Cynthia Roncaglio Nadja Janke Sociedade Contemporânea e Desenvolvimento Sustentável Edição revisada IESDE Brasil S.A. Curitiba 2012 © 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ __________________________________________________________________________________ R676s Roncaglio, Cynthia, 1964Sociedade contemporânea e desenvolvimento sustentável / Cynthia Roncaglio, Nadja Janke. - [1.ed., rev.]. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012. 234p. : 28 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-2973-0 1. Gestão ambiental. 2. Desenvolvimento sustentável. 3. Política ambiental - Brasil. 4. Proteção ambiental - Brasil. 5. Civilização moderna - Século XXI. I. Janke, Nadja 12-5047. CDD: 363.7 CDU: 504.06 16.07.12 30.07.12 037464 __________________________________________________________________________________ Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: IESDE Brasil S.A. Todos os direitos reservados. IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Sumário Teoria social e ambiente I...........................................................................................................9 Sociedade e natureza.....................................................................................................................................9 Teoria social clássica..................................................................................................................................10 Marx, Durkheim e Weber: entre o social e o natural..................................................................................13 Teoria social e ambiente II......................................................................................................17 Sociedade contemporânea e degradação ambiental....................................................................................17 Teoria social contemporânea......................................................................................................................19 Modernidade, racionalidade e ordem......................................................................................29 Os preceitos da racionalidade política, econômica e cultural da sociedade moderna................................29 Capitalismo, transformação da natureza e a sociedade de risco.................................................................34 O mal-estar na modernidade.......................................................................................................................35 Pós-modernidade, irracionalidade e desordem.......................................................................39 As incertezas da racionalidade política, econômica e cultural...................................................................39 Globalização e políticas ambientais............................................................................................................41 O mal-estar na “pós-modernidade”............................................................................................................43 A natureza como sujeito ............................................................................................................................44 Desenvolvimento sustentável..................................................................................................47 Desenvolvimento e ambiente......................................................................................................................47 Compreendendo conceitos: ecologia, meio ambiente, ecodesenvolvimento, desenvolvimento sustentável...................................................................................49 Nosso futuro comum e os princípios de sustentabilidade...........................................................................53 Sustentabilidade para quem?...................................................................................................59 Desenvolvimento econômico X desenvolvimento sustentável...................................................................59 Globalização e discursos de sustentabilidade.............................................................................................61 É possível sustentabilidade como alternativa de desenvolvimento?..........................................................64 Políticas públicas e desenvolvimento sustentável..................................................................69 A política e seus significados......................................................................................................................69 Política e multidimensionalidade dos problemas humanos.........................................................................71 Globalização e políticas ambientais............................................................................................................73 O esverdeamento das políticas públicas ....................................................................................................74 Estado e ambiente no Brasil....................................................................................................79 A emergência da questão ambiental no Brasil............................................................................................79 Evolução das políticas públicas ambientais................................................................................................81 Posicionamentos do Estado brasileiro face à questão ambiental................................................................84 Sociedade e ambiente no Brasil..............................................................................................91 A força do ambientalismo na sociedade contemporânea............................................................................91 A criação de organizações não governamentais ambientalistas..................................................................95 Movimentos sociais e ambientalismo no Brasil.........................................................................................97 Ambiente urbano e desenvolvimento sustentável I..............................................................101 Origens e transformações das cidades......................................................................................................101 Representações do campo e da cidade......................................................................................................103 Problemas urbanos....................................................................................................................................104 Limites da sustentabilidade urbana...........................................................................................................106 Ambiente urbano e desenvolvimento sustentável II.............................................................109 Transformações urbanas...........................................................................................................................109 Práticas de sustentabilidade urbana em cidades brasileiras......................................................................110 Desafios para as cidades contemporâneas................................................................................................117 Ambiente rural e desenvolvimento sustentável I.................................................................. 119 O mundo rural...........................................................................................................................................119 Desenvolvimento rural no Brasil..............................................................................................................120 Desenvolvimento territorial sustentável: uma nova abordagem...............................................................123 Os atores do desenvolvimento rural sustentável.......................................................................................126 Ambiente rural e desenvolvimento sustentável II.................................................................131 Sistemas de produção sustentáveis...........................................................................................................131 Práticas de sustentabilidade rural no Brasil..............................................................................................135 Desafios para a vida rural contemporânea no Brasil................................................................................138 Cuidando da natureza............................................................................................................143 Preservação ou conservação?...................................................................................................................143 Preservando o ambiente............................................................................................................................143 O movimento conservacionista.................................................................................................................145 A natureza como recurso..........................................................................................................................147 Gerenciamento sustentável dos ecossistemas...........................................................................................148 A natureza como patrimônio.....................................................................................................................150 Saberes em jogo na qualidade ambiental..............................................................................153 Saberes científicos e tecnológicos............................................................................................................153 Saberes tradicionais e modernos...............................................................................................................155 Quem detém o saber ambiental?...............................................................................................................157 Gestão participativa e ambiente............................................................................................161 Sustentabilidade: conciliando participação social e cuidado com o ambiente.....................................................161 Agenda 21: uma proposta de gestão.........................................................................................................164 Gestão de unidades de conservação: o papel dos atores sociais...............................................................165 Ações ambientais globais......................................................................................................173 Relatório Brundtland................................................................................................................................174 Eco-92, Agenda 21e a Convenção da Biodiversidade..............................................................................175 Dez anos depois: a Rio+10.......................................................................................................................177 Protocolo de Kyoto...................................................................................................................................178 O Projeto do Milênio das Nações Unidas.................................................................................................179 Experiências de ações ambientais nas políticas públicas locais...........................................185 Políticas públicas em unidades de conservação........................................................................................186 Políticas públicas e desenvolvimento rural...............................................................................................187 Políticas públicas em educação................................................................................................................189 Experiências de ações ambientais envolvendo participação popular e cidadania................195 Exemplos de construção da Agenda 21....................................................................................................195 Exemplos de ONGs da área socioambiental.............................................................................................198 Exemplos institucionaisnas áreas da educação e da saúde.......................................................................200 Concluindo................................................................................................................................................202 Experiências de ações ambientais nas empresas privadas....................................................205 O papel dos estudos de impacto ambiental / relatórios de impacto ambiental.........................................205 Exemplos de relatórios de impacto em grandes empresas........................................................................207 Exemplos de ações ambientais em empresas............................................................................................208 Concluindo................................................................................................................................................210 Educação Ambiental como instrumento de superação da insustentabilidade.......................213 Conceituando Educação Ambiental..........................................................................................................213 Educação Ambiental no âmbito escolar....................................................................................................217 Educação Ambiental em espaços não formais..........................................................................................218 Educação Ambiental e cidadania..............................................................................................................220 Educação Ambientalem perspectiva.....................................................................................223 Educação Ambiental em escolas...............................................................................................................223 Educação Ambiental e movimentos sociais..............................................................................................225 Educação Ambiental e políticas públicas.................................................................................................227 Educação Ambiental e empresas privadas................................................................................................231 Apresentação Caro aluno, A partir deste material, faremos juntos uma viagem por um tema fascinante e complexo: a sociedade ocidental contemporânea e a perspectiva do desenvolvimento sustentável. Para compreender os problemas sociais e ambientais contemporâneos, precisamos fazer uma travessia que inclua algumas paradas em lugares e tempos estratégicos, onde e quando transformações históricas importantes anunciaram mudanças no modo de nos relacionar e de compreender a natureza. Assim, faremos logo no início da nossa viagem um passeio pela teoria social a fim de apreender as reflexões essenciais acerca da relação entre sociedade e natureza que surgiram num tempo em que a natureza ainda não se sentia ameaçada pelas nossas ações e nós não tínhamos a consciência coletiva de que podíamos colocar em risco não somente a natureza mas também a natureza humana. Tendo em mente essas ferramentas teóricas essenciais, faremos uma incursão pela sociedade ocidental moderna e pós-moderna, buscando alguns elementos que nos ajudem a compreender como se estabeleceram a ordem e o caos, as racionalidades e as irracionalidades no âmbito da política, da economia e da cultura contemporâneas. A abordagem que aqui faremos, de alguns momentos cruciais da evolução da ciência e da sociedade, é fundamental para compreendermos o tipo de contato que estabelecemos com a natureza e o ambiente que cercamos e que nos cerca. A partir disso, poderemos compreender melhor porque a questão ambiental se colocou como um dos principais problemas, senão o principal e mais abrangente, no decorrer do século XX e no início do XXI. A análise de conceitos como desenvolvimento sustentável, ecodesenvolvimento e sustentabilidade, usados com frequência por políticos, cientistas e cidadãos em geral, será apresentada aqui com o intuito de estimular a sua reflexão sobre um tema que desperta muitas polêmicas e ações diversas no âmbito do governo, das empresas privadas, das organizações sociais. As experiências globais e locais na área ambiental, quer ocorram no campo ou na cidade, representam uma ponte entre a teoria e a prática, a sociedade e a natureza, os interesses individuais e os coletivos, a destruição e a preservação. Você terá oportunidade, em vários momentos de leitura e reflexão, assim como no decorrer das atividades propostas, de fazer essa ligação entre os conteúdos. Não poderíamos deixar de salientar também a importância da Educação Ambiental para a formação de cidadãos mais sensíveis e atentos aos problemas ambientais e o fato de ela poder estar presente em todas as instâncias da vida social, na educação formal e na informal. Certamente, quando chegarmos ao fim da nossa viagem, você perceberá que o assunto tratado é vasto e profundo e que o nosso objetivo aqui é tão somente despertar, por meio dos conteúdos abordados, da indicação de leituras, filmes e atividades, o desenvolvimento da consciência crítica e a curiosidade para você continuar nos seus estudos a explorar e desvendar o mundo social e natural em toda a sua diversidade. Boa viagem! Cynthia Roncaglio Teoria social e ambiente I Cynthia Roncaglio* Sociedade e natureza D urante milhares de anos, a existência e a sobrevivência da humanidade dependeram das condições ditadas pela natureza. Isolados, fracos, repletos de necessidades e assustados diante da grandeza e da imprevisibilidade dos fenômenos naturais, durante muito tempo os seres humanos submeteram-se às forças da natureza e as trataram com respeito e temor. Até poucos séculos atrás, a natureza abrigava o homem, constituía o seu habitat. Ao longo da história da humanidade, porém, a relação entre sociedade e natureza foi se alterando na medida em que o homem se percebe diferenciado (a natureza humana como diferente da natureza) ou até mesmo afastado do mundo natural (quando surgem, por exemplo, as cidades e acelera-se o processo de urbanização). Essa transformação lenta, mas progressiva, propicia uma reflexão – um movimento de retorno sobre o saber, sobre o que é o ser, como as coisas funcionam e para que servem. Desse questionamento, surgem a filosofia e as ciências, que, dentro dos limites do conhecimento de cada época, especularam e formularam diversas concepções sobre o que é o homem, o que é a natureza e o que um tem a ver com a outra. Em linhas gerais, pode-se dizer que a filosofia, as ciências e as teorias da sociedade contemporânea herdaram a influência de duas concepções de ciência e filosofia universais: a grega e a hebraica. A filosofia grega, denominada monista, parte do princípio da imanência do ser, ou seja, homem e natureza são inseparáveis, pertencem ao mundo das coisas concretas, materiais, e formam um todo. A filosofia hebraica, denominada dualista, ao contrário, baseia-se na transcendência, isto é, o homem pertence à natureza, mas a natureza foi criada por Deus, que é um ser superior que se coloca acima das coisas materiais. Como o homem foi criado à imagem de Deus, ele pode se transformar em senhor da natureza para respeitar a vontade divina. Na epistemologia1 antiga (século V a.C. até século XVI d.C.), predomina o monismo; na epistemologia moderna (século XVII a século XIX), predomina a concepção dualista, baseada na dominação da natureza, evidenciada no pensamento de Descartes, Kant, Hegel. Na parte final do Discurso do método (1637), Descartes diz o seguinte: [...] conhecendo a força e ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza. (DESCARTES, 1983, p. 63, grifo nosso). Douto r a n d a e m M e i o A mbiente e D e s e n v o lvimento p e la U n iv e rsidade F e d e ra l d o Pa raná (U FPR ). M e s tre em H istó ria d o B ra s il. Professo ra d o c u rs o d e História d a s F a c u l d a d e s Integrad a s Es p írita . H is toriadora . 1 Epistemologia é a teoria do conhecimento – reflexão geral sobre o desenvolvimento do conhecimento humano em suas diferentes etapas. 9 Teoria social e ambiente I Pode-se dizer que o desenvolvimento da técnica e da ciência no contexto das relações de produção e reprodução das sociedades capitalistas nos séculos seguintes foi permeado pela ideia cartesiana de que é possível explorar a natureza (entendida como uma quantidade de recursos disponíveis e ilimitados) e dominá-la (a partir do uso eficaz de instrumentos técnicos e conhecimentos científicos). Tal atitude em relação aos recursos naturais, no entanto, tem provocado, ao longo do tempo, danos irreparáveis ao ambiente. Em graus variáveis, e em épocas e espaços diferentes, pode-se tomar como exemplo de degradação do ambiente a escassez de recursos naturais não renováveis na era industrial, a alteração das estações e do clima, a erosão do solo e o desmatamento. Diante dessas constatações surgiu, entre o final do século XIX e o início do século XX, a epistemologia socioeconômica e uma crise ecológica, que podem ser caracterizadas filosoficamente como a tensão constante entre modos monista e dualista de compreender e viver a relação entre sociedade e natureza. A mesma civilização que construiu o progresso tecnológico e científico baseado na exploração e na dominação da natureza encontra-se diante de uma crise de paradigmas. A mesma civilização que construiu o progresso tecnológico e científico baseado na exploração e na dominação da natureza encontra-se diante de uma crise de paradigmas. A crise ecológica é uma crise da razão, uma crise de ligação e limite: o que nos liga à natureza, o que liga o homem, os animais e os seres vivos? O que nos distingue dos animais, dos seres vivos, da natureza? Os ecologistas reatualizam a discussão sobre a relação entre sociedade e natureza modificando a frase de Descartes: o homem deve ser mestre e protetor da natureza. Teoria social clássica O que significa a teoria social e por que estudá-la para compreender o ambiente? Como foi visto até aqui, existiram muitas correntes da filosofia que, de certa forma, pensaram a relação entre o homem e a natureza. Ou melhor, conceberam determinadas ideias sobre a natureza e a humanidade a partir de uma ou outra concepção filosófica. A filosofia, assim como a ciência, constitui um modo de conhecimento produzido historicamente por sociedades que a reconhecem como válida. O mundo ocidental, ao longo dos séculos XIX e XX, conferiu ao saber produzido pela ciência um estatuto superior aos demais, assim como possibilitou o pleno desenvolvimento e a consequente especialização do conhecimento científico. A ciência obteve, a partir daí, a possibilidade de aprofundar conhecimentos sobre o universo, a vida, os seres humanos e a sociedade em um grau que não poderia ser abrangido por uma única disciplina ou pelo estudo de um único indivíduo. O surgimento e o desenvolvimento da biologia, da filologia, da economia, da psicologia e da sociologia, entre outras, no campo epistemológico, propiciou igualmente aperfeiçoamento teórico-metodológico, rigor intelectual e sistematização de conhecimentos sem igual. A filosofia, assim como a ciência, constitui um modo de conhecimento produzido historicamente por sociedades que a reconhecem como válida. 10 Teoria social e ambiente I A ciência, entretanto, é tecida pelas e nas relações sociais. Em nome da razão, Não paira sobre os indivíduos – ao contrário, é entremeada de constituiu-se uma ciência representações, crenças e valores subjacentes à sociedade e aos poderosa para alcançar indivíduos que a legitimam. Ou, em outras palavras, o fazer-se os seus fins e uma ciência da ciência não ocorre separado dos interesses sociopolíticos e do aparato tecnológico que lhe dá suporte e sustentação. É fruto determinista para justificar do conhecimento dos homens e ligada à necessidade de produ- os seus meios. ção material dos homens. Em nome da razão, constituiu-se uma ciência poderosa para alcançar os seus fins e uma ciência determinista para justificar os seus meios. Portanto, a teoria social clássica, desenvolvida no decorrer do século XIX na Europa, construiu um modelo explicativo da realidade que, sob determinada perspectiva, ampliou a compreensão sobre sua própria época, mas, ao mesmo tempo, foi condicionada por ela. No decorrer do século XIX e até meados do século XX, a teoria social voltou-se fundamentalmente para o estudo dos fenômenos sociais, inclusive porque a crescente especialização e a competitividade das ciências exigia a demarcação da estrutura conceitual e metodológica de cada disciplina, até certo ponto impedindo que florescessem questionamentos mais profundos sobre as relações entre a sociedade e o seu substrato “natural” ou “material”. Isso não quer dizer que não houve defensores de uma estreita relação entre a biologia e a sociologia para se compreender a sociedade. Augusto Comte2, assim como Herbert Spencer3, considerava que os princípios e os procedimentos metodológicos da biologia deveriam ser aplicados na análise sociológica. Comte estabeleceu, por exemplo, analogia entre a forma e a função dos organismos vivos e seus órgãos para explicar a correlação entre indivíduos e instituições nas sociedades modernas. Spencer transpôs os modelos de evolução, seleção e variação de Darwin para o desenvolvimento social. Os economistas políticos clássicos (1770-1830), em especial, procuraram apontar a relação entre as possibilidades econômicas do homem e as limitações estabelecidas pelas condições ambientais. Malthus4, de modo mais direto, dedicou-se a estudar os efeitos sociais do crescimento demográfico e a escassez de alimentos – a reprodução biológica dos pobres seria mais rápida que o incremento agrícola para abastecer a população. Tanto David Ricardo5 como John Stuart Mill6 identificaram os potenciais limites do crescimento e dos recursos naturais em uma economia agrícola em expansão. Baseados em argumentos diferentes, ambos concluem que o crescimento econômico explosivo do século XIX redundaria num esgotamento da fertilidade dos solos e na queda das taxas de rendimento da terra. Em meados do século XIX, o crescente ritmo da industrialização tornou os prognósticos de Malthus e de Ricardo redundantes. As taxas de crescimento demográfico continuavam a aumentar, assim como a produtividade agrária, mas esta produtividade apresentava um papel cada vez mais reduzido no processo de crescimento econômico. Com a crescente importância da industrialização no destino da humanidade, juntamente com a especialização das ciências, é compreensível que esses estudos – que, de um modo ou de outro, procuravam entender os elos entre a sociedade e o ambiente – fossem desviados para outros enfoques. 2 Augusto Comte (17981857): considerado o pai da sociologia e fundador da doutrina positivista, que consiste na crença em uma ciência objetiva que seria o estágio mais avançado da civilização. 3 Herbert Spencer (18201903): entendia a huma­ nidade na sua realidade social, psíquica, moral, como produto da evolução, tal qual a definiu Darwin. 4 Thomas Robert Malthus (1766-1884): economista inglês. Suas ideias se tornaram uma doutrina. O malthusianismo afirmava ser o controle da natalidade necessário, tendo em vista a desproporção entre o crescimento da população e o aumento da produção dos bens de consumo. Hoje, os princípios malthusianos têm sido rejeitados pelo mundo científico, sendo considerados falsos e em desacordo com o desenvolvimento da humanidade. 5 David Ricardo (17721823): economista inglês. 6 John Stuart Mill (18061873): filósofo e economista inglês. 11 Teoria social e ambiente I A fim de compreender as origens e os efeitos da degradação ambiental na sociedade contemporânea, cabe analisar, ainda que de modo amplo e geral, a contribuição da teoria social clássica, que não tomou como principal viés de análise a relação entre sociedade e natureza, seja porque havia uma disjunção entre os conhecimentos do mundo natural e do mundo social, seja porque a percepção dos potenciais problemas ecológicos não tinha ainda contornos claros como hoje. De acordo com Goldblatt (1996, p. 21), [...] para a teoria social clássica, o problema ecológico fundamental não era as origens da degradação do ambiente, mas o modo como as sociedades pré-modernas haviam sido controladas pelos seus ambientes naturais, e o modo como as sociedades modernas haviam conseguido ultrapassar esses limites ou, em certa medida, se haviam desligado das suas origens “naturais”. Teoria social sob o signo da Revolução Industrial Dá-se o nome de Revolução Industrial às profundas transformações econômicas e sociais que ocorreram na Europa a partir da segunda metade do século XVIII. Basicamente, a Revolução Industrial consistiu, e ainda hoje consiste, na busca de novas fontes de energia e sua aplicação em máquinas capazes de produzir bens. Iniciada na Inglaterra, a industrialização estendeu-se à França em torno de 1810 e, em seguida, à Alemanha. Aproximadamente em 1840, começava a industrialização dos Estados Unidos da América; a partir da segunda metade do século XIX, também se transformavam a Rússia, o Japão e a Itália. O processo de industrialização tornou-se um fenômeno mundial e consolidou definitivamente o modo de produção capitalista. A mecanização do processo de produção de bens alterou drasticamente a natureza e a sociedade, com a introdução da maquinaria e de novas formas de organização do trabalho. Na Inglaterra do início do século XVIII, por exemplo, ainda predominava uma forma de trabalho baseada na produção familiar. Uma das principais atividades da época era a produção de tecidos. A família funcionava como uma pequena unidade industrial em que cada membro dedicava-se a uma ocupação – uns fiavam, outros cardavam, outros teciam. A família era então proprietária da produção, dos instrumentos de trabalho que utilizava e das matérias-primas que transformava. As peças de tecido eram depois comercializadas nas cidades próximas pelo chefe da família. Com a expansão do mercado consumidor, e com o surgimento dos comerciantes manufatureiros, que intermediavam as relações comerciais, modificaram-se pouco a pouco as relações de trabalho e a vida social. Surgiram as fábricas e muitos camponeses deslocaram-se do campo para a cidade em busca de emprego. As condições de vida nas cidades industriais, no entanto, causaram sérias alterações na rotina de camponeses e artesãos. Num primeiro momento, a urbanização não acompanhou o grande contingente de pessoas que migravam para as cidades. Péssimas condições de higiene e saneamento básico, moradias insalubres e falta de água eram alguns dos fatores negativos do processo inicial da industrialização, assim como os operários eram submetidos a condições de trabalhos sub-humanas. Do ponto de vista tecnológico, o impulso definitivo dado à Revolução Industrial foi a invenção do tear mecânico (que antecedeu todas as máquinas indus12 Teoria social e ambiente I triais modernas), o coque metalúrgico (usado como combustível nos altos-fornos para a produção de ferro e aço) e a máquina a vapor. Um dos maiores impactos causados pela industrialização, no entanto, foi a invenção da locomotiva e o consequente desenvolvimento das estradas de ferro. Paralelamente à produção têxtil, cresceram a mineração, a siderurgia e as indústrias metalúrgica e mecânica (que produziam as máquinas para as demais indústrias). Houve também um grande avanço na indústria de construção naval e em todos os setores ligados aos meios de transporte, indispensáveis ao escoamento das mercadorias. Como a produção de máquinas exigia grandes somas de dinheiro, desenvolveu-se também toda uma rede de relações comerciais, sistemas bancários e a participação direta dos governos para arrecadação das quantias necessárias. O Estado assumiu ainda o papel de regulador das leis trabalhistas e de entidades de classe, fornecendo subsídios à indústria e formulando regulamentos bancários. Todas essas transformações causaram impacto também sobre a produção do conhecimento e geraram reflexões teóricas acerca do modo como as sociedades modernas haviam conseguido ultrapassar os limites naturais ou, em certa medida, haviam se desligado de suas origens “naturais”, embora os problemas ambientais não se colocassem ainda como variáveis importantes para a análise social. Cabe, no entanto, analisar alguns aspectos da contribuição de três pensadores clássicos da sociologia moderna para os posteriores modelos de análise que surgirão no século XX. Marx, Durkheim e Weber: entre o social e o natural Para Karl Marx7, o homem é um animal racional, mas o que o distingue dos outros animais, mais do que a razão, é o trabalho. Por meio do trabalho, o homem transforma a natureza. Os animais fabricam instrumentos, mas não trabalham. Os homens fabricam os meios de suprir suas necessidades, que mudam no tempo e no espaço. A divisão social do trabalho leva à divisão de classes sociais. Esta divisão só ocorre em sociedades que produzem excedentes, isto é, que obtêm mais do que o necessário para garantir a sua subsistência e, dessa forma, geram lucro sobre o que produzem. Nessa linha de interpretação, a sociedade de classes inevitavelmente produz a luta de classes – a luta entre aqueles que não detêm os meios de produção e, portanto, são obrigados a vender a sua força de trabalho para aqueles que detêm os meios de produção e o capital. Segundo Marx, é possível construir uma sociedade rica sem divisão de classes porque os trabalhadores podem trabalhar e participar da gestão da sociedade. As ideias que os homens têm estão sempre definidas pela posição que ocupam no espaço do trabalho: há aqueles que vivem o tempo do trabalho e há aqueles que têm o tempo para pensar no trabalho. 7 Karl Marx (1818, Trier, Alemanha – 1883, Londres, Inglaterra): fundador do materialismo dialético e do materialismo científico. Seus estudos e sua atuação junto aos movimentos operários europeus gerou o Marxismo – conjunto de concepções e reflexões realizado com Friedrich Engels que atraiu muitos seguidores. Marx considera que as causas da exploração humana ocorrem por causa das condições materiais da existência e a consciência dos homens é determinada pela realidade social, ou seja, pelo conjunto dos meios de produção. 13 Teoria social e ambiente I Para Marx, a natureza é compreendida enquanto objeto de transformação do homem por meio do trabalho para obter as condições naturais desse trabalho e como meio de subsistência. Conforme os estudiosos da filosofia marxista, essa visão estática da natureza, ou de submissão aos interesses do homem, decorre do fato de Marx se dedicar essencialmente à compreensão do sistema capitalista, no qual a natureza já aparecia como simples mercadoria, e secundariamente com as sociedades primitivas, nas quais o mundo natural foi pouco modificado por causa do escasso desenvolvimento das forças produtivas e da veneração com que era tratado. Nas sociedades capitalistas, a natureza não é revestida de poder nem considerada como sujeito, e sim como objeto de consumo ou meio de produção. 8 Durkheim (1858, Épinal, Alsácia – 1917, Paris, França): considerado fundador da escola francesa de sociologia. 9 Conceito cunhado por Durkheim para explicar a construção da consciência individual e coletiva. A solidariedade orgânica é uma característica das sociedades em que ocorre a divisão econômica do trabalho. Uma estrutura segmentária pressupõe uma diferenciação social que possibilita o crescimento da individualidade. Nessa sociedade, o indivíduo é visto como uma coisa de que a sociedade dispõe. Nas sociedades primitivas, prevalece a solidariedade mecânica, pois a consciência individual decorre do próprio desenvolvimento histórico, cada indivíduo é o que os outros são, praticamente não havendo divisão do trabalho, somente a divisão sexual do trabalho. Nas sociedades primitivas, dominadas pela solidariedade mecânica, a consciência coletiva é maior que a consciência individual. Já nas sociedades em que ocorre a diferenciação dos indivíduos, a consciência individual se sobrepõe à consciência coletiva. 10 Weber nasceu em Erfurt, em 1864, e morreu em Munique, 1920. Economista, filósofo e sociólogo alemão. Foi um dos autores mais influentes no estudo do surgimento e do funcionamento do capitalismo e da burocracia, bem como da sociologia da religião. Deteve sua análise na tendência à racionalização progressiva da sociedade moderna. Evidencia que as sociedades industrialmente desenvolvidas são cada vez mais racionais. A consequência disso seria uma crescente desagregação religiosa. 14 Durkheim8 compreende a divisão do trabalho como sendo uma estrutura de toda a sociedade moderna, calcada na propriedade privada e na diferenciação social das pessoas, sendo a divisão técnica ou econômica apenas uma manifestação dessa realidade histórica. Assim, discorda-se de que os homens teriam anteriormente consciência da sua individualidade e dividiriam o trabalho atribuindo uma ocupação específica para cada um a fim de aumentar o rendimento coletivo. Para Durkheim, a consciência da individualidade não poderia existir antes da solidariedade orgânica9 e da divisão do trabalho. Em seu conhecido estudo Da divisão do trabalho social, o autor analisa e destaca o papel de fatores como a densidade demográfica e a escassez de recursos no processo de divisão do trabalho. Ou seja, identifica a importância do mundo natural na evolução das sociedades humanas, na medida em que relaciona a densidade populacional com os recursos materiais disponíveis e daí surge a estratificação social. Assim como Marx, Durkheim rejeita o determinismo biológico, afirmando que os fenômenos sociais não podem ser estudados a partir do evolucionismo biológico ou de variáveis como raça, instinto, clima etc. Ao contrário, ambos os autores salientam o ponto de contato econômico entre as sociedades humanas e o mundo natural e a sua importância para as transformações históricas. Durkheim, em suas análises, deteve-se mais sobre o papel da industrialização do que na escassez de recursos, evidentemente porque estava mais interessado em descobrir como a industrialização influenciava a sociedade e não como a sociedade influenciava o meio ambiente. Entre os teóricos sociais clássicos, Weber10 é o que menos se volta para as questões referentes ao mundo natural. Inserido no rol dos cientistas sociais que se opunham a utilizar os marcos metodológicos definidos pelas ciências naturais, entende o objeto da sociologia como, fundamentalmente, “a captação da relação de sentido” da ação humana. Ou, em outras palavras, Weber diz que não basta explicar um fenômeno social: é preciso compreender o conteúdo simbólico da ação ou das ações que o configuram. Nessa perspectiva, não é possível explicar propriamente o fato social como resultado de um relacionamento de causas e efeitos (procedimento das ciências naturais), e sim compreendê-lo como fato carregado de sentido, isto é, como algo que aponta para outros fatos e somente em função dos quais poderia ser conhecido em toda a sua amplitude. Em alguns dos seus estudos, encontram-se algumas referências indiretas sobre o mundo natural, como na sua análise sobre o judaísmo, na qual faz algumas reflexões sobre as origens e as consequências ecológicas do nomadismo; ou nas Teoria social e ambiente I suas investigações históricas sobre os modos de produção agrária da Antiguidade – mas não são estudos que indicam algum tipo de reconhecimento do impacto das atividades sociais sobre os diversos ambientes naturais. Nos seus trabalhos mais conhecidos, como A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo e Economia e Sociedade, não existem referências ecológicas, mas em sua Histórica Econômica Geral ele desenvolveu alguns elementos que certamente apontam para a direção de uma ecologia humana11. Nesse estudo, Weber indica alguns fatores ambientais que podem ser considerados, dentro de modelos multicausais, como prováveis fatores de sobrevivência de algumas camadas sociais sobre as outras. Em suma, embora entre suas concepções teóricas haja divergências, Marx, Durkheim e Weber contribuíram significativamente para a compreensão das relações sociais sob o sistema capitalista e das influências da industrialização na forma de as sociedades se organizarem do ponto de vista econômico e político, assim como indicaram possibilidades de transformações culturais a partir do socialismo. A limitação das suas análises sobre a relação entre sociedade e natureza se dá muito mais em função de que na sociedade em que viveram o capitalismo e a tecnologia industrial se colocavam como capacidade de criar abundância material e não havia nas sociedades modernas limitações naturais evidentes. Esse trio de pensadores clássicos reagiu contra teorias sociais de fundo biológico, mas não necessariamente negou o papel da natureza nas transformações históricas. Por certo, desenvolveram um pensamento relativamente antropocêntrico12 em que a natureza aparecia muito mais como cenário onde se realizava a trama histórica do que como sujeito/objeto ativo do processo histórico. Suas teorias, no entanto, não apresentam um retrocesso em relação às anteriores: ao contrário, representam um avanço sobre as teorias sociais de sua época porque colocaram a questão social no centro da reflexão sobre a humanidade. Se as estruturas conceituais desses pensadores já não parecem suficientes para compreender e explicar o século em que as inovações sociais, tecnológicas e comunicacionais alteraram sensivelmente as estruturas sociais, as formas de produção, a organização institucional, as relações de trabalho, a percepção de tempo e espaço, a degradação dos ecossistemas, entre tantas outras mudanças inusitadas, constituíram um ponto de partida fundamental para a epistemologia do século XX. 11 Ramo das ciências humanas que estuda a estrutura e o desenvolvimento das comunidades humanas em suas relações com o meio ambiente e a sua consequente adaptação a ele, assim como novos aspectos que os processos tecnológicos ou sistemas de organização social possam acarretar para as condições de vida do homem. 12 O pensamento antropocêntrico considera que a natureza não tem valor em si, pois constitui os “recursos naturais” a serem explorados pelos homens. Baseia-se numa visão dicotômica de homem e natureza, na qual o primeiro tem domínio, por meio da ciência e da técnica, sobre a última. Os temas da ecologia humana e do meio ambiente estão tornando-se rapidamente o assunto dos anos vindouros do século XX, e são considerados como tais não somente pelas organizações governamentais e internacionais, mas por milhões de pessoas que descobriram que suas lutas econômicas, sociais, políticas e culturais, tendo em vista sua sobrevivência contra a pobreza e a miséria, são simultaneamente lutas ecológicas. O sinal prático de que a ecologia humana pode transformar-se nos temas dominantes do século XXI é o rápido crescimento dos movimentos sociais que de uma maneira ou de outra estão combatendo a tendência mundial de destruição da natureza no universo. Os temas mundiais da ecologia 15 Teoria social e ambiente I e do meio ambiente vão certamente ter maior importância no futuro. Os povos do mundo estão começando, de formas variadas e às vezes contraditórias, a levar em conta as relações entre si e com o resto da natureza. (REVISTA CAPITALISM, NATURE, SOCIALISM apud DIEGUES, 1996, p. 50-51). Discuta em grupo essa citação, relacionando-a com o texto apresentado, identificando as razões pelas quais somente a partir do século XX as questões ecológicas passam a ser relacionadas com as questões sociais. DURKHEIM, Émile. Da divisão social do trabalho. In: RODRIGUES, José Albertino. Durkheim: sociologia. São Paulo: Ática, 1968. MARX, Karl. Manuscritos Econômicos-Filosóficos e Outros Textos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores). WEBER, Max. História Geral da Economia. São Paulo: Mestre Jou, 1985. DESCARTES, René. Discurso do Método. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores). DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1996. DURKHEIM, Émile. Da divisão social do trabalho. In: RODRIGUES, José Albertino. Durkheim: sociologia. São Paulo: Ática. GOLDBLATT, David. Teoria Social e Ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. LEIS, Héctor Ricardo. A Modernidade Insustentável: as críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea. Petrópolis/Florianópolis: Vozes/UFSC, 1999. MARX, Karl. Manuscritos Econômicos-Filosóficos e Outros Textos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores). WEBER, Max. História Geral da Economia. São Paulo: Mestre Jou, 1985. 16