trabalho completo

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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.209
REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA REVISTA IDÍLIO
Renan Reis Fonseca - PIBIC/CNPq (UFSJ)
Profa Dra. Adelaine LaGuardia Resende - Orientadora (UFSJ)
Introdução e Revisão de literatura
As histórias em quadrinhos constituem uma manifestação artística por muito tempo
considerada “menor” e geralmente associada ao consumo infantil, fácil e descartável. No
entanto, nas últimas décadas, sob a influência dos Estudos Culturais, alçaram um novo
patamar, quando estudos têm demonstrado a frequente relação dos quadrinhos com a
literatura, o cinema, entre outras manifestações artísticas. É sobre essa perspectiva que este
trabalho é desenvolvido. Tomando como objeto uma revista em quadrinhos romanceada,
publicada no Brasil a partir de 1948, e entendendo o texto não apenas como representação da
"vida real", mas como um conjunto de narrativas imaginativas construídas sobre a vida
cotidiana das mulheres e dos homens no contexto do pós-guerra no Brasil, procuramos
compreender como se davam as representações de gênero na revista. Para tanto, valemo-nos
das abordagens feministas sobre “gênero”.
De acordo com Linda Nicholson (2000), o termo gênero é comumente entendido de
duas formas. A primeira delas opõe gênero a sexo, ou seja, opõe aquilo que é “socialmente
construído” àquilo que é “biologicamente dado”. Dessa maneira, corpo e comportamento
seriam coisas totalmente distintas. A segunda forma apresenta gênero como uma construção
social que pode ser utilizada para distinguir masculino/feminino, tanto no comportamento
quanto no corpo. Para essa forma de entendimento a sociedade forma as personalidades e
comportamentos, mas também é capaz de controlar as maneiras como o corpo é representado.
Esta diferenciação biológica acontece devido ao conhecimento que possuímos, logo, também
se torna uma construção social, uma interpretação da distinção dos corpos.
Para Nicholson, essa abordagem de gênero vem suplementar o denominado
“feminismo da diferença”, uma vez que as propostas deixam de se dirigir às “mulheres”
visando as “mulheres em contextos específicos”. Para tanto, Nicholson recorre a Wittgenstein
e a sua concepção de jogo. Assim como os jogos possuem inúmeras características e
diferenças entre si, ela propõe que as mulheres também as têm, e assim sendo devem ser
tratadas sem generalizações. Por isso não se pode dar sentido ao termo mulher através de uma
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característica específica (o sexo, por exemplo), mas sim através da “elaboração de uma
complexa rede de características” (NICHOLSON, 2000, p.35). Já Adriana Piscitelli (2004)
apresenta uma visão ampla do conceito de gênero dentro dos desdobramentos do movimento
feminista. A autora procura elucidar as motivações por trás das mudanças de significado do
termo gênero, demonstrando como o surgimento do termo foi importante para o
questionamento feminista das hierarquias biológicas da sociedade e as tradições de
pensamento. Piscitelli salienta que o importante não é criar uma teoria que seja global, mas
uma que perceba e questione “os pontos em comum entre as mulheres” (2004, p. 58).
Para melhor compreendermos o contexto em que a revista Idílio surge no Brasil
recorremos à obra A guerra dos gibis, de Gonçalo Junior (2004), onde o autor narra, a partir
da vida empresarial de grandes figuras nacionais, como se deu a sedimentação do mercado
das histórias em quadrinhos no Brasil. O livro é uma fonte importante para nossa análise, uma
vez que nos situa dentro do contexto histórico da época, a partir do qual encontramos
subsídios para compreender os elementos históricos que possivelmente atuavam na
construção do gênero na revista.
O período de maior relevância para este trabalho é o do pós Segunda Guerra Mundial.
Não se pode esquecer de que esse período é também muito importante para as histórias em
quadrinhos, uma vez que estas foram usadas com propósitos ideológicos, principalmente
pelos Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que o pós-guerra foi um período de reconstrução
e reestruturação social, assistiu-se a um boom das histórias em quadrinhos. De acordo com
Patati e Braga, “o mundo ocidental, logo antes, mas, sobretudo depois da 2ª Guerra Mundial,
assistiu à explosão norte-americana de publicações populares de HQs” (2006, p. 108).
Metodologia
Utilizamos como objeto de análise a Revista Idílio: “uma revista em quadrinhos com
histórias de amor romanceadas”, dedicada a moças e rapazes, que circulou no Brasil a partir
de setembro de 1948 de forma esparsa. Foi realizada a análise de quatro histórias em
quadrinhos, distribuídas entre os cinco primeiros exemplares da revista, que abarcam os
meses de setembro de 1948 a fevereiro de 1949.
A pesquisa em questão teve como objetivos responder às seguintes questões: Como se
compõe materialmente a revista? Como são feitas as representações de gênero na revista?
Dessa forma, através do aporte teórico exposto aliado à metodologia de pesquisa, foi possível
obter os resultados que serão apresentados.
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Foi realizado o processo de digitalização, catalogação da revista, dividindo-a em seções
e procedendo-se à análise de sua composição material. Desta forma, pudemos selecionar as
histórias em quadrinhos mais relevantes, sendo que na etapa seguinte passamos a examinar
como se davam propriamente as representações de gênero na revista.
O critério de seleção das histórias foi utilizar as que apresentassem de forma mais
explícita o embate nas relações Homem vs Mulher, pois, assim, poderíamos, em seguida,
procurar alguns padrões recorrentes dentro das representações de gênero na revista. Realizada
esta etapa, as histórias selecionadas foram: Eu era uma namoradeira (1º Volume, p. 9-21),
Namôro (sic.) de verão (1º Volume, p. 31-8), Ladra de amor (2º Volume, p. 5-18), Inimiga
dos homens (3º Volume, p.35-41).
A revista Idílio e sua composição material
A revista Idílio, segundo Ezequiel de Azevedo (2007), foi a quarta revista lançada pela
Editora Brasil-América, a EBAL. Esta possui três séries, sendo que a primeira se inicia em
1948 e compreende 20 edições; a segunda começa em janeiro de 1957 e abarca 56 edições; e a
terceira e última, foi impressa a partir de outubro de 1964, contando com 14 edições. Todas as
três séries foram lançadas em formato americano, ou seja, aproximadamente 18,5 x 26,2 cm.
Segundo Gonçalo Jr. (2004), o lançamento da revista Idílio se deu em um momento
conturbado da história do mercado editorial brasileiro, no qual as histórias em quadrinhos
sofriam forte repressão de setores conservadores da nossa sociedade, havendo ainda a
escassez de papel, por decorrência da guerra, o que limitava o número de publicações. Mesmo
assim a Revista Idílio entrou de forma positiva no mercado brasileiro, chegando a picos de
150 mil exemplares mensais.
Gerard Jones (2006) nos apresenta um termo interessante, que denominava um gênero
paralelo aos quadrinhos convencionais, as pulps. Para o autor, essas revistas eram
[...] grossas e baratas, impressam (sic.) em uma tinta de um tom marrom escuro, com
centenas de páginas de ficção em cada número. As capas eram coloridas, pintadas
para inspirar terror, excitação, desejo e curiosidade. Os enredos eram cheios de
brutamontes, orientais sinistros e namoradas seminuas de gângsteres [...] (2006, 51)
O termo pulp é pouco conhecido no Brasil; no entanto, foi muito popular nos Estados
Unidos, onde as pulp fiction magazines eram extremamente populares. A definição poderia
ser aplicada ao caso da revista Idílio, que é constituída de forma variada, apresentando contos,
histórias em quadrinhos, cartas de leitores em busca de conselhos - na maioria das vezes
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amorosos - seção destinada à troca de cartas entre os leitores etc. Muitos quadrinhos
publicados no Brasil durante as décadas de 50/60 se assemelham às pulps.
As histórias em quadrinhos que a revista Idílio publicou provavelmente eram
provenientes do mercado norte-americano, assim como grande parte das revistas e histórias
em quadrinhos publicadas no Brasil na época. Isso se deve ao fato de os “sindicatos” 1 terem
alcançado grande popularidade na época, e revenderem por preços baixos a produção de seus
artistas contratados. A dificuldade em determinar a origem das histórias da revista Idílio se
deve ao fato de esta não possuir qualquer referência ao artista ou ao roteirista da história. Os
nomes dos autores aparecem somente em duas seções: Lero-Lero e nos contos.
Analisando a composição material da revista, pudemos perceber que quase todas as
histórias têm como protagonista uma mulher, a única exceção é uma história do quinto
exemplar. Invariavelmente, as histórias giram em torno de namoros, traições, ciúme, ou seja,
dos velhos clichês românticos. No entanto, para sua época, e por se tratar de um produto de
massa, a revista levanta alguns temas pouco discutidos.
A temática romântica nos quadrinhos tornou-se bastante popular nos Estados Unidos
do pós-guerra, e a Jack Kirby é atribuído o seu surgimento. Sobre essas revistas Jones
comenta que:
As adolescentes e as jovens estavam carentes de histórias que mergulhassem de
forma implacável e consistente nas contradições entre desejo, dever, liberdade e
solidão que o amor do pós-guerra e o casamento acarretavam. Não demorou para
que surgissem dezenas de quadrinhos românticos. (2006, p. 295)
Representações de gênero na Revista Idílio
A narrativa da primeira história analisada, “Eu era uma namoradeira”, gira em torno da
“garota” Lúcia Maria, menina ingênua que vive com a avó - senhora que preza pelos velhos
bons costumes. No início da história, Lúcia Maria, que está cursando o último ano do ginásio,
vive o estereótipo da menina oprimida, segundo o modelo Cinderela, que é obrigada a cuidar
da casa como se fosse uma empregada e a viver sob a tutela moral da avó. Esta sustenta que o
controle exercido sobre a neta se deve ao fato de não querer que Lúcia “fique perdida como a
sua mãe”.
A história apresenta um padrão ideal de beleza feminina e masculina. Tanto Lúcia
Maria quanto as outras jovens são representadas como moças belas, magras e bem vestidas, o
mesmo padrão valendo para os homens. A avó, por sua vez, possui uma feição carrancuda e
mal humorada, é magra e possui cabelos grisalhos, representação típica das bruxas dos contos
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de fadas. Apesar de ter 17 anos na história, a representação visual de Lúcia Maria é aquela de
uma mulher adulta e sensual.
O bem é sinalizado pela boa conduta, ou seja, a mulher devia prezar pela decência,
fugir de se tornar uma “perdida”, o que a levaria para o caminho do mal. A história apresenta
uma imagem de homem bom, visto pela ótica feminina como sendo aquele que também
possui atributos materiais, como o carro (instrumento de poder) que permite à moça se divertir
em passeios. Além disso, esse tipo masculino ideal é bonito, tem caráter heróico, possui alto
poder aquisitivo, é agressivo e comumente revida às provocações de outros homens. Já a
segunda imagem de homem bom está associada ao que o senso comum compreende como
moralmente bom. Trata-se daquele que a princípio pode parecer arrogante, mas que na
verdade não o é. Isso se deve ao seu caráter moralista e protetor, que o leva a sacrificar-se
pela mulher, mesmo que esta seja uma “perdida”. No geral, a história trata os homens como
sendo “naturalmente” aproveitadores em relação às mulheres, cabe a estas serem sensatas e
saberem manter-se “puras”.
O enredo, de uma maneira geral, procura frisar alguns aspectos. O primeiro seria o de
que as mulheres não devem “ceder à tentação”. O segundo aspecto seria a atenção dada à
idéia de “ficar perdida”, ou seja, adquirir má fama caso se entregue livremente à prática
sexual, o que afastaria um bom casamento. E o terceiro, e talvez o mais importante, é a idéia
de que a história deve “servir de lição”. Em “Eu era uma namoradeira”, apesar do final feliz,
fica claro que todas as atitudes de Lúcia Maria são condenáveis, já que ela mesma afirma se
arrepender de ter sido tão ingênua.
A história constantemente repete a palavra “perdida”, que claramente tem uma
conotação pejorativa. Analisando alguns exemplos, pode-se concluir que essa idéia está
relacionada ao comportamento daquelas mulheres que são: frequentadoras da noite; que
passeiam de carro; as separadas; e principalmente aquelas que não são virgens. Ao investir na
sexualidade, a mulher se desvirtua de seu caminho e abre espaço para que os homens possam
abusar de sua tão enfatizada “inocência”, o que no final prejudica tão somente a mulher, que
se torna estigmatizada. Enfim, a culpa acaba sendo colocada nesta, uma vez que ela mesma
ressaltou sua sexualidade e provocou os instintos mais profundos e naturais do homem.
A história em si apresenta uma contradição entre o discurso e a representação visual.
O discurso constantemente reafirma o valor da moral feminina, enquanto que a representação
visual privilegia o aspecto exterior, a sensualidade: as personagens femininas possuem corpo
escultural, trajam roupas sensuais, dão beijos ardentes etc. O resultado dessa contradição é
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que a história passa uma mensagem ambígua, pois a mulher, ao mesmo tempo em que deve
ser desejável e sensual, deve ser recatada.
Na segunda história, “Namôro (sic.) de verão”, o mote é o embate entre a Cidade
(capital) e o interior (campo). O interior e seu povo são representados como sendo ingênuos,
puros, estagnados. A cidade representa a civilização e o progresso, onde vive gente “esperta”
e evoluída, ou “gente da melhor sociedade”, como afirma Marli, a protagonista. Em oposição
aos personagens do campo, Marli e Luiz Carlos (namorados de infância), a história apresenta
Ricardo, rapaz rico e autoconfiante e sua noiva Rita. Marli inveja Rita, pois esta tem tudo
aquilo que sonha, ou seja: beleza e um bom casamento encaminhado.
O pai de Ricardo, que aparece como o grande símbolo do patriarcado, é conservador,
rico, moralista e machista. Detém controle sobre o filho, tanto do corpo quanto dos
sentimentos. Rita o engana e o faz pensar que Ricardo se casou com Marli secretamente. Ao
chegar à casa e encontrar o filho com Marli ele o questiona: “Como é que você teve coragem
de se casar?”, ao que Ricardo responde, “Eu, casado com ela? Uma simples matuta?”
(REVISTA IDÍLIO, v.1, 1948, p.35)2 O que se pode depreender desse diálogo é que as
mulheres “caipiras”, do interior, por serem ingênuas, servem apenas para se divertir e não
para casar. À mulher exigente e mais independente da cidade cabe cumprir as aparências
sociais.
Outro fato interessante é a frase de Ricardo, quando questionado sobre o que estava
acontecendo na casa do pai, onde ele se encontrava sozinho com Marli: “Ora essa, papai...
uma festinha íntima, nada mais.” (ibidem, p.37). Fica clara a idéia que os homens têm dos
encontros amorosos/sexuais, que para eles é algo normal. Sair com diferentes mulheres,
mesmo tendo algum compromisso/relacionamento, é totalmente aceitável e compreensível
entre homens – a promiscuidade, a perdição e a vulgaridade nunca são associadas a estes. A
mulher em questão é apenas um objeto de diversão, que deve servir ao homem.
A idéia já trabalhada de que a mulher é ingênua e fraca moralmente fica evidente
quando Marli pede perdão a Luiz Carlos ao final da história: “Oh, Luiz Carlos... Será que
você me perdoa? Eu fui tão bobinha e tão injusta.” (ibidem, p.38). Fica evidente, dessa forma,
que a mulher precisa de um pilar moral (o homem) para poder ajudá-la a obter “redenção”.
Na terceira narrativa, intitulada “Ladra de amor”, duas mulheres, tia e sobrinha,
disputam o amor do mesmo homem. Mais que a disputa pelo homem, está o embate entre a
experiência e a inexperiência. Marlene – a sobrinha - por fim vence a disputa. No entanto, não
saberá lidar com a situação, já que lhe falta experiência.
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Marlene é uma linda jovem órfã que foi criada pela tia. Com dezesseis anos, ela é
loira, alta, muito bonita, anda constantemente com os cabelos soltos (o que sugere a
liberdade). Contudo, é inexperiente e não consegue ficar sozinha, o que a leva sempre a sair
com algum rapaz. Como nas outras histórias, ela adora automóveis - mais do que os seus
donos - e estes são capazes de tentá-la, já que são objetos de desejo. Este desejo feminino pelo
carro é um ponto importante, pois está diretamente ligado a padrões da sociedade de consumo
que são incentivados e que começam a ganhar força nos Estados Unidos. Logo após a
Segunda Guerra, o consumo de objetos domésticos, como máquina de lavar, liquidificador,
inovações para a época, é reforçado visando levar as mulheres de volta ao lar e aos cuidados
com o marido, que retorna do campo de batalha. Assim, se as mulheres vislumbraram alguma
idéia de liberdade durante a guerra, trabalhando fora, os homens visam tirá-la usando objetos
que despertem o desejo de retornarem ao lar.
Em oposição a Marlene está Tia Paula, mulher bonita que, apesar de também ser
jovem, representa a experiência. Tem 35 anos, é solteira e, ao contrário da sobrinha, usa os
cabelos escuros sempre presos (o que sugere recato). Extremamente preocupada com a
sobrinha, quer apenas a sua felicidade. Representa a razão, tem sólida formação moral e é
sensata. Em especial, o que lhe preocupa é o fato de a sobrinha sair todas as noites, cada dia
com um rapaz diferente e por isso alerta-a de que ela pode “acabar mal”, ou seja, ficar
“perdida”. Isto dificultaria encontrar um bom casamento, visto como o sonho de toda mulher.
A história é baseada no oposto entre juventude, que é caracterizada pela grande
quantidade de oportunidades, e a maturidade, que seria a escassez destas. O tratamento dado
ao amor é interessante, pois enquanto a inexperiência (aqui representada por Marlene) brinca
com este sentimento, a experiência (Tia Paula) o valoriza já que as paixões (aventuras) só
cabem aos jovens, e o amor (casamento) só pode ser apreendido com a maturidade.
A quarta e última história analisada é a mais emblemática quando se trata das
representações de gênero. Em “A Inimiga dos Homens”, a protagonista Edith vive o papel da
feminista que no final sucumbe ao amor. Esta é uma garota loira, de cabelos curtos (um traço
de sua masculinidade), bonita, corpo forte e mal-humorada. A capa da história apresenta suas
idéias:
“Homem algum, jamais, haveria de me transformar naquele dócil animal doméstico,
a esposa carinhosa! Não... eu conhecia de sobra o sexo masculino e saberia derrotar
todos os pretendentes que me abordassem com pieguices... Isso era o que eu
pensava... até o dia em que travei relações com o Nelson... só então reconheci a
loucura de ser... inimiga dos homens.” (v.3 p.35)
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A partir dessa fala inicial é possível perceber que, apesar de abrir espaço para uma
mulher que ambiciona maior liberdade, a revista aponta que esta deve reconhecer que isto é
um equívoco. A moral desta história é explicitamente colocada: as mulheres que almejam
maior liberdade e desejam superar os homens ou apenas se igualar a eles estão erradas. É o
amor que dita o modo de pensar das mulheres e não a razão, e quando Edith, a mulher
emancipada, se apaixona de verdade, retorna ao padrão comportamental da “esposa
carinhosa” ditado pela doxa.
Nelson, o homem por quem Edith se apaixona, é representado como um homem alto,
forte e sério e demonstra grande inteligência. Nelson se apaixona por Edith logo que a vê e
passa a tentar conquistá-la. Ela o trata com grande repulsa e entre ambos o que se dá é uma
constante competição – encenada aqui em termos da capacidade física de ambos, o que de
início coloca a mulher em clara desvantagem. Para Edith, Nelson parece agir de forma
diferente que os outros homens. Ele a vence na competição, mas prefere não se gabar do feito.
Isso, contudo, parece não abalar a convicção de Edith de que ela não precisa do apoio
masculino para ser feliz: “Não sou dessas que precisam se apoiar no peito forte do primeiro
homem que aparece.”. (ibidem, p.38). O feminismo de Edith é caricatural e se expressa
simplesmente como “competição” em relação ao homem e, o que é pior, como repulsa ao
sexo masculino. A idéia subjacente é de que a mulher emancipada é rebelde e incapaz de
amar o homem.
A despeito disso, a protagonista apresenta uma lógica que se enquadra dentro de um
pensamento feminista, ou seja, a mulher fala a partir de seus próprios interesses e desejos, o
que não está em conformidade com o senso comum. Dentre algumas passagens podemos
citar: “Não há razões para que os homens sejam considerados superiores às mulheres.”;
(ibidem, p.36) “É intolerável ouvir as idiotices que jorram sem cessar dos lábios dos que
dizem pertencer ao ‘sexo forte’...”; (ibidem, p.36) “Já namorei, mas agora desisti. Os homens
são todos iguais... Julgam bastar algumas palavrinhas para que as mulheres os adorem para
sempre! Mas eu me recuso a ser domesticada! Vou formar-me e aposto ser tão bem sucedida
como qualquer marmanjo.”. (ibidem, p.36) Nesses discursos podemos evidenciar o desejo por
uma igualdade entre homens e mulheres e também a posição assumida por Edith diante das
investidas amorosas masculinas. Outro ponto importante é a posição assumida pela
protagonista diante dos estudos e da carreira, visto que a revista é de 1948, época em que a
inserção da mulher no mercado de trabalho ainda era tímida.
Apesar de tudo, Edith se apaixona por Nelson quando este a beija a força e diz: “Não
pense que a deixarei fugir com tanta facilidade! Sabe o que os homens fazem a pequenas
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como você? Olhe...”. (ibidem, p.38) Edith por um momento fica fora de si e aceita o beijo,
mas logo em seguida se enfurece e dá um tapa em Nelson. É dessa forma que Nelson
consegue conquistá-la: utilizando a força física e a assertividade, o que impede Edith de fugir.
De acordo com Nelson, as mulheres devem ser tratadas/domadas à força, o que pelo desfecho
da história significa a aceitação de Edith ao amor e ao relacionamento com Nelson. É o ato
viril do homem que é capaz de domar a mulher rebelde.
Em um segundo encontro, que acontece de forma casual, Nelson novamente agarra
Edith e a beija. Mais uma vez, este demonstra toda a sua masculinidade através do exercício
da força. Acerca da tentativa de resistência de Edith, Nelson diz: “Ainda quer lutar comigo
hein? Pode desistir... eu sou homem bastante para dominá-la.”.(ibidem, p.40) É dessa forma
que o antagonista demonstra como, segundo ele, devem agir os homens, e a posição que os
autores e a revista reforçam, de que é dessa forma que as mulheres com pretensões feministas
devem ser tratadas. Edith, por sua vez, sobre o beijo forçado comenta: “Quando o Nelson me
prendeu em seus braços, notei, espantada, que não lhe resistia... compreendi então que me
apaixonara por ele, e fiquei indignada comigo mesma...”. (ibidem, p.40) Edith reconhece a
forma com que foi conquistada (domada), no entanto sucumbe às investidas de Nelson.
A possibilidade de se apaixonar e manter os sonhos profissionais é algo impossível
para Edith, pois amar representa resignar-se ao lugar passivo e improdutivo da esposa.
Quando Nelson pergunta para Edith o porquê de esta não assumir que é tão feminina quanto
qualquer outra mulher, ela responde: “Sou feminina sim! Mas quero a minha liberdade! Não
desejo transformar-me em capacho de qualquer sujeitinho que se julgue superior! Quero
competir com os homens e derrotá-los em tudo que for considerado tipicamente
masculino.”(ibidem, p.39) A protagonista deseja não apenas se opor aos homens, mas também
ocupar o lugar masculino, não coexistir, mas sim dominar. A feminilidade na história muitas
vezes se opõe drasticamente à liberdade, já que ser feminina, para Edith, implica em sujeitarse. Essa oposição reforça o ideário de que a mulher tem que escolher entre ser esposa
(submissa) e amar, ou ser livre (sozinha) e ter uma profissão.
Após assumir que está apaixonada, Edith acredita que somente humilhando Nelson
deixará de amá-lo e, assim, propõe-lhe um desafio: ver quem chega primeiro ao topo de uma
montanha. Durante a escalada, Nelson sofre um acidente, o que faz com que ela se sinta
culpada. Assim, Edith decide declarar seu amor: “Foi por minha causa... A culpa é minha! Oh
Nelson... fui eu quem fiz você cair... minha teimosia quase matou o único homem a quem eu
poderia amar! Tenho sido uma boba...”.(ibidem, p. 41) Percebe-se neste discurso que é uma
“teimosia” as mulheres lutarem por igualdade. Pontos que temos salientado são reforçados:
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mais uma vez a mulher é ingênua e demonstra uma fraqueza de julgamento inerente a sua
condição de mulher. Nesta história, a redenção da mulher significa a renúncia da brutalidade
associada ao desejo de autoemancipação, o que a torna novamente um ser delicado. Ao
assumir que tem “sido uma boba”, a protagonista reafirma a idéia de que o certo é amar, se
sujeitar ao homem e ambicionar o casamento, ou seja, é necessário que o homem venha a ser
o seu amparo, o seu “peito forte”, até então negado.
Considerações Finais
A análise das histórias nos revela que as representações de gênero dentro da Revista
Idílio são muito bem delineadas, e seguem a dicotomia Homem vs Mulher, típicas do ideário
patriarcal. Seria impensável, por exemplo, encontrar algum tipo de representação
homossexual, uma vez que este foge à divisão tradicional dos sexos que rege as construções
de gênero expostas nas histórias analisadas. Dentro destas foi possível perceber um padrão de
construção tanto das masculinidades quanto do feminino. Os homens, em sua forma ideal, são
representados como fortes, bonitos, conquistadores por natureza, que, em grande parte das
vezes, precisam agir como salvadores da mulher e o seu pilar moral. Às mulheres resta uma
idéia historicamente construída de fragilidade e fraqueza, sendo esta a sua natureza (como foi,
por exemplo, o caso de Eva na narrativa bíblica). Seus atributos são a ingenuidade, a ganância
(só pensam em dinheiro, automóveis, casa) e a ambição pelo casamento – o grande prêmio a
ser conquistado por elas. A revista não apenas parte do pressuposto de que o casamento é o
melhor destino para a mulher, mas também reforça essa idéia ao concluir os desfechos de
forma romântica com a proposição de um possível enlace entre os amantes.
A Revista Idílio, apesar de ter uma proposição de inserir a mulher e seus interesses no
ambiente público, abrindo espaço, por exemplo, para a troca de cartas, propostas de
encontros, e por ter uma temática romântica, caminha contra a singularidade de cada mulher.
Em geral as histórias encenam “caçadas” entre os sexos, em que o homem é invariavelmente
representado como um caçador/predador, e a mulher a presa ingênua a ser conquistada. Outra
relação possível apresenta a mulher em constante fuga das investidas masculinas e dos mais
diversos perigos, e o homem surge como o salvador da mulher. Os modelos femininos se
resumem à fórmula da boa garota, que ambiciona ser boa esposa e dona de casa – vigora,
portanto o que se denomina heteronormatividade nas relações de gênero.
Sendo não apenas um produto cultural que se insere na esfera pública, mas que é
capaz de invadir também o privado, a revista apresenta a linguagem da conquista amorosa
associada a elementos de iniciação sexual. No entanto, pelo que se pode perceber pelos
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desfechos das histórias, prevalece a pretensão de esta publicação servir como um manual de
conduta moral, no qual são apresentadas os comportamentos que deveriam ser adotados pelos
jovens no que concerne ao amor e aos relacionamentos. A ênfase simultânea na beleza e na
sensualidade feminina nos parece paradoxal, uma vez que contrasta com o intuito moralizante
da revista, que visa controlar a sensualidade e a sexualidade desregrada. Tal como propõe
Michel Foucault em A História da Sexualidade (2007), o “dispositivo da sexualidade” se faz
sentir no discurso da revista e reforçado nas representações visuais que, muito mais do que
reprimir o sexo, o coloca em discussão através dos vários enredos, como forma de regular
especialmente a expressão da sexualidade feminina. Como a mulher é geralmente retratada
em sua fraqueza moral (inocência, inexperiência) supõe-se que sua sexualidade é
potencialmente desordenada, impetuosa, daí a preocupação presente na revista em fazer da
mulher o principal objeto de atenção e controle. O ciúme, a inveja, a competitividade entre as
mulheres surgem como “coisas de mulher” que a revista, ao reproduzir acaba reforçando. E
especialmente se percebe o temor diante da mulher emancipada, que é despida de sua
“feminilidade” e retratada como ser “infeliz” ao negar o modelo de dependência emocional e
submissão proposto através dos exemplos das diversas heroínas das histórias.
Notas
[1] Os sindicatos de acordo com Ezequiel de Azevedo são “órgãos de distribuição de quadrinhos, matérias e
notícias para jornais e revistas. O maior syndicate americano foi o King Features Syndicate, ou KFS.” (2007,
p.7)
[2] Doravante as referências à revista Idílio conterão apenas o número do volume e a página.
Referencias Bibliográficas
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PISCITELLI, Adriana. Reflexões em torno do gênero e feminismo. In: Poéticas e políticas
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REVISTA IDÍLIO. Rio de Janeiro: Editora Brasil-América. n. 1-5, set. à fev. 1948-1949
SILVA JUNIOR, Gonçalo. A Guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e
a censura aos quadrinhos, 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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