutrinas,
deveria chegar por novas agitações a uma organização republicana.
Então se organiza um partido conservador que empreendeu salvar a
ordem e as instituições, enquanto que um outro partido saía da revolução e da democracia para se reunir à monarquia ao mesmo tempo em que prosseguia o desenvolvimento das instituições liberais.”
Ponthoz mostrou em 27/9/1847 quais eram esses partidos e
suas características:
“[...] dois partidos principais dividem o Brasil. Eles se chamam
Saquarema e Santa Luzia nomes de localidades assinaladas por
perturbações políticas do Império; nós os conservaremos para prevenir assimilações inexatas. Os Saquarema invocam o princípio monárquico como base de toda organização política. Os Santa Luzia
invocam o princípio das instituições liberais regularizadas e desenvolvidas sob os auspícios da monarquia. Esses dois partidos se acusam mutuamente de tendências despóticas pelo exagero das medidas de ordem e anárquicas pelo exagero das medidas de progresso.”
O conde Ponthoz foi o sucessor de Jaegher como representante diplomático belga no Brasil. Entrou na diplomacia em 1838,
inicialmente junto à legação belga em Estocolmo, da qual se tornou Segundo Secretário em 1839. Em 1840 foi transferido para
Washington, sendo promovido a Primeiro Secretário.
Representou a Bélgica no Brasil entre outubro de 1845 – sua
primeira carta do Rio é de 22/10/1845 – e 1849 – sua última carta
foi escrita em 14/04/1849.
Ponthoz esperou a chegada de seu substituto, J. Lannoy, antes
de regressar a seu país, apresentando-o ao corpo diplomático e às
mais influentes personalidades do País. Lannoy afirmou que seu
antecessor havia estabelecido excelentes relações, sendo tido em
alta consideração no Rio de Janeiro.
Ponthoz foi nomeado em seguida para Lisboa (1848), como
encarregado de negócios. Em 1853 foi designado para ocupar
as mesmas funções em Madri, sendo elevado em 1850 à categoria de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário. Nessa
última qualidade esteve sucessivamente em Munique (1867) e
Haia (1881).
Durante sua permanência em Haia, participou como plenipotenciário belga da Conferência Africana (15/11/1884 a
26/02/1885).
Teve participação ativa: “Oficialmente ou nos bastidores, nossos
delegados desenvolveram neste momento uma incessante atividade
para obter o reconhecimento por todos do novo Estado Independente do Congo. Eles foram vitoriosos”. É o que afirma a Biographie
Coloniale Belge, t. V, col. 779.
Ponthoz foi colocado em disponibilidade a seu pedido e aposentado em 1888, retirando-se ao castelo de Ponthoz onde dedicou
seu tempo livre à redação de suas memórias. Anteriormente, em
plena atividade profissional, escrevera dois livros: Pesquisas sobre
a situação dos emigrantes nos Estados Unidos (Bruxelas, 1846)
e O orçamento do Brasil (3 vols., Bruxelas, 1845). O título completo da obra é: Le budget du Brésil, ou recherches sur les ressources de cetempire dans leurs rapports avec les intérêts du européens
du commerce et de l’émigration. Como é demonstrado pelo título
mesmo de suas obras, Ponthoz dedicou atenção especial ao tema da emigração, esboçando, numa de suas cartas ao ministro
de Relações Exteriores da Bélgica (2/12/1845), uma “teoria” da
emigração europeia para a América do Sul. Ele atribui a ela uma
função estratégica na defesa dos interesses econômicos e políticos
da Europa industrializada.
Ponthoz combinava seu realismo com um certo visionarismo,
presente nas perspectivas otimistas que visualizava para a emigração europeia em direção aos países sul-americanos e em seu
plano de libertação do Brasil de sua dependência financeira em
relação à Inglaterra.
Mílton Carlos Costa é graduado em História pela Universidade
Católica de Lovaina, Doutor em História Social pela Universidade
de São Paulo, Livre-Docente em Introdução aos Estudos Históricos
pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp)- campus de Assis, professor e pesquisador de História do Brasil e Historiografia na
Unesp-Assis.
Referência
COSTA, Milton Carlos. Visões políticas do Império. Diplomatas belgas no Brasil (18341864). São Paulo: Annablume, 2011.
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Oliveira Lima: um homem certo no lugar certo
Clodoaldo Bueno
M
que culminariam no Tratado de Petrópolis (1903), que pôs fim à
difícil questão do Acre.
Removido para Caracas, assumiu a legação em 12 de março
de 1905 após resistências afinal vencidas por Rio Branco que lhe
concedeu vantagens funcionais e prometeu-lhe um posto na Europa. Pouco tempo ficou na Venezuela; só o suficiente para assinar o protocolo do tratado de delimitação de fronteiras entre os
dois países, em 9 de dezembro de 1905. Governava a Venezuela
o caudilho Cipriano Castro, a quem chegou a admirar, conforme
exprimiu-se em carta a Nabuco, “pela sua energia e desassombro”, qualificando-o como “um lutador nato”. Caracas foi para o
diplomata pernambucano um ponto de observação privilegiado
para conhecer a prática do monroísmo de Theodore Roosevelt,
consubstanciado no big stick, levando-o a formular reservas ao
pan-americanismo dos Estados Unidos tal como concebido pelo
seu presidente em 1906.
Depois de recusar a legação brasileira na Cidade do México,
Lima foi nomeado para chefiar a de Bruxelas, alcançando, finalmente, o ambicionado posto na Europa. A cidade casava bem com
seu perfil de historiador e homem de letras (em 1897, com apenas
29 anos de idade, Oliveira Lima tornou-se membro da Academia
Brasileira de Letras), pois, além de culta e agradável, permitia-lhe
visitar outros grandes centros europeus para coletar material para
suas pesquisas históricas. A função na Bélgica foi exercida cumulativamente com a legação do Brasil em Estocolmo.
Lima assumiu a legação em Bruxelas em 2 de março de 1908
e em 7 de abril entregou sua credencial ao Rei Leopoldo II (18351909). Apenas decorridos 15 dias de sua chegada, Lima enviou a
Rio Branco relatório sobre questões políticas e perspectivas econômicas da Bélgica e da colônia do Congo. Referiu-se ainda a uma
possível imigração belga para o Brasil.
O rei dos belgas estava atento às possibilidades de investimentos e incremento do intercâmbio comercial com o Brasil, coincidindo com as concepções do diplomata. Causa surpresa ao observador de hoje o fato de Lima, crítico da política imperialista
norte-americana, ter formado opinião positiva sobre Leopoldo II,
bem como de sua política imperialista no Congo. Para Gouvêa, a
identificação de Oliveira Lima com o imperialismo belga foi um
erro de previsão histórica.
Além dos assuntos próprios da política externa, Lima enviava
relatórios, ofícios e publicações de interesse prático para o Brasil,
como o artigo sobre o aproveitamento do solo em face do industrialismo exagerado em voga na Europa. Prefaciou o livro (1910)
sobre o ensino profissional e agrícola do engenheiro belga Armand
Ledent, ligado, inclusive, ao projeto da Escola Agrícola de Piracicaba (SP) e ao ensino agrícola profissional em Araras. Da mesma
forma levava ao conhecimento da chancelaria tudo o que interessava à indústria açucareira do Brasil. Na mesma linha, inspirou
anoel de Oliveira Lima nasceu na cidade de Recife no Natal
de 1867. Seu pai, comerciante português lá estabelecido,
retornou velho para sua terra natal após formar bom patrimônio.
Manoel foi praticamente criado em Lisboa, aonde chegou com
seis anos de idade. Teve vida confortável e pôde desfrutar de bom
ambiente cultural. Cursou a Faculdade de Letras, e teve oportunidade de conhecer Teófilo Braga, de quem foi discípulo.
Durante seus estudos em Lisboa dedicou-se às então chamadas “ciências auxiliares” da história, o que lhe desenvolveu o gosto pelo trato das fontes documentais. Em julho de 1883 escreveu
uma série de artigos para o Comércio de Lisboa e em agosto de
1885 iniciou sua colaboração para o Jornal do Recife. Crítico ferino, escreveu sobre história, literatura, artes plásticas, arquitetura e
teatro. Apesar de prevenções antibritânicas, admirava a Inglaterra
(Gouvêa, 1976, p. 86-87, 94-5, 97-8).
Após a conclusão de seus estudos (1888), buscou um cargo
na carreira diplomática, o que conseguiu logo depois (1890), ainda jovem, sendo nomeado 2º Secretário da legação do Brasil em
Lisboa por Quintino Bocaiúva, primeiro Ministro das Relações
Exteriores da recém-implantada República no Brasil. Em maio
de 1892 foi removido para Berlim, e lá permaneceu por três anos.
Em maio de 1896 assumiu o cargo de 1º Secretário da legação
brasileira em Washington, onde foi subordinado e admirador de
Salvador de Mendonça. Em razão de desavenças pessoais com J.
F. de Assis Brasil, sucessor daquele na chefia da legação, Oliveira
Lima pediu e obteve remoção para Londres, para aonde partiu de
Nova York em janeiro de 1900. Pouco ficou nesse cargo, pois foi
nomeado Encarregado de Negócios no Japão, cuja legação assumiu em junho do ano seguinte (Gouvêa, p. 359-394, 285, 319).
Em novembro de 1902 foi promovido a Enviado Extraordinário e
Ministro Plenipotenciário no Peru, mas permaneceu no Japão até 7
de março do ano seguinte, quando embarcou em direção ao Brasil.
O novo Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco, confirmou sua nomeação para o Peru, mas pediu-lhe a presença imediata no Rio a fim de passar-lhe instruções antes de seguir
para Lima, pois contava com seus conhecimentos para acompanhar os problemas de fronteira entre Peru e Bolívia que interessavam ao Brasil, então às voltas com a questão do Acre (Gouvêa, p.
443-5; Almeida, p. 252).
Lima, todavia, em correspondência oficial e particular nada
mencionou a esse respeito, além de ter significado seu desagrado
com a nomeação para o Peru e reiterado suas solicitações referentes a vencimentos e licença. Afora isso, Lima retardou sua chegada
ao Rio de Janeiro, o que Rio Branco interpretou como recusa ou
desinteresse em participar das negociações para as quais estava
preparado. Mesmo nomeado, Lima não chegou a ir para a capital do Peru, pois o Chanceler reteve-o no Rio de Janeiro, a título
de aguardo de instruções, mas deixando-o alheio às conversações
63
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
a publicação de artigos sobre o Brasil na imprensa belga, como o
do Etoile Belge (25/1/1909) sobre o Estado de Pernambuco e sua
indústria açucareira (cf. Gouvêa, 1976, pp. 669-814).
Lima foi adepto da diplomacia econômica, à época também
designada por diplomacia moderna, no entendimento de que o
alargamento das relações mercantis solucionaria os problemas
econômicos nacionais. A diplomacia do século XX, dizia, seria
“muito mais comercial do que política”. Ao pedir a “republicanização” da diplomacia do Brasil, opinou que sua “tarefa capital,
além da promoção da inteligência política” seria promover a expansão econômica. Lima reiteraria, em 1927, que “os interesses do
Brasil, uma vez descrito e fechado o círculo das nossas fronteiras,
são sobretudo econômicos” (Apud Gouvêa, p. 569, 797, 806, 1635;
Almeida, p. 258-60).
A concepção de diplomacia econômica completava-se em Oliveira Lima com o exercício de bem sucedida diplomacia cultural
na Bélgica, país que ocupava posição privilegiada na Europa como centro econômico e intelectual, o que lhe permitia divulgar os
valores culturais e as possibilidades do Brasil por meio de artigos
em jornais, revistas e conferências. Começou pela Universidade
de Lovaina, onde pronunciou palestras sobre La langue portugaise e La littérature brésilienne em 15 e 18 de janeiro de 1909.
Teve êxito, também, ao criar, às suas expensas, um curso gratuito
de português. Embora não tenha resultado de ação direta da legação, Lima inaugurou a Câmara de Comércio Belgo-Brasileira,
a primeira desta natureza criada pelo Brasil na Europa, associando-se ao empreendimento de Afonso Toledo Bandeira de Melo e
do Comissariado de São Paulo na Exposição Universal (Gouvêa,
p. 814-5, 906-7, 951-3).
Bruxelas facilitava-lhe estabelecer contatos com universidades e participar de reuniões científicas realizadas na Europa na
qualidade de representante do Brasil. Assim, compareceu ao 16º
Congresso Internacional de Americanistas em Viena (9 a 14 set.
1908), ao 9º Congresso Geográfico em Genebra (27 jul. a 6 ago.
1908), para o qual preparou a tese Le Brésil, sés limites, sés voies de
pénétration. As sessões de geografia econômica foram presididas
pelo grande Vidal de La Blache. No congresso de americanistas,
Lima apresentou moção, aprovada por unanimidade, propondo
que nos futuros congressos o português fosse incluído entre as
línguas admitidas, como já o eram o francês, o inglês, o alemão,
o espanhol e o italiano.
Em março de 1909 Rio Branco consultou Lima, estimando
uma resposta positiva, sobre o interesse em representar o Brasil no
Congresso Internacional de História Musical a reunir-se em Viena
nas festas do centenário de Haydn, e redigir “breve mas substancial notícia histórica [da] música no Brasil”. Rio Branco sugeriu o
material a ser usado, remetendo-o juntamente com outros textos
pedidos por Lima, com os quais preparou sua participação e fez
executar trechos de compositores brasileiros, como o clássico José
Maurício. Fez, também, alusão às modinhas e lundus. Antes de ir
para Viena, Lima foi a Paris para a festa franco-brasileira, promovida pela União Latina na Sorbonne, onde fez conferência, em
francês impecável, sobre Machado de Assis et son oeuvre. Ainda
na Sorbonne, Lima deu início, em 15 de março de 1911, a um
curso sobre Formation historique de la nacionalité brésilienne no
anfiteatro Turgot da Faculdade de Letras.
De outubro a dezembro de 1909 Lima esteve em Estocolmo,
na qualidade de ministro, para restabelecer a representação diplomática brasileira junto ao governo da Suécia, com o qual negociou
um convênio de arbitramento. De volta a Bruxelas, em março de
1910, tomou parte na inauguração do Pavilhão Brasileiro na exposição mundial. Na oportunidade, Lima promoveu concerto de
gala, com execução de trechos de composições de maestros brasileiros, como Carlos Gomes, Manoel Joaquim de Macedo, Alberto
Nepomuceno e o violinista Francisco Chiaffitelli.
O momento mais destacado da diplomacia cultural de Oliveira Lima foi a soirée de 4 de abril de 1910, promovida pela Societé Royale Belge de Geographie, no Théâtre de la Monnaie, em
Bruxelas, quando palestrou, na presença do novo rei, Alberto I
(1875-1934), sobre La conquête du Brésil. No decorrer da exposição foram insertos trechos musicais de autores brasileiros e, ao
final, executaram-se uma suíte de Alberto Nepomuceno, a composição do Padre José Maurício (Est incarnatus est), e Tiradentes,
de Manoel Joaquim de Macedo. A festa foi encerrada com a execução dos hinos nacionais brasileiro e belga (La Brabançonne).
O Etoile Belge noticiou o evento (Fleiuss: 1937, p. 276; Gouvêa,
pp. 815-941).
Lima, aborrecido com o rumo que tomava sua carreira, pediu
aposentadoria. O sucessor imediato de Rio Branco no Ministério
das Relações Exteriores, Lauro Müller, para mantê-lo no quadro,
não deu andamento a seu pedido e para que refletisse antes de
consumar uma decisão definitiva sugeriu-lhe uma licença, por ele
aproveitada para ministrar conferências a partir de 1o de outubro
de 1912 na Califórnia (EUA).
Rio Branco, provavelmente por respeitar os talentosos, foi paciente e tolerante com as insolências de Oliveira Lima, cujas posições chegaram a repercutir no legislativo federal, o que levou
o deputado Dunshee de Abranches a fazer a defesa do ministro
das Relações Exteriores na Câmara (Abranches, v. 2, p. 137-202).
Falecido Rio Branco (fevereiro de 1912), a situação funcional de
seu crítico só piorou. Müller não teve autonomia e força suficientes para barrar injunções políticas sobre o Ministério e, assim, o
jornalista-diplomata, em razão de seu destempero verbal e de sua
pena afiada, não teve a nomeação para a legação de Londres, sua
antiga aspiração, referendada pelo Senado (Gouvêa, p. 949-50).
Aborrecido, reiterou seu pedido de aposentadoria, ocorrida em
27 de agosto de 1913. Em 8 de março de 1914 embarcou em Recife com direção a Londres, cidade em que iria estabelecer nova
residência. Passou antes por Bruxelas, onde foi homenageado, de
surpresa, pelos amigos belgas e brasileiros com uma soirée em 22
de abril (Gouvêa, p. 1.181). Em Londres, durante a guerra foi
acusado de ter simpatias pela Alemanha.
Apesar dos riscos de uma travessia marítima no Atlântico norte em razão do conflito mundial, viajou para os Estados Unidos
em outubro de 1915 a fim de proferir uma série de palestras sobre história e economia da América Latina na Universidade de
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Nadou contra a corrente, também, ao posicionar-se contrariamente ao alinhamento diplomático do Brasil aos Estados Unidos,
inaugurado pela República. Neste ponto divergiu de seu ex-amigo
Joaquim Nabuco, então embaixador do Brasil em Washington,
um sonhador como outros norte-americanistas brasileiros, iludidos
com eventual apoio norte-americano contra “imaginadas absorções europeias” ou “aventuras belicosas dentro do continente” (Cf. e
apud Gouvêa, p. 738). Apesar de crítico, neste aspecto concordou
com Rio Branco, pois este cultivou a amizade norte-americana,
mas com ressalvas e nuances. Lima, coerentemente, aplaudiu o
discurso do Chanceler na abertura da 3ª Conferência Internacional Americana (Rio de Janeiro, 1906), na presença do Secretário
de Estado norte-americano Elihu Root, sobretudo pela ênfase na
relevância da Europa para o Brasil, que recebia seus capitais e
braços para a lavoura.
Oliveira Lima faleceu em Washington em março de 1928,
sentindo-se, segundo suas próprias palavras, escorraçado de seu
próprio país, que não soubera lhe aproveitar o talento. Doou sua
extensa biblioteca (que leva seu nome) à Universidade Católica
das Américas, em Washington, inaugurada em 1924 e organizada,
conforme sonhara, como centro de estudos brasileiros, portugueses e hispano-americanos. Atendendo ao que dispôs em seu testamento, seus restos repousam na capital norte-americana.
Harvard, a convite intermediado pelo Embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, Edwin Morgan. Depois de um semestre
naquela universidade, tentou voltar à Inglaterra, mas sem sucesso
por ter sido incluído na black list das personalidades impedidas
de entrar no país.
Em julho de 1918 Lima chegou a Buenos Aires a convite do
Instituto Popular de Conferências, presidido por Estanisláo Zeballos (Gouvêa, p. 1.311, 1.459). Permaneceu sete meses na Argentina, conhecendo o país e proferindo conferências em várias
instituições. Em agosto de 1920 embarcou no Avaré, em Recife, em
direção aos Estados Unidos, onde fixaria sua derradeira residência.
Ainda viajaria em 1923 para a Alemanha, para tratamento de saúde,
e Portugal, onde proferiu conferências, uma delas na Faculdade de
Letras por ocasião da inauguração da Cadeira de Estudos Brasileiros. De volta a Washington, em 10 de janeiro de 1924 começou a
reger a cadeira de Direito Internacional na Universidade Católica.
Oliveira Lima foi adequadamente caracterizado por seu conterrâneo Gilberto Freire como nosso Dom Quixote Gordo (Veja-se Almeida, 2002, p. 234). Homem de pensamento original que
não tinha receio de expor e defender suas ideias, mesmo quando
contrariavam, o que normalmente ocorria, correntes de pensamento em voga. Destemido e sem fazer concessões, sobretudo
em questões de princípio, não raro surpreendia a quem acompanhasse os caminhos do seu pensamento, como, por exemplo,
quando divergiu das posições de Rui Barbosa, a quem admirava,
expostas no discurso, de ampla repercussão, inclusive no exterior,
que fez em Buenos Aires (14 jul. 1916) favoráveis aos Aliados na
Grande Guerra (1914-18). Fiel ao seu pacifismo, Lima defendeu
a neutralidade brasileira.
Outra polêmica, que acabou lhe custando o posto na diplomacia por conta de seu brio e amor próprio feridos, foi sua manifesta simpatia pela monarquia. Apesar de republicano desde moço,
interpreta-se que Lima, após sua estada em Caracas à época da
presidência de Cipriano Castro, viu de perto os males que o caudilhismo fazia à América Latina, constatação que, somada ao que
observava no seu próprio país, onde políticos da jovem república
lambuzavam-se no poder, provocou-lhe o desencanto com o novo
regime, a partir do que passou a vislumbrar aspectos positivos nos
regimes monárquicos, destacando que não eram antinômicos à
democracia e se ajustavam bem às correntes socialistas então em
ascensão na Europa (Malatian, p. 199-202).
Referências
ABRANCHES, Dunshee de. Rio Branco e a política exterior do Brasil (1902-1912). Rio de
Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1945, 2 v.
ALMEIDA, Paulo Roberto de. “O Barão do Rio Branco e Oliveira Lima – vidas paralelas,
itinerários divergentes”. In: CARDIM, Carlos Henrique & ALMINO, João (orgs.).
Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. Pref. de Fernando Henrique
Cardoso. Rio de Janeiro: EMC, 2002, p. 233-278.
CORRÊA, Luiz Felipe de. “Semblanza biografica del autor”. In: LIMA, Manuel de Oliveira. En la Argentina. Buenos Aires: Editorial Centro de Estudios Unión para la
Nueva Mayoría, 1998.
FLEIUSS, Max, Conferência no Instituto Histórico e Geográfico a 23 de maio de 1928.
In: LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José
Olympio, 1937, p. 263-283.
GOUVÊA, Fernando da Cruz. Oliveira Lima, uma biografia. Pref. de Barbosa Lima Sobrinho. Recife: Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, 1976.
3 vol.
LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
MALATIAN, Tereza. Oliveira Lima e a construção do nacionalismo. Bauru, SP: Edusc;
São Paulo, SP: Fapesp, 2001.
Os belgas em Descalvados e na fronteira Oeste do Brasil (1895-1912)
D o m i n g o s Sav i o d a C u n h a G a r c i a
P
ara entender a presença belga na fronteira Oeste do Brasil,
na virada do século XIX para o século XX, é preciso entender
o que se passava no mundo naquele momento. Essa perspectiva
é necessária para termos a dimensão daquela ação e as possibi-
lidades que ela poderia abrir para os belgas, principalmente se
considerarmos a exitosa operação na África do Rei Leopoldo II,
que resultou na formação do Estado Independente do Congo,
um Estado privado de grandes dimensões, encravado entre colô-
65
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
A empresa agroindustrial de Descalvados foi adquirida em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em Antuérpia.
nias e protetorados das principais potências europeias da época.
Concluído o domínio sobre sua colônia africana, Leopoldo
II e sua entourage passaram a procurar outra região do mundo
onde pudessem repetir esse feito e alcançar os lucros advindos do
comércio com produtos de origem extrativa ou produzidos com
matérias-primas não encontradas na Europa. Para isso procuravam uma região com características políticas semelhantes àquelas encontradas na África quando iniciou sua operação naquele
continente: territórios ricos em produtos extrativos com grande
procura nos mercados centrais; populações nativas fragilmente
organizadas, tendo como decorrência a inexistência de fronteiras
entre Estados demarcadas e reconhecidas internacionalmente; territórios disputados por potências europeias, a partir dos interesses
da geopolítica europeia.
Naquele momento, a região Central da América do Sul se
abria para a exploração mercantil, notadamente com o crescente
processo de extração de borracha da seringueira, cujo consumo
aumentava no mercado internacional. O aumento do consumo estimulava a abertura de novas frentes extrativas, que avançavam para
regiões até então pouco atraentes para aquela atividade econômica.
A América do Sul, ao longo do século XIX, era reconhecidamente uma área de influência da Inglaterra. No entanto, na medida em que se aproximava o fim desse século, vimos desenvolver
a força econômica, política e militar dos Estados Unidos, que
assumiram a condição de potência global com a vitoriosa guerra
contra a Espanha em 1898.
Portanto, quando os belgas decidiram iniciar a sua nova frente de atividades no coração da América do Sul, com métodos e
objetivos semelhantes àqueles desenvolvidos na África, o fizeram
no momento em que a geopolítica internacional passava por mudanças importantes.
Mas nada estava decidido e a região central da América do
Sul, rica em borracha e em campos de criação de gado vacum, de
difícil acesso e longe dos centros de decisão, localizados no litoral no caso do Brasil, e próximo à Cordilheira dos Andes, no caso
da Bolívia, era controlada por estados fracos ou fragilizados, cuja
presença nessa região era praticamente inexistente. Dessa forma,
poderiam reaparecer ali as condições para que os belgas, liderados
por Leopoldo II, pudessem repetir o seu feito africano, se as condições da geopolítica internacional o permitissem. E os belgas não
esperaram surgir essas condições; trabalharam para isso.
A compra da empresa agroindustrial de Descalvados, efetuada
em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em Antuérpia com o fim último de comprar aquele empreendimento,
não foi, portanto, uma ação isolada. A fábrica foi comprada da família de Jaime Cibils Buxaréo, um industrial uruguaio de origem
catalã, que já operava no ramo de produção de derivados de carne
e havia construído a fábrica no início da década de 1880.
Descalvados era uma fábrica de extrato de carne estrategicamente localizada na fronteira do Brasil com a Bolívia, em pleno
Pantanal, a maior planície alagada do mundo, possuindo uma área
de um milhão de hectares. A Cibils ainda comprou, em 1899, a
fazenda São José, com área de 500 mil hectares, também localizada no Pantanal e contígua a Descalvados em sua parte sul, perfazendo uma área total de mais de um milhão e quinhentos mil
hectares ou 15 mil quilômetros quadrados.
Nos campos de Descalvados e da São José havia um rebanho
com cerca de 340 mil cabeças de gado bovino, a matéria-prima
para a fábrica, que produzia principalmente extrato de carne, derivados de carne em conserva e couros tratados, produtos que eram
remetidos para o mercado europeu, onde eram bastante apreciados. Possuía máquinas a vapor (produzidas na Bélgica), que acionavam uma usina de eletricidade, a serraria, bombas de água e
permitia à fábrica ter a sua própria produção de embalagens de folhas de flandres, para acondicionar seus produtos para exportação.
Os produtos da fábrica de Descalvados, principalmente o extrato de carne, eram famosos na Europa, onde ganharam prêmios
de qualidade e onde eram oferecidos através de propagandas feitas por postais com imagens do empreendimento localizado na
fronteira Oeste do Brasil.
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Vista da empresa agroindustrial em Descalvados, a Cibils, em fotografia dos anos 1980.
Durante o período em que pertenceu a empresas belgas, o empreendimento era dirigido por gerentes belgas (o primeiro foi François Joseph Van Dionant, que chegou a Descalvados em abril de
1895) e mantido por mão de obra braçal formada por brasileiros,
argentinos, paraguaios e bolivianos, além de um expressivo número de indígenas dos grupos guató e bororo, que habitavam antigas
aldeias existentes na área do empreendimento e que usualmente
eram utilizados no difícil trabalho de manejo do gado bovino.
Entre 1895 e 1897 a empresa rendeu dividendos aos seus sócios e se mostrou um investimento lucrativo. No entanto, em 1897
um fato chama a atenção para os objetivos dos belgas na fronteira
Oeste do Brasil: a legação da Bélgica no Rio de Janeiro solicitou
do governo brasileiro a instalação de um consulado daquele país
em Descalvados. Tal solicitação não foi atendida; o consulado foi
instalado em Corumbá e em Descalvados foi instalado um vice-consulado. O administrador do empreendimento, François Van
Dionant, se tornou também o vice-cônsul da Bélgica e uma bandeira belga passou a tremular em pleno Pantanal, na fronteira do
Brasil com a Bolívia.
Em 1898, procurando defender o rebanho bovino do roubo
provocado por constantes investidas de ladrões provenientes da Bolívia, Van Dionant solicitou do governo do Estado de Mato Grosso
providências para coibir tais ações. Sem ter meios para atender à
solicitação, o governo estadual autorizou os belgas a constituírem
uma força policial própria para conter esses ladrões, forças que
foram organizadas por antigos integrantes da Force Publique, que
Leopoldo II mantinha no seu Estado Independente do Congo, na
África. Daí em diante, os belgas passaram a ter em Descalvados
uma representação diplomática e uma força armada, dominando
um território de mais de 15 mil quilômetros quadrados.
A partir de 1898 outras empresas organizadas por belgas na
Europa vieram se juntar à Compagnie des Produitis Cibils em su-
as operações na fronteira Oeste do Brasil: Compagnie des Caoutchoucs du Matto Grosso, Syndicate de La Banque Africaine, Mercado, Ballivian & Companhia, La Brésilienne, Société Anonyme
l’Abunã e a Comptoir Colonial Française Société Anonime. Eram
empresas dedicadas principalmente à extração de borracha em
afluentes da margem direita do Rio Amazonas, próximo à fronteira com a Bolívia.
A partir de 1901, a própria Compagnie des Produits Cibils também passou a atuar na extração de borracha no Vale do Guaporé,
onde adquiriu três concessões do lado brasileiro desse rio que divide a fronteira do Brasil com a Bolívia. A partir dessas concessões,
a borracha extraída pela Cibils era enviada a Descalvados e, de
lá, para o exterior.
Chama atenção a formação dessas empresas belgas que passaram a atuar na extração de borracha na fronteira Oeste, se juntando à Cibils, pois seus principais acionistas eram praticamente os
mesmos, se entrelaçando em diferentes composições acionárias.
Para ajudá-las em suas operações, as empresas belgas deslocaram para a fronteira Oeste do Brasil um conjunto de funcionários
capacitados e experientes, alguns já treinados em operações colonialistas, como Alexandre Delcomune, experiente auxiliar de
Leopoldo II no Estado Independente do Congo, e José Cousin,
um geógrafo também experiente. Esses funcionários mapearam os
recursos naturais, fizeram trabalhos de reconhecimento dos rios e
das características físicas da região, sempre procurando atuar de
maneira discreta e sem chamar a atenção das autoridades locais.
O fato que estimulou o ânimo dos belgas na fronteira Oeste do
Brasil foi a disputa pelo território do Acre entre a Bolívia e seringueiros brasileiros que se instalaram na região, atraídos pela grande
demanda por borracha no mercado internacional e pela grande
produção que essa região proporcionava, disputa na qual se entrelaçaram os interesses de empresários norte-americanos influentes
67
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
de fato da América Latina em área de influência exclusiva dos
Estados Unidos.
Esse novo cenário se combinou ainda com as primeiras notícias sobre as atrocidades cometidas pelos funcionários das empresas ligadas a Leopoldo II no seu Estado privado na África. O
resultado desse cenário desanimou rapidamente os belgas em suas operações na fronteira Oeste do Brasil e sua retirada da região
foi tão rápida como a sua entrada. Em 1906, no setor agrícola e
de extração vegetal praticamente só havia o empreendimento de
Descalvados. Em 1911, o empreendimento que havia sido a porta
de entrada para os belgas na fronteira Oeste do Brasil também foi
a sua porta de saída, sendo vendido ao investidor norte-americano
Percival Farquhar.
e ingleses organizados no Bolivian Syndicate, cujo objetivo era o
arrendamento do território em disputa.
O eventual desenlace positivo para aquele sindicato poderia
reabrir no coração da América do Sul uma corrida colonialista semelhante àquela ocorrida na África. Nesse caso, os belgas estariam
muito bem posicionados para ficarem novamente com a sua parte
na disputa, sempre explorando as debilidades dos Estados locais
e as disputas entre as grandes potências. Foi com essa perspectiva
que Leopoldo II também tentou controlar o Bolivian Syindicate.
Não foi coincidência que justamente no período em que a
disputa pelo território do Acre alcançou o seu ápice, entre 1898
e 1903, os belgas tenham se lançado na corrida por concessões
de terras para extração de borracha na fronteira Oeste do Brasil.
O círculo próximo de Leopoldo II operava combinando a ação
efetiva no território desejado com as articulações políticas que se
desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos. Essa tática havia
dado certo no caso africano e poderia dar certo novamente no caso da América do Sul.
No entanto, uma combinação de fatores bloqueou essa perspectiva. A ação do governo brasileiro, principalmente após a ascensão do Barão do Rio Branco ao cargo de Ministro das Relações
Exteriores em fins de 1902, combinada com a ação militar dos
próprios seringueiros no Acre e, ainda, a decisiva mudança na política externa dos Estados Unidos para a América Latina naquele
período, mudaram o cenário da disputa. O seu resultado foi o fim
do Bolivian Syndicate, a compra do território do Acre pelo Brasil, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, e a transformação
Domingos Sávio da Cunha Garcia possui Mestrado em História
Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e Doutorado
em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.
É professor do Departamento de História da Universidade do Estado
de Mato Grosso desde 1995.
Referências
GARCIA, Domingos Savio da Cunha. Os belgas na fronteira Oeste do Brasil. Brasília:
Funag, 2009.
KURGAN-VAN HENTENRYK, Ginette. Leopoldo II e a questão do Acre. In: Cadernos
do Centro de Documentação em História e Documentação Diplomática. Brasília: ano
8, tomo II, vol. 14, p. 477-499, primeiro semestre, 2009.
STOLS, Eddy. O Brasil se defende da Europa: suas relações com a Bélgica (1830-1914). In:
Boletin de Estúdios Latinoamericanos e del Caribe. Amsterdam: Centro de Estudios y
Documentación Latinoamericanos (CEDCA), n. 18, junio de 1975.
O Rei Alberto I e a música brasileira
Daniel Achedjian
E
vocar as inúmeras interações entre os belgas e a música brasileira, erudita ou popular, representa uma matéria apaixonante para músicos, pesquisadores, jornalistas ou, simplesmente,
amantes fervorosos. Porém, que um cidadão do Reino da Bélgica
– e não se trata de um qualquer – tenha sido o tema de algumas
composições é algo que seria imperdoável se negligenciado.
A famosa vinda do Rei Alberto I e de sua esposa Elisabeth da
Bélgica ao Brasil, em 1920, seduziu alguns letristas famosos. Estes viram no soberano, de temperamento excepcional e às vezes
insólito, e que ignorava o protocolo, um personagem dotado de
um jeitinho belga bem apreciado pelos cariocas.
Encontramos a menção de uma primeira peça musical sobre este assunto no DVD “Ensaio, TV Cultura, 1990”, dedicado
a Herivelto Martins (1912-1992), o muito célebre e importante
compositor carioca de sambas e de marchinhas do século XX. Em
um trecho do programa, ele evoca o samba “A Lapa”, que havia
composto nos anos 30 com Benedito Lacerda. Herivelto Martins
fala desse bairro do Rio que, nos anos 20, era o centro da vida
boê­mia, onde se atravessava a noite, se bebia, se caia na sarjeta e,
claro, se tocava e se escutava música.
O compositor relata que em 1920, para ser bem preciso, um
certo “Rei Alberto” veio visitar o Brasil e o Rio de Janeiro – na
época, capital do País – e pediu insistentemente que lhe fosse mostrado esse bairro de folia. Este famoso rei “Alberto”, claro, não era
ninguém mais ninguém menos do que o Rei Alberto I da Bélgica
(1875-1965), vindo em visita oficial em companhia de sua esposa,
a muitíssimo amada e célebre Rainha Elisabeth (1876-1965). Eles
visitaram, no final das contas, Rio e Minas Gerais.
Assim, neste samba, “A Lapa”, Herivelto Martins canta os seguintes versos:
“O bairro de quatro letras
Até um rei conheceu
Onde tanto malandro viveu
Onde tanto valente morreu.”
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
É um homem de fato
Não tem orgulho
Nem espalhafato
A atitude do soberano, no momento daquela visita, impressiona a todos. Sua vontade de quebrar certos protocolos durante
as cerimônias oficiais perturbava um pouco as altas autoridades
brasileiras. O rei decidiu até se engajar em atividades não previstas, como a visita à Lapa, como já mencionado, ou se fazendo
presente em certas manifestações desportivas. Assim, ele se lança
em um longo e difícil percurso de natação, que saía da praia de
Copacabana em direção à praia do Diabo, situada ao lado das
pedras do Arpoador de Ipanema. Uma proeza que deixou os cariocas admirados.
Aficionado por escaladas, o Rei também decidiu subir parte
da colina do Corcovado (sem o Cristo na época). Esta expedição
tinha sido planejada, mas quase virou um incidente diplomático.
Com a preocupação em tornar a expedição mais confortável, os
cariocas já haviam demarcado o percurso e arrumado, em alguns
lugares na rocha, degraus para facilitar a subida. O Rei Alberto
se sentiu ofendido, se zangou e decidiu passar por um caminho
selvagem que não havia sido preparado.
Nos arquivos musicais da música popular brasileira também
encontramos vestígios da atitude do soberano belga na canção
“Alberto I Rei dos belgas”, de José Napolitanos, “Pro Rei Alberto
ver”, de Lourival de Carvalho, e “O Protocolo”, de B. Silvestre e
Miguel de Azevedo, que relata assim:
Foi a insulta
Da mais alta
Deixar os repórteres
Espiando na esquina
Comeu feijoada
E bebeu parati
Jogava no bicho
Não saía daqui
E se ele provasse
O angu da baiana
Então ficava
Mais uma semana.”
Mas, além destes textos espirituosos, bem dentro do espírito
dos sambas e marchinhas da época dourada, encontramos também a composição “Saudades e saudades” (aos Reis dos belgas),
composta pelo ilustre Ernesto Nazareth (1863-1934), pianista e
compositor, navegando entre o clássico e o popular, a quem devemos alguns clássicos do Choro como “Odeon”. “Saudades e saudades”, peça instrumental composta em 1921, um ano após a visita
do casal soberano, toma ares de uma marchinha com cara de valsa.
Enfim, se tratando da visita real, um outro eminente músico
ligado à grande história do Choro, Pixinguinha (1897-1973), se
apresentava com Os Oito Batutas num almoço ao Rei e à Rainha
dos belgas. Aí estava presente também o maior compositor clássico
brasileiro (de inspiração popular), Heitor Villa-Lobos (1887-1959),
que apresentou, por sua vez, várias de suas obras. Nessa ocasião, o
soberano concedeu a este último a cruz honorária de Santo Leo­
poldo, que o brasileiro recusou sob o pretexto de que ela havia
também sido dada ao cozinheiro e ao chefe da guarda do palácio. Pois é, até mesmo os grandes homens conhecem momentos
de fraqueza e de vaidade, que sejam perdoados de bom grado...!
“O Rei Alberto
Ao pisar este solo
Mandou às favas
O protocolo
Conquistou logo
Com feliz maestria
Dos brasileiros
A simpatia
Assim, Alberto Primeiro
Ao mundo inteiro
Deu uma lição
Mandou a etiqueta
Com pirueta
Lamber sabão
Daniel Achedjian, Doutor em História da Arte, se apaixonou pela
música e arte popular brasileira; constituiu uma grande coleção em
Bruxelas, onde, como radialista, mantém também o programa “Tropicalia” na Rádio Judaica.
O Rei Alberto
De rebelde a escritor laureado: Conrad Detrez no Brasil
Peter Daerden
E
m 31 de julho de 1962 chegou ao Rio de Janeiro, a bordo do
navio francês Charles Tellier, um jovem belga, algo tímido.
Filho de uma família de açougueiros modestos da região de Liè-
ge, Conrad Detrez tinha 25 anos e acabava de interromper uma
formação de seminarista em Lovaina. Passou primeiro seis meses
na sinistra cidade industrial de Volta Redonda e mudou, depois,
69
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
para o Rio de Janeiro. Lá trabalhou como auxiliar leigo nas favelas,
como na paupérrima Bráz de Pina, mas ao mesmo tempo dava
aulas na Universidade Santa Úrsula.
Detrez ocupava assim uma posição interessante: entrava em
contato tanto com a cultura popular como com os meios intelectuais. Esta combinação determinou fortemente sua visão do Brasil,
que era contraditória. Sua atitude era em primeiro lugar de índole
muito trabalhista. Não gostava nem um pouco da mundana Copacabana, mesmo esta se passando para a maioria dos estrangeiros
como o cartão de visita do Brasil. Não, ele se encantava com a
proletária Zona Norte do Rio. Este bairro era talvez feio, mas tinha
caráter. Porém, neste olhar romântico sobre as favelas se escondia
uma grande contradição, já que Detrez criticaria precisamente, de
um ponto de vista cada vez mais à esquerda, a pobreza reinante
por lá. Por outro lado, o fascínio de Detrez pela cultura negra e pela religião afro-brasileira – que o fez iniciar no candomblé – tinha
uma forte conotação erótica. No Rio, o ex-seminarista descobriu sua
homossexualidade, que projetava quase exclusivamente em negros.
Nada indicava então que Detrez se tornaria mais tarde um
escritor laureado. Sem dúvida tinha esta ambição, mas esta se
desvaneceu depois do golpe militar de 1964. A partir desse momento, o compromisso com o engajamento político determinava sua conduta. Como muitos católicos radicalizados, se tornou
membro da Ação Popular. Já pela sua formação católica, Detrez
nunca sentiu muita estima pelo comunismo, e certamente não por
seus militantes brasileiros. Mesmo assim, se deixou levar de maneira bastante ingênua para a esquerda radical. Isto foi mais uma
questão de temperamento do que de compreensão. Nos anos de
1960, nutria uma grande admiração por Fidel Castro e Che Guevara, que pensava, ou pelo menos esperava, serem os promotores
de um marxismo liberal. Também no Brasil tinha que aparecer o
‘Novo Homem’ de Cuba.
Em 1967 Detrez foi preso por curto tempo por pretensa subversão política. Sua detenção não passou desapercebida na imprensa
brasileira. Em manchete, O Globo anunciava: ‘Belga Preso Como Líder Comunista’. Já o Jornal do Brasil tomou sua defesa: “Os
vizinhos do jovem súdito belga – com trinta anos de idade – têmno como pessoa de hábitos perfeitamente normais e destacam sua
cordialidade, seu desejo de servir ao próximo, inclusive pondo-se à
disposição dos que lhe pedem pequenos favores, como a redação de
cartas pessoais”.
Com a intervenção da diplomacia belga, Detrez pôde, quase
sorrateiramente, deixar o país. Foi morar em Paris, onde participou ativamente da revolução de maio. Mais tarde, em 1968, conseguiu fixar-se em São Paulo, onde se tornou jornalista da Folha
da Tarde, mas em menos de um ano teve que deixar essa cidade.
Chegou num ponto em que a repressão ameaçava sua vida. Da
França, Detrez queria prestar ainda uma vez uma curta, mas muito arriscada, contribuição. No maior segredo atravessou o oceano,
encontrou e entrevistou Carlos Marighella para voltar às pressas.
Marighella, chefe da guerrilha brasileira, foi pouco depois executado. Detrez resumiu suas ideias num manifesto revolucionário,
Pour la libération du Brésil.
Inspirada pelos Tupamaros do Uruguai, a guerrilha urbana aterrorizava, no final dos anos de 1960, as grandes cidades brasileiras.
Poderia considerar-se Detrez – que provavelmente nunca soltou
um tiro – como apenas uma nota de rodapé nesta história. Mas,
encarado de maneira mais positiva, ele passa pelo menos por uma
testemunha privilegiada dessa época perturbada. Assim manteve
uma amizade calorosa com Frei Betto, ainda antes de sua entrada
no convento e de tornar-se um influente teólogo da libertação.
Quando Detrez estava, no início dos anos de 1970, na Algéria, conheceu pessoalmente o exilado Miguel Arraes, um dos próceres da
resistência brasileira. No tribunal Russell em 1974 – uma conferência em Roma contra as violações dos direitos humanos no Brasil –,
se encontrou com o excêntrico guerrilheiro Fernando Gabeira. Em
seguida, ambos mantiveram correspondência por pouco tempo.
Nos anos de 1970 Detrez continuou seu percurso sinuoso, que
o levou à Algéria e a Lisboa, onde fazia a reportagem das peripécias da Revolução dos Cravos para a rádio belga. Em matéria política, se tornou mais reservado e também sua escolha pela literatura
era em grande parte ditada pela introspecção. Antes de escrever
seus romances, Detrez tinha traduzido alguns autores brasileiros
para o francês: Quarup, de Antônio Callado, e Os pastores da noite, de Jorge Amado. Este último manifestou seu agrado em carta.
Já com Callado, que conhecia pessoalmente, a colaboração ficou
mais difícil. Literariamente, o Brasil não lhe era tão importante.
Se relacionava antes com os autores ‘caribenhos’, como o colombiano García Márquez e o cubano Reinaldo Arenas – ou também,
perto de casa, com o picaresco Charles de Coster.
Estava escrito nas estrelas que o Brasil ocuparia um lugar importante na sua obra. Depois de dois romances promissores Detrez
surpreendeu, em 1978, com L’herbe à brûler, um livro que contava em boa parte suas aventuras brasileiras numa prosa sensual e
excitante, sem por isso reincidir nos estereótipos exóticos. Na sua
narração fortemente autobiográfica, Detrez se revelou um hedonista puro-sangue, que rejeitava todas as formas de dogmatismo
revolucionário. Com isso se aparentava algo com os nouveaux
philosophes franceses – se bem que ele mesmo não gostava nem
um pouco desta comparação.
L’herbe à brûler foi unanimamente aclamado como uma pequena obra-prima. Com a obtenção do prestigioso prêmio Renaudot, o nome de Detrez parecia definitivamente consagrado. A Bélgica tinha, depois de Simenon, novamente um autor de impacto
internacional. Seguiram-se várias traduções como em neer­landês,
português e inglês. A edição inglesa recebeu resenhas relativamente boas no Time e no The Village Voice. No Brasil, revistas influentes como Veja e IstoÉ foram francamente elogiosas. Nelson Pereira
dos Santos, o padrinho do cinema novo brasileiro, se prontificou
a filmar o livro. Infelizmente, este projeto falhou.
O próprio Detrez regredia. Nunca mais igualou o nível do
L’herbe à brûler. No seu romance seguinte, La lutte finale, as favelas do Rio voltaram a formar o cenário. Mas a inspiração anterior de Detrez, que era fortemente autobiográfica, minguava de
ano para ano. Interessante foi o ensaio publicado em 1981, Les
noms de la tribu, no qual relatava uma viagem recente ao Brasil.
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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Em 1979 Detrez se beneficiou da anistia política oferecida
pelos governantes de Brasília. Voltou por alguns meses e viu um
país que se tornou, sob certos aspectos, irreconhecível. Les noms
de la tribu, mais do que um simples diário de viagem, contém
fascinantes considerações sobre o Brasil, a guerrilha dos anos de
1960 e seu próprio percurso de vida. Esta terminou rápido demais.
Detrez serviu desde 1982 como diplomata francês na Nicarágua,
mas ficou pouco a pouco muito doente. Em 1985 morreu de Aids.
Peter Daerden, mestre em História, com passagem pela Universidade
de São Paulo (USP), juntou em frequentes viagens ao Brasil o material de arquivo e de literatura para uma biografia extensa de Detrez.
Brasil-Europa, via Bruxelas
Antônio Carlos Lessa
D
epois de seu retorno ao poder na França, em 1958, o General de Gaulle por diversas ocasiões imprecou contra o forte
componente supranacional que era característico dos Tratados
de Roma, fundadores do processo europeu de integração, que
entraram em vigor justamente naquele ano. Para o líder francês,
a Europa das Comunidades e os seus arranjos supranacionais diminuíam as competências e prerrogativas dos governos dos Estados-membros e exageravam no limite do absurdo as competências
e a autoridade das burocracias europeias. Desde o início de seu
funcionamento, sediada em Bruxelas, a Comissão Europeia era,
na lógica do presidente da França, a tradução perfeita de uma
tecnocracia apátrida e irresponsável.
A evolução da política europeia nos anos seguintes mostrou
que o líder francês efetivamente perdeu essa arenga. Ao cabo de
mais uns poucos anos encontrou-se uma solução de equilíbrio para o desenvolvimento contínuo da integração da Europa, e a sua
conversão, em pouco mais de 50 anos, em uma grande potência
econômica e com vocações políticas universais que, de certo modo, ultrapassam as ambições dos Estados nacionais que tomam
parte, hoje, da União Europeia. Mas o que efetivamente não mudou foi a permanência de Bruxelas como sede das competências
crescentes das Comunidades, ao ponto em que a capital dos belgas se transformou em metonímia das burocracias que animam e
governam a Europa Comunitária.
O Brasil foi o primeiro país latino-americano a estabelecer
relações diplomáticas com a Comunidade Econômica Europeia,
ainda em 1960. Esse gesto se sobrepunha então à reação enérgica
que a diplomacia do governo do Presidente Juscelino Kubitschek
esboçou quando do anúncio da assinatura do Tratado de Roma,
ainda em 1957. Desde então, e praticamente até 1964, o Brasil liderou a reação dos governos de países latino-americanos, grandes
exportadores de produtos tropicais, temerosos da perda de espaço
nos mercados europeus diante da associação das colônias e ex-colônias europeias à então Europa dos Seis por meio de acordos de
comércio preferencial.
No entender do Itamaraty, a formação do Mercado Comum
Europeu ensejaria uma diminuição expressiva das exportações de
café brasileiro, que se daria mediante a criação de desvios de comércio que beneficiariam a produção concorrente, especialmente
africana. Com efeito, as produções das colônias e ex-colônias europeias, não apenas de café, mas também de cacau, seriam dramaticamente favorecidas pelas medidas de associação comercial que
garantiam o acesso em condições privilegiadas, não mais apenas
para a França ou a Bélgica, mas para todos os seis países que então
fundavam a Europa Comunitária (França, Bélgica, Países Baixos,
Luxemburgo, Itália e República Federal da Alemanha). Entre os
Seis estavam justamente dois dos maiores compradores de café
brasileiro, em termos globais, a Alemanha e a Itália.
Em outra linha de argumentação esboçada pelo governo brasileiro em sua reação ao Tratado de Roma, se arguia que a integração econômica provocaria uma desvinculação progressiva dos
capitais europeus, atraídos para investimentos na África e em outras paragens, enquanto o Brasil, em pleno desenvolvimento industrial, tinha mais do que nunca necessidade da ajuda financeira
dos países europeus.
Portanto, os primeiros contatos entre o Brasil e a Europa Comunitária foram caracterizados por desconfiança e tensão. De
pouco, ou quase nada, adiantou o grande esforço diplomático de
arregimentação levado a cabo pelo governo brasileiro que, trazendo consigo vários outros países latino-americanos, tradicionais
exportadores de produtos tropicais, pressionaram contra o Tratado
de Roma e, mais especialmente, contra as disposições dos artigos
131 a 136. Para azar do Brasil e dos seus parceiros latino-americanos, os dispositivos do Tratado de Roma seriam considerados
legais sob a luz do Acordo-Geral de Tarifas e Comércio-GATT, e
não haveria, portanto, via jurídica de recurso acerca da legalidade
do ato fundacional da Comunidade Europeia.
Esse início pouco auspicioso deu, então, o tom da história
das relações do Brasil com o processo europeu de integração. De
certo modo, a designação do poeta Augusto Frederico Schmidt
como primeiro embaixador brasileiro junto à Comunidade pode
ser entendido como um gesto de conciliação com a Europa Comunitária nascente ou, no mínimo, como o reconhecimento de
que em Bruxelas surgia um respeitável oponente. Schmidt era um
intelectual e empresário respeitado, do entourage do Presidente
Kubitschek. Atribui-se a ele a paternidade intelectual da Operação
Pan-Americana, e também influência certa sobre vários outros temas da política externa brasileira daquele momento. Apresentou
71
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
de interesses teve prosseguimento em junho de 1999, com a rea­
lização da primeira Cúpula de Chefes de Estado e de Governo
da União Europeia e América Latina/Caribe, quando se decidiu
pela formação de um Comitê Birregional de Negociações União
Europeia-Mercosul.
O início da crise do Mercosul e os alargamentos da União
Europeia, dois processos coincidentes, desfocaram a agenda de
cooperação inter-regional, enquanto outros temas na dimensão
política e econômica surgiam como prioritários. A partir da década
de 2000, o crescimento do perfil internacional do Brasil, com crescente protagonismo em diferentes tabuleiros (negociações comerciais, temas ambientais etc.) e com maior visibilidade econômica,
e o crescimento do seu ativismo internacional, levaram a União
Europeia a reavaliar o conjunto das suas relações com a América
Latina. Assim, ao final de 2005, a União Europeia decidiu passar
a privilegiar o Brasil como país-chave da região.
O modelo adotado para essa nova estratégia de Bruxelas seguiu
o que já estava sendo implementado no manejo das relações da
União Europeia com os seus principais interlocutores – Estados
Unidos, Canadá, Japão, Rússia, China e Índia –, ou seja, o de
relações de “parceria estratégica”. Ainda que não exista uma definição clara desde a diplomacia comunitária do que sejam esses
vínculos, eles têm muito em comum: densas e dinâmicas correntes
de comércio, amplos contatos bilaterais, intensidade de vínculos
políticos e agendas compartilhadas.
O Brasil foi ungido como parceiro estratégico da União Europeia em 4 de julho de 2007, por ocasião da primeira Conferência
de Cúpula Brasil-União Europeia, reunindo a Tróica do Conselho Europeu e o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se
do reconhecimento da singularidade assumida pelo Brasil nas relações internacionais contemporâneas, de certo modo, tradução
do peso específico que o País tem assumido para a economia e a
política global.
Trata-se de uma transformação de vulto no desenvolvimento
das relações do Brasil com a Europa Comunitária e oferece uma
moldura institucional para a organização do diálogo de alto nível
e com pleno potencial para o desenvolvimento de uma agenda
de cooperação bilateral que envolve os desafios da liberalização
comercial, o acesso aos mercados agrícolas, meio ambiente e aquecimento global, a reforma das organizações internacionais (e o
papel que o Brasil pode nelas desempenhar) e o reforço da ordem
internacional multipolar. Mais do que nunca, o futuro da projeção
internacional do Brasil passa por Bruxelas.
as suas credenciais de Embaixador ao belga Jean Rey, membro da
Comissão da Comunidade Econômica Europeia.
Bruxelas entrava, então, de um outro modo e pela segunda
vez, no rol das praças diplomáticas que apresentavam importância central para os interesses internacionais do Brasil, ao lado de
Washington, Londres, Paris e Buenos Aires. Funcionando inicialmente em Paris, a representação do Brasil junto à Comissão foi
transladada definitivamente para Bruxelas em janeiro de 1961.
A missão de Augusto Frederico Schmidt foi breve. Pode-se
afirmar que a sua nomeação atendia à necessidade de distender
as relações com a Bruxelas comunitária, e de encetar os difíceis
processos de negociação que se seguiram ao estabelecimento da
Tarifa Externa Comum, envolvendo tanto o Brasil quanto outros
países latino-americanos. O Brasil manteve, a partir do estabelecimento inicial das suas relações com a Europa Comunitária, a
prática de enviar para a sua representação diplomatas de carreira
experimentados, somente quebrada com a nomeação de outro
grande intelectual brasileiro, Celso Furtado, que exerceu a chefia
da Missão entre 1985 e 1986.
As relações do Brasil com a Bruxelas comunitária foram, ao
longo de quase cinco décadas, muito tensas. A criação do processo
europeu de integração teve esse condão: descarregou a pesadíssima agenda contenciosa envolvendo questões comerciais que existiam com alguns dos seis membros originais (especialmente com
a França), mas produziu um grande polo contencioso, justamente
a Europa Comunitária. As demandas recorrentes do Brasil, que se
juntava aos demais países latino-americanos, estiveram ao longo
desse período principalmente circunscritas ao acesso aos mercados, ao tratamento tarifário conferido aos produtos tropicais e às
tentativas de circundar os graves desvios de comércio que se produziram pela associação das antigas colônias europeias.
A Bruxelas comunitária se convertia, desse modo, em um importante centro nevrálgico e essencialmente conflituoso das relações internacionais do Brasil. Esse relacionamento assim permaneceu praticamente até o início da década de 1990. Nesse longo
momento, não há que se falar em cooperação política, uma vez
que a América Latina em geral constituía um ângulo cego das prioridades internacionais da Europa comunitária e pode-se afirmar
que assim seguiu até o estabelecimento do Mercosul, em 1991.
O surgimento de um novo processo de integração, em região
que foi a periferia das prioridades internacionais da Europa, não
deixou de ser um motivo de alento para a organização de uma
nova agenda de cooperação. Com efeito, o bloco sul-americano
surgia como o maior parceiro comercial e principal destino dos
investimentos europeus na região. Em 1992 firmou-se um Acordo
de Cooperação Interinstitucional, seguido em dezembro de 1995
pelo Acordo Marco Inter-regional de Cooperação. A articulação
Antônio Carlos Lessa é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e pesquisador do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq.
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