imaginários sociais e utopias - Sociedade Brasileira de Sociologia

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XI Congresso Brasileiro de Sociologia
1 a 5 de setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP
1968: imaginários sociais e utopias
Gisele Maria Ribeiro de Almeida
Resumo
Este trabalho pretende realizar uma reflexão sobre imaginários sociais e utopia, tendo
como referência empírica o "revolucionário" ano de 1968. A concepção de utopia utilizada
distingue-se de sua noção mais difundida (sonho, fantasia) e alcança o status de paradigma, tal
como concebeu o pensador polonês Bronislaw Baczko (1991). A opção pelo objeto empírico se
justifica em função do período em questão ter sido marcado por uma intensa criatividade utópica,
quando as utopias travaram relações de intimidade com os movimentos sociais, o que garantiria
uma especificidade e uma particularidade tanto do discurso utópico como da função social da
utopia. A idéia é lançar algumas contribuições para o debate sobre a influência do pensamento
utópico, no âmbito da imaginação social, no que se refere aos processos sociais que visam
transformar uma dada realidade. Para tanto, através de diversas fontes bibliográficas (textos,
entrevistas e colóquios) que abordam esse tema, pretende-se apreender o “contexto 1968”
principalmente a partir da compreensão do sentido que lhe é conferido, destacando a relação
desse sentido com a memória instituída por aqueles que viveram o “sonho”.

Trabalho a ser apresentado no Grupo de Trabalho intitulado "Práticas culturais e imaginários" que está
programado pelo XI Congresso Brasileiro de Sociologia que realizar-se-á nos dias 1 a 5 de setembro de
2003, na UNICAMP em Campinas, São Paulo.

Aluna do programa de mestrado em sociologia do IFCH/Unicamp.
1968: imaginários sociais e utopias
Gisele Maria Ribeiro de Almeida
O objetivo deste trabalho é realizar uma breve análise sobre as relações entre imaginários
sociais e utopias, tendo como referência empírica o "revolucionário" ano de 1968. O propósito
não é construir uma avaliação que consiga mostrar o que "realmente" aconteceu e, sim, lançar
algumas luzes sobre a influência do pensamento utópico na constituição da imaginação social.
Para tanto, pretende-se reunir algumas das reflexões e dos depoimentos de cunho memorialístico
sobre o período em questão com o intuito de apreender a memória registrada, bem como desvelar
alguns sentidos que orienta a constituição dessa memória.
Os Conceitos e os direcionamentos teóricos/metodológicos
Em primeiro lugar, torna-se necessário evidenciar as dificuldades e as principais diretrizes
teóricas que o estudo das significações sociais coloca. Um destes aspectos diz respeito às
representações sociais. A seguir pode-se destacar a questão dos imaginários sociais e a relação
destes com os conceitos de ideologia e utopia.
Quanto às representações e particularmente às significações sociais 1, é um pressuposto
deste trabalho que há em qualquer sociedade um conjunto social de representações. Dentro deste
será destacado, para fins da análise proposta, os imaginários sociais.
Para Castoriadis, a categoria do imaginário é central para a compreensão da história
humana, pois toda forma de organização social depende deste imaginário, inclusive a instituição
da sociedade se confunde com a "instituição de um magma de significações imaginárias sociais,
que podemos e devemos denominar mundo de significações" (CASTORIADIS, 1995: 404). De
acordo com este autor, é apenas em correlação a este mundo de significações que se pode
encontrar a unidade e a identidade de uma sociedade cujas especificidades, como a organização
1
Não é possível incorporar neste trabalho a problemática que envolve a questão da representação em seu
aspecto filosófico, considerando sua relação com a consciência e, as várias "correntes" que advém deste
debate. Mas mesmo as diferentes formulações e posicionamentos sobre as representações sociais não
poderiam aqui se esgotar. Incorpora-se neste estudo algumas concepções sobre o imaginário e a instituição
social de Cornelius Castoriadis (1995); e as formulações elaboradas por Bronislaw Baczko (1991) sobre as
relações entre os imaginários sociais e a utopia.
2
do mundo e do mundo social são: a realidade, a linguagem, os valores, as necessidades, o
trabalho e a forma como uma sociedade se refere a si mesma, a seu próprio passado e presente, e
ao devir.
As reflexões sobre o imaginário social são bastante antigas. O papel, a natureza e o seu
funcionamento foram tratados pelos autores considerados clássicos pela sociologia, a partir da
segunda metade do século XIX.
Na obra marxista, a ideologia engloba as representações que uma classe social formula
para si mesma, para as suas relações com as classes antagônicas, assim como para a estrutura da
sociedade. As representações ideológicas de uma classe social expressam suas aspirações, além
de justificar moralmente seus objetivos, concebendo seu passado e imaginando seu futuro através
destas representações. Desta forma, a luta de classes se dá em um campo ideológico: a ideologia
pode ser vista como um fator real de produção de conflito2.
A correlação entre as estruturas sociais e os sistemas de representações coletivas ocupa
posição central no pensamento de Durkheim, já que, para a existência de uma sociedade, para um
mínimo de coesão, é preciso que o social prevaleça sobre o individual, que haja uma consciência
coletiva. Um dos aspectos básicos do fato social é seu aspecto simbólico. As representações
coletivas expressam o "estado" de um grupo social já que refletem a estrutura e o posicionamento
dos indivíduos frente aos fatos. Estas representações estão intimamente ligadas aos
comportamentos3.
No pensamento weberiano, os imaginários sociais recebem outro enfoque. Para o autor, a
estrutura inteligível de toda atividade humana surge do fato de que os homens orientam suas
condutas em função de um sentido e seria em relação a esse sentido que os comportamentos se
regulamentariam. O social neste aspecto, torna-se fruto de uma rede de sentido, como por
exemplo as referências pelas quais os indivíduos se comunicam e têm uma identidade comum. A
2
Baczko destaca o esquema de abordagem dos imaginários sociais na teoria de Marx cf Baczko, op. cit.:
19-21. Também sugere-se o texto Marx, Karl e Engels, Friedrich (1999).
3
Baczko também expõe as formas de apreensão do imaginário social na obra de Durkheim cf Baczko, op.
cit.: 21-22. Na própria obra de Durkheim pode-se consultar a coletânea organizada por José Albertino
Rodrigues (1993).
3
vida social é então produtora de valores e normas e, por consequência, de um sistema de
representações que consegue fixar e traduzir estes mesmos valores e normas4.
Estas rápidas referências apontam as dificuldades de se adotar os imaginários sociais
como objeto de estudo, dado a amplitude de sua concepção e abordagens. Contudo, o que
interessa aqui é apenas a relação entre estes imaginários e as representações ideológicas e as
representações utópicas. Desta forma, ainda que de forma resumida, se poderia pensar os
imaginários sociais tal como Baczko sugere: como referências pontuais, contidas em um sistema
simbólico que produz o coletivo. Esta identificação coletiva tem funções diversas, mas a mais
relevante para este trabalho, se refere à composição das memórias, e às projeções no futuro das
esperanças e dos medos:
A lo largo de la história, las sociedades se entregan a una invención permanente de sus
proprias representaciones globales, otras tantas ideas-imágenes através de las cuales se
dan una identidad, perciben sus divisiones, legitiman su poder o elaboran modelos
formadores para sus ciudadanos (...). Estas representaciones de la realidad social (y no
simples reflejos de ésta), inventadas e elaboradas con materiales tomados del caudal
simbólico, tienen una realidad específica que reside en su misma existencia, en su
impacto variable sobre las mentalidades y los comportamientos colectivos, en las
múltiples funciones que ejercen en la vida social (Baczko, 1991: 8).
Por outro lado, haveria o problema da construção dos símbolos e das formas simbólicas.
Os símbolos mais estáveis seriam confrontados com um sentido de existência e sinalizariam para
os indivíduos e para os grupos possibilidades de mudança ou de estabilidade histórica. Estes
sistemas simbólicos - sobre os quais apoiam-se e através dos quais trabalha-se a imaginação
social - seriam pautados pelas experiências dos agentes sociais e também por seus desejos e
interesses, um campo que envolveria expectativas e memórias. O dispositivo do imaginário
asseguraria então um esquema coletivo de interpretação das experiências individuais, a
codificação das expectativas e a fusão com a memória coletiva. Assim, o imaginário provocaria
adesões a um sistema de valores, moldaria condutas e conduziria os indivíduos a uma ação
comum (BACZKO, 1991).
4
cf Max Weber (1991). Em Baczko também é possível encontrar referência mais completas sobre a forma
como os imaginários sociais foram compreendidos e incorporados pela obra do pensador alemão cf
Baczko, op. cit.: 22-23.
4
E é exatamente isto que deve ser analisado e resgatado quando se pretende pensar a
"influência" deste sistema simbólico para a imaginação social, no que tange às ideologias e, em
particular às utopias.
Uma noção primária de ideologia a considera um sistema de idéias e representações que
conseguiria moldar e constituir os comportamentos, “recomendar” as normas e os valores aceitos
socialmente. Por isso, a relação entre os imaginários sociais e as ideologias não poderia ser
desconsiderada.
Em seu trabalho, Ricardo da Silva (1998) desenvolve uma discussão sobre o conceito de
ideologia e, um dos aspectos abordados refere-se às relações entre ideologia e dominação. Nesta
concepção a força material das ideologias residiria no fato de que conseguiriam mobilizar
significados que favoreceriam poderes instituídos. Para Silva, o interessante desta perspectiva é
permitir a compreensão dos fenômenos ideológicos como fenômenos do poder, um caminho já
percorrido por Thompson (1995):
o conceito de ideologia pode ser usado para se referir às maneiras como o sentido
(significado) serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações
de poder que são sistematicamente assimétricas – que eu chamarei de relações de
dominação (...) A análise da ideologia pode ser vista como uma parte integrante de um
interesse mais geral ligado às características da ação e interação, às formas de poder e
de dominação, à natureza da estrutura social, à reprodução e à mudança social, às
qualidades das formas simbólicas e a seus papéis na vida social (Thompson, 1995: 16).
Para o autor inglês, compreender a utilização social das formas simbólicas é um caminho
para investigar o processo pelo qual estas formas simbólicas servem para estabelecer e sustentar
relações de dominação nos contextos sociais em que elas são produzidas, transmitidas e
recebidas. Thompson discorda da corrente que vê a racionalização que advém com o capitalismo
como uma contrapartida decorrente da diminuição do papel das crenças e da magia; pois estes
autores ao se fixarem na racionalização, perderiam de vista um processo muito maior, como por
exemplo, a proliferação rápida dos meios de comunicação e crescimento das redes de transmissão
através das quais as formas simbólicas mercantilizadas se tornam acessíveis a um grupo cada vez
maior.
Baczko também se preocupa com essa questão levantada por Thompson, ainda que o
objeto do autor polonês não seja as representações ideológicas; este reforça a idéia de que os
imaginários continuam a ter forte influência sobre a realidade material, na medida em que estes
5
podem provocar adesões a determinados valores e a determinadas formas de agir. Uma das
funções do imaginário social consiste na organização e no domínio do tempo coletivo sobre o
plano simbólico. Os imaginários sociais operam vigorosamente na produção de visões sobre o
futuro, em projetar os sonhos e esperanças coletivos.
Os imaginários sociais e os símbolos construídos a partir destes imaginários, formam
partes dos sistemas complexos e compostos das crenças, das utopias e das ideologias. O impacto
desta construção imaginária sobre as mentalidades depende da difusão e dos meios que dispõe. A
dominação simbólica implica no controle destes mesmos meios e também de outros instrumentos
de persuasão e controle. Baczko remete aos usos da propaganda e dos meios de comunicação de
massa para o enquadramento das relações entre informação e imaginação, bem como suas
consequências sob os imaginários sociais.
Estes aspectos denunciam a "materialidade" que estes conceitos teriam (como o caso do
conceito de ideologia e de utopia) para a definição do "campo" social. Essa materialidade reforça
princípios de conflitos sociais, interesses que se opõem, sentidos que são dominantes vis-à-vis
sentidos que são dominados.
Essa oposição é assumida em Mannheim (1986) no plano do pensamento, quando as
idéias se distinguem entre aquelas que seriam situacionalmente congruentes (que correspondem à
ordem de fato) e idéias e interesses que são situacionalmente transcendentes. Os estados de
espíritos que rompem com a ordem existente podem ser, segundo o autor alemão, ideológicos ou
utópicos. Os representantes da ordem vigente tendem a controlar essas idéias, de maneira que o
limite situacional seja substituído pela avaliação de que estas referencias transcendentes são
socialmente impotentes porque se referem a um mundo situado além da história e da sociedade:
Todos os períodos da história contiveram idéias que transcendiam a ordem existente,
sem que, entretanto, exercessem a função de utopias; antes, eram as ideologias
adequadas a este estágio de existência, na medida em que estavam "organicamente" e
harmoniosamente integradas na visão de mundo características do período ou seja, não
ofereciam possibilidade revolucionárias (Mannheim, 1986: 217).
Ainda segundo Mannheim, o significado dado à existência ou àquilo que é
"concretamente efetivo" se refere à ordem social dentro do qual os indivíduos realmente atuam e,
6
por isso não estaria relegado ao plano imaginário5. Segundo este autor, o pensamento utópico é
diferente do ideológico porque através da contra-atividade é possível transformar a realidade
histórica em outras realidades, mais semelhantes às concepções de cada um. Assim sendo, a
utopia só seria irrealizável do ponto de vista da ordem vigente.
É a partir desta relação entre utopia e a ordem existente é que Mannheim encontra uma
perspectiva dialética entre utopia e ideologia:
Cada época permite surgir (em grupos sociais diversamente localizados) as idéias e
valores em que se acham contidas, de forma condensada, em tendências não-realizadas
que representam as necessidades de tal época (...). A ordem existente dá surgimento a
utopias que, por sua vez, rompem com os laços de ordem existente, deixando-a livre
para evoluir em direção à ordem de existência seguinte (Mannheim, 1986: 222-223).
O filósofo francês Paul Ricoeur (1991) também trabalha com a polaridade entre ideologia
e utopia. Contudo a preocupação deste difere-se consideravelmente do pensador alemão. No caso
de Mannheim, a hipótese é que os conceitos de utopia e ideologia, bem como a dialética entre
estes, funcionaria como instrumental para analisar o pensamento social, conferindo uma
epistemologia e uma ontologia que compõem a sociologia do conhecimento. Entretanto, Ricoeur
busca inserir os conceitos de ideologia e utopia no mesmo quadro teórico por acreditar que essa
conjunção tipifica a imaginação social e cultural6. A hipótese é que a relação dialética entre os
conceitos, poderia ajudar a resolver a questão da imaginação como problema filosófico.
Haveria na opinião de Ricoeur muitos pontos de afinidade entre ideologia e utopia. Em
primeiro lugar seriam conceitos altamente ambíguos já que apresentam aspectos positivos e
negativos, construtivos e destrutivos, constitutivos e patológicos. O segundo traço comum é que
nos dois casos o aspecto patológico do conceito apareceria primeiro do que o constitutivo. Para o
autor são alguns traços estruturais da imaginação social que explicariam a polaridade entre
ideologia e utopia, e dentro de cada uma delas.
5
Mannheim usa a expressão "ordem operante da vida" que para ele seria uma decorrência de uma
específica estrutura política e econômica que a instituí. Contudo, deve-se ressaltar que essa "ordem"
extrapola os planos da política e da economia para a totalidade das formas de vida social humana (tal
como as formas do amor e do conflito) que são necessárias e que combinam com essa organização.
6
Segundo Ricoeur, a imaginação social se refere aos papéis atribuídos aos indivíduos dentro das
instituições, enquanto que a imaginação cultural seria dada pela produção de obras da vida intelectual
(Ricoeur, 1991: 65).
7
Para o filósofo francês, a função da utopia se expressa pela capacidade de conceber um
lugar vazio de onde olhamos para nós mesmos:
O que há que se acentuar é a vantagem desta extraterritorialidade especial. Deste "lugar
nenhum" é lançado um olhar exterior à nossa realidade, que repentinamente parece
estranha, nada sendo já tido como certo. O campo do possível está agora aberto para
além do atual; trata-se, portanto, de um campo para maneiras alternativas de viver. Este
desenvolvimento de novas perspectivas alternativas define a função básica da utopia.
Não podemos então dizer que a imaginação em si - através da sua função utópica - tem
um papel constitutivo ao ajudar-nos a repensar a natureza da nossa vida social?
(Ricoeur, 1991: 88).
Paradigma utópico
As utopias sofrem mudanças e alterações pelos homens e travam uma relação de
dependência com as formas de organização social e de poder. Assim como transformam-se essas
formas organizacionais, alteram-se significativamente os anseios e os desejos utópicos da
sociedade.
As utopias possuem estreita vinculação com os mitos e as crenças. Antes de serem
denominadas de “utopias”, já existiam. Como por exemplo A República de Platão que é uma
cidade perfeita, idealizada pelo autor. A transformação paradigmática, no entanto, é feita por
Morus, o “inventor” da palavra utopia e, depois dele a utopia nunca mais foi a mesma.
A Utopia de Morus além de constituir-se em um modelo literário de narração de lugares
imaginados de perfeição, permite - na opinião de Baczko - a emergência de um paradigma do
discurso utópico e, principalmente do surgimento da utopia como um conjunto do imaginário
social. Manifesta-se então o grande “salto” que a forma de compreensão da utopia exprime: se
antes as utopias se limitavam às representações de lugares perfeitos - sem erros e sofrimento, mas
também dado e definido -, com a perspectiva moderna inauguram-se utopias que representam
lugares construídos, modificados pela ação humana e instituídos pelos indivíduos que habitam
estes lugares.
É a partir deste momento que a utopia se separa do mito e da religião e, segundo Baczko,
é essa separação que faz emergir o paradigma utópico, no qual as utopias representam
formulações ideais produzidas pela razão:
La mejor comunidad no tiene otra legitimidad más que la de la racionalidad del
proyecto que la fundó y que coincide con las finalidades mismas de la naturaleza
humana. Por conseguiente, esta representación construida racionalmente constituye
8
una alternativa, desde luego ficticia, pero alternativa apesar de todo, para las
sociedades que se sustraen a esta legitimidad. Por esto, la sociedad gana independencia
en relación con toda realidad transhistórica, en relación con lo sagrado y el mito. Dicho
de otro modo, las condiciones de possibilidad de la invención del paradigma utópico
quedan definidas por el surgimiento de un lugar específico en el que se instala el
intelectual que reinvidica su derecho a pensar, a imaginar y a criticar lo social, y en
especial lo político (Baczko, 1991: 67).
Baczko aponta cinco linhas de investigação no que tange ao paradigma utópico:
1. análises sobre o gênero literário utópico (novelas utópicas);
2. reflexões sobre o pensamento utópico, sua evolução e temas de direção, etc.;
3. trabalhos sobre as utopias praticadas, sobre a história e sociologia das comunidades
exemplares buscando imagens de alteridade social em suas instituições, modo de vida
e relações sociais e humanas;
4. pesquisas sobre os materiais simbólicos colocados em práticas pelas utopias (relações
variáveis entre as utopias e os mitos sociais: milenarismo, messianismo, etc.); e por
último,
5. estudos sobre as utopias em períodos marcantes, quando a criatividade utópica se
acentua e as utopias mantém relações particularmente intensas com os movimentos
sociais, com o imaginário coletivo que dá origem a linhas de forças da evolução do
fenômeno utópico, às particularidades históricas de diversas formas de discurso
utópico, às várias funções sociais das utopias.
Sem dúvida, as alternâncias relativas aos movimentos de florescimento utópico e antiutópico se constituem em fenômenos de interesse sociológico. Para Baczko, essas "flutuações"
demonstrariam que as utopias continuam sendo um lugar de confluência dos sonhos e temores,
pelo menos para certos grupos intelectuais em suas lutas contra as contradições de seu próprio
tempo.
As utopias apesar de serem quiméricas (aspiração de uma sociedade indefinidamente
transformada) se realizam de outra forma. Na sociologia e na história, a realidade do imaginário
está em sua própria existência, nas diversas funções que exercem, assim como na intensidade e
nas consequências de seus exercícios. As utopias ganham em realidade e realismo na medida em
que se inserem no campo das expectativas de uma época ou de um grupo social, sobretudo
9
quando se impõem como idéias-referências e idéias-forças que orientam ou mobilizam as
esperanças e demandam as energias coletivas (Baczko, 1991).
Se o século XX foi marcado pela “cientificidade” no campo da utopia política (superação
da utopia pelo socialismo científico7), por outro lado os movimentos “revolucionários” dos anos
60 e 70 (como o Maio Francês, a Primavera de Praga, o movimento Hippie, e a contracultura de
maneira geral, apenas para citar alguns casos) teriam resgatado a força do imaginário, da
liberdade e da realização pessoal, de uma existência que não se limita a reproduzir o sistema e
que busca encontrar um sentido capaz de dialogar e responder aos valores que nasciam junto
com esses movimentos.
Espera-se que essa retomada teórico-metodológica sirva de subsídios para o
desenvolvimento do trabalho que aqui se propõe. A discussão desenvolvida nas páginas
anteriores devem orientar a reunião de uma série de fenômenos que estariam dispersos, mas que
aparecem reunidos pela memória construída e instituída dos anos 60/70, período onde as utopias
se constituíram em componentes importantes e, até mesmo estruturantes da imaginação social.
1968 e a utopia
Em primeiro lugar, destaca-se que o ano de 1968 é apreendido aqui como um símbolo que
sintetiza uma forte agitação política e cultural que teria atingido diversas partes do globo como as
obras aqui analisadas poderão demonstrar.
Para Baczko, o discurso contestatório de "Maio de 68" pode ser visto como um aspecto
que alterou o lugar da "imaginação" no campo do discurso. Desde então, a imaginação deixa de
se relacionar com o campo fantasioso das artes apenas, para se inserir na discussão de assuntos
7
Baczko coloca que Marx e Engels teriam trabalhado com a oposição utopia/ciência, ou melhor,
socialismo utópico/socialismo científico, e para estes as utopias eram pressentimentos de um saber
(limitado pela imaturidade do proletariado) que depois se transformaria em ciência. O marxismo, na
opinião de Baczko, reconhece o caráter socialista das idéias utópicas (que até estimulam revoltas do
campesinato nos séculos XVI e XVII) tanto que a persistência do fenômeno utópico demonstraria a
constante aspiração da classe oprimida a valores imemoráveis como igualdade, liberdade, justiça social,
etc. Esta perspectiva pressupõe certa teleologia no desenvolvimento das idéias utópicas que ao longo da
história se realizam na direção do marxismo. Outra ênfase dada pelo historiador é que as utopias podem
ser vistas na obra marxista como manifestações repetitivas da revolta social e da esperança em um futuro
"comunitário". Em relação às utopias, o socialismo "científico" se coloca como continuidade (comunhão
10
considerados sérios e reais. O mais interessante, é que se "1968" foi ou não um ano tão
"imaginativo" como se fez pensar, não é tão importante quanto essa memória e essa livre
associação verificada em quase todos os estudos sobre o período; isso porque, segundo Baczko,
os pensamentos e a mitologia que nasce de um acontecimento aos poucos prevalece sobre o
próprio acontecimento. Naquele momento, a imaginação apareceria como um elemento simbólico
importante, teria sido através dela que os movimentos poderiam encontrar identidade e coerência,
através desta imaginação os grupos se reconheceriam e designariam suas resistências e ilusões8.
É possível constatar essa "memória" pelas obras que foram feitas com o objetivo de
comemorar o período e a luta, consagrados pelos depoimentos e entrevistas com indivíduos que
integraram estes movimentos. A idéia de "ruptura", de que naquele momento algo diferente, novo
e radical aconteceu é amplamente difundida. Um outro aspecto que corrobora isso, é que a
maioria das publicações que revisitam esta memória se utilizam da força simbólica das imagens
(fotografias). Sem dúvida, o período pode ser caracterizado pelo crescimento do mercado e da
indústria, que se liga ao fortalecimento da produção de cultura e de bens culturais, o que poderia
"explicar" a quantidade de imagens e a importância que estas passam a ter no padrão cultural.
Porém, estas idéias-imagens serão apreendidas aqui como símbolos que veiculam
mensagens utópicas e, que servem para compor as representações imaginárias daquele momento.
As idéias-imagens amplamente utilizadas nestes livros instituem "livre associação" entre o que
"1968" e a utopia.
Um outro aspecto bastante comum nestas "recapitulações" e "registros" seria uma
tentativa de identificar, ou melhor, ligar aquele momento aos dias de hoje.
A seguir serão identificados alguns destes livros com o objetivo de ilustrar os aspectos
destacados acima, tais como a associação entre "aquele momento" e a utopia bem como a
tentativa de resgatar "aqueles sentidos" para o presente.
de valores e imagens) e ruptura (houveram muitas utopias, mas há apenas um socialismo científico). Para
mais detalhes cf Baczko, op. cit.: 73-75.
8
Baczko, op. cit.: 11-12
11
Nós que amávamos tanto a revolução: 20 anos depois, de Dany Cohn-Bendit.
Editado pela Brasiliense em 1987, a obra foi publicada na França originalmente em
1986. Reúne uma série de depoimentos que traz à cena a memória daquele período de
contestação para ser refletido. O autor, se coloca como alguém que continua a ser um
contestador "estilo 68". Lamenta porque acha que a "geração 68" tem sido vista
ultimamente associada a algo pejorativo, e até ultrapassado. Mas para ele parece ser
incontestável: "Em 1968, o planeta todo pegou fogo". O desafio daquele momento era:
"O amor pela vida, o sentido da história".
1968: a paixão de uma utopia, de Daniel Aarão Reis Filho com fotos de Pedro de
Moraes
O livro publicado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas saiu em 1998. Daniel Reis
Filho começa dedicando o livro para "os que não esqueceram nem se arrependeram".
Escrevendo 30 anos depois, o autor fala sobre os "riscos" da memória, mas vê que o
que marca a densidade e a história daquele ano "foi uma particular combinação de
utopia e de cotidiano".
Depois, segue-se uma série de "fotos para a história" de Pedro de Moraes. Além disso,
apresenta-se uma série de depoimentos. Curiosamente, há um mapa astral do ano e
uma análise do que este prometia. Uma excelente cronologia, de janeiro a dezembro,
com referência ao Brasil e ao Mundo. Por último, há referências bibliográficas sobre o
período.
Utopias e distopias: 30 anos de maio de 68, organizado por Amanda Eloina
Scherer, Gisele Marchiori Nussbaumer e Maria da Glória di Fanti.
O livro é uma reunião de trabalhos apresentados no evento que teve o mesmo nome, e
que aconteceu em maio de 1998 na Universidade Federal de Santa Maria, no Rio
Grande do Sul. Foi editado no ano seguinte pelo Mestrado em Letras da UFSM.
A avaliação das autoras é que a partir do "mal-estar estudantil surgido em Nanterre",
teria se consolidado um "movimento" capaz de unir diversas tendências com
repercussões para as mais diferentes áreas (das artes até a filosofia).
Os movimentos sociais que estruturam-se a partir daí teriam questionado as normas da
vida social, inclusive do Estado, mas principalmente as da família e da moral
tradicional. Para as autoras Maio de 68 teria mudado a França e revolucionado toda a
sociedade.
12
Rebeldes e Contestadores - 1968: Brasil, França e Alemanha, organizado por
Marco Aurélio Garcia e Maria Alice Vieira
A publicação (editada em 1999 pela Fundação Perseu Abramo)contém uma série de
artigos que refletem sobre a memória e as influências deste "inesquecível" ano.
Na introdução da obra, Marco Aurélio Garcia expõe a necessidade de "localizar"
historicamente 1968 para a compreensão do próprio século XX. É o que o autor define
como "exigência intelectual", pois 1968 teria combinado várias dimensões de um
processo revolucionário sobre o desenvolvimento mundial: a luta anti-imperialismo, a
resistência ao capitalismo e um aspecto subjacente a 1968, que foi a crise das
experiências socialistas e a (auto)crítica que feita pela própria esquerda.
Com base nos livros citado acima, é possível dizer que há uma construção sobre os anos
60/70 que tenta evidenciar (e em alguns caso a generalizar) a constituição de uma contralegitimidade naquele momento. A mensagem é que em "1968" assistiu-se à gênese de uma forma
de pensar e sentir distintas e, que não aceitam as normas vigentes na organização social.
Esse tipo de recusa expressa uma resistência e, pode acontecer em qualquer momento.
Como fruto e sintoma do processo histórico estruturam-se movimentos sociais que resistem e que
lutam por modificações. Estes movimentos são criados e concebidos por grupos ou parcelas da
sociedade que recusam um certo modelo e, sonham, idealizam ou desejam a vida de uma forma
distinta. Neste momento, o “ideal” se torna um objetivo, e o caminho para concretizá-lo é a luta
social.
Como fruto desta disputa, novos e outros rumos podem ser alternativas concretas para se
estruturar em novas e outras formas de organização. A década de 60 ficou marcada por este
“sonho”. Neste período, os movimentos sociais de resistência ao predomínio dos valores e do
poder instituídos marcaram época. Esta geração tem sido referência para importantes estudos e
análises da sociedade em várias áreas do conhecimento.
Do sonho à "realidade"
Pelas memórias é possível identificar 1968 com um turbilhão de fatos e fotos que
impressionam e fazem história, ou melhor, contam uma história que parece atravessar o tempo
para dizer que aquele era um momento onde o "mundo estava girando mais rápido do que de
costume". Conflitos, sonhos e esperanças de transformação, ações de rebeldia e confrontos de
paixões. 1968 teria começado uma revolução de hábitos e comportamentos que atingiram desde
13
as artes (teatro, cinema, música, literatura) até as relações pessoais. Como lembra Reis Filho, os
"revolucionários" tinham como propósito:
(...) não apenas de derrubar o poder vigente mas de propor uma relação diferente entre
a política e a sociedade. O que se questiona - de modo confuso e vago - é a articulação
da sociedade e suas grandes orientações, seus propósitos, seu modo de ser: trata-se de
mudar de sociedade e de vida. (Reis Filho, 1998: 11)
Manifestava-se o repúdio contra os rumos políticos e sociais que estavam sendo definidos.
Questionava-se a "cultura do consumo" e seus mecanismos de acomodação e satisfação. Marcuse
(1979), um dos pensadores que marcou o pensamento da época analisou as formas de controle
social, e denunciou a irracionalidade da sociedade que se formava, constituída por homens de
uma só dimensão.
Lutava-se contra o autoritarismo e à imposição de normas, o lema "É proibido, proibir"
estava integrando os imaginários daquelas pessoas e sendo incorporado pelas experiências
pessoais de cada um.
Os aspectos que poderiam explicar o fortalecimento do pensamento utópico bem como as
fontes que o alimentaram se mostram como elementos complexos que dificilmente poderiam ser
ordenados. Entretanto, é possível apontar algumas referências que nortearam estas construções.
A primeira pode ser percebida como uma decorrência do próprio processo histórico
considerando que essa geração teria crescido sob o "fantasma" do holocausto e da propagação de
um ideário na movimentação pós-segunda guerra mundial onde teria sido privilegiado a
intolerância diante da violência do nazi-fascismo.
Uma segunda "vertente" associa-se à guerra do Vietnã. A guerra que acontecia desde
1940 teria atingido o ponto alto em 1968, e acabaria por se transformar em um símbolo para o
mundo: um "pequeno país teria conseguido vencer a maior potência do mundo. O grande "líder"
revolucionário da época, Ernesto Che Guevara, teria difundido no plano simbólico uma
referência muito forte para aquele geração. Nas palavras de Cohn-Bendit:
Ele [Che Guevara] foi para toda uma geração o símbolo do guerrilheiro construtor de
uma nova sociedade, e seu famoso slogan "Criemos um, dois, três Vietnãs" foi para
nós uma espécie de religião (Cohn-Bendit, 1987: 107).
Em último lugar, cabe destacar a polaridade da guerra fria e à forte recepção do ideário
socialista que recebia novos impulsos dados pela experiência da revolução cubana ("guerra de
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guerrilhas") e da revolução cultural chinesa. Estas concepções favorecem a ascensão das
vanguardas como agentes da revolução e do papel fundamental que a ação e a vontade assumem
nessa perspectiva em contraposição à teoria.
Reis Filho aponta que essa "mensagem era tão forte" que o exemplo das guerrilhas latinoamericanas - liquidadas em muitos países já em 1968 - teria sido desconsiderado por muitos
brasileiros que mesmo assim fizeram resistência armada contra a ditadura. O autor chega a usar a
idéia de uma "luta apaixonada" porque exigia-se engajamento e dedicação:
Bolas de gude contra balas de metralhadoras, atiradeiras contra revólveres, pedras
contra cavalos, uma relação de forças tão desequilibrada só poderia ser enfrentada - e o
sonho de sua alteração só podia ser sonhado - com muita paixão (Reis Filho, 1998: 47).
Figura 1.
Washington, 1967.
Fonte: Cohn-Bendit, 1987: 8
A fotografia acima (figura 1) também expressa essa mensagem que, ao que tudo indica,
vincula-se à essa valorização idealista: "eles", detentores do poder, podiam ter armas e força da
técnica, porém "outros", libertários e contestadores, teriam outros recursos tais como a vontade
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de lutar e a força de seus sonhos. A imaginação utópica abandona as órbitas longínquas do
pensamento para se colocar no mesmo nível de realidade e imponência que as estruturas
ideológicas em funcionamento. Corações e braços abertos podem indicar que a imaginação
também se abria para sonhar e construir o devir histórico.
Pode-se dizer ainda com base na bibliografia consultada que em alguns casos essa força
da imaginação utópica atingiu um nível tal de idealização que abriram-se brechas manifestações
radicais como a entrega da própria vida na luta por uma sociedade nova, que daria espaço ao
homem novo, e que se construiriam mutuamente.
É em sintonia com esses anseios que os movimentos sociais ganharam força. Destacam-se
particularmente o movimento negro e o movimento estudantil. Além dos homossexuais, é claro,
que denunciavam a discriminação que sofriam e mostravam a hipocrisia da sociedade. As
mulheres faziam renascer o feminismo sob bases mais sensíveis e ao mesmo tempo que o faziam
de maneira incisiva.
Até o mundo socialista é atacado pelo espírito de revolução daquele momento, os
estudantes se manifestam na Polônia, na Iugoslávia. Mas o destaque, que atinge repercussões
internacionais, é a Primavera de Praga.
A difusão da pílula anticoncepcional teria na opinião de Reis Filho alterado
comportamentos e revolucionado relações afetivas e familiares. Em 1968 a revolução sexual se
torna mais intensa. Naquele momento, a utopia como horizonte daquilo que está por vir amplia-se
e dá origem a outras tantas possibilidades de existência e de sentido; no próprio presente sentemse seus ecos. Estas "novas fronteiras" que se abrem para a ação humana, também parecem se
abrir para as percepções humanas, inclusive no relacionamento com o consumo de drogas que se
colocava como um exercício de prazer e de liberdade.
Reis Filho enfatiza que essa postura não deve ser confundida com um "sinal aberto" para a
utilização de maconha e LSD, posto que essa força libertária residia na busca de novas formas de
existência:
Ampliar a percepção e encorajar a sensibilidade eram propostas que se situavam no
contexto da crítica e do questionamento de uma sociedade rotinizada, coagulada, cujos
dirigentes estavam apenas comprometidos com a reprodução de um mundo que não
mais satisfazia. (Reis Filho, 1998: 45)
16
Considerações finais: para um recomeço
Neste pequeno artigo mais do que respostas esperou-se apontar alguns possíveis caminhos
para futuras análises, bem como perguntas que mereceriam um pouco mais de reflexão.
Um "mito revolucionário"9 não pode desvincular-se da produção particularmente intensa
de seu próprio imaginário, da confecção de seus próprios mitos. Este tipo de acontecimento
histórico, onde a relação entre as utopias e os mitos ficam extremamente associadas, é marcado
por um imaginário que envolve a instituição de uma ruptura, um marco que representa uma
distinção entre o antes e o depois.
Neste sentido, cabe questionar se 1968 pode ser visto como um "mito revolucionário" não
realizado, já que a representação da ruptura não é materializada, pois a destruição do antigo não
se completa. Contudo, por outro lado, as reflexões-memórias e as idéias-imagens associadas com
o período indica que a "promessa" desta ruptura precisa acontecer e se radicalizar cada vez mais,
ainda que seja hoje, 30 anos depois.
Ao que parece os motivos que levaram as pessoas a lutar contra o poder que se
institucionalizava naquele período ainda persistem (a repressão, a violência, a desigualdade, etc.)
e, por isso mesmo as "idéias" de 1968 não parecem ter perdido seu sentido, mas será que aquele
ideário continua fazendo sentido para as concepções de mundo hoje?
A dimensão política e social parecem cada vez mais distantes da existência de cada um.
Se os franceses se recusavam a viver a infeliz rotina pequeno-burguesa (metrô-trabalho-casa) em
1968, hoje é praticamente impossível escapar desta armadilha. O que teria acontecido? Não há
mais motivos para se resistir? Será que a utopia do mercado se coloca com uma alternativa
adequada e suficiente para a "solução" dos problemas sociais?
A produção cultural crítica hoje ganha espaço na indústria cultural e, inclusive é recebida
com destaque em espaços alternativos, transformados em "nichos de consumo" de grande
potencial para a obtenção de lucros. Como entender um modelo de sociedade que vende a crítica
dirigida a ele como qualquer outra mercadoria?
Será que realmente há caminhos remanescentes dos movimentos sociais dos anos 60/70
que continuam traçando rumos "revolucionários"? Será que essa volta ao passado não expressa
9
Para melhor precisão e consideração do termo cf Baczko, op. cit.: 96-99.
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uma imobilidade frente ao presente, e entender esse passado, buscar essas referências passam a
ser as únicas formas de se agarrar às esperanças que já não são mais produzidas?
Cioran (1992) define a importância da utopia em uma sociedade, como uma forma de
impedi-la de se transformar em ruínas. A busca de uma "felicidade imaginada" é que faz do
homem uma criatura histórica. O fascínio que este ano rebelde exerce parece estar ligado a isso.
A sociedade - ou parcelas desta sociedade - continua carregando em seu imaginário, a memória
de que uma revolução quase foi possível. A crença de que sonhos devem ser "levados a sério". A
esperança de que mesmo o impossível pode ser conquistado. É essa idéia que permite pensar no
conceito de utopia como uma ferramenta para analisar fenômenos sociais. Contudo, ainda é
preciso testar a adequação deste instrumento. Esse trabalho é apenas um começo.
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