UNIVERSIDADE GAMA FILHO HENRIQUE RIBEIRO CARDOSO CONTROLE JURÍDICO DA LEGITIMIDADE DA ATIVIDADE REGULATÓRIA NORMATIVA TESE DE DOUTORADO Área de concentração: Direito, Estado e Cidadania. Rio de Janeiro 2007 HENRIQUE RIBEIRO CARDOSO CONTROLE JURÍDICO DA LEGITIMIDADE DA ATIVIDADE REGULATÓRIA NORMATIVA Tese de Doutorado apresentada à Universidade Gama Filho (UGF) como um dos prérequisitos para a obtenção do título de Doutor em Direito, na área de concentração Direito, Estado e Cidadania. Orientador: Prof. Dr. José Ribas Vieira Rio de Janeiro 2007 Aos meus amados filhos Clarinha e Dudu, razão dos esforços de uma vida, recompensa de carinho, amor, alegria e felicidade. Agradecimentos A elaboração da tese que se apresenta não seria possível sem a contribuição de pessoas presentes em diversas fases do curso de Doutorado, de que resulta a tese. Agradeço primeiramente a meus pais, pelo incentivo ao estudo, desde tenra idade, e por estarem sempre presentes em todas as fases de minha vida. Aos Procuradores de Justiça do Ministério Público do Estado de Sergipe, Doutores Moacyr Soares da Motta, Luiz Valter Ribeiro Rosário e Maria Cristina da Gama e Silva Foz Mendonça, pelo apoio institucional ofertado quando à frente desta Instituição. Aos Procuradores de Justiça José Carlos de Oliveira Filho, Maria Creuza Brito Figueiredo e Maria Luíza Vieira Cruz, membros do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de Sergipe, que viabilizaram meu afastamento das funções de Promotor de Justiça, para cursar, no Rio de Janeiro, o Doutorado. Ao meu orientador, Professor Doutor José Ribas Vieira, sempre presente e preciso em minhas consultas, sem cuja colaboração o resultado desta tese estaria aquém do que se apresenta. Mais que um orientador, um amigo que se permitiu ser rigoroso em nome da qualidade do trabalho científico. Aos professores da Universidade Gama Filho, pelo conhecimento transmitido em aulas e seminários. Dentre tantos, e com receio de cometer alguma injustiça, agradeço especialmente a Margarida Maria Lacombe Camargo, por seu incentivo em aprofundar as questões filosóficas do direito, e a Marcos Juruena Villela Souto, por seu estímulo a uma releitura contemporânea do Direito Regulatório. Permitome nomear os professores Maria Stella Amorim e Ricardo Lobo Torres, como influências marcantes no desenvolvimento da Tese. Deixo registrado, com o devido agradecimento, as discussões empreendidas no decorrer do Programa de Pós-Graduação com os colegas Sérgio Guerra, Ricardo Lodi Ribeiro, Sérgio André R. G. da Silva, Marco Aurélio Gonçalves Ferreira e Vanice Lírio do Valle. Agradeço a Neuza, sempre disponível e cordial em todos os contatos mantidos com a Coordenação de Pósgraduação da UGF. Ao Coordenador da Universidade Tiradentes - UNIT, Prof. José Ronaldo Vieira de Almeida, por sua compreensão e apoio em todo o período do Curso de Doutorado. Por fim, e especialmente, agradeço à minha esposa Michelle, que mais uma vez me estimulou a prosseguir no caminho da busca do conhecimento e da produção acadêmica. Nós, você e eu, Michelle, sabemos o quanto ter você ao meu lado foi uma condição para a conclusão dessa fase de nossa vida. Obrigado! RESUMO Com a adoção da política de transferência da execução de serviços públicos a particulares, através de contratos de concessão, as Agências Reguladoras foram criadas com a missão de regular a prestação destes serviços, bem ainda de determinados setores relevantes para a sociedade. A inspiração é nitidamente americana, berço da primeira agência reguladora, em 1887 – a Interstate Commerce Commission. No Brasil, a partir de 1996, no âmbito federal, dez Agências foram criadas, com natureza de autarquias de regime especial, dotadas de certa autonomia e competências quase-executivas, quaselegislativas e quase-judiciais. Das funções exercidas, a que mais causa perplexidade, na busca da natureza, fundamento e extensão, é a competência normativa, havendo a necessidade de se compatibilizar tal exercício com analítico delineamento de competências trazido pela Constituição Federal. A questão que se impõe é como conciliar legalidade, eficiência e legitimidade na produção do direito regulatório. O estudo do direito comparado, com seus aspectos históricos, é de suma importância no equacionamento do tema, servindo-se do método de raciocínio dedutivo e do processo analítico. A configuração contemporânea da sociedade de riscos globais, em que é permanente necessidade de decidir, enseja o reconhecimento de ampla capacidade de emissão de normas pela Administração Pública. Numa proposta de reforço da democracia, resgatando a liberdade positiva do cidadão ativo, a concepção política republicana é posta como uma carga de legitimidade, somando-se à liberdade negativa da concepção política liberal, delimitada pelos direitos fundamentais, na construção de um modelo procedimental de direito e de democracia. A Teoria do Agir Comunicativo, proposta por Jürgen Habermas, sustenta que em atos de fala regulativos as questões práticas podem ser solucionadas e criticadas com base na racionalidade discursiva. A Ética do Discurso fornece elementos que possibilitam uma argumentação pautada por critérios de verdade, sinceridade correção normativa. Lastreados na Ética do Discurso, na proposta de condições procedimentais que possibilitem o alcance de soluções corretas, Robert Alexy e Jürgen Habermas propõem a Teoria Discursiva do Direito, numa concepção pós-positivista. O primeiro dedica-se à propositura de um modelo de discurso de aplicação em processo judiciais, enquanto que o segundo ocupa-se da gênese democrática do direito, num modelo de Democracia Deliberativa. A tese em apresentação propõe, com base na teoria dos autores referidos, um modelo de discurso para a produção de normas das agências reguladoras, a que se denomina de Direito Regulatório Deliberativo, que abarque os campos dos discursos de fundamentação eminentemente democráticos -, e dos discursos de aplicação, apresentando, ao final, um modelo de processo que reflita as condições da argumentação ideal, compatibilizando legalidade, eficiência e legitimidade, viabilizando um controle jurídico da legitimidade. Palavras-chave: regulação; poder normativo; controle; democracia deliberativa. ABSTRACT With the adoption of the transference policy of execution of public and private services, through concession contracts, Regulatory Agencies have been created aiming at regulating the execution of such services, and also of certain relevant sectors to society. The inspiration for that is clearly American, stage of the first Regulator Agency, in 1887 – the Interstate Commerce Commission. In Brazil, from 1996 on, in the Federal sphere, ten Agencies have been created as autarchies of special regime, granted with certain autonomy and quasi-executive, quasi-legislative and quasi-judicial competences. Regarding the functions exerted, the one which causes great perplexity, in seeking for nature, principles and extension, is the normative competence, which leads to the need of compatibilizing such exercise with analytic delineation of competences presented by the Federal Constitution. What matters now is how to conciliate legality, efficiency and legitimity in the production of regulatory law. The studies of comparative law, considering historical aspects, have been of great importance in the equalization of such topic, under the method of deductive ratiocination and analytic process. It is expected to the contemporary configuration of the society of global risks, which is permanently in need of decisions, the recognition of wide capacity of issuing rules (by-laws) through Public Administration. As a proposal of reinforcing democracy, by rescuing the positive freedom of active citizens, the republican political concept has been posed as a legitimity load, added to the negative freedom of the liberal politics, delimited by basic rights, in the conception of a procedural model of law and democracy. The Theory of the Communicative Action, proposed by Jürgen Habermas, poses that, in regulative speech acts, practical matters can be solved and criticized based on discursive rationality. The Ethics of Speech provides elements that enable argumentation based on criteria of truth, sincerity and normative correction. Leaned on the Ethics of Speech, on the proposal of procedural means which enable the reach of proper solutions, Robert Alexy and Jürgen Habermas propose the Discursive Theory of Law, under a postpositivist concept. The first one dedicates to the proposal of a model of application speech in judicial processes. On the other hand, the second author focuses on the democratic genesis of law, under a model of Deliberative Democracy. The thesis presented proposes, based on the theory of the above-mentioned authors, a model of speech for the production of by-laws of the regulator agencies, called Deliberative Regulatory Law, that comprises the fields of fundamentation speeches – eminently democratic ones, and of application speeches, proposing, at last, a model of process which reflects the means of ideal argumentation, compatibilizing legality, efficiency and legitimity, promoting, therefore, a juridical control of legitimity. Key words: regulation; normative power; control; deliberative democracy. RÉSUMÉ Avec l’adoption de la politique de mise en place de services publics à des particuliers, à travers des contrats de concession, les agences regulatrices ont été créées avec pour mission de régler la prestation des ces services, ainsi que de certains secteurs importants pour la société. L’inspiration est nettement Américaine, berceau de la première agence régulatrice, en 1887 — a Interstate Commerce Commission. Au Brésil, à partir de 1996, dans le domaine fédéral, dix agences furent créées, avec la dénomination d’institutions de régime spécial, dotées d’une certaine autonomie et compétences presque exécutives, presque législatives et presque judiciaires. Parmi ces fonctions, celle qui rend le plus perplexe, dans la quête de ce régime, du fondement et de l’extension, c’est la compétence normative, ayant la nécessité de mettre en accord ladite compétence avec les prescriptions données par la constitution fédérale. La question qui s’impose, est celle de savoir comment concilier légalité, efficacité, et légitimité dans la production du droit régulateur. L’étude du droit comparé, avec ses aspects historiques, est d’une extrême importance pour la solution du thème, en utilisant la méthode de raisonnement déductif et du processus analytique. La configuration contemporaine de la société de risque globale, dans laquelle la nécessité permanente de décider entraîne la reconnaissance d’une très grande capacité d’émission de normes par l’administration publique. Dans une proposition de renfort de la démocratie, récupérant la liberté positive du citoyen actif, la conception politique républicaine est posée comme une charge de légitimité, en ajoutant à la liberté négative, de la conception politique libérale, délimitée par les droits fondamentaux, dans la construction d’un modèle de procédure de droit et de démocratie. La théorie du Agir Communicatif, proposé par Jürgen Habermas, soutient que dans les actes de paroles régulateurs, les questions pratiques peuvent être résolues et critiquées avec comme base la rationalité discursive. L’éthique du discourt fourni les éléments qui rendent possible une argumentation quadrillée par des critères de vérité, sincérité correction normative. Basés sur l’Éthique du Discours, sur la proposition de conditions de procédures qui rendent possible l’étendue de solutions correctes, Robert Alexy et Jürgen Habermas proposent la Théorie Discursive du Droit, dans une conception post positiviste. Le premier se dédie à la proposition d’un modèle de discours d’application dans le procès judiciaire, alors que le second s’occupe de la genèse démocratique du droit, un modèle de Démocratie Délibérative. Notre thèse propose, avec comme base la théorie des auteurs cités, un modèle de discours pour la production des normes des agences régulatrices, qui se dénomme de Droit Régulateur Délibératif qui couvre les domaines des discours de fondement — éminemment démocratiques —, et des discours d’application, proposant, à la fin, un modèle de processus qui reflète les conditions de l’argumentation idéale, comptabilisant légalité, efficacité, et légitimité, viabilisant un contrôle juridique de la légitimité. Mots-clés : régulation; pouvoir normatif; contrôle; démocratie délibérative. Sumário Introdução ...................................................................................................................... i Capítulo I – Agências Reguladoras e Poder Normativo .......................................... 01 1.1 Considerações iniciais.............................................................................................. 01 1.2 Discricionariedade administrativa e aplicação de leis finalísticas............................ 04 1.3 Exercício de competência normativa por entes e órgãos da Administração Pública ................................................................................................................................ ........ 13 1.4 Poder normativo das agências reguladoras.............................................................. 14 1.4.1 Espécies normativas primárias previstas pela Constituição Federal......................17 1.4.2 A vedação da delegação do poder normativo ao Executivo.................................. 18 1.4.3 A vedação da delegação do poder regulamentar....................................................19 1.4.4 Legislação finalística e Estado Regulador............................................................. 20 1.4.5 Natureza das normas das agências......................................................................... 22 1.4.6 Conflitos entre regulamentos do chefe do Executivo e normas das agências reguladoras...................................................................................................................... 26 1.4.7 Standards e requisitos suficientes.......................................................................... 29 1.4.8 Administração superior, supervisão ministerial e recurso hierárquico impróprio. 30 1.4.9 Grupos de interesses, cidadãos e agências reguladoras......................................... 33 1.4.10 Produção das normas e necessidade de aprimoramento da participação popular ................................................................................................................................ ........ 35 Capítulo II - Sociedade de Risco, Exceção e Pós-Positivismo .................................. 42 2.1 Considerações iniciais.............................................................................................. 42 2.2 Modernidade: ordem e caos...................................................................................... 50 2.3 Segunda Modernidade, Modernidade Reflexiva e Pós-Modernidade...................... 57 2.4 Globalização e sociedade de risco............................................................................ 67 2.5 Direito cosmopolita.................................................................................................. 71 2.6 Democracia e política na Segunda Modernidade..................................................... 83 2.7 Sociedade de risco e economia................................................................................. 87 2.8 Estado de exceção e Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa...91 Capítulo III – Teoria Discursiva do Direito de Robert Alexy................................ 104 3.1. Considerações iniciais........................................................................................... 104 3.2 A Teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy............................................. 108 3.3. As regras da argumentação jurídica de Robert Alexy........................................... 121 3.4. Princípios e sua aplicação na Teoria dos Direitos Fundamentais.......................... 123 3.5. Constitucionalismo moderado e regra da proporcionalidade................................ 133 3.6 Proporcionalidade em sentido estrito: regras de colisão e de ponderação............. 150 Capítulo IV – Teoria Discursiva do Direito e Democracia Deliberativa............... 169 4.1. Considerações iniciais........................................................................................... 169 4.2. O direito como mediador entre facticidade e validade.......................................... 174 4.3. A reconstrução da legitimidade............................................................................. 183 4.4. Reconstrução do direito pela Teoria do Agir Comunicativo................................. 188 4.5. Estado de direito e modalidades de Discurso........................................................ 197 4.6. Administração Pública e crise do Estado de direito: o papel da esfera pública.... 211 4.7. Democracia Deliberativa....................................................................................... 220 Capítulo V – Direito Regulatório Deliberativo........................................................ 234 5.1. Considerações iniciais........................................................................................... 234 5.2 Direito regulatório e regras do discurso jurídico.................................................... 235 5.3 Legitimidade e participação na elaboração do Direito Regulatório....................... 242 5.4 Processo de criação das normas das agências reguladoras..................................... 246 5.5 Processo de criação do Direito Regulatório Deliberativo...................................... 256 Conclusão ....................................................................................................................262 Bibliografia ................................................................................................................ 277 Introdução O direito das Agências Reguladoras surge como uma especificação do Direito Administrativo, um ramo didático deste, um instrumento para a compreensão das novas atividades da Administração Pública contemporânea. Vem acompanhado de incertezas que recaem, prioritariamente, nos limites da independência da atuação das Agências Reguladoras e em suas relações com os denominados Poderes do Estado. Essencialmente, em como promover a regulação de determinado setor da economia privado ou reservado ao serviço público - com legalidade, eficiência e legitimidade. As Agências Reguladoras foram inseridas no ordenamento jurídico nacional como instituições para a promoção da reforma do Estado e da Administração Pública, na última década do século XX. A revisão das funções do Estado, proposta pela Inglaterra e Estados Unidos da América, com a chancela dos organismos de financiamento mundial, alcançando hegemonia global, restringiu a participação do Estado na prestação de serviços públicos, passando estes a serem ofertados pela iniciativa privada, atribuindo-se às Agências o exercício da regulação econômica de setores definidos na Constituição e nas respectivas leis de criação. A criação da primeira agência reguladora no mundo é atribuída ao governo dos Estados Unidos da América, em 1887 – a Interstate Commerce Commission. Foi a primeira estrutura administrativa descentralizada com poder normativo criada pelo governo norte-americano, com a atribuição de regular o serviço de transporte ferroviário naquele país. A forma com que as Agências foram postas na Constituição brasileira, bem como os poderes normativos conferidos às mesmas por suas leis de criação, traz certa perplexidade aos estudiosos e operadores do Direito, havendo um esforço em se interpretar, sem perder o norte constitucional, a extensão destes poderes normativos. É intuitivo que quanto maior o poder normativo das agências reguladoras, maior relevo há que se conferir à questão da legitimidade. Legalidade e eficiência, legalidade e democracia, e democracia e eficiência são usualmente tomadas como possibilidades excludentes. Na tese em apresentação se buscará, como auxílio da Teoria Discursiva do Direito, construir um modelo de Direito Regulatório Deliberativo que confira igual importância aos três elementos essenciais na configuração do Direito Regulatório: legalidade, eficiência e legitimidade. A íntima relação entre democracia e direito na atuação da Administração Pública contemporânea, ao criar o direito e aplicá-lo, no espaço de uma legislação finalística vaga, faz com que seja necessária a construção de uma Democracia Deliberativa - campo de discursos de fundamentação - que permita o diálogo com uma Teoria Discursiva do Direito voltada para aplicação de regras e princípios – âmbito dos discursos de aplicação. Para tanto, a tese apresentará como marco teórico a busca de uma concepção de teoria discursiva que tenha por principais fontes as contribuições de Jürgen Habermas e Robert Alexy. O primeiro, com foco na política deliberativa, e o segundo, na aplicação eficiente de normas de direito. Em razão desta imbricação, a teoria será referida nesta tese como Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa. A Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa é uma teoria pós-positivista, pautada na Ética do Discurso, uma teoria da argumentação que busca a promoção do agir comunicativo, em que atos de fala regulativos - tais como normas de direito - devem ser validados pelo atendimento de certas condições: inteligibilidade, pretensão de verdade, pretensão de sinceridade e pretensão de correção normativa. A participação dos atingidos por eventuais normas é valorizada, num modelo positivo de liberdade, sem postergar, entretanto, a segurança jurídica. Com o diálogo dos modelos de Teoria Discursiva do Direito de Habermas e de Alexy, pretende-se tornar possível a compatibilização do trinômio legalidade, eficiência e legitimidade. Para os dois primeiros elementos, a teoria de Alexy é bastante representativa, ofertando respostas satisfatórias com a utilização argumentativa da regra da proporcionalidade, postergando, entretanto, a questão democrática. O terceiro elemento, a legitimidade, é posto como pedra de toque da teoria de Habermas, ocupada com a gênese democrática do direito. Ambas as teorias partem da adoção de idênticos postulados filosóficos acerca da argumentação e da linguagem, o que permitirá a proposição de um diálogo que, aplicado à produção e à aplicação dos atos administrativos normativos, ensejará a produção do que se denominará de Direito Regulatório Deliberativo. O momento de quebra de paradigmas que está se vivenciando, no atual estágio da Modernidade, põe em dificuldade a dogmática jurídica, que passa operar com base em questões inéditas, que somente podem ser enfrentadas por meio de análises sociológicas, políticas, econômicas e filosóficas. A noção de fronteira das ciências restou relativizada. Tais concepções, levadas em conta na construção da Teoria Discursiva do Direito, devem refletir no processo de produção do Direito Regulatório, mais especificamente, na elaboração de atos regulatórios normativos que atendam, ao menos aproximativamente, às condições de uma argumentação ideal. A institucionalização de regras procedimentais estará a serviço da promoção de uma decisão administrativa normativamente correta, a ser alcançada democraticamente, viabilizando o controle jurídico da legitimidade das normas das agências reguladoras. A tese que se apresenta, intitulada Controle jurídico da legitimidade da atividade regulatória normativa, constitui o trabalho central do Programa de PósGraduação da Universidade Gama Filho - UGF, em curso de Doutorado, com área de concentração em Direito, Estado e Cidadania. Em banca de qualificação foram apresentadas sugestões pelos Professores Doutores Examinadores Margarida Maria Lacombe Camargo e Marcos Juruena Villela Souto, sendo estas inteiramente aceitas, repercutindo na formatação atual da tese. O tema da tese se problematiza na medida em que as teorias positivistas do direito, seja em modelos fundadores do positivismo, numa concepção utilitarista, seja em modelos mais recentes de positivismo, como o normativista ou o sistêmico, não fundamentam legal e democraticamente os amplos poderes de emissão de normas conferidos às Agências Reguladoras na atualidade, tampouco oferecem respostas à corrente busca pela eficiência administrativa. O direito não pode deixar de dar uma resposta a este fenômeno: não pode acatar, por sua facticidade, simplesmente, este poder normativo; tampouco pode negar a existência da crescente competência normativa da Administração. A ciência do direito deve se pronunciar pelo acatamento ou não deste poder normativo, sempre de maneira fundamentada, oferecendo respostas às questões e às limitações que as ciências sociais aplicadas que com o direito se relacionam não estão aptas a fazer, delimitando e institucionalizando, juridicamente inclusive para fins de controle - este poder que extrapola a tradicional repartição de funções do Estado de Direito. A Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa tende a oferecer respostas às questões da complexa sociedade de riscos globais da atualidade. O estudo do Direito Regulatório, numa vertente deliberativa, justifica-se pela necessidade da participação popular no estabelecimento das medidas a serem adotadas pela Administração, muitas vezes envolvendo a escolha de políticas públicas. Procedimentos de consulta e de audiência públicas possibilitam a criação de um espaço à democracia direta, e devem, em busca de uma sociedade mais justa, ser aproveitados de forma a alcançar o resultado mais benéfico para todos, abrindo espaço para uma sociedade composta por cidadãos politicamente ativos. Necessária a instituição de um procedimento que promova a participação efetiva e substancial dos atingidos, bem ainda da opinião pública, com vistas à consecução da solução mais correta dentre as viáveis, afastando-se o risco de utilização pelo Estado de procedimentos com o objetivo de conferir a aparência de legitimidade a atos administrativos baixados no interesse do próprio Estado – poder da Administração Pública - ou de grupos de interesse mais organizados e poderosos – poder econômico. No campo específico da regulação, tramita o Projeto de Lei n.º 3.337/04, aplicável a todas as Agências Reguladoras (Lei Geral das Agências Reguladoras), que prevê a participação dos grupos de interesses em processos de consulta e de audiência públicas. A democracia participativa está na ordem do dia, e, com o auxílio do Princípio do Discurso, a deliberação poderá atingir resultados satisfatórios. No Brasil existem obras que tratam do emprego da racionalidade discursiva à atividade legislativa e à atividade judicial. A atividade administrativa do Estado, que na atualidade exerce amplas funções normativas, não foi, até o momento, contemplada com a preocupação dos estudiosos da Teoria do Discurso. A Democracia Deliberativa – democracia reinterpretada pela Ética do Discurso - vem sendo trabalhada numa interface com a jurisdição constitucional, juntamente com a extensão dada ao judicial review quando em confronto com normas democraticamente elaboradas. Em relação especificamente ao tema – produção e aplicação de um direito regulatório deliberativo -, apenas en passant, no bojo de obras sobre temas próximos, o direito à participação e a deliberação são tratados. Não há qualquer sistematização, teórica ou prática, que viabilize um estudo específico. O tema escolhido se amolda na área de concentração Direito, Estado e Cidadania do Programa de Pós-Graduação da Universidade Gama Filho (UGF). A questão central da tese é a aplicação da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa - uma filosofia do direito - ao campo do Direito Regulatório, em que se verificará a possibilidade de construção de um modelo de Direito Regulatório Deliberativo. A fonte de pesquisa com maior utilização será a doutrinária, através de obras publicadas sobre base física – livros e artigos publicados em revistas. Arquivos localizados na internet servirão como fonte subsidiária, especialmente para pesquisas jurisprudenciais, legislativas, e de textos estrangeiros. O principal obstáculo à elaboração da tese que se propõe apresentar é a complexidade teórica do tema, o que tornará necessário o aprofundamento em questões sociológicas, especificamente a sociedade de risco; em questões políticas, com destaque às concepções liberais e republicanas; em questões de econômica política, como a regulação econômica inserida no modelo de reforma administrativa adotada; na filosofia da linguagem e na filosofia prática, com destaque para a Teoria do Agir Comunicativo e para a teoria da argumentação proposta pela Ética do Discurso. Apenas com a correta compreensão destes conhecimentos poderão ser corretamente compreendidas as concepções da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa. A tese que se apresenta avança ao propor a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa como um modelo de interpretação viável e de controle jurídico das atividades da Administração contemporânea, buscando equacionar legalidade, eficiência e legitimidade, propondo, para tanto, um modelo de processo de elaboração do Direito Regulatório pautado pelo a Ética do Discurso. O enfoque dado se afastará da produção estatal de normas unicamente pela Administração, propondo a produção de normas com a intensa participação da sociedade. A exposição do tema será pautada pelo raciocínio dedutivo, partindo de aspectos mais gerais para os mais específicos, trazendo, no decorrer do estudo, as posições concordes ou discordes da doutrina acerca das posturas adotadas. O objeto do estudo será tratado pelo processo analítico, buscando-se decompô-lo em suas partes constitutivas para uma melhor compreensão. O capítulo I delineará o exercício de competência normativa pelo Poder Executivo. Sempre se reconheceu à Administração Pública competência normativa, tanto à Administração Direta, quanto à Administração Indireta. Tal prática não configura, desde que exercida no âmbito da discricionariedade administrativa e ou aplicação de leis finalísticas, invasão do campo reservado à Poder Legislativo. Para a compreensão do poder normativo das agências reguladoras, importa enfrentar questões da possibilidade da delegação do poder normativo ao Executivo, da possibilidade da delegação do poder regulamentar do Chefe do Executivo à Administração Indireta, e do modelo de legislação em voga no Estado Regulador, o que permitirá identificar a natureza, o fundamento e os limites do poder normativo das Agências Reguladoras, repercutindo tal identificação na solução de conflitos entre as Agências e a Administração Direta, bem ainda, na necessidade de aprimoramento da participação popular. O capítulo II se ocupará de traçar as bases sociológicas que configuram o direito no atual estágio da Modernidade. A ordem, almejada pelo direito racional no modelo de direito liberal oitocentista, não conseguiu racionalizar e ordenar o mundo. Na sociedade de risco global, é permanente a necessidade de tomar decisões. A globalização, intensificada nas últimas duas décadas do século XX, repercute sobremaneira na economia e no direito econômico, irradiando as normas de direito dos Estados economicamente mais fortes - especialmente dos Estados Unidos - para as nações em desenvolvimento. O cidadão contemporâneo, da Segunda Modernidade, não está mais ligado irracionalmente a grupos representativos - parlamento, igreja, ou sindicatos - necessitando, a cada segundo, ser convencido através de boas razões. Institucionaliza-se o individualismo, como uma busca da construção de uma biografia própria. O Estado de Direito, com suas instituições desapegadas das necessidades da sociedade contemporânea passa a ser questionado. A tais questionamentos, duas respostas podem ser dadas: uma que passa pelo paroxismo da política, tomando o Estado como representativo de uma exceção permanente; ou outra, que propõe uma sobrecarga de legitimação na gênese do direito, através da formação discursiva da vontade democrática, como resposta à sociedade de riscos globais. O terceiro capítulo apresentará a teoria da argumentação jurídica de Robert. Alexy - a tese do Caso Especial -, em que defende que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático, balizado pela concordância com as fontes do direito. Para a demonstração da teoria, serão expostas e as regras da argumentação jurídica. Duas outras contribuições de Robert Alexy também serão delineadas neste capítulo: princípios do direito como espécies de normas que veiculam mandamentos de otimização, e a aplicação dos princípios - e também das diretrizes, objetivos e políticas públicas - pela regra da proporcionalidade. A proporcionalidade será demonstrada com a necessária profundidade, analisando-se cada uma de suas sub-regras, apresentando, ainda, as regras específicas de ponderação. A Teoria Discursiva do Direito de Alexy permitirá compreender o enlace entre legalidade e eficiência na aplicação pela Administração de uma legislação finalística caracterizada por sua vagueza. O capítulo IV exporá a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa de Habermas, caracterizada por sua proposta democrática, conferindo especial relevo à produção do direito. O direito, complementar à moral, será o mediador entre facticidade - imposição fática do direito - e a validade - reconhecimento social do direito. A Administração Pública contemporânea exerce um largo poder de emissão de normas, o que fará necessário faz necessário a compatibilização de discursos de fundamentação, em participantes realizam as escolhas públicas - ético-políticas - com os discursos de aplicação do direito, caracterizado pela presença de partes e de um juiz imparcial. A esfera pública deverá assumir um papel relevante através da influenciação dos representantes dos cidadãos, atribuindo a estes o poder de participar diretamente, na qualidade de atingidos, nas escolhas da Administração Pública. A Democracia Deliberativa - democracia reinterpretada pela Ética do Discurso - será posta como um modelo viável para a produção de normas de direito. Finalizando, no capítulo V se apresentará o resultado do diálogo entre as propostas de Alexy e de Habermas, uma Teoria Discursiva do Direito aplicável à produção das normas das Agências Reguladoras para a produção de um Direito Regulatório Deliberativo. Neste modelo, para o atendimento da legalidade e da eficiência, será essencial o atendimento das regras do discurso jurídico aplicáveis às regras e aos princípios (diretrizes, objetivos e políticas públicas) de direito, nos moldes proposto por Alexy. Para a construção da legitimidade, importa reconhecer a participação dos atingidos, num modelo aproximativo de uma argumentação ideal. Para tanto o modelo de Democracia Deliberativa de Habermas, calcado na Ética do Discurso e em regras inclusivas de participação será de fundamental importância. O processo de criação das normas das Agências Reguladoras, no modelo atualmente existente, será analisado criticamente, para, ao cabo desta análise, se propor um processo de criação do Direito Regulatório Deliberativo que atenda, ao menos aproximativamente, aos ideais de verdade, sinceridade e correção normativa, conduzindo à necessária interligação entre legalidade, eficiência e legitimidade. Capítulo I – Agências Reguladoras e Poder Normativo 1.1 Considerações iniciais; 1.2 Discricionariedade administrativa e aplicação de leis finalísticas; 1.3 Exercício de competência normativa por entes e órgãos da Administração Pública; 1.4 Poder normativo das agências reguladoras; 1.4.1 Espécies normativas primárias previstas pela Constituição Federal; 1.4.2 A vedação da delegação do poder normativo ao Executivo; 1.4.3 A vedação da delegação do poder regulamentar; 1.4.4 Legislação finalística e Estado Regulador; 1.4.5 Natureza das normas das agências; 1.4.6 Conflitos entre regulamentos do chefe do Executivo e normas das agências reguladoras; 1.4.7 Standards e requisitos suficientes; 1.4.8 Administração superior, supervisão ministerial e recurso hierárquico impróprio; 1.4.9 Grupos de interesses, cidadãos e agências reguladoras; 1.4.10 Produção das normas e necessidade de aprimoramento da participação popular. 1.1 Considerações iniciais A trajetória do Estado de direito culmina no final do século XX num contexto político-social de profunda internacionalização, num movimento amplo de redefinição de seu papel. A internacionalização ocorrida nas últimas três décadas conheceu uma intensificação jamais vista, um fenômeno radical de interação transnacional, denominado de globalização.1 Os riscos globais - inclusive os 1 No campo da economia a globalização se faz enxergar com clareza. Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a interdependência dos países em todo o mundo, que se convencionou chamar de globalização “é um fenômeno sociológico de expansão dos interesses das sociedades humanas. A globalização já foi cultural, pelo poder do exemplo, como se deu no mundo Helênico; foi política, pelo poder da espada, como no mundo romano; foi econômica, pelo poder das riquezas, como no mundo ibérico dos descobrimentos, e religiosa, pelo poder da fé no mundo cristão. Outros movimentos globalizantes apresentaram combinações desses interesses, como o da expansão do Islã e o do imperialismo, sendo que este último se desdobrou em manifestações específicas, como o inglês, o norte-americano e, por último, o soviético. A globalização que se experimenta neste fim de século e de milênio ultrapassa, porém, todas essas experiências, pois ela não é só mais ampla e diversificada: é, sobretudo mais profunda, pois é um produto da Revolução das Telecomunicações e, por isso, veio para permanecer.” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Globalização, regionalização, reforma do Estado e da constituição. In: Revista de econômicos - passam a ser percebidos e tomados como produtos da Primeira Modernidade, refletindo de sobremaneira na formatação do direito e do Estado da Segunda Modernidade.2 No campo do direito administrativo, o papel do administrado cidadão - como mero sujeito passivo das ações da Administração, é revisto: sua participação e opinião passam a ser valorizadas.3 Em seu aspecto político-econômico, a globalização traz um componente prescritivo de “orientações ou exigências” a serem adotadas pelas nações em desenvolvimento, sendo em grande parte estimuladas, ou até mesmo impostas, por agências de financiamentos internacionais.4 Aponta Boaventura de Sousa Santos, a existência de: Um conjunto vasto de prescrições todas elas ancoradas no consenso hegemónico. Este consenso é conhecido por “consenso neoliberal” ou “Consenso de Washington” por ter sido em Washington, em meados da década de oitenta, que ele foi subscrito pelos Estados centrais do sistema mundial, abrangendo o futuro da economia mundial, as políticas de desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na economia.5 Interessante observar, com Rogério Emílio Andrade, que no contexto da globalização ocorreu uma diminuição do peso da ação interventiva dos Estados nacionais na atividade econômica: “Essa debilidade dos instrumentos de intervenção do Estado pode, em parte, ser explicada pela latente separação entre Estado - que permaneceu como agente nacional -, de um lado, e empresas - que se transformaram em agentes mundiais -, de outro lado.”6 A “regulação econômica” ocupa posição central no que se convencionou denominar de Law and economics:7 um movimento8 surgido a partir dos anos 60 do Direito Administrativo, n.º 211, jan./mar, Rio de Janeiro, 1998, p. 1. 2 O tema será aprofundado no Capítulo II desta tese. 3 Como adiante se verá, a participação do cidadão passou a ser valorizada especialmente nos Estados que tinham saúde fiscal, com a participação do que se convencionou denominar de “público não-estatal”. 4 SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos da globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa et alli. (Org.). A globalização e as ciências sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2002, p. 27. Há, como adiante se demonstrará, uma exigência de harmonização legislativa global, num quadro de “mercado da lei”. DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 14-17. 5 SANTOS, Boaventura de Sousa et al. (Org.). SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização e as ciências sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2002, p. 27. 6 ANDRADE, Rogério Emílio. O preço na ordem ético-jurídica. Campinas: Edicamp, 2003, p. 78. 7 No Brasil ainda é incipiente o estudo da disciplina “Direito e economia”. Neste cenário destaca-se a obra de Marcos Juruena Villela Souto: Direito administrativo da economia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. 8 ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Análise econômica do direito e das organizações. In: ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel (Orgs.) et alli. Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 2. século XX9 que reconhece a importância do direito na determinação de resultados econômicos.10 O direito, ao estabelecer regras de condutas entre as pessoas, deve levar em consideração os impactos econômicos que de suas normas derivarão, os efeitos sobre a distribuição ou alocação dos recursos e os incentivos que influenciam o comportamento dos agentes econômicos. Observam Decio Zylbersztajn e Rachel Sztajn que “o Direito influencia e é influenciado pela Economia, e as Organizações influenciam e são influenciadas pelo ambiente institucional.”11 Diferentes correntes doutrinárias buscam “explicar o fenômeno econômico e propor medidas para corrigir distorções geradas por normas de Direito positivo, com fundamento em análises econômicas.12 Importante ressaltar que o direito produzido no campo do direito 9 SZTAJN, Rachel. Law and economics. In: ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel (Orgs.) et alli. Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 74. 10 Leciona S. Peltzman que “o que se convencionou chamar a teoria econômica da regulação, ou ET, começou com um artigo escrito por George Stigler em 1971.” Neste artigo em que Stigler analisa o comportamento dos políticos a partir dos parâmetros da análise econômica, conclui que “grupos de interesses podem influenciar os resultados do processo regulatório ao fornecer apoio financeiro ou de outra natureza aos políticos ou reguladores.” Stigler é, juntamente com Posner e Peltzman, um dos consolidadores da Escola de Chicago. PELTZMAN, S. A teoria econômica da regulação depois de uma década de desregulação. In: MATTOS, Paulo (Org.) et alli. Regulação Econômica e Democracia: o debate norte americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 81. 11 ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Análise econômica do direito e das organizações. In: ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel (Orgs.) et alli. Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 3. 12 SZTAJN, Rachel. Law and economics. In: ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel (Orgs.) et alli. Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 77. Dentre as escolas que elaboram suas teorias da regulação econômica, destaca a autora a escola de Chicago, a de Yale, a da Nova Economia Institucional e a da Escolha Pública. Esclarece a autora que “a distinção mais conhecida entre a visão positivista da Escola de Chicago, descritiva dos fenômenos em relação à Escola de Yale, conhecida como normativista ou prescritiva, está em seu escopo, consistente em propor mudanças visando ao aperfeiçoamento das normas; vale dizer, formular normas que produzam os incentivos para que as pessoas se comportem da maneira que melhor atenda aos interesses sociais. [...] Às duas correntes incorpora-se a Escola da Public Choice (ou da Escolha Pública, cujo foco está voltado para a ciência política), a que se segue a Escola denominada Escola Institucional, e, mais recentemente, a da Nova Economia Institucional”. Ibid., p. 77. O trabalho de Richard Posner é apontado pela autora como o marco de fundação da Escola de Chicago. Posner, em sua obra de referência - A análise econômica do direito, publicada originalmente em 1973 - analisa sob o aspecto econômico regras e instituições jurídicas. Sua obra, organizada em torno de conceitos legais - propriedade, contrato, família, responsabilidade civil, etc. - permite entender e estudar o direito como “un sistema que el análisis económico puede aclarar, revelar como algo coherente y mejorar en algunos puntos.” POSNER, Richard. El análisis económico del derecho. Tradução: Eduardo L. Suárez. 4. ed. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 7. Paulo Mattos, em apresentação à obra Regulação Econômica e Democracia, organizada pelo mesmo, aponta a Teoria da Regulação da Escola de Chicago como a responsável por derrubar a crença geral de que a ampliação da regulação econômica se justificava pela “correção das falhas de mercado com vistas à promoção do bem-estar econômico.” Para esta Escola, aponta o autor, o resultado “era uma regulação que protegia os interesses da indústria regulada e que não promovia o bem-estar social.” MATTOS, Paulo. Regulação Econômica e Democracia: o debate norte americano. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 14-15. Alguns dos principais artigos que conformaram as teorias da regulação econômica de matriz norte-americana podem ser encontrados na última obra referida. Um histórico da teoria econômica da regulação pode ser encontrado em: PELTZMAN, S. A teoria econômica da regulação depois de uma década de desregulação. In: MATTOS, Paulo (Org.) et alli. Regulação Econômica e Democracia: o debate norte americano. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. econômico pauta-se, em grande medida, por esta noção - a produção de normas com reflexos econômicos positivos. Nesta linha, o Direito Regulatório13 é uma evolução do Direito Administrativo, um ramo didático deste, adaptado às novas funções atribuídas ao Estado, que culminaram com a instituição das Agências Reguladoras no Brasil.14 O ponto mais controvertido acerca da atuação das agências reguladoras é seguramente a competência de produzir normas15 gerais e abstratas, competência que, a um só tempo, macula concepções tradicionais do Estado de direito liberal: separação dos poderes e legalidade. Necessário, portanto, uma construção teórica suficientemente densa para compreender e justificar as novas funções da Administração regulatória, inserida no ambiente de risco da sociedade contemporânea, e especialmente para viabilizar um controle efetivo – jurídico e democrático – das normas produzidas. A resposta à questão passa pela solução do trinômio legalidade, legitimidade e eficiência. A legitimidade – a questão democrática – não vem sendo tratada com a devida importância pela doutrina, que se contenta em sobrepor a legalidade à eficiência, ou vice-versa. 1.2. Discricionariedade administrativa e aplicação de leis finalísticas 81-127. 13 Outras terminologias também são adotadas, como Direito Administrativo Ordenador, Direito Administrativo Econômico, ou Administração Regulatória. Adota-se, nesta tese, a terminologia Direito Regulatório, designação escolhida no “I Ciclo de Estudos sobre Direito da Regulação”. Tal terminologia é adotada, dentre tantos, por Marcos Juruena Villela Souto (Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002) e Diogo de Figueiredo Moreira Neto (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório: a alternativa participativa e flexível para a Administração Pública de relações setoriais complexas no estado democrático. Rio de Janeiro, Renovar, 2003). Luiz Roberto Barroso, em introdução a esta obra, manifesta-se – p. 11 – pela adoção da terminologia aqui indicada. 14 O processo de reforma do Estado que ensejou a criação das Agências Reguladoras no Brasil foi descrito, detalhadamente, em: CARDOSO, Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 15 Norma jurídica é conceituada como regra, modelo, paradigma, forma ou tudo que se estabeleça em lei ou regulamento para servir de pauta ou padrão na maneira de agir (SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, volume III. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 250). O tema da discricionariedade administrativa16 se encontra umbilicalmente ligado à questão da produção de normas por agências reguladoras, repercutindo na compreensão do princípio da legalidade. Tal ligação se espelha na medida em que a relação entre a norma jurídica e a atividade administrativa seja mais ou menos estreita. Oscila entre uma noção mínima – relação de compatibilidade-, e uma noção máxima – relação de conformidade. Na primeira hipótese, há lugar para o poder discricionário;17 na segunda, fala-se em competência vinculada.18 A discricionariedade, portanto, configura um resíduo de liberdade decisória resultante da forma que determinado tema foi disciplinado por lei.19 É técnica utilizada pelo legislador em razão da impossibilidade de tudo se prever na letra da lei,20 mas será apenas dentro das fronteiras da lei que poderá vicejar a liberdade administrativa.21 Leciona José dos Santos Carvalho Filho que a discricionariedade historicamente se relaciona ao “princípio da separação de atribuições das autoridades judiciais e administrativas, desenvolvido no direito francês nos períodos que antecederam ao fim do reinado e ao advento da Revolução Francesa”.22 Não se confunde, em seu desenho atual, com arbitrariedade, não podendo o administrador 16 Leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto que a discricionariedade não é um tema unicamente ligado à atuação do Estado no exercício de atividade administrativa, atingindo também a atividade legislativa e judicial. O tema transcende o direito administrativo e todo o direito público. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 31. A discricionariedade é tomada por Alexy como a liberdade de escolha do legislador dentro da margem de ação estrutural de uma constituição que estabelece uma ordem marco. O tema será explorado no Capítulo III. 17 Leciona José dos Santos Carvalho Filho: “A doutrina especializada é unânime em considerar a discricionariedade como um dos poderes administrativos, ao lado dos poderes regulamentar e de polícia. Tal qualificação decorre da circunstância de que é ao administrador que compete a escolha a ser feita, dentre várias possíveis e legítimas, no que concerne à diretriz que quer implantar. O poder discricionário é que legitima o administrador a esse tipo de opção, próprio, aliás, de quem exerce o múnus de gestor dos interesses coletivos.” CARVALHO FILHO, José dos Santos. A discricionariedade: análise de seu delineamento jurídico. In: GARCIA, Emerson (Coord.). Discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 16. 18 WEIL, Prosper. O direito administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1977, p. 121. 19 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Revista de Direito Público, n.º 33, jan.-mar. 1975, p. 89, apud MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 32. Observa o autor citado que para a doutrina nacional, não há ato administrativo inteiramente discricionário, existindo sempre vinculação em relação à finalidade, e à competência. Para o autor, entretanto, a finalidade, que será necessariamente a consecução do interesse público, comporta, na identificação desta, certa margem de discricionariedade ao administrador. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo, 17 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 395. 20 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 37. 21 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo, 17 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 844. 22 CARVALHO FILHO, José dos Santos. A discricionariedade: análise de seu delineamento jurídica. In: GARCIA, Emerson (Coord.). Discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 18. agredir a ordem jurídica quando da edição de atos administrativos.23 Agir com discricionariedade significa cumprir a determinação legal de buscar o melhor meio de satisfazer o interesse público. Não há espaço para qualquer comportamento fora da lei.24 Observa Sérgio Varella Bruna, que “deve-se assegurar que, na utilização de poderes discricionários, sejam excluídas as hipóteses de excesso ou de desvio de poder.”25 Diogo de Figueiredo Moreira Neto apresenta o seguinte conceito de discricionariedade: Discricionariedade é a qualidade da competência cometida por lei à Administração Pública para definir, abstrata ou concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a definição de elementos essenciais à prática de atos de execução voltados ao atendimento de um interesse público específico.26 Esclarece o autor que a definição de resíduo de legitimidade indica que a discricionariedade tem a natureza de opção política, sendo ato de criação, e não de mera execução.27 Ainda que se reconheça ser tal criação derivada da lei, há uma “alocação autoritária de valores”, possuindo, portanto, natureza política.28 Na escolha do comportamento mais compatível para o atingimento da finalidade pública, a Administração se pautará pela conveniência e oportunidade. Aponta José dos Santos Carvalho Filho que a valoração acerca da conveniência e da oportunidade “constituiu o que muitos especialistas denominam de mérito29 23 José dos Santos Carvalho Filho conceitua sinteticamente o ato administrativo: “A exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público.” CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 88. 24 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 396. 25 BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras – poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 126. 26 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 32. 27 Leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto, acerca da terminologia adotada no tratamento da discricionariedade, que esta abrange toda uma seqüência: “poder discricionário enquanto modo de atuar do poder estatal; atividade discricionária, enquanto função estatal, expressão dinâmica deste poder; e ato discricionário, resultado qualificado do exercício dessa função.” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 36. Adverte o autor, entretanto, na p. XVII, que vem prevalecendo a percepção da discricionariedade “como certa qualidade do poder-dever do agente público, caracterizada pela possibilidade de integrar a vontade da lei nos limites e nas condições por ela estabelecidas.” 28 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 33. 29 É essencial à compreensão dos limites da liberdade de escolha do detentor do poder discricionário as normas veiculadas pela Lei da Ação Popular - Lei n.º 4.717/1965: “Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. Parágrafo único: administrativo por traduzir certa carga de subjetividade do administrador no processo de escolha.”30 Professa Diógenes Gasparini: Há conveniência sempre que o ato interessa, convém ou satisfaz ao interesse público. Há oportunidade quando o ato é praticado no momento adequado à satisfação do interesse público. São juízos subjetivos do agente competente sobre certos fatos e que levam essa autoridade a decidir de um ou outro modo.31 Toma-se outra lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou; b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato; c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo; d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido; e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.” Como se percebe da transcrição do dispositivo, questões de mérito podem ser apreciadas pelo Poder Judiciário nas hipóteses veiculadas na alíneas “c”, “d” e “e”. Embora a lei trate da ação popular, sua disciplina aplica-se a todas as ações e ritos em que tais requisitos sejam questionados, incluindo-se neste rol a ação civil pública. 30 CARVALHO FILHO, José dos Santos. A discricionariedade: análise de seu delineamento jurídica. In: GARCIA, Emerson (Coord.). Discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 23. Em decisão recente do Supremo Tribunal Federal, a Primeira turma reafirmou seu entendimento: “A Turma manteve decisão monocrática do Min. Carlos Velloso que negara provimento a recurso extraordinário, do qual relator, por vislumbrar ofensa aos princípios da moralidade administrativa e da necessidade de concurso público (CF, art. 37, II). Tratava-se, na espécie, de recurso em que o Município de Blumenau e sua Câmara Municipal alegavam a inexistência de violação aos princípios da proporcionalidade e da moralidade no ato administrativo que instituíra cargos de assessoramento parlamentar. Ademais, sustentavam que o Poder Judiciário não poderia examinar o mérito desse ato que criara cargos em comissão, sob pena de afronta ao princípio da separação dos poderes. Entendeu-se que a decisão agravada não merecia reforma. Asseverou-se que, embora não caiba ao Poder Judiciário apreciar o mérito dos atos administrativos, a análise de sua discricionariedade seria possível para a verificação de sua regularidade em relação às causas, aos motivos e à finalidade que ensejam. Salientando a jurisprudência da Corte no sentido da exigibilidade de realização de concurso público, constituindo-se exceção a criação de cargos em comissão e confiança, reputou-se desatendido o princípio da proporcionalidade, haja vista que, dos 67 funcionários da Câmara dos Vereadores, 42 exerceriam cargos de livre nomeação e apenas 25, cargos de provimento efetivo. Ressaltou-se, ainda, que a proporcionalidade e a razoabilidade podem ser identificadas como critérios que, essencialmente, devem ser considerados pela Administração Pública no exercício de suas funções típicas. Por fim, aduziu-se que, concebida a proporcionalidade como correlação entre meios e fins, dever-se-ia observar relação de compatibilidade entre os cargos criados para atender às demandas do citado Município e os cargos efetivos já existentes, o que não ocorrera no caso.” Supremo Tribunal Federal, Recurso Especial n.º 365368, rel. Min. Ricardo Lewandowski. Informativo n.º 468 (21 a 25 de maio de 2007). Disponível em www.stf.gov.br, com acesso em 31 de maio de 2007. O exame da proporcionalidade e da razoabilidade será Finalmente, esclareça-se, o interesse público, que é o caracterizador da finalidade, tanto poderá ser definido em sede administrativa de modo concreto como, se necessário, de modo abstrato, conformando, neste caso, mais uma etapa intermediária para sua concreção casuística final, como um ato administrativo normativo.32 A discricionariedade, consistente no poder-dever de agir da Administração em busca do atendimento do interesse público, estará presente na edição de atos concretos e individuais, bem como a edição de atos normativos gerais e abstratos. Tais atos normativos, editados pela autoridade competente, deverão estar em relação de compatibilidade com a lei, configurando esta um limite externo à atuação da Administração. Observa Sérgio Ferraz, imputando à Administração Pública deveres de boa administração, que “em face de quatro ou cinco hipóteses boas, há uma que é melhor sempre, e essa uma é a única que pode ser adotada, seja pelo administrador, seja pelo juiz.”33 A discricionariedade existe, como bem traduz Celso Antônio Bandeira de Mello, “única e tão-somente para proporcionar em cada caso a escolha da providência ótima, isto é, daquela que realize superiormente o interesse público almejado pela lei aplicanda.”34 A discricionariedade estará sempre a serviço da eficiência, sendo conferida à Administração por meio da lei administrativa que estabelecer direitos ou obrigações à Administração. A atribuição de discricionariedade não necessita ser expressa na lei. Para Celso Antônio Bandeira de Mello haverá tal atribuição de integração da norma legal pela Administração, segundo critérios de conveniência e oportunidade, aprofundado no capítulo III desta tese. Note-se, desde já, que o Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle da constitucionalidade e da legalidade dos atos administrativos, embora adote a postura de insindicabilidade do mérito, em que o juiz não deve se substituir ao administrador em suas escolhas, serve-se das limitações legais à liberdade do administrador bem como dos “critérios” de razoabilidade e de proporcionalidade para tornar nulos atos que exorbitem a discricionariedade. 31 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 94. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 34. 33 FERRAZ, Sérgio. Instrumentos de defesa dos administrados. In: Curso de Direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 167 apud MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 41. A questão da melhor decisão – ou da única decisão correta – coincide com as posturas de Dworkin e de Habermas que serão apresentadas no Capítulo IV desta tese. 34 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo, 17 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 400. A noção de providência ótima do autor se aproxima da noção de proporcionalidade na aplicação de princípios e diretrizes proposta por Alexy. O tema será estudado no Capítulo III desta tese. 32 quando a lei carecer de precisão nas seguintes hipóteses: a) não descrever antecipadamente a situação em vista da qual ocorrerá o comportamento da Administração; b) eventual situação for descrita por conceitos jurídico vagos e imprecisos;35 c) quando a lei conferir no próprio mandamento, de forma explícita, liberdade decisória à Administração; e d) quando descrever objetivo legal de forma genérica.36 Para se reconhecer a existência da discricionariedade, é necessário, ainda, o exame do caso concreto. Ainda que a lei use conceitos vagos, dos quais resultaria certa liberdade, “tal liberdade só ocorre em casos duvidosos, isto é, quando realmente é possível mais de uma opinião razoável sobre o cabimento ou descabimento de tais qualificativos para a espécie.”37 35 Como adiante se demonstrará, o autor confunde discricionariedade com conceitos jurídicos indeterminados. É conhecida a polêmica entre Celso Antônio Bandeira de Melo e Eros Roberto Grau acerca da discricionariedade dos conceitos fluidos ou imprecisos. Para Eros Roberto Grau não existem conceitos jurídicos indeterminados, e, referindo-se expressamente a Celso Antônio Bandeira de Mello, diz que incide em erro quem admite a existência da indeterminação dos conceitos. Para Grau, a indeterminação é das expressões, defendendo a utilização da terminologia “termos indeterminados de conceitos”. “Assim, a reiteradamente referida indeterminação dos conceitos não é deles, mas sim dos termos que os expressam.” GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 196 e 197. Em resposta à crítica de Eros Roberto Grau, Celso Antônio Bandeira de Melo, sem referir-se ao autor, aduz não existir palavra “que possa conferir precisão às mesmas noções que estão abrigadas sob as vozes ‘urgente’, ‘interesse público’, ‘pobreza’, ‘velhice’, ‘relevante’, ‘gravidade’, ‘calvície’ e quaisquer outras do gênero. A precisão acaso aportável implicaria alteração do próprio conceito originalmente veiculado.” BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. 5. tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 20 e 21, apud GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 197. Em outra obra, Celso Antônio Bandeira de Mello se refere à posição de Eros Roberto Grau, mais uma vez, sem citá-lo: “Aliás, ao respeito deste tópico dos conceitos fluidos, diga-se, de passagem, que, surpreendentemente, houve quem, neste século, pretendesse que a fluidez é das palavras e não dos conceitos. Sendo universalmente sabido que as palavras são simples rótulo sobrepostos a objetos de pensamento, é de meridiana obviedade que elas não possuem, em si mesmas, outra densidade que não (por via indireta) a do objeto a que se reportam; logo, só podem ser vagas ou imprecisas se vago ou impreciso for o conceito que recobrem, assim como só podem ser precisas se preciso for o conceito recoberto, visto que elas próprias, as palavras, nada aportam ao objeto rotulado. Por isto, o tema em foco é tratado pela doutrina de todos os países do mundo como referente a conceitos ‘vagos’, ‘imprecisos’, ‘elásticos’, ‘fluidos’, ‘indeterminados’, ‘práticos’, em oposição aos conceitos ‘teoréticos’, ‘precisos’, determinados’ – e não como referente a palavras ‘vagas, ‘fluidas’ etc., em oposição a palavras precisas.” E mais adiante: “Hoje, só mesmo por um erro lógico primário ou pelo intenso desejo de ser original ou ‘criativo’ é que se pode explicar esta disparatada tese de que fluidas são as palavras, e não os conceitos.” BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, pp. 849-850. Refere-se a tal discussão: BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras – poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pp. 127-129. 36 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, pp. 398-399. 37 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 399. Germana de Oliveira Moraes38 traz um analítico conceito de discricionariedade, cabendo, pela sua clareza e precisão, a seguinte transcrição: Discricionariedade é a margem de liberdade de decisão, conferida ao administrador pela norma de textura aberta, com o fim de que ele possa proceder, mediante a ponderação comparativa dos interesses evolvidos no caso específico, à concretização do interesse público ali indicado, para, à luz dos parâmetros traçados pelos princípios constitucionais da Administração Pública e pelos princípios gerais de Direito e dos critérios não positivados de conveniência e oportunidade: 1.º) complementar, mediante valoração e aditamento, os pressupostos de fato necessários à edição do ato administrativo; 2.º) decidir se e quando ele deve ser praticado; 3.º) escolher o conteúdo do ato administrativo dentre mais de uma opção igualmente pré-fixada pelo Direito; 4.º) colmatar o conteúdo do ato, mediante a configuração de uma conduta não pré-fixada, porém aceita pelo Direito.39 A discricionariedade administrativa é usualmente tratada em conjunto com a questão dos conceitos jurídicos indeterminados. Entretanto, não deve haver confusão entre ambos. A diferença entre discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados é bastante sutil: a discricionariedade relaciona-se ao momento de aplicação do direito, ao passo que o conceito jurídico indeterminado relaciona-se à questão da interpretação da lei que veicula os conceitos, enfrentada num momento que antecede a aplicação. Interpretada a norma contida numa lei que veicule conceitos jurídicos indeterminados, não há que se falar, necessariamente, em discricionariedade. Esta se relaciona com a liberdade de decisão do que fazer num determinado caso concreto, nos limites estabelecidos pela norma; aquele (conceito jurídico indeterminado) deve ser 38 Ainda na lição de Germana de Oliveira Moraes, “tanto a discricionariedade, quanto o emprego de conceitos verdadeiramente indeterminados são técnicas legislativas que traduzem a abertura das normas jurídicas, carecedoras de complementação.” MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. São Paulo: Dialética, 1999, p. 71. Informa a autora que na doutrina administrativista, diferentemente do que sustenta, “geralmente, ou consideram-se os conceitos jurídicos indeterminados como vinculados, ou, quando se reconhece a existência de conceitos indeterminados não vinculados, incluem-nos no domínio da discricionariedade, isto é, não os distinguem da discricionariedade.” A primeira posição é adotada por Eros Roberto Grau, e a segunda por Celso Antônio Bandeira de Mello. Assevera Germana de Oliveira Moraes (Ibid., p. 65), que “a teorização dos ‘conceitos jurídicos indeterminados’ surgiu associada à idéia de ilimitado controle judicial de sua interpretação e aplicação, em contraposição ao controle jurisdicional da discricionariedade.” A origem da doutrina reporta-se ao século XIX, na Áustria, mais precisamente com a análise dos conceitos legais indeterminados, levada a cabo por Bernatizik, em 1886. Na oportunidade, defendeu que a os conceitos legais indeterminados conferiam à autoridade administrativa discricionariedade, influenciando o Supremo Tribunal Austríaco. Na tese que se apresenta, sustenta-se que os conceitos jurídicos indeterminados, interpretados, podem dar ensejo à competência vinculada ou discricionária para a emissão de atos administrativos. 39 MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. São Paulo: Dialética, 1999, p. 42. interpretado para justamente oferecer estes limites. Uma norma que contenha conceitos jurídicos indeterminados pode determinar uma atuação discricionária ou mesmo vinculada, dependendo do fato de atribuir ou não, para a solução de um determinado caso concreto subsumido à hipótese legal interpretada, liberdade de escolha quanto à conveniência e à oportunidade. Lecionam Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, acerca da indeterminação do enunciado, que esta “não se traduz em uma indeterminação das aplicações do mesmo, as quais só permitem uma ‘unidade de solução justa’ em cada caso, a qual se chega mediante uma atividade de cognição, objetiva, portanto, e não de volição.”40 Aponta Rita Tourinho, com lastro em lição de Eduardo García de Enterría: Nos conceitos jurídicos indeterminados existe somente uma unidade de solução justa na aplicação do conceito a uma situação concreta. Já na discricionariedade, existe a possibilidade de pluralidade de soluções justas possíveis, como conseqüência do seu exercício Desta maneira, na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados não há um processo volitivo, como ocorre na discricionariedade, mas sim um processo de aplicação e interpretação da lei.41 Reitere-se, para a correta compreensão da passagem transcrita, que a determinação dos conceitos indeterminados é um processo de interpretação, prioritariamente cognitivo, e não de escolha da aplicação mais conveniente – volitivo. Ambos se inserem no tradicional modelo de direito liberal positivista, conferindo, entretanto, maior elastério ao direito legislado e, especialmente, ao princípio da legalidade.42 Outra questão em voga na atualidade, relacionada com a discricionariedade administrativa, mas que com ela não se confunde, por sua especialidade, é a da aplicação pela Administração Pública, de normas finalísticas,43 denominadas usualmente de diretrizes, objetivos, normas de bem coletivo,44 ou normas de política 40 ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo I. Madri: Civitas, 2000, p. 457 apud TOURINHO, Rita. A principiologia jurídica e o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa. In: GARCIA, Emerson (Coord.). Discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 102. 41 TOURINHO, Rita. A principiologia jurídica e o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa. In: GARCIA, Emerson (Coord.). Discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 102. 42 Observa Sérgio Bruna Varella, “nas sábias palavras de Eros Roberto grau, a discricionariedade e a imunidade ao controle judicial que lhe é peculiar (ao menos no que diz respeito ao chamado ‘mérito’ administrativo) constituíam um verdadeiro cavalo de Tróia introduzido nas muralhas de pedra da legalidade.” BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras – poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 71. 43 Denominação adotada por Habermas, como se verá no Capítulo IV desta tese. 44 Neste sentido, Alexy. A teoria do autor será exposta no Capítulo III desta tese. pública (policies),45 postas muitas vezes como princípios da Administração, e equiparadas a estes em sua forma de aplicação.46 As normas que fixam a competência das agências reguladoras estabelecem uma série de objetivos a serem perseguidos pelos agentes reguladores. A denominação pode variar, mas não a natureza dos dispositivos. Na legislação que institui e estabelece as funções das agências reguladoras, além da fixação da competência setorial de cada ente, é comum a referência à implementação de políticas, objetivos, diretrizes ou princípios: políticas e diretrizes da exploração da energia elétrica (ANEEL); princípios e objetivos da política energética nacional (ANP); políticas e diretrizes de assistência suplementar à saúde (ANS); princípios fundamentais dos serviços de telecomunicações (ANATEL); política nacional e diretrizes gerais da vigilância sanitária (ANVISA); política nacional de recursos hídricos (ANAGUA); princípios e diretrizes para o transporte (ANTT e ANTQ); orientações, diretrizes e políticas da aviação civil (ANAC). Não é demais lembrar que a proteção ao consumidor – e do usuário de serviço público, por extensão – é contemplada como um princípio constitucional no art. 5.º, XXXII da Constituição Federal. Não há que se confundir discricionariedade administrativa estabelecida em regras com aplicação de diretrizes/objetivos/princípios. Robert Alexy esclarece a distinção: as regras são mandatos definitivos, que podem ser realizados ou não. Na hipótese de conflito de regras, apenas uma delas será aplicada, sendo resolvido o conflito aparente pelos critérios da anterioridade, especialidade e hierarquia de normas. Os princípios (e também diretrizes e objetivos) são mandatos de otimização que “ordenan que algo sea realizado en una medida lo mayor posible dentro del marco de las posibilidades fácticas e jurídicas”. 47 Na hipótese - freqüente - de colisão de princípios, a sub-regra da ponderação (proporcionalidade em sentido estrito) definirá a solução ao caso concreto, com a redução proporcional dos princípios.48 Para a aplicação discricionária do direito, estabelecida em regras, o emitente do ato administrativo deverá pautar-se pelo atendimento da finalidade pública, componente sempre vinculado em atos administrativos. A discricionariedade é um 45 Ronald Dworkin adota esta classificação. O tema será retomado nos Capítulos III, IV e V. A equiparação de normas finalísticas que estabelecem políticas públicas a princípios é proposta por Alexy, e adotada nesta tese. 47 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 185. 48 O tema será aprofundado no Capítulo III. 46 produto do direito formal liberal positivo, especialmente o francês, relacionado em sua origem à noção de ausência de controle das escolhas administrativas pelo Judiciário, representando, na atualidade, uma relativização da legalidade administrativa.49 A discricionariedade configura, como já mencionado anteriormente, um resíduo de liberdade decisória atribuído ao administrador. Diretrizes/objetivos/princípios deverão ser aplicados, como adiante se demonstrará, pela regra da proporcionalidade, tomando-os como mandamentos de otimização,50 atendendo-se a critérios de adequação, necessidade e ponderação, sempre na observância da finalidade pública especificada na lei. A legislação finalística – expressão utilizada por Habermas51 - é produto do direito social material positivo – o direito do Estado do Bem-Estar Social – que passou a estipular desta forma (diretrizes/objetivos/princípios) políticas públicas que deveriam ser implementadas pela Administração.52 Esta nova forma de legislar radicalizou-se no último quartel do século XX, com a identificação dos riscos globais e com o reconhecimento da permanente necessidade de decidir questões práticas de forma célere. Os poderes normativos conferidos para implantação de diretrizes/objetivos/princípios são mais amplos que os poderes discricionários. As diferenças apontadas – origem, modelo de estatuição, solução de antinomias, amplitude de poderes - não deverão repercutir, entretanto, na utilização do método de aplicação das normas de direito vago.53 É usual a referência à razoabilidade de atos da Administração: no exercício do poder discricionário, a Administração não deverá emitir atos irrazoáveis. Como adiante se demonstrará,54 o teste da razoabilidade – ou da irrazoabilidade – é menos intenso que o da proporcionalidade, afastando-se apenas os atos “absurdamente irrazoáveis.”55 A proporcionalidade substitui a razoabilidade com vantagens. Desta forma, o poder discricionário e a aplicação de 49 Pela adoção do princípio da legalidade, só é permitido ao administrador praticar atos expressamente previstos em lei material e formal elaborada pelo poder competente – art. 5º, II em combinação com art. 37 da Constituição Federal. No campo do direito privado, ao particular é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe – é o princípio da garantia da liberdade como regra. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 308, 843; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 68. 50 Neste ponto, adota-se a Teoria dos Direitos de Alexy, explicitada no Capítulo III desta tese. 51 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 236. 52 O tema será aprofundado no Capítulo IV desta tese. 53 Neste sentido, as lições de Alexy serão expostas no Capítulo IV desta tese, especificamente no item 4.6. 54 O tema será tratado especificamente no Capítulo III. 55 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 29. diretrizes/objetivos/princípios, por tratarem de normas de direito vago que almejam a eficiência administrativa, deverão pautar-se pela regra da proporcionalidade, quer seja no atendimento de um conceito amplo de finalidade pública (discricionariedade administrativa),56 quer seja no atendimento da finalidade pública específica delineada em diretrizes/objetivos/princípios em legislação setorial. Reitere-se que tanto o exercício do poder discricionário quanto a aplicação proporcional de diretrizes/objetivos/princípios servem à edição de atos administrativos concretos e individuais, bem como à edição de atos normativos gerais e abstratos, no exercício do poder normativo da Administração. 1.3 Exercício de competência normativa por entes e órgãos da Administração Pública É pacífico na doutrina a possibilidade de emissão de normas por outros entes e órgãos da Administração, que não o chefe do Executivo, denominando tal atribuição de poder normativo.57 Tal poder configura o exercício de competência para a emissão de normas gerais e abstratas, vinculando, inclusive, particulares em relação com a Administração.58 Diferencia-se da modalidade regulamento especialmente por ser exercitado por vasta gama de autoridades públicas, ao passo que o regulamento é privativo do chefe do Poder Executivo. As normas decorrentes deste poder normativo estarão, em regra, em nível inferior ao regulamento, uma vez que compete ao Presidente 56 Neste sentido o Recurso Especial n.º 365368, noticiado pelo Informativo n.º 468 (21 a 25 de maio de 2007). Disponível em www.stf.gov.br, com acesso em 31 de maio de 2007. 57 No mesmo sentido, o Parecer Normativo da Advocacia-Geral da União, n.º AGU/MS - 04/06: "66.Dentro da ótica do controle administrativo, compete ao Ministro de Estado exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência, expedindo as competentes instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos (incisos I e II do parágrafo único do art. 87 da C.F.)." 58 Espécies de normas decorrentes do poder normativo, vinculando os particulares, são as resoluções, expedidas por diversas autoridades administrativas, nos respectivos campos de atuação. Tais normas devem estar em consonância com as diretrizes veiculadas em lei, não podendo contrastá-las. da República a direção superior da Administração Pública federal.59 Leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro: O poder normativo da Administração ainda se expressa por meio de resoluções, portarias, deliberações, instruções, editadas por autoridades que não o Chefe do Executivo. Note-se que o art. 87, parágrafo único, inciso II, outorga aos Ministros de Estado competência para “expedir instruções para a execução de leis, decretos e regulamentos”.60 Aponta Odete Medauar que tanto na Administração Direta quanto na Indireta, existem autoridades competentes para expedição de atos que contenham “normas gerais destinadas a reger matérias de sua competência.” Quando elaboradas por órgãos colegiados, expedem-se, em geral, por resoluções.61 Celso Antônio Bandeira de Melo, tratando dos demais atos normativos expedidos por autoridades públicas, que não os chefes do Executivo, e tomando por base o regulamento, esclarece: Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o Chefe do Poder Executivo não pode assenhorar-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta.62 1.4 Poder normativo das Agências Reguladoras 59 No mesmo sentido, o Parecer Normativo da Advocacia-Geral da União, n.º AGU/MS - 04/06: "18.Não se esqueça ainda que, segundo o modelo constitucional brasileiro, o Presidente da República exerce a direção superior de toda a Administração Federal, incluindo a indireta, auxiliado pelos Ministros de Estado, a quem cabe a orientação, coordenação, e supervisão dos órgãos e entidades em sua área de competência, e que a ação da Administração deve-se pautar sempre pelos princípios gerais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência." Destaque-se, desde já, que não há preponderância do regulamento em relação às normas emitidas por agências reguladoras no exercício de sua atividade fim. O tema será retomado. 60 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Editora Atlas, 1999, p. 89. 61 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 128. 62 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, pp. 337-338. O poder normativo das agências reguladoras, para ser compreendido, deve ser tomado em consideração com as peculiaridades da Constituição Federal de 1988. Elaborada num momento de abertura democrática, em seguida a duas constituições outorgadas – 1967 e EC. n.º 01/1969,63 incorporou em seu texto, de forma “amplíssima, detalhista e minuciosa”64 todas as preocupações da sociedade que vivenciou o período de ditadura militar iniciado com a Revolução de 1964. A marca característica da Constituição de 1988 é ser analítica. Observa Uadi Lammêgo Bulos: As constituições analíticas são amplas detalhistas, minuciosas e pleonásticas, pois os seus artigos, desdobrados em incisos e alíneas, ordenam-se de modo reiterado em várias partes do texto. É o que decorre com a Constituição brasileira de 1988, conflitante e complexa, onde, comumente, encontramos uma mesma matéria tratada em diversos lugares do seu articulado. Numa palavra, enquadram-se nesse modelo classificatório as constituições dirigentes dos juristas de inspiração marxista, que propõem a adoção de um plano para dirigir a evolução do Estado.65 Assim fez a Constituição na disciplina da Organização do Estado, da Organização dos Poderes, e da Ordem Econômica e Financeira - Títulos III, IV e VII -, de especial interesse na presente tese. Constitucionalizou diversas disciplinas anteriormente deixadas à lei ordinária, ensejando com tal postura do constituinte, a necessidade de elaboração de Emendas à Constituição numa freqüência muito maior que a desejada pela sociedade. Elaboradas pelo poder constituinte reformador,66 tais emendas, espécie normativa prevista no art. 59 da Constituição, desde que não atinjam as chamadas cláusulas pétreas, estabelecidas no art. 60, § 4.º, penetram no texto constitucional, adquirindo o status de norma constitucional. Discorrendo acerca do conteúdo das normas constitucionais, traz Paulo Bonavides : A Constituição é de si mesma, à mingua talvez de uma teoria da Constituição, um repositório de princípios às vezes antagônicos e controversos, que exprimem o armistício na guerra institucional da sociedade de classes, mas não retiram à Constituição seu teor de heterogeneidade e contradições inerentes, visíveis até mesmo pelo aspecto técnico na desordem 63 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 37; BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 09. 64 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 12. Para confirmar esta assertiva, basta a leitura do art. 242, § 2.º, que estabelece, em nível Constitucional, que “o Colégio Dom Pedro II, localizado na cidade do Rio de janeiro, será mantido na órbita federal.” 65 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 11. A Constituição brasileira é classificada pelo referido autor como democrática, formal, escrita, rígida e analítica. Apenas a última classificação foi tratada em razão de sua relevância para presente estudo. 66 Leciona Uadi Lammêgo Bulos que o poder constituinte reformador é secundário, encontrando limites técnicos (princípios e pressupostos constantes do ordenamento) e políticos (aspirações gerais da sociedade) em seu exercício. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 20-21. e no caráter dispersivo com que se amontoam, à consideração do hermeneuta, matéria jurídica, programas políticos, conteúdos sociais e ideológicos, fundamentos do regime, regras materialmente transitórias embora formalmente institucionalizadas de maneira permanente e que fazem, enfim, da Constituição um navio que recebe e transporta todas as cargas possíveis, de acordo com as necessidades, os métodos, e os sentimentos da época.67 A assertiva de Paulo Bonavides, acima transcrita, enfocando o texto original da Constituição, elaborada dentre tantas disputas dos constituintes, aplica-se, com maior rigor, a uma Constituição amplamente reformada.68 O problema posto é, numa colcha de retalhos, interpretar corretamente normas constitucionais aparentemente antagônicas. Partindo do pressuposto de que todas as normas postas originariamente na Constituição são constitucionais,69 bem como as Emendas elaboradas em conformidade com o disposto no art. 60 da Constituição Federal e art. 3.º do ADCT, tem o intérprete a árdua tarefa de buscar em seus dispositivos coerência sistemática. Refletindo acerca da responsabilidade na busca da interpretação que melhor atenda aos mandamentos constantes da Constituição, toma-se de lição, mais uma vez, as palavras de Paulo Bonavides: Mas a interpretação, quando excede os limites razoáveis em que se há de conter, quando cria ou “inventa” contra legem, posto que aparentemente ainda aí à sombra da lei, é perniciosa, assim à garantia como à certeza das instituições. Faz-se mister, por conseguinte, ponderar gravemente nas conseqüências que advêm de um irrefletido alargamento do raio de interpretação constitucional, como a observação tornou patente desde que se introduziram métodos desconhecidos na hermenêutica das instituições.70 Ensina Alexandre de Moraes, com lastro em Jorge Miranda, que a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas, devendo eventual contradição ser superada, ou por meio de redução proporcional do âmbito de alcance de cada uma destas, ou, em alguns casos, mediante a preferência de certos princípios em detrimento de outros. Defende, ainda, a fixação da 67 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 503. Com dezoito anos de existência, a Constituição de 1988 já conta com cinqüenta e três Emendas Constitucionais, mais seis Emendas Constitucionais de Revisão, promulgadas na forma do art. 3.º do ADCT. 69 A única voz contra tal assertiva é a de: BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Tradução: José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994. 70 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 483. 68 premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade.71 A importância da interpretação constitucional é ressaltada por Uadi Lammêgo Bulos: “Na medida em que o Estado contemporâneo é precisamente o Estado Constitucional, o problema da interpretação é, também, o problema central da Teoria do Estado e, de certa maneira, o da Teoria do Direito.”72 A questão se torna mais aguda quando se tem em mente que a Constituição estabelece uma série de finalidades públicas a serem alcançadas pelo Estado, norteando a atividade do Legislativo, Executivo e Judiciário. Estas finalidades são postas, muitas das vezes, através de princípios que, como adiante se demonstrará, devem ser compreendidos como mandamentos de otimização, interpretados e aplicados em sua maior medida pelos, assim denominados, poderes do Estado de direito. Acerca da dificuldade de se transplantar uma instituição - as agências reguladoras - de um sistema da common law (americano) para um sistema da civil law (brasileiro), observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho: A índole dos sistemas jurídicos é completamente diferente e é claro que uma vez trazida a instituição, ela vai fazer parte do sistema brasileiro e vai ser interpretada segundo o sistema brasileiro. O Direito norte-americano é um direito muito mais flexível que o nosso. Então, alguns dos problemas que aqui foram mencionados, lá não se colocam. Mas aqui vão se colocar. Por exemplo, a extensão do poder normativo dessas instituições.73 71 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 43. Não se refere o autor à obra consultada de Jorge Miranda. A questão da proporcionalidade na aplicação de normas será aprofundada no Capítulo III desta tese. 72 BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de interpretação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 05. 73 FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Estudos, documentos, debates: reforma do Estado, papel das Agências reguladoras e fiscalizadoras, n.º 18, São Paulo: FIESP/CIESP e Instituto Roberto Simonsen, 2000, p. 30. Como dificuldades a serem superadas na compreensão dos poderes normativos das agências reguladoras, podem ser apontadas a interpretação constitucional das regras de competência das agências, combinadas com a doutrina da separação dos poderes e os princípios da legalidade e da eficiência, bem ainda a disciplina constitucional e legal das competências regulatórias das agências, estabelecidas num modelo de leis que veiculam diretrizes/objetivos/princípios. 1.4.1 Espécies normativas primárias previstas pela Constituição Federal A Constituição Federal elenca no art. 59 as espécies normativas primárias integrantes do processo legislativo. São elas: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Qualquer outra norma em sentido material que estabeleça primariamente direitos ou obrigações que não as do art. 59 da Constituição, estará desrespeitando tal princípio. Esta é a regra, adote-se ou não a divisão entre legalidade e legalidade estrita ou reserva de lei,74 proposta por parte da doutrina nacional.75 Excepcionalmente, a Constituição prevê outras espécies normativas, como o Regimento, conferido aos Tribunais76 e ao Legislativo77 e o Decreto, posto ao Executivo78 para dispor sobre a competência e funcionamento de seus órgãos. Afora as 74 Conforme já referido na presente tese, para os que adotam tal classificação (à exceção de alguns autores que vislumbram a possibilidade de edição de regulamentos autônomos no direito brasileiro), a reserva legal exige lei em sentido formal, elaborada prioritariamente pelo Poder Legislativo – lei ordinária; já a legalidade simples ou normal estaria satisfeita com a edição de quaisquer das espécies do art. 59 da Constituição. 75 Dentre outros: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 402; BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 85. BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Atualização: Misabel Abreu Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1997, pp. 67-79. 76 “Art. 96 - Compete privativamente: I - aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;” 77 “art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados: III - elaborar seu regimento interno; IV dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para a fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias; art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: XII - elaborar seu regimento interno; XIII - dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias;” 78 “art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VI – dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação de ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando hipóteses claramente veiculadas pela Constituição, não há qualquer possibilidade de instituição de qualquer outra espécie normativa primária, ainda que tal espécie seja criada por lei. 1.4.2 A vedação da delegação do poder normativo ao Executivo Quanto à questão da delegação de poderes normativos ao Executivo, veicula o art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias expressa vedação a tal prática. Não obstante a vedação não venha nas disposições permanentes da Constituição, tal fato não retira qualquer validade ao dispositivo.79 Na íntegra do texto constitucional não se encontra qualquer conflito entre o disposto na norma de direito intertemporal e a parte permanente.80 Somente se poderia questionar a vigência da norma transitória se houvesse, expressamente na parte permanente do texto, norma autorizando a delegação. Não havendo norma expressa que a autorize, não há, por impossibilidade, qualquer transgressão de texto constitucional pela disposição transitória. Ademais, é da tradição jurídica nacional a vedação à delegação de poderes normativos ao Executivo, estando tal vedação presente em todas as Cartas Constitucionais,81 à exceção de 1937, outorgada na vigência de período ditatorial. É vagos;”. A redação foi dada pela EC. n.º 32/2001, atribuindo ao Executivo poderes semelhantes ao do Judiciário e do Legislativo para dispor sobre sua administração. 79 Leciona Uadi Lammêgo Bulos, com espeque em Henry Campbell Black, que “as disposições transitórias não podem revogar ou transgredir a parte permanente da Constituição” Este é o enunciado da regra n.º 11, proposta por Henry Campbell Black, traduzida e transcrita por Uadi Lammêgo Bulos. BLACK, Henry Campbell. Handbook of construction and interpretation of law. St. Paul, Minn.: West Publishing Co., 1896 apud BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de interpretação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 83. 80 Observa Cármem Lúcia Antunes Rocha: “Os efeitos das disposições transitórias formuladas pelo constituinte originário cumprem uma única finalidade: a passagem do momento e das instituições préconstituintes para o momento e o modelo definido e promulgado pelo Constituinte originário. Por isso, é fraudar e frustrar a obra constitucional a eternização da transitoriedade, sendo incompatível esse estado constitucional de instabilidade e permanência do que foi aprontado para ser passageiro. Não obstante tal nota, verifica-se que o que ocorre no Brasil é, rigorosamente, o contrário do quanto acima firmado como constitucionalmente válido.” ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Natureza e eficácia das disposições constitucionais transitórias. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides. 1. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 405. Tal fato, reconhecido pela doutrina e existente na prática, haja vista que o ADCT já foi diretamente alterado 33 vezes pelo poder constituinte reformador, desnatura a transitoriedade das disposições, corroborando com o entendimento exposto, segundo o qual, inexistindo contrariedade entre normas do ADCT e do texto permanente da Constituição, não há que se questionar acerca da validade e eficácia daquelas. 81 Conforme já mencionado, a Constituição de 1891 não vedava expressamente a delegação, mas o Supremo Tribunal Federal, ainda assim, entendia ser inconstitucional a delegação de poderes normativos. expressa a atual Constituição acerca da impossibilidade da delegação de poderes normativos ao Executivo,82 reconhecendo validade unicamente à espécie normativa prevista no art. 68 – espécie normativa denominada de lei delegada.83 O poder normativo exercido pelas Agências Reguladoras não decorre de qualquer delegação legislativa: é atribuição própria do Poder Executivo, através da Administração Direta e Indireta, incluídas as Agências Reguladoras, exercer dentro dos parâmetros legais, seu poder normativo. As Agências não legislam, mas normatizam os setores que lhe foram legalmente incumbidos de promover a regulação. 1.4.3 A vedação da delegação do poder regulamentar A Constituição Federal traz, também expressamente, no art. 84, IV, combinado com seu parágrafo único, a privacidade da expedição de decretos e regulamentos para fiel execução de lei do Presidente da República, sendo tal matéria indelegável. Todo e qualquer outro ato normativo editado pelo Poder Executivo, seja pela Administração direta ou indireta, que não o Presidente da República, não configurará decreto ou regulamento. Embora se reconheça à Administração e às agências reguladoras competência normativa, tais atos não se travestem de regulamentos. Soma-se à vedação da delegação de poderes normativos ao Executivo (art. 25 do ADCT), a impossibilidade de se delegar o poder regulamentar a órgãos e entes da Administração (art. 84, IV da CF). Não reconhecer tais vedações é negar aplicação aos dispositivos constitucionais. 82 É vedada a delegação com uma ressalva: a prorrogação de delegações já existentes, com as que beneficiam o Conselho Monetário Nacional e do Banco Central. O fundamento da competência normativa destas entidades pode ser encontrado em: CARDOSO, Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 189-197. 83 É regra de hermenêutica constitucional, na pena de em Henry Campbell Black, explicitada por Uadi Lammêgo Bulos, que “uma Constituição deve ser interpretada de acordo com a legislação previamente existente no Estado, a qual deverá compatibilizar-se com as normas constitucionais.” Da primeira parte da regra, tem-se a influência que exerce o ordenamento constitucional anterior na atual Carta Constitucional. Este é o enunciado da regra n.º 04, proposta por Henry Campbell Black, traduzida e transcrita por Uadi Lammêgo Bulos. BLACK, Henry Campbell. Handbook of construction and interpretation of law. Saint Paul, Minnesota.: West Publishing Co., 1896 apud BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de interpretação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 64. 1.4.4 Legislação finalística e Estado Regulador Uma realidade não pode ser postergada por quem se propõe a compreender os amplos poderes normativos das agências reguladoras – a permanente necessidade de decidir, contingência característica da sociedade de risco da Segunda Modernidade, que resultou na configuração do Estado Regulador, também denominado de Subsidiário, Prevencionista ou Securitário.84 O Poder Executivo, ao propor as leis que disciplinam sua atuação,85 e contando com o beneplácito do Poder Legislativo, produz profundas modificações no direito. Desde o advento do Estado do Bem-Estar social, as normas passam a conter as políticas públicas a serem executadas pela Administração através da 84 85 O tema será explorado no próximo capítulo. O processo de elaboração de leis é deflagrado pela iniciativa legislativa. Tal ato, leciona Clèmerson Merlin Clève, “constitui manifestação de um poder, aliás, de um poder que não deve ser definido como menor, porque o detentor do poder de iniciativa pode liderar, se tiver força para tanto, a agenda parlamentar.” CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2. ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000, p. 100. Nos termos do que dispõe a Constituição Federal, a competência para dispor das competências da União, estabelecidas no art. 20, é concorrente, competindo a “qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos.” Diferentemente, são de iniciativa privativa do Presidente da República: as leis que: “I fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas; II - disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI; f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.” Bastante esclarecedora outra lição de Clèmerson Merlin Clève, acerca do papel do Executivo na produção de leis: “Releve-se, todavia, que o Presidente da República detém uma gama importante de matérias residentes no seu território reservado de iniciativa. Ademais, nos casos em que a iniciativa é concorrente, dela participando as demais pessoas e órgãos elencados no art. 61 da Lei Fundamental, o projeto de lei governamental possui um peso maior do que qualquer iniciativa isolada de parlamentar ou mesmo de comissão desta ou daquela casa, ou do próprio Congresso. Embora a Constituição de 1988 objetivasse devolver o país ao espaço civilizado das democracias constitucionais, não se poderia impedir que o Executivo de exercer a liderança do processo de elaboração das leis. Afinal, esse parece ser seu papel no presente contexto histórico.” CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2. ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000, p. 110. aplicação, especialmente no âmbito constitucional, administrativo, econômico e previdenciário, de uma legislação finalística que se expressa prioritariamente através de diretrizes/objetivos/princípios. No exercício da aplicação deste direito de baixa densidade normativa, com objetivos estabelecidos e por vezes conflitantes, caberá à Administração Regulatória implementá-los, servindo-se para tanto da regra (ou princípio) da proporcionalidade. Na aplicação deste direito vago, seja através de contratos administrativos, atos administrativos individuais e concretos, ou atos normativos gerais e abstratos – objeto central desta tese -, há que se reconhecer uma ampla liberdade de atuação das agências reguladoras. Tornando mais clara esta assertiva: reconhece-se uma grande liberdade de escolha de meios a atingir os fins estabelecidos em políticas públicas traçadas preponderantemente em leis. Ocorre que na prática nem sempre é fácil identificar, parafraseando e atualizando Pontes de Miranda, onde termina o regular e começa o legislar, ou ainda, como quer Habermas, onde terminam os discursos de aplicação e onde começam os discursos de fundamentação, tornando-se necessária um aprimoramento do aspecto de legitimidade da produção destas normas.86 86 Para Gustavo Binenbojm, “Tal situação - de déficit de legitimidade - se agrava agudamente quando considerada a proliferação de autoridades administrativas independentes. É que os fundamentos de sua atividade costumam ser leis dotadas de elevado grau de vagueza, generalidade e abstração, que transferem aos administradores inúmeras decisões de cunho político. Ademais, a não inclusão das agências na linha hierárquica direta do Chefe do Poder Executivo esvazia por completo o segundo argumento, já que a legitimidade decorrente da investidura popular deste não se transfere a reguladores autônomos.” BINENBOJM, Gustavo. Agências reguladoras independentes e democracia no Brasil. In: BINENBOJM, Gustavo (Coord.) et alli. Agências reguladoras e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 105. Luís Roberto Barroso aponta este déficit de legitimidade, identificando que a solução passa pela harmonia - não independência - dos poderes: “O surgimento de centros de poder como os das agências reguladoras - cujas características são a não eletividade de seus dirigentes, a natureza técnica das funções desempenhadas e sua autonomia em relação aos Poderes tradicionais - desperta, naturalmente, a discussão acerca da legitimidade política no desempenho de tais competências. Este déficit democrático tem sido objeto de ampla reflexão pela doutrina, que aponta alguns aspectos que, idealmente, seriam capazes de neutralizar suas conseqüências. Dentre eles, invocam-se os seguintes: o Legislativo conserva o poder de criar e extinguir agências, bem como de instituir as competências que desempenharão; o Executivo, por sua vez, exerce o poder de nomeação dos dirigentes, bem como o de traçar as políticas públicas para o setor específico; o Judiciário exerce o controle sobre a razoabilidade e sobre a observância do devido processo legal, relativamente às decisões das agências. Ressalte-se que em tempo de liberdade de imprensa, de organização da sociedade e de existência de uma opinião pública esclarecida e atuante, sobreleva a importância do dever de motivação adequada, do dever de argumentativa e racionalmente demonstrar-se o acerto das ponderações de interesse e das escolhas realizadas.” BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Coord.) et alli. Uma avaliação das tendências contemporâneas do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 191. O tema será retomado, especialmente no Capítulo IV, quando se tratará, com lastro na doutrina de Habermas, da crise do Estado de direito caracterizada pela crescente atribuição de poderes normativos ao Executivo. 1.4.5 Natureza das normas das agências Não são as normas das agências espécies normativas primárias, tampouco regulamentos. Ambas as espécies de norma, no sentido material, são indelegáveis às agências reguladoras, exercendo estas, em moldes semelhantes ao atribuído aos demais entes e órgãos da Administração Direta e Indireta, seu poder normativo, atividade própria do Poder Executivo. A doutrina positivista do direito não consegue justificar - e tampouco controlar - a iniludível realidade do exercício de poderes normativos por agências reguladoras. Esquece-se o positivismo jurídico, embora atrelado ao direito positivo, de observar que a estrutura das normas do direito legislado sofreram profundas alterações, em direção a uma vagueza cada vez maior, ocupando-se de fixar as políticas públicas a serem perseguidas – concretizadas – pelo Executivo. Não acatar esta conclusão implicaria em sustentar a inconstitucionalidade de todos os dispositivos que atribuem poderes normativos às agências reguladoras - inclusive os postos através de Emendas à Constituição. Na linha positivista, a postura de Manoel Gonçalves Ferreira Filho acerca das normas emitidas por agências reguladoras confirma este diagnóstico apresentado: Quem for confrontá-las com a Constituição tal qual ela é lida normalmente, ou vai chegar à conclusão que elas exorbitam do poder regulamentar, ou que elas violam o princípio da legalidade, porque ou elas usurpam um poder que é privativo do Presidente da República, ou elas usurpam um poder que é do Congresso Nacional. Eu diria que talvez a saída seja a previsão de um terceiro gênero normativo, mas este terceiro gênero não está previsto até agora. A prática brasileira é de tolerância para esse tipo de normas, e quem sabe aí haja uma norma constitucional não escrita a dar-lhes cobertura.87 Em sentido semelhante, a postura de Edmir Araújo Netto: No Brasil não é mais possível a edição de regulamentos autônomos, e sim dos que se prendem à norma legal para esclarecê-la e facilitar sua execução, não podendo inovar na ordem jurídica, em especial quanto a deveres e direito, obrigações e penalidades. O que se nota é a edição de atos 87 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estudos, documentos, debates: reforma do Estado, papel das Agências reguladoras e fiscalizadoras, n.º 18, São Paulo: FIESP/CIESP e Instituto Roberto Simonsen, 2000, p. 30 administrativos (decretos, no caso dos Chefes do Executivo; resoluções, instruções, portarias etc., no caso de outras autoridades) que significam exercício do poder normativo, mediante declaração de vontade sobre algo, de sua competência, e de como a autoridade deseja sua operacionalização, também não inovando na ordem jurídica, nem criando direitos ou impondo penalidades. Assim, o poder normativo das agências reguladoras (não regulamentadoras) vincula-se às normas legais pertinentes, sem inovar na ordem jurídica. E não é o de regulamentar leis e muito menos situações jurídicas autônomas (leis em sentido material) que criem direitos, deveres e penalidades. Não é por outra razão que a Constituição Federal, em seu art. 5.º, II, garante que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.88 A norma constitucional que irradia à Administração o denominado “poder normativo”, diferenciando-o das espécies normativas do art. 59, bem como do regulamento do art. 84, IV, é o art. 87, parágrafo único, II da Constituição Federal,89 que combinado aos art. 21, XI; 174 e 177, § 2.º, III, oferece o arcabouço constitucional das agências reguladoras. O exercício do poder de normatizar das agências reguladoras será pautado sempre pela legalidade e pela constitucionalidade. As leis das agências reguladoras e seus regulamentos estabelecem, em seus textos, o poder normativo, atribuído à Diretoria - órgão colegiado máximo das Agências.90 Duas serão as hipótese de exercício deste poder normativo: a) Aplicação de regras de direito:91 quando a regra definir precisamente a atuação da agência reguladora, configurando-se hipótese de vinculação, as normas das agências deverão estar em conformidade com ela, dando-lhe execução; na hipótese da regra de direito atribuir poderes discricionários à agência reguladora, as normas deverão dar executoriedade aos comandos legais, exercitando as escolhas de conveniência e de oportunidade dos atos regulatórios, sempre pautados pelo interesse público; b) Aplicação de diretrizes/objetivos/princípios: uma vez que a densidade normativa desta forma de 88 ARAÚJO, Edmir Netto de. A aparente autonomia das agências reguladoras. In: MORAES, Alexandre de, (Coord) et alli. Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 41. 89 No mesmo sentido, em passagem já citada, Maria Sylvia Zanella Di Pietro observa que “o poder normativo da administração ainda se expressa por meio de resoluções, portarias, deliberações, instruções, editadas por autoridades que não o Chefe do Executivo. Note-se que o art. 87, parágrafo único, inciso II, outorga aos Ministros de Estado competência para ‘expedir instruções para a execução de leis, decretos e regulamentos’.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Editora Atlas, 1999, p. 89. 90 A disciplina das agências reguladoras não é uniforme, mas todas elas possuem o denominado poder normativo, sendo este atribuído ao colegiado composto por seus diretores. 91 Regra e diretrizes/objetivos/princípios são espécies do gênero norma jurídica. O tema será explorado com maior profundidade nos Capítulos III e IV desta tese. legislação é menor, a atribuição de poderes normativos é mais ampla, conferindo-se maior liberdade de escolhas de meios, igualmente pautados pela regra (ou princípio) da proporcionalidade. A legalidade porosa se contenta em estabelecer os fins, liberando em larga medida a Administração em sua execução. Não se pode perder de vista que os atos normativos - gerais e abstratos - são espécies de atos administrativos, adstritos à satisfação de seus requisitos.92 Dentre as espécies de atos normativos da Administração, a que mais sintonia guarda com a missão das agências, produzindo efeitos externos a seu corpo administrativo, é a resolução. Para Hely Lopes Meirelles: Resoluções são atos administrativos normativos expedidos pelas altas autoridades do Executivo (mas não pelo Chefe do Executivo, que só deve expedir decretos) ou pelos presidentes de tribunais, órgãos legislativos e colegiados administrativos, para disciplinar matéria de sua competência específica. Por exceção admitem-se resoluções individuais.93 Os atos normativos das agências reguladoras, em razão dos amplos poderes conferidos aos mesmos, vão além das resoluções, configurando uma nova espécie de ato administrativo normativo: atos regulatórios normativos. Na prática das agências reguladoras, entretanto, utiliza-se, pelas razões expostas, a denominação “resolução” ou “resolução normativa”, sempre que destinada à produção de efeitos externos à Administração e aos seus servidores. Os atos normativos das agências reguladoras poderão, dando executoriedade às políticas públicas escolhidas expressas em leis finalísticas, especificarão os direitos e obrigações impostas por lei aos particulares. Note-se que a estatuição primária, autônoma, continua sendo da lei que dita diretrizes/objetivos/princípios. Para a concretização destas normas – usualmente constantes em leis de instituição das agências reguladoras no Brasil – necessário o reconhecimento deste poder. Os atos normativos de direito regulatório deverão pautar-se pelas finalidades estabelecidas na lei de instituição da referida agência, e deverão atender requisitos formais – respeito a normas do 92 A doutrina tradicional elenca como requisitos do ato administrativo: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, pp. 142-146. Leciona Hely Lopes Meirelles, referindo-se aos atos normativos de execução: “Atos administrativos normativos são aqueles que contêm um comando geral do Executivo, visando a correta aplicação da lei. O objetivo imediato de tais atos é explicitar a norma legal a ser observada pela Administração e pelos administrados.” MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 170. 93 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 174. processo de criação – e materiais – atendimento de finalidade específica e proporcionalidade. Anote-se desde já que a regra (ou princípio) da proporcionalidade abarca a noção de eficiência, ancorado que está, como adiante se demonstrará, no Ótimo de Pareto.94 Necessário o estabelecimento de procedimentos democráticos que legitimem e controlem estes amplos poderes.95 No exercício deste poder normativo, atividade própria do Executivo, no campo da discricionariedade administrativa, disciplinará, amiúde, os comandos legais. A discricionariedade será prioritariamente técnica, mas ainda assim, compreendida como político-administrativa.96 Querer ver as agências unicamente como exercentes de atividade administrativa balizada pela discricionariedade técnica é menosprezar sua atuação. É torná-la menor que os demais entes ou órgãos que exercem atividade administrativa normativa. Balizadas pela lei de criação, que veicula regras ou diretrizes/objetivos/princípios, exercerão as agências a normatização do setor que lhe foi incumbido – regra de competência. A discricionariedade na aplicação de regras e a proporcionalidade na aplicação de diretrizes/objetivos/princípios, usualmente referidas quando da edição de atos individuais e concretos, servem à edição de atos administrativos normativos gerais e abstratos, aliando-se ao princípio da igualdade, estabelecendo, de antemão, a solução a ser dada pela Administração a todos os particulares ou servidores que se encontrem em situação semelhante. Observa Celso Antônio Bandeira de Mello, referindo-se a esta faceta da discricionariedade: 94 O ponto será retomado especificamente no Capítulo III desta tese. O tema será explorado no Capítulo IV desta tese. 96 Neste sentido, Sérgio Varella Bruna, para quem, modernamente, “reconhece-se que a expertise das agências não é capaz de eliminar o caráter político de muitas das decisões cometidas a órgãos administrativos.” BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras – poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 205. Em sentido contrário, assevera Diogo de Figueiredo Moreira Neto que a competência normativa atribuída às agências reguladoras é a “chave de uma desejada atuação célere e flexível para a solução, em abstrato e em concreto, de questões em que predomine a escolha técnica”. Afasta-se, a uma só vez, das escolhas abstratas políticoadministrativas do Congresso e das escolhas administrativas discricionárias da burocracia da administração direta. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 162. Tal posicionamento do autor coaduna-se com sua interpretação acerca da desnecessidade de se promover a legitimidade de suas decisões: “As agências reguladoras independentes são entes dotados de funções administrativas e não de funções políticas, o que as caracterizam como órgãos administrativos e não como órgãos políticos, de modo que as atribuições normativas que lhes são cometidas, contidas na função reguladora, embora sejam materialmente normativas, são, como já se expôs, de espécie distinta da função legislativa, esta sim, uma função política, ainda porque a função reguladora não se destina a produzir normas legais, mas meras normas reguladoras, com distinta natureza que já foi objeto de exame.” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório: a alternativa participativa e flexível para a Administração Pública de relações setoriais complexas no estado democrático. Rio de Janeiro, Renovar, 2003, pp. 153-154. 95 Discricionariedade é liberdade dentro da lei, nos limites da norma legal, e pode ser definida como: “A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal.”97 Do que foi expresso neste tópico, as normas gerais e abstratas das agências reguladoras podem ser definidas da seguinte forma: atos regulatórios normativos gerais e abstratos emitidos com fundamento no poder normativo previsto nas leis de instituição das agências reguladoras para o exercício da discricionariedade administrativa na aplicação de regras, bem como para a escolha dos meios eficientes para a implementação de diretrizes/objetivos/princípios expressos em legislação finalística, que, pautados pela regra da proporcionalidade, especificam direitos e obrigações a todos os atingidos do setor regulado. A posição sustentada nesta tese pode ser deste modo sintetizada: Quadro 01 - Natureza das normas das agências reguladoras Natureza da norma Fundamento Possibilidade de inovação Atos regulatórios normativos Discricionariedade administrativa na aplicação de regras somada à Não – aplicação proporcional aplicação proporcional de diretrizes, para o atendimento da objetivos e legislação finalística princípios 1.4.6 Conflitos entre regulamentos do chefe do Executivo e normas das agências reguladoras O reconhecimento das normas das agências como atos normativos regulatórios de aplicação diretrizes/objetivos/princípios, de regras, pautados pela com discricionariedade, proporcionalidade, ou de repercute na delimitação do campo de atuação dos regulamentos do chefe do Executivo.98 97 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 396. 98 Este ponto foi revisto em relação ao que se sustentou em: CARDOSO, Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 280-283. Toda espécie normativa que veicule matéria administrativa pode ser regulamentada pelo chefe do Executivo. A Constituição não traz qualquer limitação neste sentido. Até mesmo uma norma constitucional pode ser regulamentada diretamente através de um Decreto do Presidente da República.99 Não há qualquer óbice a que o Presidente da República edite regulamentos no setor reservado às agências reguladoras, desde que observe, na expedição do ato, os parâmetros trazidos na lei da respectiva agência. 100 O chefe do Executivo pode, através de Decreto, aprovar regulamentos para dar operatividade às agências, implantando-as, dando execução ao que foi prescrito nas leis de instituição, especificando a atuação de seus servidores ou mesmo procedimentos para a operacionalização de seus objetivos. O regulamento pode - e assim o faz - regrar a atuação das agências em relação a sua atividade-meio, à sua atividade administrativa.101 Diferentemente, não pode o Decreto, sob pena de nulidade, disciplinar o âmbito de atuação finalística da competência regulatória prevista em lei. O regulamento não pode regular um determinado setor cuja competência regulatória tenha sido atribuída a uma determinada agência reguladora. O poder regulamentar, no âmbito finalístico das agências, é menor do que a atividade regulatória normativa das agências. De igual modo, não se vislumbra a possibilidade de emissão de normas gerais e abstratas por Ministros de Estado para normatização do setor reservado às agências. Embora a Constituição atribua aos ministérios competência normativa, esta é subordinada ao decreto que veicule regulamento editado pelo Presidente da República, estando em patamar inferior aos regulamentos e às normas das agências, com competência fixada por lei.102 A edição de atos normativos por Ministros de Estado, no 99 Exemplo é o Decreto n.º 3.048, de 6 de maio de 1999, que regulamentou a Emenda Constitucional n.º 20/98, sendo de especial interesse o disposto no art. 201, § 7.º, I e II. Na oportunidade, embora tenha sido vitoriosa a oposição, estabelecendo a alternatividade de requisitos para a aposentadoria veiculados nos incisos I e II, causou “estranheza, então, a atitude do Governo Federal, no mês de maio do corrente ano, ao interpretar o referido dispositivo, segundo o qual o trabalhador teria que cumprir vinculadamente os dois incisos (I e II).” PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. Reforma da previdência: aprovada e comentada. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 256. 100 Na França, o Conselho Constitucional reconheceu a possibilidade de edição de regulamentos de execução – art. 21 da Constituição francesa - no campo de normatização das agências. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 244. 101 Neste sentido, basta conferir os decretos que regulamentaram as leis das agências: Decretos n.º 2.335/97 (ANEEL); 2.455/98 (ANP); 3.327/2000 (ANS); 2.338/1997 (ANATEL); 3.029/1999 (ANVISA); 3.692/2000 (ANAGUA); 4.110/2002 (ANCINE); 4.122/2002 (ANTAQ); 4.130/2002 (ANTT); e 5.731/2006 (ANAC). 102 Neste sentido, Hely Lopes Meirelles: As resoluções, normativas ou individuais, são sempre atos inferiores ao regulamento e ao regimento, não podendo inová-los ou contrariá-los, mas unicamente complementá-los e explicá-los. Seus efeitos podem ser internos ou externos, conforme o campo de campo reservado ao poder normativo das agências, ensejaria o reconhecimento de invasão de competência, viciando o ato administrativo normativo. É conseqüência do reconhecimento das normas das agências como espécie de atos administrativos a possibilidade de seu controle pelo Poder Judiciário. Ainda que se adote uma visão mais restrita acerca do controle dos atos administrativos discricionários, havendo insindicabilidade do mérito – conveniência e oportunidade, dentro do motivo e do objeto -, ou mesmo da aplicação proporcional de diretrizes/objetivos/princípios, não há como negar o controle acerca dos elementos necessariamente vinculados de qualquer ato administrativo – competência, finalidade e forma - ou ainda dos critérios (sub-regras da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) de proporcionalidade. A doutrina atual mais balizada defende a possibilidade de controle pelo Poder Judiciário dos atos administrativos, incluídos os atos das agências reguladoras.103 Neste sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem as normas das agências não escapam do controle da realidade e da razoabilidade,104 como todo e qualquer outro ato administrativo.105 atuação da norma ou os destinatários da providência completa.” MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 174. 103 O que foi dito acerca do controle da legalidade dos atos administrativos discricionários pelo Poder Judiciário - insindicabilidade do mérito, mas com a possibilidade do reconhecimento da nulidade dos atos por vícios de competência, finalidade, forma, motivo e objeto, na forma do disposto no art. 2.º da Lei n.º 4.717/1965 - aplica-se aos atos gerais e individuais emitidos por agências reguladoras. 104 Leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto que existem dois princípios técnicos que servem de baliza à discricionariedade administrativa: realidade e razoabilidade. Pela adoção do princípio da realidade, “os comandos da administração, sejam abstratos ou concretos, devem apresentar sempre condições de serem efetivamente cumpridos em favor da sociedade a que se destinam. O sistema legal-administrativo não pode ser um repositório de determinações utópicas, irrealizáveis e inatingíveis, mas um instrumento sério dedicado à modelagem da realidade dentro do possível.” Adverte o autor que a violação a tal princípio desmoraliza a ordem jurídica pela “banalização da ineficiência e a vulgarização do descumprimento, além do pesado tributo do ridículo.” Pelo princípio da razoabilidade, “o que se pretende é considerar se determinada decisão, atribuída ao poder público, de integrar discricionariamente uma norma, contribuirá efetivamente para um satisfatório atendimento dos interesses públicos.” Compatibiliza-se interesses com razões. A discricionariedade não pode conduzir a resultados que ignorem ou traiam o interesse público. É pontual o autor ao afirmar que a lei, na qual se baseará o ato administrativo (concreto ou abstrato) “não se cumprirá se não houver um mínimo de pertinência razoável entre oportunidade e conveniência, de um alado, e a finalidade do outro.” Arremata o autor ao afirmar que “a razoabilidade, na valoração dos motivos e na escolha do objeto, é, em última análise, o único caminho seguro para se ter certeza de que se garantiu a legitimidade da ação administrativa e o primado do senso comum sobre a ineficiência grosseira e a demagogia administrativa.” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade – novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 53-57. Ambos os princípios devem ser observados na emissão de normas por agências, sendo cabível a anulação de atos quando irreais ou irrazoáveis, havendo, destarte, desvio de finalidade, ensejando controle judicial. Reconheça-se que o tema do controle jurisdicional dos atos da administração pública está longe de alcançar tratamento uniforme da doutrina. 105 Neste sentido, BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras – poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pp. 142-180. O controle jurisdicional Leciona Sérgio Guerra, em obra que já é referência sobre o tema do controle judicial dos atos regulatórios: As decisões proferidas pelas agências reguladoras, em regra sob a forma de deliberações colegiadas, constituem hipótese de ato administrativo, devendo observar os requisitos tradicionalmente exigidos para expedição dessa espécie de ato. Esses atos podem criar restrições à livre iniciativa privada, desde que razoáveis, proporcionais e que realizem a ponderação dos interesses pluralistas em jogo.106 No requisito “forma”, especial relevo deve-se conferir ao procedimento específico para a elaboração de normas pelas agências, previsto de maneira não uniforme e esparsa pela legislação de cada uma das agências reguladoras.107 1.4.7 Standards e requisitos suficientes Os parâmetros veiculados nas leis que conferem poderes normativos às agências não devem ser trazidos em meros standards,108 mas sim em normas suficientemente claras para direcionar a atividade normativa da agência reguladora. Todo o conjunto de normas constante da legislação da agência deverá ser considerado na expedição dos atos normativos pelas agências. No campo da discricionariedade, as normas emitidas por agências deverão possuir “uma noção de compatibilidade”109 com o texto legal, integrando a espécie normativa primária, proporcionando “em cada caso a escolha da providência ótima”.110 Na aplicação de diretrizes/objetivos/princípios a regra da proporcionalidade, como já dito, repercutirá na aplicável a todo e qualquer ato administrativo da administração pública também o será relativamente aos atos das agências reguladoras, emitam estas atos concretos e individuais, ou atos gerais e abstratos. 106 GUERRA, Sérgio. O controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 365. 107 O Projeto de Lei n.º 3.337/2004 buscou dar ao tema um tratamento mais uniforme. 108 Relativamente ao direito americano, pode-se afirmar que a existência de uma “submissão das normas emitidas pelas agências norte-americanas à lei de sua criação – enabling act -, ao American Procedure Act, bem como à Constituição dos Estados Unidos. As rules, em tradução livre, são denominadas de resoluções, sendo os acts ou statutes, leis formais. Aquelas retiram seu fundamento de validade destes, filling in the blanks (preenchendo os espaços) deixados pelo legislador, dentro dos standards trazidos pela lei. Prevalece, nos Estados Unidos da América, orientação “no sentido de que a lei deve conter os standards mínimos – intelligible principle doctrine – pelos quais deve a administração se pautar.” CARDOSO, Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 114-115. 109 WEIL, Prosper. O direito administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1977, p. 121. 110 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo, 17 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 400. escolhas dos meios para o atingimento das finalidades estabelecidas em lei, ponderando-se meios e finalidades na hipótese de colisão.111 Para exercer validamente seu poder normativo as agências necessitam de parâmetros mais que suficientes a orientá-las.112 Diferentemente do que ocorre no país onde se foi buscar sua inspiração, não satisfaz o ordenamento pátrio a adoção de “standards mínimos”113 na lei de instituição das agências. As finalidades deverão ser claras, bem definidas em políticas públicas estatuídas em lei. Assim, as leis instituidoras das agências, ao deferirem poderes normativos a estas, devem traçar de modo claro os objetivos a serem alcançados pelas mesmas,114 relegando às agências a escolha dos instrumentos - prioritariamente soluções técnicas e especializadas - para a concreção dos objetivos claramente disciplinados na lei. 1.4.8 Administração superior, supervisão ministerial e recurso hierárquico impróprio Difícil sustentar a ausência de controle ou a possibilidade de revisão de atos administrativos das agências pelo Presidente da República. Do escólio de Manoel Gonçalves Ferreira Filho se extrai: No sistema que ainda vivenciamos, os eleitos é que governam pelo povo. Em conseqüência, são eles que devem tomar as decisões em última instância e são eles que devem controlar as decisões tomadas pelos órgãos delegados ou descentralizados. Assim, o Presidente da República, como chefe do Executivo, seria o chefe de toda a Administração pública federal, direta e indireta, e, portanto, teria o poder de controle sobre todos esses entes.115 A Constituição Federal, em seu artigo 84, inciso II, estipula como sendo de competência privativa do Presidente da República, sem qualquer possibilidade de 111 O tema será retomado no Capítulo III. Neste sentido, SUNDFELD, Carlos Ari. Serviços públicos e regulação estatal. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord) et alli. Direito administrativo econômico. 1. ed., 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 27. 113 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 229. 114 Neste sentido, JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 525. 115 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estudos, documentos, debates: reforma do Estado, papel das Agências reguladoras e fiscalizadoras, n.º 18, São Paulo: FIESP/CIESP e Instituto Roberto Simonsen, 2000, p. 35. 112 delegação, por não se enquadrar no parágrafo único do mesmo artigo, “exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da Administração federal;”. No transporte das agências reguladoras para o ordenamento pátrio, estas devem se adaptar ao seu novo habitat, sujeitando-se, portanto, à direção superior do Presidente da República, bem como a supervisão dos Ministros de Estado, em seu auxílio. A vinculação das agências reguladoras - e demais entidades da Administração Indireta aos Ministérios opera-se pela supervisão ministerial, que objetiva o controle dos resultados, a harmonização de suas atividades com a política e a programação do Governo, a eficiência de sua gestão e a manutenção de sua autonomia administrativa, operacional e financeira, exercendo os meios de controle enumerados em lei (art. 26, parágrafo único, do Decreto-Lei n.º 200/1967 e o art. 29 da Lei n.º 8.490/1992). Ainda que em sua origem norte-americana a delegação de poderes seja mais amplamente considerada,116 tal entendimento não possui o condão de influenciar a limitação de competências rigidamente postas na Constituição Federal vigente. Assim, no que se refere à autonomia funcional das agências, não há como se negar a possibilidade de supervisão ministerial, ou mesmo de revisão pelo próprio Presidente da República dos atos administrativos praticados pelas agências reguladoras. Os recursos relacionam-se, em regra, a processos administrativos (quase-judiciais). Reporta-se Alexandre Santos de Aragão a um interessante precedente neste sentido: Há, contudo, precedente administrativo no qual, mesmo diante de vedação expressa da interposição de recurso hierárquico impróprio, o então Ministro da Justiça, Nelson Jobim, o admitiu. Da sua decisão, inferem-se dois argumentos que, por sua generalidade, no interessa analisar: (a) as questões concernentes a políticas públicas relevantes não devem escapar à análise da Administração central; (b) o fato de o art. 5.º, LV, CF garantir “o contraditório e a ampla defesa com os meios e os recursos a eles inerentes.” 117 Afirma Célio de Vieira Borja, para quem a autonomia das agências é relativa, que: 116 Neste sentido: CARDOSO, Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 100-122. 117 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 348. O autor, entretanto, defende posição contrária à adotada no presente estudo. Para o ele, não há qualquer possibilidade de supervisão ministerial, ou mesmo de revisão pelo Presidente da República, por existir a previsão legal de recursos internos à própria agência. A tutela administrativa sempre existirá, sempre há possibilidade de recorrer a um órgão que supervisiona, como por exemplo, nos casos de evidente mal feito por essas comissões, em que o Poder Executivo há de intervir ou impedir que se consumem ou concessões, ou permissões, ou autorizações, ou proibições que atentam contra o Direito e às vezes até contra a moralidade pública. Então, a inexistência de um controle, a autonomia absoluta, como se pretende, me parece excessivo.118 Para encerrar com a polêmica que transpunha a âmbito doutrinário, suscitando inúmeros conflitos de competência no âmbito da Administração Federal, foi emitido o Parecer Normativo da Advocacia-Geral da União, n.º AGU/MS - 04/06, aprovado em 13 de junho de 2006 pelo Presidente da República,119 que estabelece a solução para a questão dos recursos hierárquicos impróprios, obrigatória para toda a Administração Pública federal: 65. [...] - estão sujeitas à revisão ministerial, de ofício ou por provocação dos interessados, inclusive pela apresentação de recurso hierárquico impróprio, as decisões das agências reguladoras referentes às suas atividades administrativas ou que ultrapassem os limites de suas competências materiais definidas em lei ou regulamento, ou, ainda, violem as políticas públicas definidas para o setor regulado pela Administração direta; - excepcionalmente, por ausente o instrumento da revisão administrativa ministerial, não pode ser provido recurso hierárquico impróprio dirigido aos Ministérios supervisores contra as decisões das agências reguladoras adotadas finalisticamente no estrito âmbito de suas competências regulatórias previstas em lei e que estejam adequadas às políticas públicas definidas para o setor.120 A solução encontrada enfrenta a questão sob os pontos de vista funcional (de competência) e material:121 a) dentro da competência finalística das agências reguladoras, suas decisões não podem ser desafiadas por recursos hierárquicos impróprios; b) mas, em sua atividade meio, admitem-se os recursos ao Ministério supervisor; c) caberá o recurso de decisões finalísticas na hipótese de violação das 118 BORJA, Célio de Vieira. Debates. In: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estudos, documentos, debates: reforma do Estado, papel das Agências reguladoras e fiscalizadoras, n.º 18, São Paulo: FIESP/ CIESP e Instituto Roberto Simonsen, 2000, p. 22. 119 Parecer n.º AGU/MS - 04/06, de 23 de maio de 2006, publicado no Diário Oficial da União de 19 de julho de 2006. 120 Parecer n.º AGU/MS - 04/06, de 23 de maio de 2006, publicado no Diário Oficial da União de 19 de julho de 2006. 121 A questão pode ser tornada clara com o auxílio de um exemplo bastante simples: embora se atribua ao Presidente da República a direção superior da Administração Federal, este não poderá - legalmente determinar a atuação de um Delegado da Polícia Federal, ou rever um relatório de um inquérito presidido pelo Delegado, dando um enquadramento diferenciado a determinada conduta delituosa. políticas públicas definidas para o setor; d) ou que exorbitem o poder de regular por violação à lei ou ao regulamento editado pelo chefe do Executivo. A Administração pública se perfaz tanto por atos individuais quanto por atos normativos gerais e abstratos. Ao se atribuir ao Presidente da República, em sede constitucional, a direção superior da Administração, questiona-se a possibilidade de rever - ao lado de atos administrativos concretos e individuais - atos administrativos gerais e abstratos. Nesta última classe, encontram-se os atos normativos das agências, decorrentes do poder normativo reconhecido à Administração, seja em razão da hierarquia, quando destinado à produção de efeitos unicamente internos, seja em razão da discricionariedade ou aplicação de diretrizes/objetivos/princípios, somada à igualdade de tratamento dos administrados, quando direcionada à produção de efeitos externos. Relativamente a normas de produção internas, administrativas, nada impede que estas sejam revistas pelo chefe do Executivo. Na vigência da Constituição Federal de 1988, com a redação que vige hodiernamente, não há como se afastar tal poder de direção do Presidente da República sobre qualquer autarquia, por mais especial que esta seja.122 Deferentemente, tratando-se de atos de direito regulatório nitidamente relacionado à atividade fim da agência, incabível a supervisão ministerial e o correlato recurso hierárquico impróprio. Apenas em hipótese de descumprimento do procedimento de elaboração de seus atos administrativos normativos poderia se aceitar tal possibilidade, em respeito ao princípio da legalidade. Acatar a revisão de atos normativos das agências reguladoras por qualquer outro fundamento, atingindo as medidas de regulação estabelecidas para o atingimento de finalidades previstas em lei, 122 Acerca da autonomia universitária, dispõe o art. 207 da Constituição Federal: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” Leciona Anita Lapa Borges Sampaio: “As limitações à autonomia universitária obedeceriam ao requisito formal de serem editadas somente por lei e observarem as competências previstas na Constituição.” SAMPAIO, Anita Lapa Borges. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação do art. 207 da Constituição Federal. Brasília: UNB, 1998, p. 274 apud BARBOSA, Samuel Rodrigues. Autonomia universitária: investigações dogmáticas sobre a constitucionalização de um princípio. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. 1.º ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 67. Entretanto, para Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “O que eu observaria sobre a autonomia universitária me leva primeiro a fazer uma observação que é em off. Pela minha experiência de dirigente universitário a autonomia consiste no direito que tem o reitor de cumprir as portarias do ministro...” FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estudos, documentos, debates: reforma do Estado, papel das Agências reguladoras e fiscalizadoras, n.º 18, São Paulo: FIESP/ CIESP e Instituto Roberto Simonsen, 2000, p. 24. seria usurpar a função especializada que esta possui, e substituí-la por uma vontade puramente política. Inconcebível o recurso administrativo e a supervisão ministerial acerca dos atos regulatórios normativos. 1.4.9 Grupos de interesses, cidadãos e agências reguladoras As agências reguladoras são instituições criadas para o alcance de uma Administração Pública gerencial.123 Nesta, a eficiência é ressaltada na busca de uma administração ótima. A especialização, com a criação de autarquias cuja excelência técnica é exortada, é mais um instrumento posto à disposição da Administração. Em tal modelo de Administração Pública, a sociedade é alçada à posição de destaque na produção de normas. O administrado, súdito do poder extroverso do Estado, passa a se posicionar num status de destinatário dos serviços públicos e das demais atividades estatais - consumidor e cidadão.124 A democracia é fortalecida.125 As reformas políticas, como bem observa Nuria Cunnil Grau visam também: A fortalecer as instituições representativas, tanto as tradicionais – em particular, os parlamentos – como as que existam para estimular a participação dos cidadãos e o Poder Judiciário, de tal modo que as reformas econômicas dependam, para ser implantadas, não apenas de suporte institucional, mas também de consenso.126 Nesta nova postura sugerida pela reforma do Estado e da Administração, compete à sociedade intervir, não só por seus representantes políticos no Congresso, mas ainda na elaboração de normas que a atinja mais diretamente, que tangencie seu grupo de interesse. Os grupos de interesse exercem sua participação democrática de forma organizada, por meio de estruturas devidamente institucionalizadas, com formas 123 Neste sentido, Capítulo II de: CARDOSO, Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 124 É interessante notar que a utilização das expressões “súdito” e “administrado” é freqüente em manuais de direito administrativo. Diferentemente, o conceito de cidadão é muito pouco explorado no direito administrativo, havendo alguma repercussão no campo do direito constitucional e eleitoral, onde usualmente se considera que cidadão é o indivíduo que possui capacidade eleitoral ativa - que possui um título de eleitor. A cidadania, como adiante se verá, é maior que os direitos políticos, envolvendo um conjunto de direitos civis, políticos e sociais. 125 Neste sentido, JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 540. 126 GRAU, Nuria Cunnil. Repensando o público através da sociedade. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: ENAP, 1998, p. 211. procedimentais garantidoras de sua atuação.127 São vistos como órgãos colaboradores dos partidos e da burocracia estatal. Observa Sérgio Varella Bruna: A atuação dos grupos de interesse é admitida como um fenômeno democrático normal em toda parte. No entanto, sempre que seja clandestina essa atuação, ela se torna perigosa, pois a clandestinidade facilita adoção de expedientes condenáveis para a obtenção de vantagens indevidas.128 Nesta linha, as agências reguladoras são estruturas organizadas para o exercício de participação democrática dos grupos de interesse, estabelecendo-se procedimentos de consulta e de audiência pública para a elaboração de suas normas.129 O processo de transferência de poderes normativos às agências pretende quebrar o monopólio público estatal da elaboração normativa, promovendo uma importante democratização quando do exercício do poder regulador das agências. É óbvio que a fonte das normas continuará sendo preponderantemente estatal no modelo proposto, só que possibilitará uma intensa participação da sociedade. A elaboração do direito regulador é marcada pela participação. Privilegia-se o administrado/consumidor, que necessariamente será consultado através de associações relacionadas ao âmbito de cada uma das agências reguladoras. Propõe uma Administração consensualizada como meio de garantir o cumprimento voluntário de normas elaboradas com a participação dos grupos de interesse. 127 Defende Sérgio Varella Bruna a adoção de uma teoria mista, mesclando o neocorporativismo (caracterizado pela institucionalização dos grupos de interesses e das instâncias estatais encarregadas de proceder à intermediação) com o neopluralismo (que vislumbra na atuação dos grupos de interesse uma barganha realizada entre estes grupos e os detentores do poder). A unificação das duas correntes permitiria a correção das deficiências apontadas pelo neopluralismo, e o aprimoramento institucional proposto pelo neocorporativismo. BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras – poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pp. 55-57. Pietro Perlingieri denomina de comunidades intermédias tais grupos: “É possível encontrar fontes que não coincidem propriamente com os atos de autonomia individual e nem com aqueles coletivos: trata-se da autonomia comunitária própria das instituições intermédias.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 283. 128 BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras – poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 56. No mesmo sentido Luís Cabral S. Moncada: “Tanto assim é que se tal participação não ficar constitucional ou legislativamente consagrada, ela reaparece sob vestes informais, através do lobbying ou de outras formas menos claras. A participação é uma realidade; melhor será discipliná-la por lei do que ter de a admitir como facto político característico da contemporaneidade.” MONCADA, Luís Cabral S. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 163. 129 O tema será retomado no Capítulo V. 1.4.10 Produção das normas e necessidade de aprimoramento da participação popular As atuais leis instituidoras das agências reguladoras prevêem, de forma tímida e sem uniformidade, a realização de consultas e de audiências públicas. 130 A matéria é relegada aos regulamentos das agências, que transferem o estabelecimento do processo decisório para normas internas das agências reguladoras, que atribuem, por sua vez, competência para os Diretores especificarem o procedimento a ser seguido em deliberações. Neste sentido, o regramento da disciplina no âmbito da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), primeira Agência Reguladora instituída no Brasil, pode ser tomado como modelo do que ocorre com as demais. O poder normativo da ANEEL é 130 A disciplina não é uniforme, e nem todas as leis das agências estabelecem tal obrigatoriedade: Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Lei n.º 9.427/1996: “Art. 4º. A ANEEL será dirigida por um Diretor-Geral e quatro Diretores, em regime de colegiado, cujas funções serão estabelecidas no ato administrativo que aprovar a estrutura organizacional da autarquia. § 3º O processo decisório que implicar afetação de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de projeto de lei ou, quando possível, por via administrativa, será precedido de audiência pública convocada pela ANEEL.” Agência Nacional do Petróleo (ANP), Lei n.º 9.478/97: “Art. 19. As iniciativas de projetos de lei ou de alteração de normas administrativas que impliquem afetação de direito dos agentes econômicos ou de consumidores e usuários de bens e serviços da indústria do petróleo serão precedidas de audiência pública convocada e dirigida pela ANP.” Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), Lei n.º 9.472/97: “Art. 18. Cabe ao Poder Executivo, observadas as disposições desta Lei, por meio de decreto: I - instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com sua prestação no regime privado; II - aprovar o plano geral de outorgas de serviço prestado no regime público; III - aprovar o plano geral de metas para a progressiva universalização de serviço prestado no regime público; Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente: III - elaborar e propor ao Presidente da República, por intermédio do Ministro de Estado das Comunicações, a adoção das medidas a que se referem os incisos I a IV do artigo anterior, submetendo previamente a consulta pública as relativas aos incisos I a III;” Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Lei n.º 9.782/99: Não prevê qualquer participação, consulta ou audiência públicas. Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Lei n.º 9.961/2000: Não prevê qualquer participação, consulta ou audiência públicas. Agência Nacional de Águas (ANAGUA), Lei n.º 9.984/2000: Não prevê qualquer participação, consulta ou audiência públicas. Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), Lei n.º 10.233/2001: “Art. 68. As iniciativas de projetos de lei, alterações de normas administrativas e decisões da Diretoria para resolução de pendências que afetem os direitos de agentes econômicos ou de usuários de serviços de transporte serão precedidas de audiência pública.” Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Lei n.º 10.233/2001: “Art. 68. As iniciativas de projetos de lei, alterações de normas administrativas e decisões da Diretoria para resolução de pendências que afetem os direitos de agentes econômicos ou de usuários de serviços de transporte serão precedidas de audiência pública.” Agência Nacional do Cinema – (ANCINE), MP n.º 2.228-1/2001: Não prevê qualquer participação, consulta ou audiência públicas. Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), Lei n.º 11.182/2005: “Art. 27. As iniciativas ou alterações de atos normativos que afetem direitos de agentes econômicos, inclusive de trabalhadores do setor ou de usuários de serviços aéreos, serão precedidas de audiência pública convocada e dirigida pela ANAC.” previsto no art. 3.° da Lei n.º 9.427/1996, que estabelece, no inciso I a incumbência de “implementar as políticas e diretrizes do governo federal para a exploração da energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo os atos regulamentares necessários ao cumprimento das normas” do setor. O procedimento de audiência pública é previsto no art. 4.º, § 3º, que estabelece que “o processo decisório que implicar afetação de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de projeto de lei ou, quando possível, por via administrativa, será precedido de audiência pública convocada pela ANEEL.” O Decreto n.º 2.335/1997, que aprova o Regulamento da ANEEL, no art. 4º, inciso XVI, no sentido do veiculado em lei, reconhece o poder de emissão de normas da ANEEL, para fins de “regulamentação, normatização e padronização referentes aos serviços de transmissão, distribuição e comercialização”. Prevê o referido Decreto, em seu Art. 21: O processo decisório que implicar efetiva afetação de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, decorrente de ato administrativo da Agência ou de anteprojeto de lei proposto pela ANEEL, será precedido de audiência pública com os objetivos de: I - recolher subsídios e informações para o processo decisório da ANEEL; II - propiciar aos agentes e consumidores a possibilidade de encaminhamento de seus pleitos, opiniões e sugestões; III - identificar, da forma mais ampla possível, todos os aspectos relevantes à matéria objeto da audiência pública; IV - dar publicidade à ação regulatória da ANEEL. A Norma de Organização ANEEL n.º 001/98, que dispõe sobre os procedimentos para o funcionamento, a ordem dos trabalhos e os processos decisórios da Diretoria da ANEEL nas matérias relativas à regulação e à fiscalização dos serviços e instalações de energia elétrica, aprovada pela Resolução n.º 233/98, ressalta, em seu art. 5.º, a observância do disposto na Lei n.º 9.784/1999, e dos seguintes critérios: “I atuação conforme a lei, a jurisprudência administrativa em vigor e a doutrina; [...] V adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público; VI - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão”. Por exigência legal, estabelece a referida Norma, em seu art. 13: “As audiências públicas, realizadas para os processos decisórios que impliquem efetiva afetação de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico e dos consumidores [...] terão seu processo instaurado pelo Diretor-Geral e destinam-se a recolher subsídios e informações diretamente junto aos interessados.” Quanto ao procedimento desta audiência, estabelece o art. 15: “Após a sua instalação, os procedimentos a serem adotados pelos interessados durante a audiência pública ao vivo serão apresentados pelo seu Presidente,” estando este incumbido de “I - manter a ordem, podendo conceder e cassar a palavra, bem como determinar a retirada de pessoas que a perturbarem; e II decidir, conclusivamente, as questões de ordem e as reclamações sobre os procedimentos adotados na audiência.” Dispõe o art. 16: A participação e manifestação, nas audiências públicas ao vivo, dos agentes econômicos do setor elétrico, dos consumidores e demais interessados da sociedade, dependerá de inscrição prévia, sendo facultado o oferecimento de documentos ou arrazoados, devendo a apresentação de cada interessado ser feita oralmente, limitada a uma duração estabelecida pela presidência. § 1º A participação dos interessados nas audiências públicas ao vivo poderá ser feita por intermédio de organizações e associações que os representem. § 2º A Agência poderá adotar outras formas de participação dos interessados nas audiências públicas ao vivo. A Norma de Organização, em seu art. 19, prevê que “por deliberação da Diretoria, os atos administrativos da ANEEL poderão ser submetidos a consultas públicas”, sendo a manifestação dos “agentes econômicos do setor de energia elétrica, dos consumidores e demais interessados da sociedade” feita somente por escrito, “inclusive por meio eletrônico” - art. 20. As audiências públicas (art. 17, § 2.º) e as consultas públicas deverão ter suas principais contribuições consolidadas em súmula específica, divulgada após aprovação pela Diretoria. A Norma de Organização ANEEL n.º 18/2004, aprovada pela Resolução Normativa n.º 87/2004, que trata dos procedimentos gerais referentes às Reuniões Deliberativas Públicas da Diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica, estabelece, em seu art. 2.º: “A Agência deliberará em conformidade com os procedimentos estabelecidos nesta Norma, visando o interesse público e observando, entre outros, os princípios da legalidade, da impessoalidade, da motivação, da publicidade, da razoabilidade, da moralidade, da ampla defesa, do contraditório, da segurança jurídica e da eficiência.” Especifica a Norma, em seu art. 8º, como requisitos para a inscrição do processo na pauta da Reunião da Diretoria: “I – estar devidamente instruído, com todas as peças juntadas, as páginas numeradas e digitalizadas, contendo: a) Nota Técnica e parecer da Procuradoria Federal da ANEEL, quando houver. b) relatório do Diretor Relator, descrevendo os fatos relevantes do processo. II – entregar minuta de resolução com visto da Procuradoria Federal da ANEEL.” Prevê o art. 20 da Norma a existência de debate que “deve permitir a formação do convencimento dos Diretores, podendo cada Diretor formular perguntas ao Diretor Relator, e entre si, de modo a melhorar seu entendimento quanto à matéria, bem como solicitar esclarecimento sobre matérias jurídicas ao Procurador-Geral ou ao seu representante legal.” Ultrapassada este fase, “o Presidente da reunião abrirá a fase de votação, argüindo o Diretor Relator quanto à manutenção do seu voto e, em seguida, colhendo o voto dos demais Diretores na ordem inversa de antiguidade, devendo ao final prolatar o resultado”, ressaltando que “a Diretoria deliberará com, no mínimo, três votos favoráveis”, sendo a votação nominal e aberta, devendo cada Diretor “apresentar seu voto fundamentado, oralmente ou por escrito, salvo quando acompanhar o voto do Diretor Relator.” Como se percebe do excurso sobre o processo de elaboração de normas da ANEEL, é necessário recorrer, além da lei e do regulamento, a outras duas normas de organização interna para se extrair o modo de exercício do direito de participação. As regras acerca do dever de fundamentação da decisão da Diretoria da Agência, essencial à configuração de uma efetiva deliberação, são veiculadas apenas em normas internas, e não estabelecem qualquer vinculação quanto ao resultado das consultas. É a obrigatoriedade de fundamentação que garante, em última instância, que a consulta não seja utilizada como mero requisito formal de validade da resolução normativa da agência. Será, como adiante se comprovará, o atendimento de condições de validade pretensões de verdade, sinceridade e correção normativa -, demonstrados ou demonstráveis em procedimentos de argumentação, que conferirá às normas das agências reguladoras a necessária carga de legitimidade. Além dos grupos de interesse, devidamente organizados e institucionalizados, necessário viabilizar a participação do indivíduo que, no atual estágio da Modernidade, manifesta-se por si - individualismo institucionalizado. 131 A este indivíduo - cidadão -, na qualidade de atingido, deve ser assegurado o direito de 131 O tema será explorado no Capitulo II. participar do processo de elaboração de normas, incluído dentre os colaboradores do procedimento de argumentação.132 Leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao tratar da busca de consenso na Administração Pública: O que se pretende nessa vertente de transformação da administração pública é aproximar o administrado de todas as discussões e, se possível, das decisões em que seus interesses estejam mais diretamente envolvidos, multiplicando, paulatinamente, os instrumentos de participação administrativa, com a necessária prudência, mas decididamente, com vistas à legitimação das decisões que, como ensina a Ciência Política, 132 Para sanar as omissões constantes nas leis das agências e uniformizar o tratamento da matéria, apresentou o Presidente da República o Projeto de Lei n.º 3.337/2004, aplicável a todas as agências reguladoras (Lei Geral das Agências Reguladoras), que institui a obrigatoriedade da consulta pública, e faculta, por deliberação da Diretoria, a realização de audiência pública. Estabelece o referido projeto que a participação na consulta pública confere o direito de obter da Agência Reguladora resposta fundamentada sobre a contribuição apresentada à argumentação. Avança, ademais, por prever a possibilidade das agências estabelecerem, através de normas de organização, formas de participação exercidas individualmente por cidadãos: "Art. 4.º Serão objeto de consulta pública, previamente à tomada de decisão, as minutas e propostas de alterações de normas legais, atos normativos e decisões da Diretoria Colegiada e Conselhos Diretores de interesse geral dos agentes econômicos, de consumidores ou usuários dos serviços prestados. § 1.º O período de consulta pública iniciar-se-á sete dias após a publicação de despacho motivado no Diário Oficial da União e terá a duração mínima de trinta dias. § 2. As Agências Reguladoras deverão disponibilizar, em local especificado e em seu sítio na Rede Mundial de Computadores - Internet, em até sete dias antes de seu início, os estudos, dados e material técnico que foram utilizados como embasamento para as propostas colocadas em consulta pública. § 3.º As Agências Reguladoras deverão estabelecer nos regimentos próprios os critérios a serem observados nas consultas públicas. § 4.º É assegurado às associações constituídas há pelo menos três anos, nos termos da lei civil, e que incluam, entre suas finalidades, a proteção ao consumidor, à ordem econômica ou à livre concorrência, o direito de indicar à Agência Reguladora até três representantes com notória especialização na matéria objeto da consulta pública, para acompanhar o processo e dar assessoramento qualificado às entidades e seus associados, cabendo à Agência Reguladora arcar com as despesas decorrentes, observadas as disponibilidades orçamentárias, os critérios, limites e requisitos fixados em regulamento e o disposto nos art. 25, inciso II, e 26 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993. § 5.º O acompanhamento previsto no § 4.º será proporcionado ao representante nas fases do processo entre a publicação de sua abertura até elaboração de relatório final a ser submetido à decisão da Diretoria Colegiada ou Conselho Diretor, ressalvado o acesso a dados e informações que sejam classificados como sigilosos na forma do art. 23 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Art. 5.º As Agências Reguladoras, por decisão colegiada, poderão realizar audiência pública para formação de juízo e tomada de decisão sobre matéria considerada relevante. § 1.º A abertura do período de audiências públicas será precedida de despacho motivado publicado no Diário Oficial da União e outros meios de comunicação, até quinze dias antes de sua realização. § 2.º As Agências Reguladoras deverão disponibilizar, em local especificado e em seu sítio na Internet, em até quinze dias antes de seu início, os estudos, dados e material técnico que foram utilizados como embasamento para as propostas colocadas em audiência pública. § 3.º As Agências Reguladoras deverão estabelecer nos regimentos próprios os critérios a serem observados nas audiências públicas. Art. 6.º As Agências Reguladoras poderão estabelecer outros meios de participação de interessados em suas decisões, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas. Art. 7.º Os resultados da consulta e audiência pública e de outros meios de participação dos interessados nas decisões a que se referem os art. 4.º e 5.º deverão ser disponibilizados em local especificado e no sítio da Agência Reguladora na Internet, com a indicação do procedimento adotado, sendo que a participação na consulta pública confere o direito de obter da Agência Reguladora resposta fundamentada, que poderá ser comum a todas as alegações substancialmente iguais." Disponível em http://www2.camara.gov.br/proposicoes, pesquisado em 17/05/2007. serão por isso mais aceitáveis e facilmente cumpridas pelas pessoas.133 Intenta a substituição, sempre que possível, da imperatividade pelo consenso. Numa atividade de coordenação entre Estado e sociedade, a administração será multilateral e equiordenada, prestigiando a participação popular. Ensina Diogo de Figueiredo Moreira Neto: A consensualidade aparece tanto como uma técnica de coordenação de interesses e de ações, como uma nova forma de valorização do indivíduo, prestigiando, simultaneamente, a autonomia da vontade, motor da sociedade civil e do progresso, e a parceria que potencia a ação desses dois atores protagônicos: a sociedade e o Estado.134 As normas elaboradas com a participação da sociedade são cada vez mais freqüentes nas democracias contemporâneas. Ainda na lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, estas normas: Contribuem para aprimorar a governabilidade; propiciam mais freios contra o abuso; garantem a atenção a todos os interesses; proporcionam decisão mais sólida e prudente; desenvolvem a responsabilidade das pessoas; e tornam as normas mais aceitáveis e facilmente obedecidas.135 Observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho, entretanto, a dificuldade de: Compatibilizar num sistema clássico de democracia representativa, o papel da sociedade civil nesses órgãos que no modelo tradicional da democracia representativa são órgãos dependentes dos eleitos do povo. É um problema que vemos todos os dias, agora, porque realmente há uma reivindicação da sociedade civil, de participação e controle, por um caminho que não é o caminho da representação política. Mas esse é o caminho oficial, é o caminho constitucional. É também um problema.136 As agências reguladoras servem à compatibilização da representação indireta com os anseios de participação direta da sociedade, coadunando parcela de democracia representativa, através da fixação de critérios suficientes e finalísticos para a edição dos atos administrativos gerais, com a ampla participação popular, garantida por processos de consulta e de audiência públicas. 133 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 22. 134 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 26. 135 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 27. 136 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estudos, documentos, debates: reforma do Estado, papel das Agências reguladoras e fiscalizadoras, n.º 18, São Paulo: FIESP/CIESP e Instituto Roberto Simonsen, 2000, p. 35. As normas das agências reguladoras devem atender aos requisitos de legalidade, legitimidade e eficiência. A questão que se põe é como associar estas três faces na produção de suas normas. A resposta possível passa pela análise da Teoria Discursiva do Direito e da sua correlata noção de Democracia Deliberativa, sendo referências as teorias de Alexy - com enfoque na legalidade e na eficiência - e de Habermas - com enfoque na legitimidade. Capítulo II - Sociedade de Risco, Exceção e Pós-Positivismo 2.1 Considerações iniciais; 2.2 Modernidade: ordem e caos; 2.3 Segunda Modernidade, Modernidade Reflexiva e PósModernidade; 2.4 Globalização e sociedade de risco; 2.5 Direito cosmopolita; 2.6 Democracia e política na Segunda Modernidade; 2.7 Sociedade de risco e economia; 2.8 Estado de exceção e Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa. 2.1 Considerações iniciais A análise da teoria discursiva do direito, e da correlata noção de democracia deliberativa,137 vale-se de algumas construções teóricas que não podem passar despercebidas a quem se propõe a averiguar sua aplicabilidade em campos do direito ainda não contemplados por ela, a exemplo do Direito Regulatório. O reconhecimento de três premissas é essencial à verificação do cabimento da teoria discursiva do direito e da democracia deliberativa no campo da atividade administrativa de regulação econômica: a primeira delas, a “legalidade porosa ou porosidade jurídica, onde as múltiplas redes de ordens jurídicas nos forçam constantemente a transições ou transferências”,138 num ordenamento jurídico composto por regras, princípios e procedimentos;139 a segunda, a ampla carga regulatória140 da Administração Pública, em seu atual estágio, não mais limitada à simples execução de modo neutro de determinações normativas exaradas pelo Poder Executivo;141 e a 137 A íntima relação entre democracia e direito na atuação da Administração Pública, ao criar direito e o aplicar, faz com que seja necessária a construção de um modelo de democracia deliberativa - campo de discursos de fundamentação - que se acople a uma teoria discursiva do direito voltada para aplicação de regras e princípios – âmbito dos discursos de aplicação. Para tanto, esta tese proporá um diálogo entre as principais contribuições de Jürgen Habermas e Robert Alexy. O primeiro, com foco na política deliberativa, e o segundo, na aplicação do direito. Em razão desta imbricação, a teoria será referida nesta tese como teoria discursiva do direito e da democracia deliberativa, e será estudada especificamente nos capítulos III e IV desta tese. 138 SANTOS, Boaventura de Sousa. “Droit: une carte de la lecture déformée. Pour une conception postmodern du Droit”. In: Droit et Societé (número 10, 1988), p. 382 apud VIEIRA, José Ribas. Teoria do Estado: a regulação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 33. 139 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 175. A expressão “procedimento” é utilizada por Habermas e por Alexy, e utilizada na tese que se apresenta, em seu sentido amplo. “Procedimento” engloba, como adiante se verá, os pressupostos de uma argumentação, expressos em regras ou situações ideais de fala, e ainda os processos institucionalizados para a implantação aproximada de tais pressupostos. 140 Nesta ampla carga regulatória, destaca-se o vasto poder normativo reconhecido à Administração Pública, através de atos administrativos gerais e abstratos, nos campos do direito administrativo e econômico. 141 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 184. Na escolha entre fins concorrentes ou modos de alcançar as finalidades postas em leis finalísticas, “tornam-se necessários terceira, o caráter racional de condições procedimentais, apoiado na suposição de que o processo democrático propicia resultados racionais142 normativamente corretos, que possibilitam uma política deliberativa.143 A utilização do direito positivado como instrumento para efetivação de medidas de dominação, repressão e discriminação, “introduzida durante o regime do Nacional-socialismo”,144 causando a barbárie em nível global durante a II Guerra Mundial, fez ver a necessidade da reconstrução do direito, especialmente de sua relação com a lei e justiça. A princípio fez ressurgir, de forma fugaz, o Direito Natural 145 - “que não conseguir convencer por muito tempo.”146 Outro caminho é proposto, denominado de pós-positivismo, que sem retroceder à antiga polêmica entre direito natural e positivismo, resulta de um esforço interdisciplinar para traçar um novo paradigma147 do discursos envolvendo a fundamentação e a aplicação, os quais extrapolam o quadro profissional de um preenchimento pragmático de tarefas.” Ibid. 142 Como adiante se verá, a racionalidade da ética do discurso e da teoria do discurso é a racionalidade discursiva, que se exprime na forma da fala orientada ao entendimento mútuo, assegurando aos falantes um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente, e um horizonte comum de mundo considerado objetivamente, lingüisticamente estruturado. HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação. Tradução: Milton Camargo Mota. Rio de Janeiro: edições Loyola, 2004, pp. 99-126. 143 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 354. 144 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 119 145 Na pena de Gustav Radbruch com a seguinte formulação: “El conflicto entre la justicia y la seguridad jurídica puede ser solucionado en el sentido de que el derecho positivo asegurado por su sanción y el poder tienen prioridad aun cuando su contenido sea injusto e disfuncional, a menos que la contradicción entre la ley positiva y la justicia alcance una medida tan insoportable que la ley, en tanto ‘derecho injusto’, tenga que ceder ante la injusticia” RADBRUCH, Gustav. "Gesetzliches unrecht und übergesetzliches recht”, Rechtsphilosophie, 8. ed. Stuttgart, 1973, p. 345 apud ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 34. Radbruch reconhece a existência de “leis vergonhosas” a que a consciência recusa obediência. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução: Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins. Fontes, 2004, p. 125. Esclarece Robert Alexy que “antes del nacionalsocialismo, Radbruch era positivista.” ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 51. O autor abandonou sua cátedra positivista na terceira edição alemã de Filosofia do direito, cuja primeira edição data de 1914, fazendo menção a tal fato no prefácio de sua obra. Para o direito natural, não é qualificado “jurídico” o direito que contraria princípios morais e de justiça universalmente válidos. NINO, Carlos Santiago. Introdución al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1995, p. 28. 146 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 119 147 Leciona Habermas que um paradigma do direito, que contém descrições generalizadas de situações, “determina um pano de fundo de compreensão, que os especialistas em direito compartilham com todos os demais parceiros do direito.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 275. Acerca da polissemia do termo “paradigma”, esclarece Fredy González: “No es sorprendente que la mayoría de las personas a quienes se les pida que definan el término paradigma sean incapaces de ofrecer una expresión clara de su significado. El propio Thomas Kuhn, la persona más responsable de introducir ese concepto en nuestra conciencia colectiva, usó el término en no menos de 21 maneras diferentes.” Na tese que se apresenta, paradigma possui o seguinte sentido: “Un paradigma es un sistema de creencias, principios, valores y premisas que determinan la visión que una determinada comunidad científica tiene de la realidad, el tipo de preguntas y problemas que es legítimo estudiar, así como los direito, com a participação da sociologia, da filosofia política, e da filosofia da linguagem. Uma teoria pós-positivista do direito, na lição de Margarida Maria Lacombe Camargo, “busca na moral uma ordem valorativa capaz de romper os limites impostos pelo ordenamento jurídico positivo.”148 Caracteriza-se como “um movimento crítico, que encerra o predomínio da dogmática jurídica tradicional.”149 Jürgen Habermas150 assim o faz, numa vertente amparada fundamentalmente na “argumentação capaz de legitimar as posições assumidas pelo intérprete, assim como na idoneidade dos mecanismos que se fazem necessários.”151 O sociólogo e filósofo moral propõe a utilização de sua teoria ética normativa – sociológica e filosófica, pois – ao direito e à democracia, num paradigma procedimental de Estado, numa vertente póspositivista que tem como pano de fundo o mundo da vida,152 submetendo o direito ao teste da correção moral no seio de procedimentos argumentativos.153 métodos y técnicas válidos para la búsqueda de respuestas y soluciones. En consecuencia el enfoque o paradigma en que se inscribe un estudio, sustenta el método, propósito y objetivos de la investigación.” Fredy González. ¿Qué Es Un Paradigma? Análisis Teórico, Conceptual y Psicolingüístico del Término. Disponível em: http://www2.bvs.org.ve/scielo.php? pid=s1316-00872005000100002&script=sci_arttext&tlng=es, com acesso em 31/03/2007. 148 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 137. A obra em destaque traça um mapa seguro da trajetória da teoria geral do direito, com enfoque na hermenêutica e na sua relação com a argumentação, aclarando, para tanto, as diversas teorias do direito surgidas no decorrer século XX. A tese que ora se expõe se pautará, entretanto, pela teoria discursiva do direito, e tratará das outras escolas do direito apenas no que houver estreita relação ou expressa referência. 149 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 137. Dogmática, leciona Alexy, é o conjunto dos enunciados elaborados de forma sistemático-conceitual pela ciência do direito “para a solução de casos que ainda não foram objeto de decisões jurídicas”, ofertando “possíveis soluções alternativas.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 266. Importa ressaltar que não há, na teoria discursiva do direito, o abandono da dogmática, mas seu exame em relação às pretensões de validade exigidas no discurso. O tema será retomado no Capítulo III desta tese. 150 Doravante, Jürgen Habermas será referido nesta tese unicamente como Habermas. 151 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 137. Habermas atribui uma função relevante à sua ética: esclarecer as confusões geradas pelo cepticismo axiológico e pelo positivismo jurídico. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 121. 152 “Hoje em dia, a doutrina e a prática do direito tomaram consciência de que existe uma teoria social que serve como pano de fundo. E o exercício da justiça não pode mais permanecer alheio ao seu modelo social.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 129. 153 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I e II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. Na conformação da teoria discursiva do direito, aplicada a regras e a princípios, além da obra de Jürgen Habermas, são essenciais as contribuições de Ronald Dworkin, Robert Alexy e Klaus Günther. Acerca da democracia deliberativa, é relevante a contribuição de John Rawls. Suas contribuições serão expostas no capítulo III e IV, que tratam da teoria discursiva do direito e da democracia deliberativa. Com José Ribas Vieira tem-se que a teoria jurídica e o processo de institucionalização do Estado – Direito Constitucional – passam na atualidade por um debate que muitas vezes rompe com posturas mais tradicionais, havendo por parte de certos estudiosos – como Niklas Luhmann154 - um esforço em justificar o jurídico por uma própria lógica interna, por outros – como Habermas155 - certo empenho “em aprofundar a leitura do Estado/Direito com um comprometimento de base mais sociológica e crítica.”156 Neste sentido, sublinha o autor que “o desenvolvimento, a dinâmica e a crise do Estado Providência na sua função interventora e de equilíbrio social teriam ocasionado o surgimento de uma regulação jurídica possivelmente mais autônoma e menos estatal.”157 154 A teoria dos sistemas sociais – ou sociologia sistêmica - no modelo proposto por Luhmann será apresentada no capítulo IV desta tese. Por ora, segue-se a seguinte lição de Habermas, ao tratar do desencantamento do direito por obra da sociologia: “O sistema jurídico torna-se autônomo na medida em que seus componentes estão de tal maneira entrelaçados entre si ‘que normas e ações jurídicas se produzem umas às outras e que os procedimentos e a dogmática relacionam por seu turno essas relações.’ Como primeira conseqüência desse conceito, o sistema jurídico [...] é desengatado de todos os demais sistemas de ação.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 73. Noticia Ignacio Izuzquiza, em introdução a obra de Niklas Luhmann, que este passou a ser conhecido, em razão de polêmica mantida em 1972, como um opositor da teoria da ação comunicativa de Habermas. LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Tradução: Santiago López Petit et alli. Barcelona: Ediciones Paidós, 1990, p. 10. Como se demonstrará, Habermas dedica-se a afastar as idéias de Luhmann – especificamente sua teoria dos sistemas - por entender serem estas conservadoras e antidemocráticas. Observa Marcelo Neves que “o modelo luhmanniano do Direito moderno (positivo) como sistema autopoiético é, numa perspectiva empírica, suscetível de restrições. A determinação alopoiética do Direito prevalece na maior parte da sociedade moderna (mundial).” NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p. 124. Por autopoiese entende-se a capacidade de autoprodução ou autocriação do direito a partir de si mesmo; por alopoiese, a criação do direito a partir de outra fonte que não o próprio direito. 155 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I e II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 156 VIEIRA, José Ribas. Teoria do Estado: a regulação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 13. 157 VIEIRA, José Ribas. Teoria do Estado: a regulação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 32. Regulação, da forma utilizada pelo autor, no sentido amplo, significa normatização, regulamentação, emissão de normas jurídicas, que tanto podem ser realizadas pelo Estado, como por entidades “fora do âmbito estatal”, especialmente em “sociedades de capitalismo avançado.” (Ibid., p. 151) Na tese que ora se apresenta, regulação é modalidade de intervenção estatal econômica, no campo do direito regulatório – agências reguladoras de serviço público – ou econômico – entes de regulação das atividades econômicas em geral, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). A regulação econômica pode ser efetivada através de leis (ou quaisquer atos normativos primários), de atos administrativos normativos, de atos administrativos de execução ou de atos administrativos judicantes, bem como por meio de contratos administrativos. Há, na conceituação adotada, uma restrição em seu campo de atuação, porém se confere uma variedade maior de conteúdos aos atos regulatórios. Assume-se a postura, a ser justificada no decorrer da presente tese, que o positivismo jurídico,158 seja nos moldes propostos por Jeremy Bentham159 ou John Austin,160 fundadores do positivismo moderno numa concepção utilitarista, 161 seja em modelos mais recentes de positivismo, como o normativista162 de Herbert Hart163 e Hans Kelsen,164 ou o sistêmico de Niklas Luhmann,165 não atingiram a plenitude de seus objetivos: racionalizar e ordenar o mundo. No âmbito da tese que se apresenta, as teorias positivistas não fundamentam - legalmente e democraticamente - os amplos 158 Tomando de lição a doutrina de Carlos Santiago Nino, é muito difícil caracterizar a concepção positivista do direito em razão da ambigüidade da expressão “positivismo”: “Ella hace referencia a posiciones diferentes que a veces nada tienen que ver entre si.” NINO, Carlos Santiago. Introdución al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1995, p. 30. 159 Para José Juan Moreso, a obra de Jeremy Bentham constitui o ponto de partida da denominada jurisprudência analítica: “Una teoría positivista del Derecho y una teoría utilitarista de la legislación. Es decir, una teoría de aquello que el Derecho es, fundada en el rechazo del iusnaturalismo y una teoría de aquello que el Derecho debe ser, que se funda en el utilitarismo moral.” A primeira obra do autor, A fragment on governmemt é uma crítica “demoledora” das idéias jusnaturalistas. Observa Moreso que, em razão da profunda desconfiança que Bentham nutria em relação à Commom Law, “estabeleció un vasto proyecto de codificacíon de las leyes [...], elaborando así el ideal ilustrado de leyes claras, precisas, públicas para todos los ciudadanos.” MORESO, José Juan. “Jeremy Bentham”. In: DOMINGO, Rafael. (org) Juristas universales, vol. 2 – juristas modernos. Barcelona: Marcial Pons, 2004, pp. 751-753. 160 Leciona Gregório Robles que muito das idéias e do método John Austin tem precedentes em Jeremy Bentham e em Thomas Hobbes. Acerca de sua doutrina jurídica: “Austin sostiene uma concepción estatalista y positivista del Derecho. Partidário de la codificación, no lllega, sin embargo, a despreciar el Derecho judicial, como sucede en la obra de su antecesor, Jeremy Bentham.” Na filosofia, Austin destaca a de Kant como das mais importantes. ROBLES, Gregório. “John Austin”. In: DOMINGO, Rafael. (org) Juristas universales, vol. 3 – juristas del s. XIX. Barcelona: Marcial Pons, 2004, pp. 111-113. John Austin, jurista inglês nascido em 1790 e falecido em 1859 não deve ser confundido com John Langshaw Austin, filósofo inglês nascido em 1911 e falecido em 1960. 161 NINO, Carlos Santiago. Introdución al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1995, p. 31. 162 Conforme Cláudio Pereira de Souza Neto, o avanço desta corrente positivista, que trata o direito de forma dinâmica – no seio de processos judiciais -, consiste no fato de reconhecer que a decisão judicial é, simultaneamente, um ato de razão e de vontade. SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 107. A doutrina positivista anterior, calcada na Escola da Exegese, entendia que a decisão judicial era mero ato de cognição, e que a vontade estaria presente unicamente na legislação. 163 Herbert L. A. Hart expõe sua teoria em The concept of law, publicado originalmente em 1961, obra apontada como a contribuição mais original da teoria jurídica anglosaxã desde A fragment on government, de Jeremy Bentham, publicada em 1776. MORESO, José Juan. “Jeremy Bentham”. In: DOMINGO, Rafael. (org) Juristas universales, vol. 2 – juristas modernos. Barcelona: Marcial Pons, 2004, pp. 751-752. A obra de referência de Hart - The concept of law - foi traduzida para o português como: O conceito de direito. HART, Herbert. L. A. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 164 O ordenamento jurídico é concebido por Kelsen como um conjunto de normas escalonadas hierarquicamente de modo que o fundamento de validade de uma norma é sempre a conformidade com uma norma que lhe é superior. São obras de referência de Kelsen: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Batista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998; KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 165 A relação entre norma e decisão – e, portanto, entre a legislação e a jurisdição – é desta forma explicitada por Luhmann: “O cumprimento da norma é uma decisão, porque [este comportamento (de observar a norma)] é escolhido contra [a possibilidade de] um desvio em relação à própria norma, e isto só pode ser assim, pelo fato de existir uma norma geral (überhaupt). Inversamente, a norma não seria norma, caso a decisão não fosse produzida. [...] As normas tornam as decisões possíveis porque as decisões tornam as normas possíveis.” Prossegue o autor: “O direito é válido, quando ele é válido, até ter poderes de emissão de normas166 conferidos ao Poder Executivo na atualidade. Tampouco oferecem respostas à corrente busca pela eficiência administrativa.167 Karl Engisch, defensor do positivismo jurídico, adverte que a liberdade, se conferida ao julgador - aplicador -, “facilmente parecerá acaso, arbítrio ou despropósito no domínio do Direito, onde deve imperar a regra e a lei.” 168 Em atualização de sua obra, ocorrida já em 1977,169 assevera que, embora apegado ao pressuposto que a atividade de interpretação e de aplicação do direito seja essencialmente uma atividade cognitiva – e não de vontade –, irrita-se e aflige-se “tal a insegurança ao realizar a ‘subsunção’, a ambivalência com que a interpretação se debate em todas as fases, a diversidade de métodos de interpretação e a pendência sobre o escopo fundamental da mesma” ou ainda “a pluralidade de sentido dos conceitos de interpretação ‘extensiva’ e ‘restritiva’.” Conclui o autor: “A verdade é que toda ciência tem que defrontar com dificuldades.”170 sido modificado.” O autor aponta a tendência dos juristas em optar pela violação do direito “como [sendo] constitutiva do direito.” LUHMANN, Niklas. “A restituição do décimo segundo camelo: do sentido de uma análise sociológica do direito.” Tradução: Dalmir Lopes Júnior. In: ARNAUD, AndréJean; LOPES JR., Dalmir (Orgs). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 36-38. Para Habermas, na teoria positivista de Luhmann: “O direito tem que deduzir sua validade de modo positivista, a partir do direito vigente; ele lança fora todas as pretensões de legitimidade que ultrapassam este nível, como se pode ver, segundo Luhmann, no processo judicial.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 76. No mesmo sentido, a lição de Marcelo Neves: “A positivação do Direito na sociedade moderna implica o controle do código-diferença ‘lícito/ilícito’ exclusivamente pelo sistema jurídico, que adquire dessa maneira seu fechamento operativo. Nesse sentido, a positividade é conceituada como autodeterminação operacional do Direito.” O direito, na concepção de Luhmann, é um sistema normativamente fechado - só o direito que estabelece o que é lícito ou ilícito -, mas cognitivamente aberto – em seu processo de autopoiese (autocriação) deve se harmonizar como meio ambiente circundante, composto por outros subsistemas. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, pp. 119-120. 166 Leciona Klaus Günther que as normas pretendem ter validade para mais de uma situação específica em razão de sua propriedade de regra. GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Tradução: Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 77. 167 A legalidade positivista é usualmente contraposta à eficiência. 168 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8. ed. Tradução: J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 15. Prossegue o autor, em sua introdução: “Parece-me que com a metodologia tradicional, tal como se constituiu com SAVIGNY e depois dele, forma ainda uma plataforma suficientemente firme em que o jurista dos nossos dias pode confiar como base do seu labor intelectual.” Ibid., p. 18. 169 A publicação original da obra é de 1956, e sua atualização, com reformulação especialmente do capítulo VI – Direito dos juristas, conceitos jurídicos indeterminados, conceitos normativos, poder discricionário – data de 1977. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8. ed. Tradução: J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 7-9, prefácio. 170 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8. ed. Tradução: J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 205. É célebre a “metáfora do olhar” de Engisch, referida por Günther, a respeito da aplicação do direito: um “olhar que corre para lá e para cá” - fato e norma. GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Tradução: Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 397. A segurança e a justiça prometidas e propaladas não foram alcançadas a contento. O modelo puro de regras nunca conseguiu superar o problema das lacunas do direito.171 Na concepção positivista, resultado de um projeto de eliminação da ambivalência172 em busca uma racionalidade universalizável, o direito é conceituado como “un sistema normativo que presenta rasgos prácticos distintos, sin tomar en cuenta propiedades de índole valorativa”.173 Relaciona-se com o projeto de Modernidade calcado na filosofia fundadora de Immanuel Kant,174 René Descartes175 e John Locke,176 que repercutiu em toda a política fundadora do Estado Moderno: a soberania da legislação expressa no princípio da universalidade dos princípios legais e 171 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 166. Em outra obra: “As normas jurídicas surgidas do processo da legislação não solucionam todos os problemas. Tem-se evidenciado numerosas vezes que de maneira nenhuma determinam de forma completa a decisão jurídica.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 275. À falta de uma alternativa aceitável, propõe Alexy seu modelo de regras e princípios, com seus procedimentos de aplicação. 172 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 16. 173 NINO, Carlos Santiago. Introdución al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1995, p. 43. Esta definição que destaca o núcleo da cátedra positivista. Para Herbert Hart, numa definição um pouco mais ampla, mas igualmente correta, o positivismo, em sua dimensão jurídica, baseia-se em duas premissas: “a) a opinião de que não há necessária conexão entre direito e moral ou entre direito tal que ele é e tal qual ele deveria ser; b) a opinião de que um sistema legal é ‘um sistema lógico fechado’, no qual as decisões corretas legais podem ser deduzidas por meio de procedimentos lógicos a partir de regras jurídicas predeterminadas sem referência a fins sociais, políticas e standards morais.” HART, Herbert. “Positivism and the separation of law and morals.” In: Dworkin, Ronald. (org.) The philosophy of law. Oxford: Oxford University Press, 1986, p. 18 apud MAIA, Antônio Cavalcanti. “Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia.” In: Albuquerque Mello, Celso; Torres, Ricardo Lobo (Orgs.). Arquivos de direitos humanos. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar. 2000, p. 10. 174 Zygmunt Bauman refere-se basicamente à obra Crítica da razão pura, de Immanuel Kant. Depreende Zygmunt Bauman das lições de Immanuel Kant: “O tipo de conhecimento que pode de fato transcender o senso comum, constituído em meras opiniões e crenças (opinião: juízo insuficiente tanto subjetiva quanto objetivamente; crença: o tipo mais pérfido de juízo, ‘reconhecido como objetivamente insuficiente’ mas subjetivamente aceito como convincente), só pode e deve ‘ser revelado pelos filósofos’. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 30. Esta postura de Immanuel Kant não se choca com a postura cognitivista da ética, calcada no princípio da universalização, sustentada em sua metafísica dos costumes (KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 39) em que é lastreada a teoria discursiva do direito. Acerca da relação entre racionalidade e direito, importa a seguinte transcrição: “O estado de paz é o único em que o Meu e o Teu estão garantidos por leis em meio a homens que mantêm relação constante entre si, e por conseguinte vivem reunidos sob uma constituição.” A regra desta constituição deve “ser deduzida a priori pela razão do ideal de uma associação dos homens sob leis públicas em geral.” KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 206. Immanuel Kant será referido unicamente por seu sobrenome - Kant. 175 René Descartes é “considerado pai da filosofia moderna.” KAMBOUCHNER, Denis. Verbete “Descartes”. In: CANTO-SPERBER, Monique, (Org). Dicionário de ética e filosofia moral. V. I. São Leopoldo - RS: Editora UNISINOS, 2003, p. 418. As obras de referência do autor são: Discurso sobre o método e Meditações metafísicas. Disponível em www.mundodosfilosofos.com.br/descartes.htrm, com acesso em 29/08/2006. 176 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Org. Peter Lasllet. São Paulo: Martins Fontes, 2001. filosóficos177 - o sonho da razão legislativa.178 Para esta forma de raciocínio, esclarece Zygmunt Bauman, conhecer a verdade, com uma certeza que possa suportar contracorrentes vulgares, é a qualidade que separa seus poucos conhecedores, os filósofos, dos muitos, da multidão, a quem se impõe a verdade. Assim, “a filosofia não pode senão ser um poder legislativo; é a tarefa da boa filosofia, da correta metafísica, servir aos homens que pedem ‘que o conhecimento que diz respeito a todos os homens transcenda o senso comum’.”179 Na Modernidade, “a ordem fadada a instalar-se e tornar-se universal era uma ordem racional; a verdade fadada a triunfar era a verdade universal”.180 O Estado moderno é o Estado “jardineiro”181, que, objetivando a construção de uma “sociedade racionalmente planejada” estabelece mecanismos “com a finalidade de apontar a mudança da direção do projeto racional.”182 A racionalidade moderna foi perseguida através da utilização do conhecimento especializado e de objetos projetados por especialistas – a linguagem da Modernidade é a linguagem da escolha racional.183 Nesta linha, aponta Zygmunt Bauman que “a suposição de um direito monopolista de atribuir sentido e de julgar todas as formas de vida a partir do ponto de vista superior desse monopólio é a essência da ordem social moderna.”184 O positivismo jurídico, leciona Cláudio Pereira de Souza Neto, surge em manifestações embrionárias ainda nos séculos XVI e XVII, “no bojo do processo de centralização do poder que tem lugar durante a formação do estado moderno”, sendo Thomas Hobbes um de seus precursores.185 A partir do século XIX, aponta Habermas, 177 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, pp. 34-35. 178 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 29. 179 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 30. Ensina o autor que em Kant, na Crítica da razão pura, o filósofo é tratado como um doador de lei que legisla para a razão humana. 180 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 246. 181 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 29. 182 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 29. 183 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 235. Constata o autor: “O desejo do leigo de ser racional lubrifica o volante da especialização.” Ibid. p. 236. 184 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 235. 185 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 73. É de se ressaltar, que a escola histórica, influenciada pelo romantismo alemão e capitaneada por Savigny, embora positivista, não guarda “qualquer compromisso com o “o direito passou a afirmar-se, segundo a interpretação positivista, como a forma que reveste determinadas decisões e competências com a força da obrigatoriedade fática.”186 Constata Cláudio Pereira de Souza Neto que “sob o prisma do ideal de segurança jurídica, inserido no princípio da legalidade, pode-se perceber mais uma vez o vínculo estreito entre liberalismo político e positivismo jurídico”,187 sendo a obra de Thomas Hobbes identificada por Zygmunt Bauman como a “marca de nascença da ordem, quer dizer – na nossa acepção – da consciência moderna, isto é, da Modernidade.”188 2.2 Modernidade: ordem e caos Na Modernidade, a ordem passa a ser vista não como algo natural, mas como algo artificial, criado pelo homem e manifestamente político e social: a comunidade e a ordem são criações humanas. A existência é moderna na medida em que se bifurca em ordem e caos, numa luta da “determinação contra a ambigüidade, da precisão semântica contra a ambivalência, da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a confusão.”189 Mais ainda: “O outro da ordem não é outra ordem: sua única alternativa é o caos.”190 Desta forma, na Modernidade, o “outro da ordem” é pura negatividade, e é a existência do caos, uma existência não ordenada, a “natureza”, racionalismo e o universalismo”. (Ibid. p. 88) Em Savigny lê-se: “Toda a legislação é, mais ou menos, o resultado da sua história anterior. Justiniano nunca teve a intenção de elaborar um código próprio, mas de formar uma simples compilação do rico material existente. O todo histórico converteu-se, assim, novamente, em lei.” SAVIGNY, Friedrich Karl von. Metodologia jurídica. Tradução: Hebe A. M. Caletti Marenco. Campinas: Edicamp, 2001, pp. 28-29. Há, como já advertido, diversas matizes de positivismo. Como adiante se verá, Thomas Hobbes é tido por pré-liberal por SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1998. 186 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 117. A facticidade, entretanto, não trouxe a reboque a legitimidade. O tema - a tensão entre facticidade e validade - será retomado no capítulo IV desta tese. 187 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 87. 188 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 12. 189 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 14. 190 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 14. “Sem a negatividade do caos, não há positividade da ordem; sem o caos, não há ordem.” Ibid. p. 15. inadequada para a vida humana, algo que deve ser “dominado, subordinado, remodelado de forma a se reajustar às necessidades humanas.”191 A sociedade, a partir de Thomas Hobbes, é uma entidade ordenada pelo Estado soberano, que é o representante dessa sociedade. 192 O ato de socialização originária é realizado através do contrato social – instrumento do direito privado – que configura, na pena de Habermas, um “contrato de dominação que todos fecham entre si em benefício de um deles e que é entronizado como soberano.”193 Em Zygmunt Bauman tem-se a seguinte definição de Modernidade, adotada na tese que ora se apresenta: Período histórico que começou na Europa Ocidental no século XVII com uma série de transformações sócio-estruturais e intelectuais profundas e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto cultural, com o avanço do Iluminismo e depois como forma de vida socialmente consumada, com o desenvolvimento da sociedade industrial (capitalista e, mais tarde, também a comunista).194 A Modernidade, no dizer do referido autor, pode ser pensada com um tempo em que “se reflete”, em que se pensa sobre a ordem do mundo, do hábitat humano, do eu humano e da conexão entre os três: “Um objeto de pensamento, de preocupação, de uma prática ciente de si mesma, cônscia de ser uma prática consciente e preocupada com o vazio que deixaria se parasse ou se meramente relaxasse.”195 191 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, pp. 14-15. 192 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 13. 193 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 124. Como adiante se demonstrará no Estado Procedimental de Habermas – teoria do agir comunicativo aplicada à filosofia política -, a comunidade jurídica se constitui com base num entendimento obtido através do discurso, e não através de um contrato social. 194 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, pp. 299-300. Modernidade não se confunde com modernismo, “tendência intelectual (filosófica, literária, artística) que – com origem remontável a muitos eventos intelectuais específicos da era precedente – alcançou sua força integral no início deste século e que em retrospecto pode ser vista (por analogia com o Iluminismo) como um ‘projeto’ de Pós-Modernidade ou um estágio preliminar da condição pós-moderna. Com o modernismo a Modernidade voltou o olhar sobre si mesma e tentou atingir a visão clara e a autopercepção que por fim revelariam sua impossibilidade, assim pavimentando o caminho para a reavaliação pós-moderna.” (Ibid. p. 300) A aparente confusão ao se contrapor Modernidade e modernismo é solucionada com a identificação do modernismo como uma reflexão acerca da Modernidade, ou seja, com a Pós-Modernidade, como quer Bauman - Modernidade Reflexiva, ou ainda, Segunda Modernidade, como propõe Ulrich Beck. 195 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 12. Impõe-se, a Modernidade, uma tarefa inconclusiva do alcance de focos imaginários da verdade absoluta, da arte pura, da humanidade como tal, da ordem da certeza e da harmonia: Como todos os horizontes, eles não podem jamais ser alcançados. Como todos os horizontes, eles tornam possível andar com um objetivo. Como todos os horizontes, quanto mais rápido se anda, mais velozmente eles recuam. Como todos os horizontes, eles nunca permitem que o objetivo de andar ceda ou se comprometa. Como todos os horizontes, eles se movem continuamente no tempo e assim emprestam ao andar a ilusão sustentadora de um destino, propósito e direção.196 A prática moderna, ainda na lição de Zygmunt Bauman, “a substância da política moderna, do intelecto moderno, da vida moderna, é o esforço para exterminar a ambivalência: um esforço para definir com precisão – e suprimir ou eliminar tudo que não poderia ser ou não fosse precisamente definido.”197 A prática moderna não tolera o vazio, sendo a “intolerância a inclinação natural da prática moderna”.198 Mais ainda: “O horror à mistura reflete a obsessão de separar.”199 O direito, a política e a economia são ciências que repousam sobre a sociedade. Ainda que se reconheça uma crise de paradigmas das ciências humanas aplicadas, tal fato não afeta a existência da ciência em si. Esta continua a ser ciência, havendo, entretanto, uma busca por novas "teorias, métodos e padrões" que a façam reingressar na normalidade, para, a partir daí, buscar respostas para os problemas e eliminar incongruências.200 A ciência, em crise de paradigmas, deixa de ter as respostas prontas para tudo, mas continua a ser ciência. E é a sociedade que oferece e que recebe, numa constante troca, seus influxos. O ponto de partida para a compreensão destes 196 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, pp. 17-18. 197 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 15. 198 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 16. Intolerância, tolerância e fraternidade serão tratadas a seguir, ainda neste capítulo. 199 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 22. E também: “Caracterizada como foi desde o início por uma intolerância radical de quaisquer formas de vida diferentes de si mesma, a sociedade moderna só pode conceber essas diferenças como ignorância, superstição ou atraso.” Ibid. p. 235. 200 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1.ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 48-49. Prossegue o autor: “No momento em que os paradigmas são aceitos unanimemente pelos cientistas, a ciência ingressa num período de normalidade e o trabalho intelectual se torna, então, limitado à resolução dos problemas e à eliminação das incongruências em conformidade com os esquemas conceituais, teóricos e metodológicos universalmente aceitos.” ramos do conhecimento humano é a correta leitura da sociedade, especialmente em momentos de profunda transformação. Passa a existir a necessidade de a sociologia refletir sobre a sociologia, de identificar as categorias que não mais refletem a sociedade atual e de rever suas categorizações. Exemplo da utilização de pressupostos obsoletos na sociologia, com sérios reflexos no direito e na economia, é a unidade de referência “renda familiar”. A família201 de hoje não é mais a do século XIX, não se podendo identificar a noção do sintagma “renda familiar” sem apreender a situação atual do qualificativo “familiar”. Os divórcios, os sucessivos matrimônios, a mobilidade permanente, os segundo domicílios, por exemplo, acabam por alterar substancialmente aquilo “que outrora se pensava analiticamente, ou seja, a família como unidade espacial, social e econômica. [...] A análise das classes supõe a família normal, mas esta deixou de existir.” A este raciocínio crítico da sociologia Ulrich Beck denomina de sociologia reflexiva, quebrando a obviedade dos primórdios.202 Com Ulrich Beck, pode-se identificar uma categoria zumbi quando a antiga conceituação está presa a três princípios questionáveis: a) vínculo territorial da sociologia, com conceitos radicados no “contêiner” do Estado nacional; b) suposição de uma coletividade prefixada, sem a consideração de novas formas de individualização – classe, família, nação; c) princípio da evolução, que enxerga a sociedade ocidental como resultante de um progresso funcional.203 Na transição da Pré-Modernidade para a Modernidade, há a passagem do “impreciso para o preciso, da heterogeneidade para a homogeneidade, do desordenado ao ordenado, do ambivalente ao certo, do desconhecido ao conhecido, do natural ao artificial.”204 Na atual passagem, há uma reflexividade acerca das mudanças propostas pela Modernidade; uma desincorporação das formas sociais industriais da (Primeira) 201 No mínimo interessante é a resposta de Jean-Claude Kaufmann, trazida por Ulrich Beck, à pergunta “o que é um casal?”: “Casal é quando duas pessoas compram uma lavadora ao invés de duas.” BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 16. 202 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 14-15. 203 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 17-18. 204 BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 53. Modernidade, e a incorporação de uma outra forma social, da (Segunda) Modernidade.205 A Primeira Modernidade, com suas categorizações sociais, apresenta basicamente as seguintes características: a) sociedades do Estado nacional; b) sociedades grupais coletivas; c) distinção entre sociedade e natureza, como fonte inesgotável de recursos; d) e sociedades do trabalho ou do pleno emprego, fruto da dinâmica industrial – jovem quando está se preparando para o trabalho produtivo, adulto quando o exerce, e idoso quando se aposenta. Como bem observa José Eduardo Faria, está-se a viver “momentos de revolução paradigmática”206 com a eclosão de uma série de questionamentos 207 que revelam ser insustentável a noção de fronteira do conhecimento.208 Desta forma, “cada vez mais o tipo de reflexão jurídica até agora prevalecente na formação profissional dos operadores do direito se mostra incapaz de interpretar, em seus próprios termos, fatos inéditos; e de reescrever, em sua própria linguagem, teorias de natureza ‘crítica’.” 209 Este momento de quebra de paradigmas põe em dificuldade a dogmática jurídica,210 que 205 BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 12. 206 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1.ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 47. Sobre a relação entre ciência e estabilização de paradigma: “Para Kuhn, uma disciplina somente se converte em ciência quando uma comunidade de especialistas firma uma opinião comum quanto ao seu paradigma, isto é, ao conjunto de problemas relevantes e de padrões estandardizados de abordagem.” Nesta fixação dos paradigmas, “o cientista adquire conjuntamente teoria, métodos e padrões, formando ‘uma mistura inextricável’.” Ibid. pp. 48-49. 207 Como questionamentos, oriundos do fenômeno da globalização econômica, são apontados pelo autor: “Uniformidade e diferenciação, integração e fragmentação, continuidade e ruptura, codificação e deslegalização, controles direitos e controles indiretos, formalismo e informalismo, disciplina e punição, acumulação de riquezas e regulação privada, ordem jurídico-positiva estatal e ordens normativas autônomas infranacionais e supranacionais, etc.” FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 46. 208 Para Agamben: “A lógica que guia minha pesquisa não é a lógica da substância e do território separado com fronteiras bem definidas. Ela está mais próxima do que, na ciência física, chamamos de um ‘campo’, onde todo ponto pode a um certo momento carregar-se de uma tensão elétrica e de uma intensidade determinada. Filosofia, política, filologia, literatura, teologia, direito não representam disciplinas e territórios separados, mas são apenas nomes que damos a esta intensidade.” SAFATLE, Vladimir. A política da profanação: entrevista a Giorgio Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, com acesso em 04/09/2006. 209 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 46. 210 “A dogmática jurídica concebe o direito – enquanto força legal destinada a impedir ou neutralizar o uso privado da violência – como uma técnica de produção de mandatos mediante procedimentos disciplinados pelo próprio direito. Nesta perspectiva, é o direito que regula sua própria criação, é o direito que gera e molda o próprio direito, enfim, é o direito que se autoproduz.” FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 45. Como adiante se demonstrará, a dogmática jurídica não é abandonada pela teoria discursiva do direito, mas compatibilizada à pretensão de validade exigida nos discursos jurídicos, especialmente em casos duvidosos. Esclarece Robert Alexy que a dogmática é racional na “medida em que é utilizada como passa a ser questionada com base em propostas de “um passado em que se julgava inteiramente superado”, através da retomada de controvérsias e posições vencidas; ou com base em “questões inéditas que somente podem ser enfrentadas por meio de análises a um só tempo sociológicas, políticas e econômicas – tão interdisciplinares que correm o sério risco de acabar perdendo a própria especificidade do direito.”211 Adverte José Ribas Vieira, que “foi a crise do Estado da Providência nos países capitalistas avançados [que] ensejou uma retomada no campo da Ciência Política da importância do Estado”, centrado “no debate da crise da Modernidade e seus derivativos das rupturas consagradas da denominada racionalização política (cidadania, partidos políticos, etc.).”212 Nesta linha de raciocínio, com lastro em Thomas Kuhn,213 leciona José Eduardo Faria que as ciências não podem ser pensadas “sem o exame do universo ou ambiente social, econômico, político e cultural em que são produzidas.”214 Mais ainda: “A configuração do contexto sociológico em que o conhecimento científico é gerado reflete necessariamente nele, independentemente do estatuto epistemológico do conhecimento científico produzido em outros contextos.”215 A obtenção de respostas a algumas perguntas aparentemente simples nunca foi tão difícil quanto na atualidade: para a solução de uma questão prática, o que deve ser feito? Como deve ser feito? É moralmente correta tal solução? Quem são os instrumento para a determinação do Direito no campo da razão prática e da moral.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 263. 211 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 47. Aponta Cláudio Pereira Souza Neto que antes do positivismo jurídico, “o pensamento jurídico e o pensamento político sempre eram desenvolvidos conjuntamente. É o que se pode perceber na obra, por exemplo, de autores como Hobbes, Montesquieu, Rousseau, entre outros. Com o advento do positivismo, em especial da Escola da Exegese, separaram-se os campos da investigação do jurista e do filósofo político. As obras jurídicas passaram a ser, na sua maioria, comentários dos textos legais. Essa tendência, no entanto, parece estar se modificando. Com efeito, pensadores como J. Habermas e R. Dworkin têm pautado sua construção teórica pela refundição da reflexão jurídica com a reflexão política.” SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 82. Pode-se afirmar, como adiante se verá, que a teoria discursiva do direito, na linha de Habermas, é uma teoria jurídica da política e política do direito. Direito e democracia se autoimplicam, sempre tomando como pando de fundo a sociedade de risco globalizada. 212 VIEIRA, José Ribas. Teoria do Estado: a regulação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 13. 213 KUHN, Thomas. The structure of scientific revolutions. Chicago: Chicago University Press, 1970 apud FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 47. Observa José Eduardo faria que a análise de Kuhn e sua noção de paradigma se concentram no campo das ciências físicas e biológicas. 214 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 47. 215 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 47. atingidos? A sociologia mais recente216 vislumbra nesta ambivalência, na pena de Zygmunt Bauman, a “possibilidade de se conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria”, sendo esta uma “desordem específica da linguagem”. Identifica, como principal sintoma desta desordem, “o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas.”217 Este descompasso foi identificado particularmente pela sociologia, ciência que tem como missão a análise da sociedade, composta por diversos segmentos da população, tais como sindicatos, partidos políticos, ricos e pobres,218 e que viu questionadas suas categorias calcadas na Modernidade, assistindo ruir seus quadros de referência construídos no receptáculo dos estados nacionais das sociedades modernas. Há, como bem identifica Ulrich Beck, uma nítida relação entre o Estado nacional e a sociologia, servindo esta como ciência auxiliar aos responsáveis pelas decisões políticas 216 Jürgen Habermas, Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash são alguns dos sociólogos da atualidade a quem se atribui a construção de uma democracia cosmopolita, que rompe com o universalismo do Iluminismo – verdades universais e antropocêntricas - e constrói uma nova etapa da sociedade, um “segundo iluminismo”, como bem identificam Johannes Willms e Ulrich Beck, para quem “o segundo [Iluminismo] precisa ser de tal modo que as pessoas tenham clareza sobre as diversas grandes narrations das diversas tradições culturais, relacionado-as entre si em sua diferença e aprendendo a viver na diversidade e também permitindo que algo surja disso. Nesse sentido, acredito que um segundo Iluminismo é deveras possível e necessário.” BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. Tradução: Luiz Antônio de Oliveira Araújo. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 204. Aponta Ignácio Izuzquiza, em introdução a obra de Niklas Luhmann que, por um caminho diverso, o da teoria dos sistemas, ele deseja romper “los postulados del ‘viejo pensamiento europeo’” e estabelecer uma “ilustración de la Ilustración”. LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Tradução: Santiago López Petit et alli. Barcelona: Ediciones Paidós, 1990, p. 31. 217 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 09. As linhas mestras do presente capítulo são pautadas em Ulrich Beck, especificamente em duas obras: Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms e “A reinvenção da política”, inserida na obra coletiva de Anthony Giddens, e Scott Lash: Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna., e BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999; e, Em busca da política, Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. De relevância, também as obras de autores que seguem a mesma linha de pesquisa dos autores referido, Anthony Giddens, e Scott Lash. No Brasil, a obra de Ricardo Lobo Torres, no que se refere à tributação na sociedade de risco – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005 - e Eduardo Bittar - BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. Ao se tratar da globalização do direito, paradigmáticas foram as seguintes obras: KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993; RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, e DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Tradução: Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2003. De grande valia, a obra de FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed., 4.tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. 218 No dizer de Ulrich Beck, a sociedade “é um grande animal gelatinoso, nebuloso, presente em toda parte e responsável por muita coisa.” BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. Tradução: Luiz Antônio de Oliveira Araújo. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 08 – e jurídicas, acrescente-se. A sociologia tradicionalmente se serviu do nacionalismo metodológico em que “as sociedades se organizam em termos de Estados nacionais”.219 Os sociólogos, em termos semelhantes aos antropólogos com seu antropocentrismo europeu, tradicionalmente analisaram as sociedades de que fizeram parte para depois tirarem conclusões que entendiam aplicáveis a todas as outras sociedades – assim procederam Karl Marx, Emile Durkheim e Max Weber.220 O imperialismo conceitual ocidental gerou uma falsa universalidade de suas afirmações,221 não se podendo negar, entretanto, o mérito dos clássicos e os ganhos à ciência da sociologia. Leciona Roberto Kant de Lima que a antropologia social traçada no século XIX estabelecia uma linha de superioridade entre a Europa, mais precisamente a Inglaterra vitoriana, e o resto do mundo pesquisado. Tal fase, denominada de “evolucionismo unilinear do século XIX” ou de “falso evolucionismo”, pecava por vincular o desenvolvimento tecnológico às demais esferas das relações sociais. Traçava, ainda, esquema único da evolução social, dividindo a humanidade em “civilização superior” e “selvageria inferior”. No aspecto tecnológico, confundia sofisticação com eficiência. O eficaz, por vezes não é sofisticado, mas produz os efeitos de que determinada sociedade necessita.222 O falso evolucionismo operava duas reduções arbitrárias; a primeira espacial, colocando a Europa no espaço dos outros continentes; a segunda temporal, situando pelo método comparativo sociedades atuais com o passado europeu.223 Em ambas as perspectivas restou clara a dificuldade “em se tentar estabelecer linhas gerais que dêem conta da evolução supostamente uniforme de todas 219 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 09. 220 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 09-10. 221 Ulrich Beck denomina tal conduta de universalismo, sendo conceituada como a transposição de determinada sociedade para toda a sociedade, ou, todas as sociedades nacionais. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 11. 222 Niklas Luhmann, em sua sociologia sistêmica, adere a esta postura de relacionar tecnologia com evolução social. 223 KANT DE LIMA, Roberto. “Por uma antropologia do direito no Brasil”. In: FALCÃO, Joaquim de Arruda. Pesquisa científica e direito. Recife: Massangana, 1983, pp. 92-93. No estudo etnográfico do Direito propõe o antropólogo a reflexão acerca de três eixos: a questão do saber jurídico, como se constitui e se reproduz; a questão da aplicação desse saber através das instituições e práticas especializadas; a questão entre este saber jurídico e sua aplicação e os outros saberes jurídicos eventualmente existentes na sociedade e por ele dominados. (Ibid. p. 99) as sociedades, ou da ‘Humanidade’, como foi possível estabelecer no campo da biologia.”224 Há uma mudança no paradigma sociológico, sendo o universalismo225 substituído pela idéia de globalidade. Surge este novo paradigma quando sociólogos buscam em suas sociedades - dos Estados nacionais - conceitos universais e confrontam interpretações contraditórias de outras sociedades. Esta nova visão da sociologia, denominada de sociologia global ou cosmopolita, com novo espaço de imaginação e pesquisa dialógica, afastando-se do recipiente nacional e da idéia etnocêntrica e hegemônica da primazia do Atlântico Norte, repercute necessariamente nas ciências que dela se servem, que trabalham numa interface com esta, a exemplo do direito, da política e da economia.226 A diminuição da importância do Estado nacional na condução da vida da sociedade gera a “tensão, a insegurança, o ódio e a ruptura detectáveis não só na sociedade como também na sociologia.” A comparatística transnacional passa a ser fundamental à sociologia, recolocando “todas as grandes questões supostamente já respondidas” e atualizando os pressupostos conceituais abalados.227 2.3 Segunda Modernidade, Modernidade Reflexiva e Pós-Modernidade A globalização e o processo de radicalização da Modernidade são processos de abandono, desincorporação e problematização da tradição.228 Para Ulrich Beck “a 224 KANT DE LIMA, Roberto. “Por uma antropologia do direito no Brasil”. In: FALCÃO, Joaquim de Arruda. Pesquisa científica e direito. Recife: Massangana, 1983, pp. 93-94. A psicologia, como adiante se verá, traz interessante contribuição com teoria da evolução psicológica do ser humano, tanto por obra de Piaget, com sua psicologia genética – epistemologia genética - quanto por Lawrence Kohlberg, com sua teoria dos estágios morais - teoria do desenvolvimento moral. 225 Universalismo é conceituado por Nicola Abbagnano do seguinte modo: “Qualquer doutrina contrária ao individualismo que afirme a subordinação do indivíduo a uma comunidade qualquer (Estado, povo, nação, humanidade, etc.).” Verbete “Universalismo”, In: ABBAGNANO, Nicola. Tradução: Alfredo Bossi. Dicionário de filosofia. 4. ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 984. 226 Para Ulrich Beck, “essa mudança de visão cosmopolita tem conseqüências tão revolucionárias nas ciências sociais quanto a Teoria da Relatividade de Einstein teve na física newtoniana.” BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 12. 227 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 13. 228 GIDDENS, Anthony. “A vida em uma sociedade pós-tradicional.” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 74. oposição entre a velha e a nova Modernidade é um choque que abarca e eletrifica todos os campos de ação na sociedade moderna.”229 A sociologia da sociedade moderna cunhou categorias que atendiam à sua realidade: a da sociedade produtiva capitalista de meados do século XIX.230 Na atualidade, algumas dessas categorias necessitam ser revisitadas, sob pena de se tornarem, no dizer de Ulrich Beck, “categorias mortas-vivas que nos assombram a mente e determinam a nossa visão de realidades as quais desaparecem cada vez mais.” O referido autor as denomina de categorias zumbis.231 Estas categorias ambivalentes, como dito linhas acima, incapacitam o sociólogo e a sociedade, com seus membros, de lerem corretamente a situação, fato que gera insegurança. No campo do direito e da produção legislativa, com Zygmunt Bauman, temse que o “sonho da razão legislativa”, em que a “sociedade racionalmente planejada era a causa finalis declarada do Estado moderno”, não se realizou.232 O positivismo jurídico, com regras estáveis e seguras, com previsibilidade e racionalidade quase que imutáveis, é uma dessas categorias zumbis.233 Ensina José Ribas Vieira que já em 1913, “o sociólogo Eugen Ehrlich percebera, principalmente com base nas sentenças judiciais, a existência de um ‘Direito vivo’ que supera as estreitas margens dogmáticas previstas pelo legislador”, reconhecendo a existência de outras ordens da vida estatal, social, espiritual e econômica de importância equivalente ao direito, e possivelmente ainda mais 229 BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 59. 230 Esclarece Johannes Willms que antes da adoção de tal modelo capitalista, da Modernidade (ou Primeira Modernidade) “não havia liberdade de ofício, e sim organizações econômicas em corporações; o contêiner era a cidade. Cada cidade isolada com sua ordem profissional corporativa particular etc.; não havia direito estatal, territorial, de cidadania, mas apenas direitos no âmbito da cidade. Só se tornava cidadão quem pertencesse a uma corporação. Esse era o requisito mínimo.” BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 37. 231 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 14. 232 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 29. 233 O princípio da legalidade “é um dos pilares do Estado de Direito em quaisquer de suas modalidades. O primado da lei, observa René David, ‘obteve sucesso decisivo no século XIX, quando a quase-totalidade dos Estados membros da família romanogermânica publicou os seus códigos e se muniu de constituições escritas.’ ” CARDOSO, Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 26. eficientes.234 A prática da Administração Pública, por exemplo, atingiu tamanho grau de complexidade e de incerteza, que não pode mais ser captada plenamente pelo pensamento e organização do clássico programa condicional do direito positivo, que estipula fatos jurídicos e determina as conseqüências que deles advirão.235 Há duas ou três décadas, paulatinamente, a categorizações sociais da Primeira Modernidade foram esmaecendo, ocorrendo uma radicalização dos processos de modernização. A transição da Primeira para a Segunda Modernidade ocorre sem revolução, mas de forma apolítica, alheia ao Parlamento, ao governo e ao público, sendo somente aos poucos perceptível nos conflitos das opiniões e interpretações.236 Tornando mais claro o dinamismo enfrentado pela sociedade atual, e a superação de algumas antigas categorizações da sociedade, esclarece Ulrich Beck, em obra coletiva: Assim, em virtude de seu inerente dinamismo, a sociedade moderna está acabando com suas formações de classe, camadas sociais, ocupação, papéis dos sexos, família nuclear, agricultura, setores empresariais e, é claro, também com os pré-requisitos e as formas contínuas do progresso técnico-econômico. Este novo estágio, em que o progresso pode se transformar em autodestruição, em que um tipo de modernização destrói outro e o modifica, é o que eu chamo de etapa da modernização reflexiva.237 A modernização reflexiva, no campo político, “implica inseguranças de toda uma sociedade, difíceis de delimitar, com lutas entre facções em todos os níveis, igualmente difíceis de delimitar.”238 São justamente as inseguranças desta nova Modernidade que implicam o reconhecimento da sociedade de risco: Em vários grupos culturais e continentes isso é associado ao nacionalismo, à pobreza em massa, ao fundamentalismo 234 VIEIRA, José Ribas. Teoria do Estado: a regulação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 32. 235 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 174. 236 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 22; BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 13. 237 BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 13. 238 BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 14. religioso de várias facções e credos, a crises econômicas, crises ecológicas, possivelmente guerras e revoluções, sem esquecer os estados de emergência produzidos por grandes catástrofes – ou seja, no sentido mais estrito, o dinamismo da sociedade de risco.239 Na mesma linha, em outra obra, assevera Ulrich Beck: Nosso mundo é a sociedade de risco. É preciso compreendê-lo como uma realidade que atingiu um nível de ameaça muitíssimo superior à nossa imaginação. Esse mundo civilizatoriamente construído praticamente aboliu a indecisão. E é permanente a necessidade de tomar decisões que tocam a substância da sobrevivência.240 Como adiante se verá, com o reconhecimento do risco e da ambivalência, abre-se a possibilidade tanto para um direito e uma democracia mais que tolerantes, num modelo inclusivista e fraterno, deliberativo e transparente, produtor de um direito pós-positivista moralmente correto,241 como forma de reduzir o risco ou mesmo de conferir maior racionalidade de decidir, para com este (risco) poder conviver; como também se abre espaço à exceção, ao reconhecimento de que, sem se possuir uma resposta adequada do direito positivo e da tecnologia – e das dogmáticas teorias gerais do direito – ao risco, permitido estaria o arbítrio e a tomada de decisões excepcionais – entenda-se por excepcionais, decisões não submetidas ao direito. Mais ainda, o reconhecimento de um estado de exceção permanente,242 em que a democracia e a legalidade estariam postergadas. Há um sentimento generalizado de que se está vivenciando um momento de transição, com o abandono, ou ao menos com a radicalização da Modernidade e de sua 239 BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 14. 240 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 206. Sobrevivência inclusive econômica. Nada mais ambivalente que a seguinte postura de John Rawls: “Mencionarei brevemente a questão de controlar armas nucleares e outras armas de destruição em massa. Entre povos liberais e decentes razoavelmente justos, o controle de tais armas seria relativamente fácil, já que poderiam ser eficazmente banidas. Esses povos não têm nenhuma razão para guerrear entre si. Contudo, enquanto existirem Estados fora da lei – como supomos -, algumas armas nucleares precisarão ser conservadas para manter esses Estados acuados e assegurar que não obtenham nem usem essas armas contra povos liberais ou decentes.” RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 11. 241 A correção normativa é central na ética do discurso, em que se baseia a teoria discursiva do direito, analisada em capítulo específico desta obra. 242 A expressão “Estado de exceção permanente” é proposta por Gilberto Bercovici. Considera o autor que o Estado de exceção econômico da atualidade é uma condição desfavorável à promoção do desenvolvimento e da inclusão social no Brasil. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 180. O tema será retomado ainda neste capítulo. sociedade capitalista industrial. Eduardo Bittar observa que “há um consenso dos autores quanto ao fato de que mudanças estão em curso, mas não há um consenso nem no plano conceitual (que nome atribuir a esta realidade) e nem no plano hermenêutico (como interpretar essa realidade).”243 Há um estado histórico transitivo, “marcado pelo desaparecimento das grandes marcas culturais distintivas da Modernidade.”244 A Segunda Modernidade (ou Modernização Reflexiva, ou ainda PósModernidade) impõe uma “autocrítica radical da teoria e da sociologia ocidentais da modernização.”245 Introduz uma discussão cosmopolita acerca das metas, precondições, contextos e rumos das modernidades alternativas. Em primeiro lugar,246 afasta-se a idéia de Estado nacional como contêiner de determinada sociedade. A globalização impõe tal assertiva.247 Em segundo lugar, ocorre um processo de individualização da sociedade, esfacelando a classificação de determinadas categorias coletivas – individualismo institucionalizado.248 Em terceiro lugar, a oposição entre natureza e sociedade torna-se questionável, em razão da intensificação da tecnologia e da crise ecológica. Os riscos e perigos da relação natureza/industrialização “são negociados no processo de socialização e se desdobram em uma política autônoma.”249 Em quarto lugar, esvazia-se o conceito de sociedade de trabalho, sendo necessária uma nova organização da sociedade através de nova fundamentação, na qual o trabalho produtivo já não seja condição à participação na sociedade.250 243 BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 138. Aponta o autor o uso de superlativos, prefixos e sufixos à Modernidade – Hiper, Reflexiva, Super, Fluida, Liquida – e adota a expressão Pós-Modernidade. 244 BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 138. 245 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 23. 246 Para os objetivos deste trabalho, especial há interesse na definição e contextualização da primeira e da segunda mudança operada nesta Segunda Modernidade: globalização e individualismo institucionalizado, com reflexos diretos na política e na subpolitização da política, a ser enfrentada mais adiante em tópico próprio. 247 Distingue Ulrich Beck globalização de “globalismo”. Define “globalismo” como ditadura neoliberal do mercado mundial que suprime, especialmente no Terceiro Mundo, o auto-desenvolvimento democrático. A globalização é realçada em seus aspectos políticos, sociais e culturais. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 23. 248 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 23. Neste processo de individualização, há uma “necessidade de se desenvolver uma biografia própria, de se desapegar das predeterminações coletivas.” (Ibid., p. 68). 249 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 24. Esta negociação, entre a industrialização e riscos globais da natureza, é denominada por Ulrich Beck de “sociedade de risco ou sociedade mundial de risco”. 250 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 24. Ulrich Beck exemplifica as seguintes instituições zumbis, “que estão clinicamente mortas durante um longo tempo mas não são capazes de morrer”: [...] partidos de classe sem classes, exércitos sem inimigos ou um aparelho governamental que, em muitos casos, reivindica começar e manter em andamento as coisas que, independentemente dele, estão acontecendo.251 O empirismo cego de categorias zumbis, calcadas no horizonte experimental do século XIX, na Primeira Modernidade, dá lugar, a uma nova experiência e dinâmica, a Segunda Modernidade, Modernidade Reflexiva ou Pós-Modernidade.252 Leciona Ulrich Beck que foram os filósofos franceses da década de 1980 que decretaram o fim da Modernidade, rompendo com o Iluminismo, o Marxismo, o Racionalismo e as verdades científicas. Divorciaram-se da ciência e paralisaram a autorenovação e a criação de novos quadros de referência. Em crítica à expressão PósModernidade e aos pós-modernistas, aponta que: A palavrinha pós é a bengala de cego dos intelectuais. Estes só perguntam do que não se trata e não dizem do que se trata. [...] Trata-se de um meio diagnóstico que simplesmente não podemos empregar os antigos conceitos. Por trás disso se oculta a preguiça e, de certo modo, também a desonestidade e a hipocrisia intelectuais, pois a tarefa dos intelectuais é desenvolver conceitos com a ajuda dos quais seja possível redefinir e reorganizar a sociedade e a política.253 Em contraposição à definição desprovida de qualquer carga valorativa, propõe a terminologia “Segunda Modernidade”, não sendo esta uma nova periodização, um rompimento de tudo o que a Primeira Modernidade produziu. Pressupõe, ao invés, uma comunhão de modernidades, que: Deve ser determinada, apreendida, desenvolvida, investigada e conquistada transnacionalmente, no confronto das experiências e 251 BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 54. 252 A expressão Modernidade Reflexiva foi adotada por Ulrich Beck, e conjuntamente por Anthony Giddens e Scott Lash, na obra coletiva Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna, de 1995 (1.ª edição inglesa). Nesta obra, refere-se a Anthony Giddens como o primeiro a se utilizar do conceito de Modernidade Reflexiva, ainda em 1990. Em Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms, em 2000 (1ª edição alemã), Ulrich Beck adota em substituição à terminologia “Modernidade Reflexiva”, o conceito de “Segunda Modernidade”, cunhado por ele. Nesta obra, na p. 23, esses conceitos são postos como sinônimos, e assim serão tratados no corpo desta tese. Do mesmo modo, a expressão Pós-Modernidade, adotada por Zygmunt Bauman e conceituada de modo semelhante aos dois conceitos tratados anteriormente. 253 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 20. projetos de modernização da periferia e do centro, asiáticas, africanas, chinesas, sul-americanas e do Atlântico Norte. Significa, pois, estabelecer uma diferença entre continuidade e ruptura.254 Em relação a determinados valores, há continuidade, como na defesa dos direitos humanos e na democracia; relativamente a outros, ocorre uma ruptura,255 como por exemplo, o abandono do nacionalismo metodológico e do etnocentrismo. A Segunda Modernidade identifica as instituições zumbis e as conseqüentes categorias sociológicas zumbis, e busca “dar novas bases conceituais, empíricas e organizatórias à sociologia como ciência da realidade transnacional de modo geral. Essa é a meta central ligada a tal diferenciação”256 Zygmunt Bauman dá um tratamento semelhante ao tema, adotando, entretanto a expressão “Pós-Modernidade”. O autor não cai no pecado da preguiça, condenado por Ulrich Beck, e apresenta uma analítica conceituação do que entende por Pós-Modernidade.257 Primeiramente, esclarece que o que há de realmente novo da atual situação “é o nosso ponto de observação.” Ainda bem próximos da Era Moderna, podese, e se está disposto e preparado a “ter uma visão fria e crítica da Modernidade na sua totalidade, avaliar seu desempenho, julgar a solidez e congruência dessa construção.”258 O que caracteriza a Pós-Modernidade, é o “fato de ser ‘pós’, posterior, e esmagada pela consciência dessa condição.”259 Em termos claros, o que denomina Pós-Modernidade é uma Modernidade Reflexiva, uma continuação crítica da Modernidade, em moldes semelhantes ao adotado por Ulrich Beck, Scott Lash e Anthony Giddens, já referidos. Torna-se clara a comunhão do pensamento na seguinte passagem, deixando-se a questão terminológica em segundo plano: 254 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 20. 255 Uma importante ruptura com a Primeira Modernidade é a forma com que a natureza é vista. Na Primeira Modernidade, com sua ciência, “há uma esmagadora ambição de conquistar a Natureza e subordiná-la às necessidades humanas.[...] o conceito de Natureza, na sua acepção moderna [Primeira Modernidade] opõe-se ao conceito de humanidade pelo qual foi gerado. Representa o outro da humanidade.” BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 48. 256 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 21. 257 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 288. 258 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 288. 259 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 288. A pós-modernidade não significa necessariamente o fim, o descrédito ou a rejeição da modernidade. Não é mais (nem menos) que a mente moderna a examinar-se longa, atenta e sobriamente, a examinar sua condição e suas obras passadas, sem gostar muito do que vê e percebendo a necessidade de mudança. A pós-modernidade é modernidade que atinge a maioridade, a modernidade olhando-se à distância e não de dentro, fazendo um inventário completo de ganhos e perdas, psicanalisando-se, descobrindo as intenções que jamais explicitara, descobrindo que elas são mutuamente incongruentes e se cancelam. A pós-modernidade é a modernidade chegando a um acordo com a sua própria impossibilidade, uma modernidade que se automonitora, que conscientemente descarta o que outrora fazia inconscientemente.260 Numa contextualização com a trajetória e conformação de modelos de Estado, Ricardo Lobo Torres identifica o Estado Subsidiário 261 com o surgimento da sociedade de risco: “O Estado Subsidiário é o Estado da Sociedade de Risco, assim como o Estado do Bem-Estar social foi o Estado da Sociedade Industrial, 262 que entrou em crise pela voracidade na extração de recursos financeiros para financiar as políticas desenvolvimentistas e o pleno emprego.”263 Ressaltando que a sociedade de risco se caracteriza pela ambivalência, insegurança e redesenho das relações entre Estado e sociedade, assevera o autor que “a transparência é o melhor princípio para a superação das ambivalências da sociedade de risco”.264 E, pode-se complementar, a transparência é atingida com o domínio do funcionamento das causas e dos efeitos dos riscos sociais. Para Habermas, que se serve do conceito de “Estado prevencionista”, ou “securitário”,265 nas sociedades fragmentadas do mundo, o bem-estar e a segurança 260 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 288. 261 O surgimento da Segunda Modernidade, com sua ambivalência e o reconhecimento dos riscos, coincide com a queda do Estado do Bem-Estar social e a adoção da política econômica neoliberal, com a conformação do denominado Estado Regulador ou Subsidiário, ou Prevencionista. Importantes alterações ocorreram quanto ao papel do Estado. 262 No mesmo sentido: BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 49. 263 LOBO TORRES, Ricardo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 246. 264 LOBO TORRES, Ricardo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 246. A democracia deliberativa estará a serviço da transparência ao se assegurar o direito de participação mais amplo possível em escolhas do Estado, permitindo ao cidadão manifestar-se em institucionalidades públicas com procedimentos destinadas especificamente para tanto. 265 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 178-179. social de parcela majoritária da “população vêm acompanhadas da segmentação de uma subclasse impotente e devastada, prejudicada em quase todos os aspectos, [que] constitui muitos indícios que há desenvolvimentos regressivos.”266 Com Amartya Sen tem-se – em sua teoria do desenvolvimento como expansão de liberdades substantivas que o desenvolvimento não pode ser concretizado acaso não restem completamente removidas as barreiras que mais contribuem para a sua não materialização, como a pobreza e a destituição social sistemática.267 Zygmunt Bauman retrata bem o que se entende por ambivalência e a conseqüência de seu reconhecimento: A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas.268 Ressalta o referido autor que o impulso para a ordem da Modernidade tirou sua energia do “horror à ambivalência. Porém, foi mais ambivalência o produto final dos impulsos modernos,” reconhecendo que “a maioria dos problemas que hoje enfrentam os administradores das ordens locais é produto da atividade para a resolução de problemas”, com a geração de novas áreas de caos geradas pela atividade ordenadora: “O progresso consiste antes e sobretudo na obsolescência das soluções de ontem.” E os problemas tornam-se maiores.269 266 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 82. Este diagnóstico coincide com o dos campos de concentração, de Zygmunt Bauman, tratado neste capítulo. 267 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. 1. ed. 4ª rei. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1999, p. 18. 268 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 09. 269 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, pp. 22-23. Neste ponto é essencial a transcrição da seguinte passagem: “Houve a tarefa de aumentar as colheitas agrícolas – cumprida graças aos nitratos. E houve a tarefa de estabilizar o fornecimento de água – cumprida graças ao estancamento do fluxo dos rios por meio de represas. Depois veio a tarefa de purificar os reservatórios de água envenenados pelo despejo de nitratos não absorvidos – cumprida graças à aplicação de fosfatos em estações especialmente construídas para o processamento de águas servidas. Depois veio a tarefa de destruir as algas tóxicas que proliferaram em reservatórios ricos de compostos fosfatados...” Ibid., p. 21. Não custa lembrar que o projeto de irrigação de zonas desérticas na antiga União Soviética abaixou o nível do Mar de Aral em mais de 20 metros, desde a década de 1960, e recuou sua margem em 70 quilômetros: “Situado entre o Uzbequistão e o Cazaquistão, o Mar de Aral era o quarto maior mar interior da Terra, com 66.1 mil quilômetros quadrados. Suas águas eram renovadas e alimentadas pelos rios Amu Daria e Sir Daria. O desvio da água desses dois rios para os projetos de irrigação das plantações de algodão, realizados pelo então governo da União Soviética, consumiram e secaram 90% da água que chegava ao Aral. O resultado foi desastroso: 27 mil km² secaram e o que era fundo do mar transformou-se em deserto. A concentração de sal dobrou, 60% do volume de Observa Habermas que o Estado participa, através de suas ações ou omissões, na produção de novos riscos condicionados pela ciência e pela técnica, tais quais os riscos inerentes à força nuclear e às intervenções genéticas, o que coloca o problema da proteção das gerações futuras. Tais perigos da “sociedade de riscos ultrapassam as capacidades analíticas e de prognose dos especialistas e a capacidade de elaboração, vontade de ação e velocidade de reação da Administração encarregada de prevenir os riscos.”270 A tecnologia, reflete Zygmunt Bauman, “vira um conjunto de ‘soluções em busca de problemas’” e a presença de know-how tecnológico e recursos disponíveis “assume o papel de fator primário para um maior desenvolvimento, que, por sua vez justifica sua necessidade e reivindicações de uma crescente partilha de recursos sociais e águas se perderam e a indústria pesqueira que empregava 60 mil pessoas acabou. A maioria das espécies de peixes desapareceu e a fauna que vivia em suas margens foi reduzida significativamente.” Disponível em: http://www.planetaorganico.com.br/aguamal.htm, com acesso em 30/08/2006. A crítica à tecnologia caracteriza a Escola de Frankfurt – de que Habermas é egresso: “Afinal, não se pode falar hoje a respeito da Escola de Frankfurt sem falar em Habermas.” WIGGERSHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Tradução: Lilyane Deroche-Gurcel. Rio de Janeiro: Difel, 2000, p. 28. A instrumentalidade da tecnologia, ao controlar os objetos, viola a integridade destes, destruindo-os. A tecnologia, que não é neutra, seria então, por si só, uma tomada de posição. Leciona Rolf Wiggershaus que “a expressão ‘Escola de Frankfurt’ é uma etiqueta adotada externamente nos anos 60” que se referia ao Instituto de Pesquisas Sociais que funcionou na Alemanha e em exílio nos Estados Unidos, durante o período da Segunda Guerra Mundial. Ibid., pp. 33-40. 270 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 176. No mesmo sentido, Niklas Luhmann, em Sociologia del rischio: “Se si trata invece de rischio, la situazione è differente in modo significativo, poiché in questo caso la prevenzione influenza la disponibilità al rischio e con essa una delle condizioni di subentro del danno: si è più decisi a iniziare un processo dall’esito incerto se si ha un’assicurazione per la ptotezione legale; se ci sono dei motodi di costruzione abbastanze sicuri dal punto di vista sismico, ci si deciderá a costruire sun un suolo a rischio di terremoti; una banca concede più credito quando si possono offrire delle garanzie; per la locazione di un reatore nucleare, le possiobilità di evacuare rapidamente la popolazione costituiscono un ponto di vista non trascurabile (su questo punto fallì un progetto a Long Island). Ma il circolo della diminuzione e dell’aumenro del rischio, condizionato dal fattore del’essere preparati, va molto oltre. Come si sa dagli studi sul comportamento rischioso dei manager, essi tendono non di rado a sopravvalutare il proprio controllo sul decorso di sviluppi che potrebbero causare dei danni, o addirittura a farsi coraggio rifiutando dei dati disponibili e procurandosi altre valutazioni più favorevoli. In altre parole, si cercano attivamente delle conferme per la supposizione che il decorso resterà sotto controllo.” LUHMANN, Niklas. Sociologia del rischio. Milão: Bruno Mondadori, 1996, p. 40. Observa Ignácio Izuzquiza, em introdução a outra obra do autor, que o conceito de risco é um elemento central na concepção de Luhmann, e em sua análise dos sistemas sociais. LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Tradução: Santiago López Petit et alli. Barcelona: Ediciones Paidós, 1990, p. 30. A obra de referência de Luhmann, em que expõe sua teoria dos sistemas, é Soziale systeme. Grunriss einer allgemeinen theorie (Sistemas sociais. Compêndio de uma teoria geral), publicada originalmente em 1984. Para Luhmann, o risco, derivado da complexidade da sociedade contemporânea, deverá ser cuidado por uma teoria tão complexa quanto a sociedade que o originou – a teoria dos sistemas sociais. uma estima social cada vez maior.”271 Para Ulrich Beck, "a ciência e a tecnologia são a causa dos principais problemas da sociedade industrial."272 Tais fatores ou desafios não possuem resposta pronta no esquadro teórico da Primeira Modernidade. Esclarece Ulrich Beck que a Segunda Modernidade vem identificar tais transformações, defendendo a necessidade de se “desenvolver novos conceitos no âmbito das ciências sociais, mas também novas instituições sociais e políticas, a fim de encontrar as respostas adequadas a esses desafios.”273 A Segunda 271 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 228. Cass R. Sunstein refere-se a cenários catastróficos desta sociedade do risco: “When catastrophic outcomes are possible, it makes sense to take precautions against the worst-case scenarios — the Catastrophic Harm Precautionary Principle. This principle is based on three foundations: an emphasis on people's occasional failure to appreciate the expected value of truly catastrophic losses; a recognition that political actors may engage in unjustifiable delay when the costs of precautions would be incurred immediately and when the benefits would not be enjoyed until the distant future; and an understanding of the distinction between risk and uncertainty.” O autor ilustra sua exposição referindo- se à mudança climática, gripe aviária, modificação genética de gêneros alimentícios, espécies animais ameaçadas de extinção e terrorismo. Cass R. Sunstein. "The Catastrophic Harm Precautionary Principle" In: Catastrophic Risks: Prevention, Compensation, and Recovery, 2007. Disponível em: http://www.bepress.com/ils/iss10/art3, com acesso em 23/03/2007. 272 Ulrich Beck, entrevistado por Antoine Reverchon. Folha de São Paulo, 20/11/2001. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2011200101.htm, com acesso em 04/09/2006. No Brasil, uma questão ecológica que envolve grandes proporções – de protestos e incertezas - é a transposição do Rio São Francisco, que conta com a oposição dos estados doadores – Sergipe, Bahia, Pernambuco e Minas Gerais – e a aprovação dos receptores de água – Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte: “Cerca de 400 representantes de movimentos sociais estão acampados em Brasília desde a madrugada de ontem [12/03/2007]. Eles reivindicam a retomada do diálogo com o governo, a revitalização do rio São Francisco e o arquivamento do projeto de transposição.” Movimentos protestam contra transposição do rio São Francisco. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u90232.shtml, com acesso em 13/03/2007. A questão será decidida em última instância pelo Supremo Tribunal Federal: “O presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Sergipe, Henri Clay Andrade, vai entrar nesta sexta-feira com uma ação popular no STF (Supremo Tribunal Federal) contra a decisão do governo Luiz Inácio Lula da Silva de iniciar as obras de transposição do rio São Francisco. ‘Vamos demonstrar na ação que há escassez de água na bacia doadora para utilização nesse projeto, inclusive já há estudos do Banco Mundial, além do parecer do Comitê de Bacia, de que o governo pode fazer pequenas obras no Nordeste setentrional, sete vezes mais baratas que a obra de transposição e com resultados mais eficientes para resolver a escassez de água naquela região’, afirmou Andrade.” OAB-SE vai ao STF contra transposição do São Francisco. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u90800.shtml, com acesso em 30/03/2007. A questão não é de fácil solução jurídica em razão da regras veiculada na Constituição Federal, art. 225, § 1.º: “ Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: IV – Exigir, na forma da lei, para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, Estudo Prévio de Impacto Ambiental, a que se dará publicidade.” Comentando o texto de lei referido, observa Paulo Affonso Leme Machado que “a palavra ‘potencialmente’ abrange não só o dano de que não se duvida, como o dano incerto e o dano provável.” O Estudo de Impacto Ambiental deverá “determinar o grau de perigo, ou seja, apontar a extensão ou a magnitude do impacto.” MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, pp. 71-72. A questão - e seus riscos - da transposição do Rio São Francisco ainda está em aberto. 273 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 25. Em entrevista, questionado acerca de uma regulamentação dos riscos, respondeu: “As questões seguintes são cruciais para regular os conflitos ligados à gestão dos riscos: quem deve provar o quê? A quem cabe o ônus da prova? O que pode ser considerado prova em condições de incerteza? Quais são as normas de responsabilidade em vigor? Quem é moralmente responsável? E, finalmente, quem paga a conta? Se uma política de gestão de riscos responder a essas interrogações, ela dará um caráter concreto Modernidade é efeito colateral da Primeira, que erode e consome seus fundamentos. É, entretanto, um modelo de autotransformação, de metamorfose da Modernidade, e não de sua destruição, e a sociologia tem o dever de analisar processos sociais que formam estilos padronizados que simbolizam o possível desenvolvimento futuro.274 Para Habermas, na mesma linha, o direito deve oferecer proteção aos novos bens coletivos da sociedade de “alto” risco, protegendo contra a destruição do meio ambiente, a contaminação atômica ou a modificação letal da herança genética, bem ainda “os efeitos não controlados que podem ser causados por grandes instalações técnicas, produtos farmacêuticos, experimentos científicos, etc.”275 à idéia de evolução social. Porque mudar as políticas de risco implica mudar as relações de poder que atravessam hoje em dia a regulamentação dos riscos. Precisamos de uma cultura da incerteza que seja claramente distinta das culturas do risco marginal, de um lado, e da segurança absoluta, do outro. Ela difere profundamente da ‘cultura do não-risco’, que consiste em barrar a inovação com dispositivos de segurança desde a origem.” Ulrich Beck, entrevistado por Antoine Reverchon. Folha de São Paulo, 20/11/2001. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2011200101.htm, com acesso em 04/09/2006. 274 Esclarece Ulrich Beck que não é o papel dos sociólogos propor dogmas da formação social, mas identificar “empiricamente e com uma sensibilidade metodológica superior, a fim de determinar aquilo que já está em formação.” BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 28. 275 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 76. A questão que subjaz é de quem deverá ser a palavra final sobre determinada conduta: se das ciências empíricas, com seu know how técnico, ou das ciências sociais, com seu know how ético. A disputa entre ciências empíricas (ou da natureza) e ciências sociais (ou do espírito) foi central à hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Observa o autor que a ciência dá a impressão de um conhecimento total, por trás do qual se escondem preconceitos ou interesses sociais. A economia, a política, o direito e a guerra se definem pelos especialistas, e não “pelas associações políticas, essas que representam a vontade da sociedade.” Aponta o autor que: “A pretensão de uma ausência total de preconceitos é uma ingenuidade, seja na forma delirante de um iluminismo absoluto, seja como delírio de um empirismo livre de todos os preconceitos da tradição metafísica, ou ainda como o delírio de uma superação da ciência pela crítica ideológica.” Alerta que a ciência é comumente caracterizada por possibilitar uma formação de juízo livre acerca de seus objetos de pesquisa, sendo independente da política e da opinião pública, e que, por gozar de enorme estima pública, é constantemente invocada por sua autoridade para manipular “lutas políticas.” A ciência (da natureza), buscando superar sua lendária incompreensibilidade pelo leigo, “desenvolve um recurso de linguagem próprio para a fixação e o entendimento comunicativo no próprio processo de investigação” atingindo a consciência pública. Tratando do contexto da ciência moderna, e de sua motivação, em severa crítica, diz: “O que constitui a essência da metodologia científica é que seus enunciados sejam uma espécie de tesouraria de verdades garantidas pelo método. Como toda tesouraria, também a ciência tem uma provisão para uso discricionário. Na verdade, a essência da ciência moderna é enriquecer constantemente a provisão de conhecimento para o uso discricionário. O decisivo em todos os problemas de responsabilidade social e humana da ciência, que desde Hiroshima tanto pesam sobre nossa consciência, consiste em que uma das conseqüências da coerência metodológica da ciência moderna é justamente não ter condições de dominar os fins a que se aplicam seus conhecimentos, como domina suas próprias relações objetivas. Possibilitando a aplicação prática que chamamos de técnica, a abstração metodológica da ciência moderna teve êxito.” A aplicação da ciência e sua técnica não são controladas pela ciência. Tampouco há qualquer vinculação do saber às forças vinculantes da razão social. Conclui que a separação extrema da ciência e de sua técnica de todo e qualquer contexto motivacional é algo problemático. Neste contexto: “A reflexão hermenêutica exerce assim uma autocrítica da consciência pensante que retraduz todas as suas abstrações, inclusive os conhecimentos das ciências, para o conjunto da experiência de mundo.” GADAMER, Hans-Georg. Tradução: Enio Paulo Giachini. Verdade e método II. 2. ed. Vozes: Petrópolis, 2004, pp. 213-229. 2.4 Globalização e sociedade de risco Na Segunda Modernidade, a sociedade é globalizada.276 Com o fenômeno da globalização,277 não há mais a coincidência da sociedade com seu recipiente social hermético: o Estado nacional. Ulrich Beck assim conceitua globalização: Globalização significa a experiência cotidiana da ação sem fronteiras nas dimensões da economia, da informação, da ecologia, da técnica, dos conflitos transculturais e da sociedade civil, e também o acolhimento de algo a um só tempo familiar mas que não se traduz em um conceito, que é de difícil compreensão mas que transforma o cotidiano com uma violência inegável e obriga todos a se acomodarem à sua presença e a fornecer respostas. Dinheiro, tecnologia, mercadorias, informações e venenos ‘ultrapassam’ as fronteiras como se elas não existissem. [...] Entendida desta forma, a globalização significa o assassinato da distância, o estar lançado a formas de vida transnacionais, muitas vezes indesejadas ou incompreensíveis.278 O conceito de globalização, observa José Eduardo Faria, é plurívoco, “utilizado para expressar, traduzir e descrever um vasto e complexo conjunto de processos interligados”,279 possuindo relevo especial, para o desenvolvimento da presente tese, “a crescente autonomia adquirida pela economia em relação à política” e a 276 Globalização é mais uma névoa que uma palavra. Identifica Ulrich Beck globalização com localização, passando a denominar de glocalização a dialética da globalização. A globalização, em seu ritmo acelerado – 24 horas por dia nas metrópoles - impõe uma nova sociologia do local. O local é redescoberto como ponto nodal da rede global, não sendo mais encapsulado e afastado do mundo. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 183. 277 Observa Boaventura de Sousa Santos: “Fröebel, Heinrichs e Kreye (1980) foram provavelmente os primeiros a falar, no início da década de oitenta, da emergência de uma nova divisão internacional do trabalho, baseada na globalização da produção levada a cabo pela empresas multinacionais, gradualmente convertidas em actores centrais da nova economia mundial.” FRÖEBEL, Folker et al. The new international division of labor. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, apud SANTOS, Boaventura de Sousa. “Os processos da globalização”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa et alli. (Org.). A globalização e as ciências sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2002, p. 29. 278 BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, pp. 46-47. 279 Em Jürgen Habermas: “Utilizo o conceito ‘globalização’ para a descrição de um processo, não de um estado final. Ele caracteriza a quantidade cada vez maior e a intensificação das relações de troca, de comunicação e de trânsito para além das fronteiras nacionais.” HABERMAS, Jürgen. A constelação pósnacional: ensaios políticos. Tradução: Márcio Seligman-Silva. São Paulo: Littera-Mundi, 2001, p. 321. “a emergência de novas estruturas decisórias operando em tempo real e com alcance planetário”.280 Ulrich Beck se utilizado conceito de globalidade – viver a experiência cotidiana global do mundo – para propor uma sociologia cosmopolita, desterritorializada, com uma reunião de culturas e modernidades distintas e separadas. Para tanto “o conhecimento metodológico decisivo é: não existe globalização globalmente.”281 A globalização ocorre localmente, modificando determinado local. É a metrópole que se coloca como centro da globalização.282 280 “Entre os processos mais importantes destacam-se, por exemplo: a crescente autonomia adquirida pela economia em relação à política; a emergência de novas estruturas decisórias operando em tempo real e com alcance planetário; as alterações em andamento nas condições de competitividade de empresas, setores, regiões, países e continentes; a transformação do padrão de comércio internacional, deixando de ser basicamente inter-setorial e entre firmas e passando a ser eminentemente intra-setorial e intrafirmas; a ‘desnacionalização’ dos direitos, a desterritorialização das formas institucionais e a descentralização das formas políticas do capitalismo; a unifomização e a padronização das práticas comerciais no plano mundial, a desregulamentação dos mercados de capitais, a interconexão dos sistemas financeiro e securitário em escala global, a realocação geográfica dos investimentos produtivos e a volatilidade dos investimentos especulativos; a unificação dos espaços de reprodução social, a proliferação dos movimentos imigratórios e as mudanças radicais ocorridas na divisão internacional do trabalho; e, por fim, o aparecimento de uma estrutura políticoeconômica multipolar incorporando novas fontes de cooperação e conflito tanto no movimento do capital quanto no desenvolvimento do sistema mundial.” FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. pp. 59-60. 281 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 31. 282 Em relação aos estrangeiros, integrados à vida dos locais, prevê Ulrich Beck uma reação ao risco, em busca de uma segurança perdida com o rompimento do “contêiner” do Estado nacional. “Novos muros, novas demarcações contra o outro, possivelmente até mesmo surtos militantes de violência e terror – são algumas formas de reação.” Por outro lado, vislumbra uma abertura, na renovação da cidadania global. Na tensão entre tais alternativas se erige a Segunda Modernidade: “Não se pode prognosticar que a Segunda Modernidade apresentará um cenário de fracasso ou de sucesso.” Cabe ao sociólogo elaborar novos quadros de referência. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 34-35. Esclarece Martha Crenshaw que “o terrorismo é basicamente uma estratégia de luta que consiste em usar a violência para causar um efeito psicológico intimidador. O objetivo não é provocar estrago militar no inimigo, mas assustar quem vê o atentado de fora - pela televisão, por exemplo.” CRENSHAW, Martha. Os filhotes da Al Qaeda. Revista Veja, 06/09/2006, p. 100. Como reação ao terror, há um novo choque entre os valores da segurança e dos direitos civis, com a promulgação de pacotes anti-terror, com sérios prejuízos aos direitos civis: “Just one day after the attacks of September 11, 2001, the German minister of the interior, Otto Schily (SPD), demanded a new security concept. Immediately the existing security laws and precautions were placed under special scrutiny in search for any sorts of deficiencies. The results of these reviews were two legislative initiatives, termed ‘security packages’ or ‘anti-terror packages’ which changed or altered numerous existing statutes. The new security laws contain a number of infringements into fundamental civil rights and liberties. The legislative process thus had to raise the issue of the relationship between security and civil liberties and weigh the balance between the protection of individual rights and collective security. This, however, does not constitute a new challenge for the German legislature. The collision of security interests with individual civil liberties has caused a legal problem in Germany for Três concepções são apresentadas pela sociologia ao fenômeno da globalização: a) a globalização é posta como um aditivo, um suplemento e não um substituto, à noção de sociedade organizada em termos de Estados nacionais; b) a globalização é interpretada como internacionalização, mas num crescente entrelaçamento entre Estados nacionais, pressupondo o “contêiner do Estado nacional”; e c) a globalização - concepção adotada por Ulrich Beck -, é posta como cosmopolitização,283 sendo “uma hipótese empírica, nomeadamente uma tentativa de análise de classe posterior à análise de classe ou, formulado de outro modo: a tentativa de abrir a antiga e venerável análise da estrutura social da sociologia para a Segunda Modernidade, para a globalização.” Esta concepção impõe um novo arcabouço descritivo e diagnostica uma nova dinâmica do conflito político.284 A Segunda Modernidade é um espaço de possibilidades de desenvolvimento, sendo uma experiência-chave “a religião civil dos direitos humanos, que já não tem vínculo com o Estado nacional nem com a identidade nacional e que se volta contra os reflexos nacionais ou étnicos.”285 No aspecto econômico, nas condições da globalização, a economia adquiriu um poder de subtração, poder de abandonar o território nacional, subtrair-se. Representa o oposto ao poder territorial do Estado. Passa a outra dimensão, à frente do Estado e da sociedade, ainda presos à territorialidade. A não-intervenção intencional da economia num Estado é justamente a base do poder econômico:286 Portanto, a única coisa pior do que ser explorado pelas multinacionais é não ser explorado por elas. Para evitar malentendidos: é justamente essa não intervenção desprovida de some time. September 11 might constitute a political watershed, but in the context of civil liberties in Germany, this date does not represent an important mark. The current measures have to be understood within the context of an at least thirty-year-long period of continuous weighing between security and freedom.” LEPSIUS, Oliver: Liberty, Security, and Terrorism: The Legal Position in Germany. In: German Law Review, Volume 5, n° 5, Disponível em http://www.germanlawjournal.com/article.php? id=422 , com acesso em 08 de setembro de 2006. Caberá à política e ao direito dar respostas adequadas a estes novos quadros. É nessa linha que se pauta a presente tese, utilizando a teoria da democracia e do direito lastrada da ética do discurso de Jürgen Habermas para tanto, enfocando a deliberação democrática e a correção normativa das escolhas em processos de regulação econômica. 283 Distingue cosmopolitismo do globalismo: “O cosmopolitismo favorece o reconhecimento da diversidade autêntica, já o globalismo apóia sua negação.” Cosmopolitismo não significa a adoção do american way of life, da americanização. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 189. 284 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 184-188. 285 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 36. 286 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 43. violência que obriga Estados armados até os dentes a realizarem, obediente e antecipadamente, as máximas do regime neoliberal287 de mercado mundial.288 Deixa de existir o imperialismo de invasão, dando espaço ao “imperialismo de retirada”.289 Isto é mais um risco à sociedade. Dentro da noção de abandono da idéia de territorialidade, surge a União Européia, como um Não-Estado nacional, especificamente transnacional, regulador e cooperativo. A globalização se configura numa transnacionalização, com uma conexão mais forte entre os estados nacionais sem que haja, necessariamente, a perda da identidade cultural, uma mistura de culturas ou o adeus à memória da localidade.290 2.5 Direito cosmopolita Nesta Segunda Modernidade, com a globalização e a intensificação das relações internacionais, surge a questão acerca da possibilidade ou razoabilidade de um direito mundial. Com as duas guerras mundiais, e a crescente “globalização dos riscos”, 287 Para Ulrich Beck, o modelo neoliberal visa à desmontagem das estruturas democráticas, das culturas democráticas e das autoridades estatais e procuram substituir a política pelo mercado, e o cidadão politizado pelo consumidor. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 197-198. 288 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 44. Surge a necessidade de harmonizar o direito interno para viabilizar o ingresso de capital estrangeiro em países emergentes. O tema será retomado. 289 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 44. 290 O autor traz a questão dos opositores à globalização que intentam enxotar a nova realidade transnacional. O combate ao neoliberalismo, tocado por esquerda, direita e social-democratas, em consenso, no intuito de restaurar o Estado nacional, com sua democracia e ideal de segurança, é também um risco. A negação ao globalismo só pode levar ao isolamento étnico, com exclusão e risco de surtos de violência e guerra civil. A instauração de regimes de autoritarismo democrático (autoritarismo étnicodemocrático) é também posta como um risco. Caracteriza-se como um regime de política “adaptativa por fora, em face dos mercados mundiais, e autoritária por dentro.” Aos vencedores no processo de globalização, o neoliberalismo; aos perdedores, a “reetnização”. Um surto fascista futuro não pode ser rechaçado. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 50-52. Os recentes fatos políticos na América Latina, com o fortalecimento do discurso populista de retórica esquerdista e antidemocrática - Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador) - parecem confirmar as previsões sombrias de Beck. Estes líderes apontam a globalização e o neoliberalismo como culpados por todos os males enfrentados pela população de seus países. o mundo volta a se unir, exigindo-se uma resposta global a tais riscos. Tal união, involuntária, deve se tornar voluntária, tendo por liame os direitos do homem.291 A empreitada da construção de um modelo de direito global foi perseguida por Immanuel Kant, já em 1797,292 ao tratar do direito cosmopolita ao lado do direito de cidadania e de gentes,293 sustentando que “a idéia racional de uma comunidade pacífica perpétua de todos os povos da Terra (mesmo quando não sejam amigos), entre os quais podem ser estabelecidas relações, não é um princípio filantrópico (moral), mas um princípio de direito.”294 Este direito, que não se confunde com o direito de gentes – direito internacional público295 –, entendido “como relação a certas leis universais de seu comércio possível, pode ser chamado de direito cosmopolítico (jus cosmo politicum).”296 Para Ricardo Terra, o direito cosmopolita considera homens e Estados, em sua relação de influência recíproca, como cidadãos de um estado universal da humanidade, garantindo o “direito de habitar qualquer região do globo e estabelecer relações com habitantes de todo o mundo”.297 Na lição deste autor, com o direito cosmopolita e sua expressa vedação ao direito de colonização do solo de outro povo,298 “pode-se dizer, por um lado [...] que é reconhecido o direito de cada pessoa em qualquer lugar do mundo, mesmo sendo cidadão de outro país, e que, por outro lado, isso não significa dar margem alguma ao colonialismo.”299 Destaca ainda, o referido autor, a frase de Immanuel Kant, constante em À paz perpétua, que se tornou lema na defesa dos direitos humanos como superiores ao direito positivo de cada país: “A violação do direito num lugar da Terra se sente em todos os outros.”300 Immanuel Kant propõe que a criação de um direito cosmopolita 291 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 02. 292 KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, pp. 149-203. Nesta segunda parte da obra, Kant dedica-se ao direito público, discorrendo, em seções específicas, acerca do direito da cidadania (seção I), direito de gentes (seção II) e direito cosmopolítico (seção III). Leciona Ricardo Terra que Kant traz em À paz perpétua um resumo da concepção pormenorizada do direito público tratado em Doutrina do direito. TERRA, Ricardo. Kant e o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 40. 293 TERRA, Ricardo. Kant e o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp. 50-51. 294 KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 201. 295 Em Kant: “O direito das cidades ou dos Estados na relação entre si, direito que se chama bastante impropriamente de direito dos povos ou de gentes e que deveria, na verdade, se chamar direito público dos Estados (jus publicum civitatum), é agora o que temos de examinar sob o nome de direito de gentes.” KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 191. 296 KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 202. 297 TERRA, Ricardo. Kant e o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 52. 298 TERRA, Ricardo. Kant e o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 52. 299 TERRA, Ricardo. Kant e o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 53. 300 KANT, Immanuel. À paz perpétua e outros opúsculos. Tradução: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1990, apud TERRA, Ricardo. Kant e o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 51. deve ser efetivada “por meio de uma reforma lenta, insensível e segundo princípios firmes”, capaz de “conduzir à paz perpétua”.301 John Rawls, em sua obra, O direito dos povos,302 segue as linhas de Immanuel Kant esboçadas em À paz perpétua e na Doutrina do direito. Interpreta a idéia de convivência pacífica ao “começar com a idéia de contrato social, pertencente à concepção política liberal de regime constitucionalmente democrático”, estendendo-a, e “introduzindo uma segunda posição original, no segundo nível, por assim dizer, no qual os representantes de povos liberais fazem um acordo com outros povos liberais” e com “povos não liberais.”303 O que John Rawls denomina de segunda posição original é a presença dos representantes dos povos na celebração deste acordo, em substituição às pessoas éticas – seres racionais com objetivos próprios e capazes de um senso de justiça304 -, sujeitos de sua Teoria da justiça da sociedade nacional. O autor, como bem 301 KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 207. RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Título original: The law of peoples. Massachusetts: Harvard University Press, 1999. A edição de O Direito dos povos apresenta duas obras condensadas: a primeira parte, “O direito dos povos”, e a segunda, "A idéia de razão pública revista". 303 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 12. A teoria de John Rawls, neste ponto, é uma adaptação de seu Liberalismo político, ambientado no receptáculo do estado nacional, a uma sociedade cosmopolita. Assim, “cada um desses acordos é compreendido como hipotético e não histórico, e neles entram povos iguais simetricamente situados, na posição original, por trás de um adequado véu de ignorância.” (Ibid., p. 12) Posição original, em glossário elaborado por Catherine Audard, constante da edição brasileira de Justiça e democracia, “é um procedimento figurativo que permite representar os interesses de cada um de maneira tão eqüitativa que as decisões daí resultantes serão elas próprias eqüitativas.” RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução: Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 380. Rawls esclarece que a posição original é uma situação puramente hipotética, em que “ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes.” RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. Tradução: Almiro Pisetta; Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 13. O véu da ignorância, ensina Catherine Audard, visa preservar a eqüidade na escolha dos princípios, fazendo com que não intervenham as contingências naturais e sociais. RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução: Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 383. Na lição de Rawls: “Os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância. Isso garante que ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais.” RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. Tradução: Almiro Pisetta; Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 13. 304 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. Tradução: Almiro Pisetta; Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 13. 302 observa Ricardo Lobo Torres, “projeta o princípio da razoabilidade305 para o campo internacional, que passa a ser o das relações entre os povos e não entre os estados.”306 Na sociedade dos povos de John Rawls, “o paralelo do pluralismo307 razoável308 é a diversidade entre povos razoáveis, com suas diferentes culturas e tradições de pensamento, tanto religiosas como não religiosas.”309 Em sua teoria, o autor traça um paralelo entre o que denomina de condições para uma “utopia realista”310 do caso interno e da sociedade dos povos. São condições relativas a sociedades nacionais: i) concepção liberal de justiça realista, com o atendimento de duas condições: alcance da estabilidade pelas razões certas, quando os cidadãos agem corretamente, de acordo com princípios de seu adequado senso de justiça; e aplicabilidade desses princípios e preceitos a arranjos políticos e sociais em andamento; ii) utilização de idéias, princípios e conceitos morais para especificar uma sociedade razoável e justa, que devem exprimir “as liberdades religiosas e as liberdades de expressão artística de cidadãos livres e iguais, assim como idéias substantivas de 305 Com Ricardo Lobo Torres: “O teste da razoabilidade procura a adequação entre meios e fins, sopesando as situações diante de princípios constitucionais.” TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 229. Razoabilidade, em Rawls, não deve ser confundida com o teste da razoabilidade (ou da irrazoabilidade) a que estão subordinados os atos estatais. A questão das regras, postulados ou princípios que tratam da aplicação de outros princípios (direitos fundamentais ou políticas públicas) será retomada no decorrer da tese que se apresenta – especificamente no capítulo III. A razoabilidade será tratada juntamente com a regra da proporcionalidade. 306 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 232. 307 Leciona Cícero Araújo que o pluralismo “é um ideal de tolerância para com diferentes filosofias e estilos de vida dos cidadãos.” Como adiante se demonstrará, a democracia deliberativa – a introdução da ética do discurso no processo democrático – procura reconciliar pluralismo, civismo (ideal de excelência no exercício da cidadania) e plebeísmo (ideal de universalização dos direitos políticos) ao propor um modelo em que as decisões democráticas se sustentam por razões que todos poderiam aceitar como participantes de uma discurso racional. Disponível em: http://www.flatusvocis.com/eventos/cif/paperAraujo.htm, com acesso em 22/11/2004. 308 Ensina Ricardo Lobo Torres que foi com a obra de John Rawls que ocorreu “o grande salto no sentido da generalização do princípio da razoabilidade e da sua transfiguração em fonte de legitimação do próprio Direito Constitucional.” Sintetiza o referido autor o que são pessoas, instituições e doutrinas razoáveis: “a) o overlapping consensus é razoável porque as pessoas defendem doutrinas compreensíveis e razoáveis, embora possa haver desacordo razoável; b) a justiça como imparcialidade (justice as fairness) é razoável; c) a sociedade bem ordenada (well-ordered society), que não é uma sociedade de santos, é razoável.d) a razoabilidade impregna também as idéias de reciprocidade, publicidade, tolerância, razão pública, pluralismo e cidadania.” TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 230-231. 309 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 15-16. 310 Por utopia realista explicita Rawls, entenda-se que a “esperança para o futuro da sociedade baseia-se na crença de que o mundo social permite a uma democracia constitucional razoavelmente justa existir como membro de uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa.” RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 15. imparcialidade que assegurem oportunidade justa e meios adequados para todos os propósitos e muito mais.”311 iii) uma concepção de justiça lastreada no político, 312 em concepções “disponíveis na cultura política pública de um regime constitucional liberal”313; iv) existência de instituições políticas e sociais que levem os cidadãos a adquirirem o sentido adequado de justiça, à medida que participam da sociedade, num processo de aprendizado, com estabilidade e justiça das instituições sob as quais os cidadãos se conduzem; v) alcance da estabilidade social enraizada numa concepção de política razoável de direito e de justiça, num “consenso sobreposto de doutrinas abrangentes”314; e vi) uma concepção política com uma idéia razoável de tolerância, derivada de idéias extraídas do político.315 311 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 20. 312 Esclarece Catherine Audard que o termo “político” – political – é introduzido por Rawls apenas em 1985, como forma de resposta a seus críticos, indicando que a teoria da justiça como eqüidade tem um alcance mais reduzido do que parecia em 1971 – ano da publicação de A theory of justice. Em Rawls, “o político designa agrupamentos a que não se pertence por livre opção e nos quais o exercício do poder coercitivo do Estado representa sempre uma ameaça para os direitos e liberdades, mesmo num regime constitucional. Por isso, o político designa igualmente o domínio limitado ao qual se aplica uma teoria da justiça: o consenso a respeito das instituições e sua proteção.” RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução: Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 380. “O político tem para Rawls um sentido sociológico, quase weberiano.” (Ibid. p. 374) 313 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 20. 314 Segundo Ricardo Lobo Torres, consenso sobreposto é “um consenso social que seria feito entre gerações e que manteria das instituições sociais pretéritas as doutrinas abrangentes e as concepções filosóficas básicas (religião, moral e política) TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 230-231. Consenso sobreposto ou por justaposição – overlapping consensus -, leciona Catherine Audard em transcrição a John Rawls: “Um consenso por justaposição existe numa sociedade quando a concepção política da justiça que governa as suas instituições básicas é aceita por cada uma das doutrinas abrangentes, sejam elas morais, filosóficas ou religiosas, que perduram nessa sociedade ao longo de gerações.” RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução: Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 374-375. São doutrinas abrangentes as que englobam diversos aspectos da existência humana, que ultrapassam questões meramente políticas. Observa Catherine Audard, em glossário da obra de John Rawls, que “o próprio Rawls, com a idéia de uma concepção filosófica do ‘justo como eqüidade’, planejava ampliar sua teoria da justiça nesse sentido. Posteriormente, não só renunciou a esse projeto, mas condenou-o como incompatível com o respeito ao ‘fato do pluralismo’ e à diversidade das crenças numa sociedade democrática.” RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução: Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 376. Leciona Ricardo Lobo Torres que a tradução da palavra fairness – de justice as fairness na teoria de John Rawls – é bastante complicada. Para o autor, a tradução correta seria “justiça como imparcialidade”, o que faria mais sentido para os povos latinos. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 231. 315 John Rawls sinteticamente expõe o que entende por tolerância razoável: “(1) Pessoas razoáveis não afirmam todas a mesma doutrina abrangente. Diz-se que isto é uma conseqüência dos ‘ônus de julgamento”. (2) São afirmadas muitas doutrinas razoáveis, das quais nem todas podem ser verdadeiras ou corretas, julgadas a partir de qualquer doutrina abrangente. (3) Não é irrazoável afirmar nenhuma das doutrinas abrangentes razoáveis. (4) Outros que afirmam doutrinas razoáveis diferentes das nossas também são razoáveis (5) Ao afirmar a nossa crença em uma doutrina que reconhecemos como razoável, não estamos sendo irrazoáveis. (6) As pessoas razoáveis pensam que seria irrazoável usar o poder político, se o tivessem, para reprimir outras doutrinas que sejam razoáveis mas diferentes da sua.” RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. John Rawls, propondo a aplicação de sua teoria nacional ao direito dos povos, apresenta os seguintes correlatos: i’) a sociedade razoavelmente justa dos povos bem ordenados é também realista, sendo os cidadãos substituídos por “representantes dos povos”,316 atribuindo a estes povos motivos morais - razões certas - impossíveis de serem atribuídos a Estados - como a guerra em defesa própria;317 bem ainda, o direitos dos povos é funcional, podendo ser aplicado a relações entre povos e a arranjos políticos; ii’) o direito dos povos razoavelmente justo usa idéias, princípios e conceitos políticos para especificar “arranjos políticos e sociais razoavelmente certos e justos para a sociedade dos povos”, e desta forma, “as relações entre os povos podem permanecer justas e estáveis (pelas razões certas) ao longo do tempo.” 318 iii’) concepção política de justiça contida na categoria do político, na medida em que se estende, para o direito dos povos, “a concepção política liberal para uma democracia constitucional” em nível global; iv’) no direito dos povos, a lealdade ao direito não precisa ser igualmente forte em todos os povos, mas deve ser suficiente, sugerindo Rawls que o processo institucional pode ser mais fraco quando a lealdade ao direito dos povos também for mais fraca; v’) não se exige qualquer comunhão religiosa, haja vista que o direito dos povos “provê para a Sociedade dos Povos um conteúdo de razão pública paralelo aos princípios da justiça em uma sociedade organizada”; vi’) o argumento em favor da tolerância no pluralismo razoável do estado nacional, aplica-se com maior razão à sociedade dos povos, que contém mais doutrinas abrangentes que qualquer povo individualmente considerado: “Torna-se inevitável que daí advenha a tolerância, se os povos-membros empregam a razão pública319 nos tratos mútuos.”320 22. 316 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 23. 317 O atentado às torres gêmeas do World Trade Center mudaram profundamente este conceito: “Até 2001, os americanos seguiam o preceito de só entrar em conflitos armados quando atacados. Desde então, vale a doutrina da ‘guerra preventiva’: os Estados Unidos têm o direito de atacar países que representem uma ameaça estratégica. Os defensores da tese, como o vice Dick Cheney, passaram a ser os homens mais consultados por George W. Bush.” SCHELP, Diogo; BOSCOV, Isabela. 50 coisas que o terror mudou no mundo. Revista Veja, 06/09/2006, p. 92. 318 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 23-24. 319 Razão pública é aquela de livre utilização. Esclarece Catherine Audard: “Ela representa as regras utilizáveis para as pesquisas de opinião pública, as negociações e os contratos, os debates públicos, morais, políticos, etc., e os seus procedimentos são tanto os do senso comum quanto os da ciência quando esta ultrapassa o estágio da controvérsia.” RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução: Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 381. 320 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 25. De especial relevo para a presente tese é a concepção que John Rawls tem de tolerância, tema que será retomado mais adiante, no decorrer deste capítulo. Ao tratar da questão relativamente a povos não liberais, esclarece o referido autor: Tolerar não significa apenas abster-se de exercer sanções políticas – militares, econômicas ou diplomáticas - para fazer um povo mudar suas práticas. Tolerar significa também reconhecer essas sociedades não-liberais como membros participantes iguais, de boa reputação, na Sociedade dos Povos, com certos direitos e obrigações, inclusive o dever de civilidade, exigindo que ofereçam a outros povos razões para os seus atos adequados à Sociedade dos Povos.321 Assevera John Rawls, em defesa de sua tese, que “o direito dos povos não é etnocêntrico”.322 Mireille Delmas-Marty, em interessante obra a respeito do Direito Mundial, apresenta um estudo acerca de sua viabilidade na resposta a três questões: É possível a criação de um direito comum pluralista construído sobre sucessivos ajustes, sendo a “razão” instrumento de justificação e diálogo? É razoável a existência de um direito mundial, passível de ser pensado como um conjunto harmônico e racional? É desejável um direito comum pluralista que garanta valores democráticos no funcionamento das instituições internacionais?323 A logicidade e pertinência da exposição da autora merecem o breve excurso que se segue.324 Acerca da possibilidade da existência de um direito mundial, sustenta a autora que o primeiro passo à compreensão do tema é reconhecer a relação conflituosa entre a economia, o direito econômico e os direitos do homem. Relaciona a economia e o direito econômico com o movimento de “globalização” ou mundialização: “Difusão espacial de um produto, de uma técnica ou de uma idéia”; e os direitos humanos com o movimento de “universalização”, que vem a significar “um compartilhar de sentidos”, numa vocação universal.325 321 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 77. 322 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 159. 323 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 05-06. 324 A obra de Mireille Delmas-Marty é teoricamente menos densa que a de John Rawls, mas ganha relevo ao relacionar a necessidade de um direito global para dar resposta à sociedade de risco que impera no atual estágio da Modernidade. Há, na obra, um feixe de idéias que relaciona direitos humanos, direito econômico, pós-positivismo e participação da sociedade civil. 325 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 07-08. Não se deve dissociar globalização dos direitos humanos da globalização No aspecto econômico identifica Delmas-Marty três formas de impor a lei do mais forte. A primeira delas denomina de “direito imperial”, e aponta a utilização de leis nacionais com efeito extraterritorial, como as leis norte-americanas que proíbem o comércio com nações estrangeiras – Lei Holmes-Burton, de 1966, impedindo o comércio com Cuba, e Lei Amato-Kennedy, de 1996, atingindo o comércio com a Líbia, como exemplo de imposição. A segunda forma, nomeada de “mercado da lei”, pode ser identificada através da pressão à adoção de convenções internacionais contra a corrupção dos agentes públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais. Tal postura, de inegável utilidade, objetiva impedir práticas que resultem efeitos anticoncorrenciais - especificamente nos Estados Unidos, onde atos praticados no estrangeiro por americanos são punidos extraterritorialmente. Outra prática, relacionada ao “mercado da lei” é identificada pela autora com a sugestão de adaptação “da regra do direito às exigências das próprias empresas multinacionais” e às vezes imposição em país de “uma legislação favorável a seus interesses”. Este movimento de “exportação do modelo jurídico anglo-saxão” resulta na edição de normas nacionais miméticas que se alinham “sob as normas consideradas de valor internacional.” Neste processo a autora identifica “um mercado da lei, e a regra do direito sofre, ela mesma, a concorrência entre as praças financeiras.”326 Como terceira forma de imposição, denomina de “lei do mercado”, promovida com a criação de modos alternativos de resolução de disputas no campo econômico (ADR – Alternative Dispute Resolutions) que subtraem dos Estados o controle das demandas.327 No campo dos direitos humanos, aponta a tentativa de se reconhecer universalmente “os direitos comuns a todos os homens”, unificando e harmonizando os sistemas de direito. Observa as seguintes dificuldades: “Dissociação” ou assimetria entre os textos que tratam dos direitos fundamentais e das decisões da própria ONU; “particularismos” com que o tema é tratado nas Convenções Européia, Americana, econômica. Deve-se estar atento à mundialização (ou globalização) no sentido de se evitar a imposição dos valores e do direito da economia hegemônica. (Ibid., pp. 03- 04) A idéia de universalização dos direitos humanos estará presente nas categorias de direitos fundamentais apresentadas por Habermas, calcadas no princípio do Discurso e do conceito de “forma jurídica” estabilizadora das relações sociais. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 159-160. 326 Esta forma de imposição coincide com o movimento de Reforma do Estado e a adoção do modelo de Administração Pública gerencial. O modelo jurídico de agências reguladoras e a Lei de Responsabilidade Fiscal, adotados no Brasil, são exemplos de imposição de leis pelo mercado. 327 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 14-17. Africana e da Liga Árabe; e “reservas” constantes de tratados que acabam por lhes retirar toda a essência. Identifica os direitos econômicos e sociais como Direitos do Homem, defendendo a “indivisibilidade”328 dos Direitos do Homem. Reconhece, entretanto, a hierarquia entre estes direitos, sendo a crítica baseada em argumentos práticos, feita com proporção e equilíbrio, isenta de confusão – por exemplo, a crítica que sustenta que sem moradia não há cidadania.329 Na hierarquia de valores330 propõe a seguinte classificação: a) “direitos de proteção absoluta”, como o direito à dignidade que exclui a tortura e a escravidão, pena ou tratamento desumano ou degradante; b) “direitos de proteção quase-absoluta”, inderrogáveis, mas passíveis de exceção; c) “direitos de proteção quase-relativa forte”, enumerados de modo preciso em cláusulas de convenção ou de tratado; e d) “direitos de proteção quase-relativa fraca”, constantes ou admitidos em cláusulas gerais.331 Aponta a autora um paradoxo: a globalização da economia, expondo todos aos mesmos riscos globais, rompendo o círculo de proximidade entre o autor da conduta e a vítima, impõe a utilização de cláusulas sociais na economia, exigindo uma nova ética empresarial. De igual modo, na sociedade globalizada não há mais exclusão ou dominação, mas desatrelação entre a parte “modernizada” (ou mais precisamente, globalizada da Segunda Modernidade) e a parte “não-modernizada” (parte que não se adequou ao processo de globalização). Vislumbra nesta Modernidade – reflexiva - o respeito pelas pessoas pelo o que elas “não são”: os pobres e os excluídos do trabalho produtivo. Defende a autora a existência global de programas sociais com a cotização da sociedade para a manutenção de cotas mínimas de água, luz e telefone, a exemplo da contraprestação mínima de inserção (CMI) francesa, sustentando a necessidade de 328 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 48. Para a autora, cada direito anunciado possui cinco tipos de relação: civil (reconhecimento jurídico do cidadão), política (reconhecimento jurídico como cidadão); econômica (reciprocidade da troca); social (integração à sociedade democrática); e cultural (pertença a uma comunidade). Ibid., p. 43. 329 “Prolongamento do direito à igual dignidade, o direito à moradia deveria revelar o núcleo duro dos direitos com proteção absoluta.” DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 49. Entende a autora que os direitos fundamentais têm um peso abstrato diferenciado. O tema será retomado. 330 A autora toma valores por direitos. Como adiante se demonstrará, embora possam os direitos ser sopesados como valores, com estes não se confundem. O tema será aprofundado no capítulo III desta tese. 331 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 51. A autora atribui pesos abstratos diferenciados às diferentes categorias de direitos fundamentais. Para a solução de questões práticas, adverte Robert Alexy, prevalecerá o peso concreto de cada um dos princípios de direito fundamental. estabelecimento de normas internacionais do trabalho, elaboradas com a participação dos Estados, dos sindicatos e das empresas. Propõe o incentivo a um mercado ético empresarial, num mercado socialmente responsável.332 Quanto ao fato de ser razoável a criação de um direito mundial, aponta o desafio de conceber um direito que se esquivasse da antinomia entre o formalismo com sua lógica jurídica subsuntiva, e as considerações de justiça ética, política e social.333 Distingue as normas de direito mundial em de direito suave (soft law); e de direito vago (fuzzy law). A primeira relacionada à economia e ao direito econômico; e a segunda relacionada aos direitos humanos.334 Enxerga a desregulamentação como forma de utilização de meios mais “opacos e complexos”. A flexibilização das normas, num “direito suave”, facilita a sua proliferação.335 No campo dos direito humanos, a busca é pelo “irredutível humano”, reconhecendo a imprecisão dos direitos vagos (fuzzy). Aduz que nem a suavidade nem a vagueza são próprias da mundialização, mas esta as torna visíveis e necessárias.336 Quanto à suavidade, observa que desregulamentação não é sinônimo de menos direito, mas a passagem à “regulação”, um novo tipo de direito mais flexível, especialmente no campo do direito econômico, protagonizado por agências reguladoras – autoridades administrativas independentes - fundando-se na fragilidade do princípio da hierarquia das normas.337 Quanto à vagueza, defende a utilização da “margem judiciária de interpretação”, comum no direito administrativo e constitucional, especificamente ao 332 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 55-65. As posições defendidas pela autora neste parágrafo, estão em consonância com as posturas de BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. 333 Neste ponto, em defesa de uma teoria pós-positivista, nota-se um contato com a teoria discursiva do direito de Jürgen Habermas e Robert Alexy. 334 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 73. 335 Este direito suave é expresso através de diretrizes, objetivos, princípios e políticas públicas, estabelecidos em legislações finalísticas. 336 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 73. 337 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 79. Este aspecto será explorado no decorrer desta tese, numa proposta de direito póspositivista que confira segurança à sociedade, mas não a segurança positivista calcada unicamente na validade, e sim um modelo de segurança que atente à legalidade, à eficiência e também à legitimidade democrática do direito, com a obtenção de decisões racionais e proporcionais. A segurança jurídica passa a se relacionar com a noção decisão justa, eficiente e correta, e não unicamente com a validade de uma lei. “incorporar direitos do homem à razão jurídica.”338 Entende haver uma ampliação dos poderes do juiz, especialmente no campo do Direito Internacional dos Direitos do Homem. Identifica um receio por parte dos Estados, como ameaça à sua soberania, da utilização das margens de interpretação, sendo necessário um juízo de admissibilidade das queixas contra os Estados, pautado na plausibilidade e na exigência de uma boa fundamentação.339 A adoção das margens contribui para garantir, pela sua interpretação, a vocação universal dos direitos do homem: garantia universal, em se tratando de uma corte universal (ONU), ou regional, em se tratando de corte regional (Europa). Vislumbra, na utilização das margens, uma trans-dicção do direito pelo juiz, e não uma transgressão.340 Entende que a margem de interpretação nacional coexiste com a margem internacional, levada a cabo pelo juiz internacional. Propõe a utilização de um direito flexível, e a utilização de lógicas “não padrões”, com utilização da razoabilidade sem perder a de vista a racionalidade.341 Para a autora, há três modelos de criação de um direito mundial: a) unificação: realizada pelo direito internacional, substituindo as regras nacionais por uma única regra comum; b) uniformização: integração dos direitos nacionais, com a utilização de regras idênticas (leis uniformes ou corpo mínimo de regras comuns), com a existência de leis nacionais criadas com base numa lei-tipo; c) harmonização: aproximação dos sistemas entre si, sem suprimir todas as diferenças. A utilização de regras rígidas é substituída por princípios diretores mais fluidos, havendo uma compatibilidade entre os direitos nacionais, dentro duma margem nacional de apreciação do direito internacional.342 Na criação do direito nacional, em seqüência ao direito internacional, há utilização de uma lógica de gradação, do método gradativo de razão lógica não binária ou formal (fuzzy sets).343 Defende a utilização, num primeiro 338 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 81. 339 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 81. 340 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 83. 341 Razoabilidade, vedação ao excesso, proporcionalidade – adequação, necessidade e ponderação. Estes conceitos (denominados de regras, postulados ou princípios) serão analisados em capítulo próprio. Por ora, importa reconhecer que todos estão a serviço da busca de uma solução justa, quando não se possa ser alcançada pela simples aplicação subsuntiva de uma regra a um fato jurídico. 342 É o que ocorre no campo da regulação de serviços públicos, em que há grande semelhança entre as normas brasileiras e estrangeiras de setores como telecomunicações e energia. 343 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 99-129. Como adiante se verá, a ética do discurso e a teoria discursiva do direito valem-se momento, de regras comuns mínimas para a promoção de um direito único com pouca resistência através da utilização de princípios diretores, e de busca de uma equivalência funcional nos limites da compatibilidade. Na utilização das margens de interpretação dos juízes internacionais, é necessário que haja “transparência, objetividade e rigor”, fundadas as decisões no “princípio harmonizador” do direito mundial.344 Quanto à questão de ser desejável a criação de um direito mundial, aponta a fragilidade das instituições internacionais, o que abre espaço à sociedade civil organizada – Organizações Não-Governamentais (ONGs) internacionais. Vislumbra um desequilíbrio entre o poder da economia e a democracia, configurando, como novos poderes mundiais: o reino das multinacionais “glocais”;345 o surgimento do biopoder346 (química, farmacêutica e biológica); e a mídia global.347 Toma por inadequadas as instituições internacionais, antidemocráticas na visão da autora. Para a criação de um direito “cosmopolita”, identifica a necessidade de sua elaboração de forma democrática, reconhecendo que a democracia ainda está limitada ao espaço dos estados nacionais.348 Percebe uma predominância do Poder Executivo no plano de elaboração das políticas internacionais, criticando as incertezas do judiciário internacional, e a relativa efetividade de suas decisões. Apresenta a questão da legitimidade democrática, reconhecendo ser utópica “uma assembléia parlamentar mundial”. Para a autora, “conquistar a democracia é reinventá-la”; e para se alcançar a democracia cosmopolita, é necessário o respeito ao da ética informal. Defende a autora a unificação e a harmonização do direito, combinando-se normas do direito internacional e do direito interno, informando da elaboração, por grupo de estudiosos, de um novo Corpus Juris na Europa, um projeto de direito comum, com regras de direito material e processual, e com a organização da Justiça e do Ministério Público europeu. 344 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 128. 345 “Glocal” é um termo que combina globalização, num crescimento constante; e localização, “adaptação à extrema diversidade das demandas”. DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 135-136. 346 Biopoder é um “termo cunhado por Michel Foucault para dar conta da centralidade, na consolidação do poder na Modernidade, daquilo que o filósofo chama de ‘administração dos corpos’ e de ‘gestão calculista da vida’. Foucault insiste no fato de que tal transformação da vida humana em objeto do poder soberano implicou em sua redução à condição de pura vida biológica, vida pronta para ser administrada pelos dispositivos ordenadores do poder.” SAFATLE, Vladimir. Conceitos de Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200506.htm, com acesso em 04/09/2006. 347 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 131-149. 348 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 149-150. pluralismo das nações,349 com a utilização das técnicas das margens de interpretação e do princípio da subsidiariedade, ordenando as normas, os estados e a sociedade democrática.350 A autora divide as instituições internacionais em centrífugas, que realçam a soberania nacional dos estados membros, e em centrípetas, que realçam a integração dos estados, como o Parlamento europeu. Defende uma maior objetivação das margens de apreciação internacionais. Neste esquadro, e objetivando evitar a paralisia do sistema, sustenta que: O papel do direito seria o de edificar os princípios de organização dos povos para organizar o compartilhamento de competências de modo compatível com a soberania. Daí o interesse em sistematizar, depois de novamente trabalhar sobre elas, as noções de subsidiariedade ou de margem nacional de apreciação.351 Aponta as organizações não governamentais (ONGs) como o motor da cidadania internacional, influenciando em grande número de regulamentações internacionais, em temas de interesses gerais da sociedade cosmopolita. Com lastro em Habermas352 assevera que: O coração da sociedade civil é, pois, constituído por um tecido associativo que institucionaliza no cenário dos espaços públicos organizados as discussões que se propõem a resolver os problemas surgidos ligados aos temas de interesse geral.353 Verifica que, no direito cosmopolita, começa a se firmar uma interface entre as instituições públicas e as ONGs,354 estruturas que, especialmente no cenário internacional, tem forte poder de objeção aos planos traçados pelas instituições públicas. São as estruturas da sociedade civil que dizem não!355 349 Ensina José Eduardo Faria: “Embora tenha aparecido muito tempo antes, o conceito de pluralismo jurídico tornou-se importante no início do século XVIII, com a reação da Escola Histórica ao centralismo jurídico que, na visão de seus doutrinadores, destruiria o Volksgeist.” FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 155. 350 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 167-171. 351 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 171. 352 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 353 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, pp. 176-177. 354 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 180. 355 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 121. Há, como se percebe pela sucinta análise das propostas dos autores, feita neste tópico, a necessidade de uma rede de direito que interligue os povos do mundo globalizado – sociedade e mercado -, um passo à frente do que hoje é feito pelo direito internacional público – que disciplina, basicamente, as relações entre Estados ou entre pessoas (nacionais ou estrangeiros) e Estados. Seja na postura clássica de Kant, seja nas posturas mais atualizadas de John Rawls e Mireille Delmas-Marty, há o reconhecimento de que o direito, e mais precisamente, a justiça, deve ser global, como resposta aos anseios e riscos, também globais. O direito deve ser tratado não apenas em seu aspecto estático, com a criação de normas – regras e princípios - comuns, mas também dinâmico – com previsão de processos em que possa esse direito global ser aplicado -, e institucional, com a criação de instituições com competência global de decisão e poder de imposição de seus julgados. Além dos direitos humanos, universais por sua própria essência, a direito administrativo, especificamente o que se convencionou denominar de Direito Regulatório, foi fortemente internacionalizado, “harmonizado”, influenciado pelo aspecto econômico da globalização. Para que os dólares de investidores aportassem no Brasil, especialmente a partir de 1995, quando se iniciou um amplo processo de reforma do Estado decorrente da redefinição de seu papel, que deixa de ser prestador e passa a ser regulador, necessária a criação de um direito conhecido, previsível e suave – imposição do “mercado da lei” –, com a definição das competências dos entes autônomos de regulação – agências reguladoras -, em moldes semelhantes às existentes em outros países, especialmente, nos Estados Unidos da América. 2.6 Democracia e política na Segunda Modernidade Na linha de reforço da sociedade civil, por suas organizações e por seus indivíduos integrantes, importa o estudo do fenômeno da individualização, identificado por Ulrich Beck, atinentes à Segunda Modernidade e com reflexos decisivos na esfera política. A individualização, no atual estágio da Modernidade, é, em última instância, a valorização das conquistas pessoais de cada indivíduo, rumo a um projeto de vida próprio. Ulrich Beck adota a expressão individualismo institucionalizado para afirmar que a dinâmica institucional é endereçada ao indivíduo, e não ao grupo. Cada um, no seio das instituições centrais da sociedade - como a família, e o casamento - tem a necessidade de desenvolver sua própria biografia, desapegando-se de predeterminações coletivas. A educação, o mercado de trabalho e a mobilidade são condições para a individualização.356 A reforma da educação, com o acesso irrestrito às mulheres, tem especial relevo na valorização das conquistas e formação individual. Tal individualização não significa, entretanto, isolamento do indivíduo, tampouco o “egoísmo neoliberal, o egoísmo de mercado”.357 As pessoas que livremente desenvolvem suas próprias vidas desenvolvem, paralelamente (ou paradoxalmente), o desejo de se diluir em relações emocionais com outras.358 Em Ulrich Beck: A individualização realizada e praticada no sentido de as pessoas desenvolverem uma sensibilidade para os contextos sociais, de perceberem a individualização como imposição, necessidade, tarefa, e aventura para redescobrirem o social e com ele se harmonizarem de um modo novo.359 356 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 67-68. 357 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 67. O autor distingue a existência individualizada, com as características acima expostas, do auto-empresário. Este tipo é um desvirtuamento da individualização, com a auto-imposição de um projeto neoliberal, em que o indivíduo se oprime e se explora, agindo na ilusão de ser dono de uma autonomia sem limites. Distingue, ainda, individualização de atomização. Atomização é a perda das tradições, de toda e qualquer propriedade privada, da existência civil ou de classe. Pessoas desamparadas, sem autoconsciência ou auto-organização. Ocorre em regiões do mundo onde a modernização niveladora tritura a liberdade. Trata também a categoria do individualismo altruísta ou egoísmo cooperativo, em que identifica uma busca pelo convívio social, num intercâmbio entre os mais individualistas e bem sucedidos, e os mais necessitados, através da prestação de serviços comunitários. O autor explora a questão da individualização na instituição familiar, com a igualdade da mulher, e seu reflexo no mercado de trabalho, atingindo a segurança da tradicional relação familiar, e a segurança do pleno emprego, respectivamente. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 72-82. 358 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 69-71. 359 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 74. Clareando esta assertiva, “levar vida própria significa lavar uma vida social e inclusive de modo muito mais consciente que outrora. [...] O social é um efeito colateral desejável do projeto individual.”360 A individualização diminui a importância e o poder das coletividades, tais como grupos religiosos, econômicos, de classes, partidos políticos e sindicatos, que criavam soldados partidários que adotavam e votavam em tudo quanto o chefe da classe entendesse correto, sendo a confiança determinada em bloco. Na cultura individualista o leitor é inconstante, devendo ser convencido a cada momento. Não há mais domadores numa democracia individualista e contraditória:361 “O individualismo, em todas as suas formas, é capaz de minar o conjunto do sistema político, transformando em zumbis sobretudo os partidos políticos, mas também os sindicatos.”362 Exposta a expectativas cada vez mais fortes, a sociedade exige reformas cada vez maiores, atingindo o Estado do bem-estar social com a relativização do trabalho, a abertura do Estado nacional, a continuação do desenvolvimento da democracia cosmopolita (transnacional). A sociedade de risco surge como fruto das novas reivindicações e frustrações. Nesta democracia individualizada, sem a presença de coletividades com representatividade suficiente, surgem novas instâncias de decisões políticas, a exemplo de grupos, subgrupos, foros e mesas-redondas, com a participação dos indivíduos. Numa democracia pluralizada e individualizada, é cada vez mais difícil impor decisões à sociedade.363 A deliberação e a busca de um consenso passa a ser a pedra de toque da sociedade. A democratização da sociedade individualizada repercute no seio das instituições privadas, como a família. A noção de direitos civis, de igualdade, por exemplo, influencia na redefinição dos papéis dos sexos. Tal efeito, denominado por Ulrich Beck de subpolitização da sociedade, faz surgir uma democratização da 360 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 75. 361 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 101. 362 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 91. 363 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 101. Na Segunda Modernidade, há o crescimento do Terceiro Setor, que nada tem de produtivo ou de doméstico, como forma de promoção pública da iniciativa individual. É materialização do trabalho cidadão, com a revitalização da sociedade civil, onde uma “atividade de baixo para cima cria sentido, promove a identidade e tem significado para o homem." (Ibid., p. 167) democracia. Há uma dificuldade em se reconstruir uma coletividade a partir da autoconsciência e das existências individuais pulverizadas, transplantando a política para o reconhecimento das chances de desenvolvimento do indivíduo e dos direitos fundamentais.364 Aprofundando o tema da subpolitização, diretamente relacionado à individualização e ao enfraquecimento – da legitimidade – das instituições políticas tradicionais, identifica Ulrich Beck uma metamorfose do Estado, com reflexos imediatos na política. Com Hans Magnus Enzensberger reconhece esta transformação da sociedade com sua capacidade de se auto-organizar. Diversos grupos e minorias se organizam e confrontam o Estado, e não somente as antigas organizações – igrejas, sindicatos e meios de comunicação. Não é do Estado que partem as grandes modificações, mas sim das organizações da sociedade. Referindo-se ao governo alemão – e aplicável também ao brasileiro – observa: Embora o Ministro dos Correios faça tudo o que está ao seu alcance para destruir o serviço postal, as cartas continuam a chegar. Embora o Chanceler se comporte como um elefante em uma loja de porcelana chinesa, o comércio com o Oriente floresce, e assim por diante... Este paradoxo só dá lugar a uma explicação: a Alemanha pode se permitir ter um governo incompetente, porque, afinal, as pessoas que nos entediam nas notícias cotidianas não têm mesmo muita importância.365 O que se vê, usando-se uma palavra em voga no Brasil, é o “descolamento” da economia e da sociedade da política. A sociedade se organiza fora do espaço político e, portanto, de maneira diferente do arranjo liberal do século XVIII. A auto-organização da sociedade, reunindo as forças livres da atividade econômica, comunitária e política, significa a subpolitização da sociedade. Assim: O local e o sujeito da definição do bem-estar social, de uma técnica específica de poder político, da garantia da paz pública e da afirmação provocadora de uma história política desta e apenas desta sociedade, separaram-se. Eles são tão acessíveis às instituições econômicas e culturais quanto às políticas.366 364 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 107-111. 365 ENZENSBERGER, Hans Magnus. Mittelmas und Wahn. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 228, apud BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 53. No caso específico do Brasil, nem a instauração de um Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar graves denúncias de corrupção nos Correios atingiram o funcionamento da empresa pública ou índices da economia. Com bem se percebe, há uma nítida relação do individualismo institucionalizado e da subpolitização da sociedade com a institucionalização de meios e procedimentos para a implantação de uma liberdade positiva, nos moldes da liberdade dos antigos:367 a reflexividade da Modernidade na política significa, desta forma, que “as áreas clássicas da política simbólica podem ser deslocadas e delegadas à subpolítica organizada da sociedade.”368 Neste deslocamento há uma busca pela felicidade da sociedade a ser alcançada não só através das instituições políticas clássicas e suas liberdades negativas, mas também pela busca de liberdades positivas. Com Zygmunt Bauman: Mas a boa sociedade pode – e deve – tornar livres seus integrantes, não apenas livres de um ponto de vista negativo – no sentido de não serem coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade - mas positivamente livres, isto é, no sentido de serem capazes de fazer coisas... E isso primordialmente significa poder influenciar as condições da própria existência, dar um significado para o “bem comum” e fazer as instituições sociais se adequarem a esse significado.369 Outro aspecto que merece ser destacado – além do fortalecimento da sociedade civil organizada – é que numa realidade cosmopolita, a democracia, em seu contexto original da Primeira Modernidade, deve ser redefinida. Precisa ultrapassar as barreiras do Estado nacional, buscar novas formas que “possibilitem redistribuir os direitos de soberania, até agora fixados no delimitado espaço do nacional.”370 Os Estados nacionais, numa “política da nova razão do Estado”, ao formarem Estados cooperativos com limitações auto-impostas à sua soberania, 366 SCHWENGEL, H. Die zukunft des politischen. Ästhetik und kommunikation, v. 65/66, 1987, p. 18, apud BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 54. 367 368 BECK, Ulrich. “A reinvenção da política” In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995, p. 55. Neste sentido, a auto-regulação econômica está a cada dia mais tomando o espaço outrora exclusivo da atuação estatal. MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e Administração Pública. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. O tema será retomado quando da discussão acerca do modelo de estado regulador. 369 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 112. Esta é, como adiante se verá, a linha central da proposta da ética do discurso, com reflexos na teoria discursiva do direito e na democracia deliberativa, em que a liberdade positiva – liberdade dos antigos – alia-se à liberdade negativa – liberdade dos modernos – garantindo, ao mesmo tempo, direitos fundamentais e um status cívico ativo. 370 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 206. adquirem uma nova feição, de Estado Regulador371 - unicamente.372 Aponta Ulrich Beck, como efeito da transnacionalização, um déficit democrático. “O renascimento transnacional do Estado e da política, assim como a perda da democracia, são, pois, dois lados da mesma moeda.”373 Na criação de um direito cosmopolita legítimo, é um desafio solucionar esta contradição de modo satisfatório, devendo-se, na expressão de Mireille Delmas-Marty já referida, reinventar a democracia. 371 Neste modelo, a intervenção do Estado se dá através da regulação, modalidade de intervenção econômica consubstanciada em técnicas de intervenção pública no mercado. Esta intervenção configura um controle prolongado e localizado exercido por um ente público – em geral, agências reguladoras - sobre uma atividade à qual a comunidade atribui relevância social. As expressões “regulador”, “subsidiário”, “prevencionista” e “securitário” são sinônimas, mas realçam diferentes enfoques em sua construção: a denominação “regulador” ressalta o modelo de intervenção econômica mais suave na economia, rejeitando produção econômica de bens e serviços pelo Estado, e defendendo a prestação de serviços públicos (e de serviços de interesse público) pelo setor privado; a denominação “subsidiário” sublinha a participação da sociedade na solução das questões que lhe afetam; a denominação “prevencionista” destaca a função do Estado de dar uma resposta satisfatória (eficiente e democrática) aos riscos globalmente enfrentados pelos Estados. 372 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 218. A União Européia é apontada à unanimidade pela doutrina como um modelo de Estado puramente regulador. Neste sentido, observa Marçal Justen Filho que, “ainda quando se possa imaginar que a União Européia não se configure propriamente como um Estado – certamente não no sentido clássico do conceito -, assumiu funções de cunho normativo vinculantes para os Estados nacionais associados.” JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 26. Reconhece-se, assim, que: “A União Européia, não presta diretamente serviços públicos, mas é titular de competência reguladora das atividades econômicas e não-econômicas. É uma estrutura institucional de governo dotada de competência regulatória.” Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 128. É referência no tema da União Européia a obra A Constituição européia: o projeto de uma nova teoria constitucional, resultado do Grupo de Pesquisa sobre Jurisdição Constitucional e Democracia (2003-2004), coordenado por José Ribas Vieira. Esta obra retrata o novo modelo de constitucionalismo 2.7 Sociedade de risco e economia Os riscos estão ligados a decisões humanas, ao processo civilizacional, à modernização. Fala-se em risco onde a natureza e a tradição perderam sua validade ilimitada e se tornaram dependentes de decisão. Leciona Ulrich Beck que, historicamente, o surgimento do conceito de risco coincide com as grandes navegações do século XV, ligado à noção de segurança. A criação de caixa comum para indenização em caso de naufrágio identificou a perda com o risco, sendo coletivamente solucionado e dependente de decisão. O seguro privado vale como símbolo-chave da prevenção de riscos.374 O perigo, entretanto, não se confunde com o risco.375 Os perigos existem em todas as épocas da humanidade, não sendo condicionados por atividades humanas. Já o risco, “designa a invenção de uma civilização que busca tornar previsíveis as conseqüências imprevisíveis das decisões tomadas, controlar o incontrolável, sujeitar os efeitos colaterais a medidas preventivas conscientes e aos arranjos institucionais apropriados.”376 O cálculo de risco tem por função a retirada da carga moral dos conflitos, vivendo a lógica da troca, aceitando que determinados bens jurídicos ontologicamente insuscetíveis de apreciação econômica também tenham seu preço – indenização por um braço perdido ou aposentadoria pela perda do olho direito.377 Os danos supostamente isolados foram interpretados pela sociologia como modelos de características gerais, identificando a necessidade da criação de instituições políticas e jurídicas que se ocupassem da compensação e distribuição de responsabilidades. Tal proposto pelo Projeto de Constituição Européia - VIEIRA, José Ribas, (Org), A Constituição européia: o projeto de uma nova teoria constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 373 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 217. Tensão semelhante se encontra entre a Constituição e o legalismo. Tornando mais claro: entre os princípios materiais de direitos fundamentais estabelecidos na Constituição e o princípio formal democrático que atribui representatividade ao legislador. 374 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 114. 375 Para Niklas Luhmann, o conceito de risco, “uma nova palavra”, “trata piuttoso della ricostruzione di un fenomeno di contingenza multipla, che offre a diversi osservatori delle prospettive diverse.” LUHMANN, Niklas. Sociologia del rischio. Milão: Bruno Mondadori, 1996, p. 25. 376 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 115. 377 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 117. modelo de risco e responsabilidade é claramente delimitado espacial, temporal e socialmente. O modelo de risco coincidente com a Primeira Modernidade perde sua validade em casos como o da catástrofe nuclear de Tchernobil, onde as conseqüências não são localmente delimitadas, ocorrendo, inclusive, uma acirrada polêmica acerca dos danos causados - número de mortos - com a “avaria” de Tchernobil. Na passagem da Primeira para a Segunda Modernidade, com a radicalização dos processos de modernização, põe-se em xeque o programa institucionalizado de cálculo dos efeitos colaterais. Na Segunda Modernidade os riscos não são mais perceptíveis pelos diretamente afetados; ocorre uma separação entre os que geram os riscos e os que os suportam; não há, igualmente, viabilidade de indenização compensatória pela impossibilidade de se provar quem gerou cada risco individual. Pior: quanto mais agentes causadores de riscos existirem, menor a probabilidade de se identificar o responsável.378 Os riscos tornaram-se não localizáveis, cosmopolitas. O risco afeta o sistema político,379 fere os direitos fundamentais - direitos institucionalizados -, especialmente o direito à segurança e à vida, levando ao esvaziamento do núcleo de legitimidade da ação política e das instituições da Primeira Modernidade. Numa sociedade de risco da Segunda Modernidade ninguém está seguro. Aqueles que geram os riscos não mais estão livres das conseqüências do que geraram. Os riscos ambientais e à saúde podem se transformar em riscos econômicos, gerando, por exemplo, a perda do valor das ações de empresas poluidoras ou que afetem, de algum modo, a saúde da população (indústria farmacêutica, por exemplo).380 A reação em cadeia que atinge os causadores principais do risco é, verdadeiramente, a diferença mais notória entre a sociedade do risco da Primeira Modernidade e a sociedade de risco da Segunda Modernidade. Escapam os riscos da Segunda Modernidade ao seguro privado, bem como à possibilidade de responsabilização nos moldes dos instrumentos da Primeira Modernidade. Os arranjos 378 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 122. 379 O risco não é um objeto, mas sim um “‘constructo’, uma definição social, no qual se deve acreditar para que ele se torne efetivo e real.” BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 123. 380 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 127-128. institucionais da Primeira Modernidade são insuficientes, havendo o fracasso do Estado e do Direito.381 Especificamente do Estado liberal do Bem-Estar Social e do direito racional positivista, com sua suposição de trazer consigo resposta a todas as demandas. Propõe Ulrich Beck o estabelecimento de relações de definição dos riscos, com correlações padronizadas, sem a necessidade de apresentar o nexo causal de cada caso isolado. No âmbito do direito tributário o princípio do poluidor-pagador, uma tributação por risco potencial, no dizer de Ricardo Lobo Torres, “está ligado à idéia de internalização de eventuais prejuízos ambientais, sem a qual seria repassada para terceiros a responsabilidade pela carga tributária necessária a garantir os riscos ambientais.”382 O estabelecimento de relações de risco, em nível global, significa a “politização” do que na Primeira Modernidade foi resolvido pelo Direito Privado de cada Estado nacional. Propõe Ulrich Beck uma reprogramação do direito e da política rumo a uma prevenção institucionalizada, impondo-se, num segundo momento, em razão da internacionalização dos riscos, o deslocamento da responsabilização para as grandes empresas, que passarão a agir com mais cuidado.383 A história da sociedade de risco e do discurso sobre a sociedade de risco permite duas leituras:384 uma pessimista, que vê a reduzida capacidade de ação e o 381 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 131. 382 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 374. Leciona o autor: “O princípio do poluidor-pagador se concretiza no direito tributário por intermédio das regras atinentes à instituição de multas, de taxas ou de contribuições. Para tanto, todavia, torna-se necessária a tipificação do poluidor, que, do ponto de vista da metodologia jurídica, não é um conceito jurídico, nem mesmo indeterminado, mas um tipo, existindo, na realidade da sociedade de risco, vem sendo tipificado por leis recentes, suscetíveis de ulteriores regulamentações tipificadoras e até de atos administrativos tipificadores, como aconteceu com a legislação da taxa ambiental do IBAMA e da contribuição para o SAT.” Ibid. pp. 374-375. 383 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 139. Neste ponto figura o Direito Tributário como importante ramo do direito, a ter o risco como fundamento da hipótese de incidência. Não somente a capacidade contributiva da Primeira Modernidade, mas também o risco passa a ser fundamento para a tributação. No âmbito da ecologia, é de ressaltar a importância das ONGs transnacionais, a exemplo do Greenpeace, que se utilizam da opinião pública para impor importantes concessões em beneficio do meio-ambiente. Nesta atuação, merecem destaque conferências internacionais sobre o meio ambiente, a exemplo da Rio-92, que fazem com que problemas ambientais, sendo globais, sejam globalmente reconhecidos, fixando padrões ambientais aos signatários, estabelecendo uma rede de regulamentações com controles mútuos e mecanismos de coerção. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 147-148. 384 Vislumbra Ulrich Beck a possibilidade da sociedade de risco desencadear um processo de aprendizado, uma politização compatível com processo de cosmopolitização. No campo ambiental, o progresso já é perceptível, com a consciência global dos riscos e a adoção de acordos e conferências internacionais. No âmbito econômico, a crise asiática, a Russa e o colapso potencial da América Latina, demonstram o caminho da catástrofe; outra que vislumbra uma situação em que se tem que decidir acerca da sobrevivência ou não da espécie.385 O conceito de risco extrapolou o campo do domínio técnico na indústria, atingindo diretamente a vida das pessoas, realçando sua imprevisibilidade, seja no mercado de trabalho, na família - o divórcio, a paternidade – ou na saúde. O campo mais fecundo para a aplicação da teoria dos riscos é o dos fluxos financeiros globais – transações financeiras digitais, em tempo real, que podem erguer países ou levá-los à lona de forma incontrolável: “Estamos diante de uma Tchernobil econômica.”386 Com Paulo Rabello de Castro, tem-se que: As piores crises financeiras de qualquer economia jovem são as de origem cambial. Os exemplos recentes (México, Coréia do Sul, Indonésia, Brasil e Argentina) e históricos (Alemanha, 1919, Brasil, 1962) se multiplicam à nossa vista para mostrar descontrole acerca dos rumos da economia global. Tal fato, ainda sem reposta global, já vem sendo debatido, fazendo com que o globalismo neoliberal fique na defensiva. Tal processo gera uma dialética entre movimento de cosmopolitização e contramovimento, este enfocando a remoção das identidades étnicas, a afirmação das identidades militares e estatais, e a emancipação do mundo militar em relação às formas de Estado, “coisa que leva ao limiar do terrorismo” e exige a atenção de todos. Convém identificar os inimigos da cosmopolitização. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, pp. 199-209. Acerca do terrorismo, ressalta Ulrich Beck, transcrito por Marli Navarro e Telma Cardoso, que uma percepção “distorcida” dos riscos pode fazer com que o sujeito, ao invés de ser capaz de identificar os riscos do mundo, passe a ver o mundo como um risco – em especial, um risco de terror – tornando-se, conseqüentemente, inapto para a ação: “Quem olhar o mundo como um risco de terror, torna-se incapaz de agir. É esta a primeira armadilha armada pelos terroristas. A segunda: a manipulação política da percepção do risco de terrorismo desencadeia a necessidade de segurança, que suprime a liberdade e a democracia. Justamente as coisas que constituem a superioridade da modernidade. Se nos confrontarmos com a escolha entre liberdade e sobrevivência será já demasiado tarde, pois a maioria das pessoas escolherá situar-se contra a liberdade. O maior perigo, por isso, não é o risco, mas a percepção do risco, que liberta fantasias de perigo e antídotos para elas, roubando dessa maneira à sociedade moderna a sua liberdade de ação” Navarro, Marli B. M. de A.; Cardoso, Telma A. de O. (2005). Percepção de Risco e cognição: reflexão sobre a sociedade de risco. Ciências & Cognição; Ano 02, Vol. 06, nov./2005. Disponível em www.cienciasecognicao.org, com acesso em 26/09/2006. 385 Ulrich Beck identifica o surgimento da sociedade de risco global com o impacto da física nuclear – 06 de agosto de 1945. Dentre as conseqüências políticas da fissão nuclear - atribuindo a tal choque um esclarecimento e uma reflexão – há a criação de institucionalidades internacionais de proteção ao meioambiente. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 153. 386 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 155. Em análise do cenário econômico nacional, a referência a crises mundiais da economia, que ocorrem do outro lado do mundo, mas que acabam por atingir também o Brasil é freqüente: “Dado o histórico do período pós-1997, analistas se perguntam se a alta persistente dos negócios não é o prenúncio de uma nova crise dos emergentes. A grande dúvida é se há uma bolha e se ela pode estourar e trazer conseqüências negativas como as que se seguiram às crises russa e asiática. Por enquanto, as previsões são de que 2006 seja muito similar a 2005, com pequena redução do apetite por papéis de emergentes, mas nada que se compare a uma retração. Pelo contrário, os volumes de negócios e de fluxo de capitais para os emergentes devem continuar em níveis próximos aos recordes históricos de 2005.” BILLI, Marcelo. País lidera novo boom de papéis emergentes. Folha Online, 05/03/2006. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u105687.shtml, com acesso em 06/09/2006. que a fragilidade nos pagamentos internacionais e a vulnerabilidade do caixa de um país sempre cobram um preço altíssimo aos cidadãos residentes, convocados a pagar a conta no final da crise.387 A “Crise dos Tigres Asiáticos”388 e a “Crise Russa”,389 que afetaram amplamente os países emergentes pela volatilidade dos fluxos financeiros, em 1997 e 1998, respectivamente, atingindo todo o sistema financeiro global, não foram capazes de fazer surgir qualquer sistema de prevenção de crises. Para John Gray, “no futuro, assim como no passado, o sistema financeiro internacional reagirá aos fatos adversos por meio do gerenciamento das crises.”390 Nesta nova economia global, poucos saem ganhando. No dizer de Ricardo Lobo Torres, “a globalização produz a riqueza no plano universal e a pobreza no domínio local.”391 Há, igualmente, impossibilidade de identificação de um responsável imediato pelo risco e pelos danos causados, com a transformação dos riscos econômicos em riscos sociais e políticos. Quanto ao Estado nacional vitimado em sua economia, não há outra saída que não manter a porta aberta até que o “capitalismo digital ou de cassino” resolva recolocar novamente suas fichas.392 2.8 Estado de exceção e Teoria Discursiva do Direito 387 CASTRO, Paulo Rabello. O primeiro dever do Estado. Folha de São Paulo, 23/07/2003. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2307200308.htm, com acesso em 06/09/2006. 388 Em entrevista concedida à Folha de São Paulo, ao economista britânico John Gray foi feita a seguinte pergunta: “A crise dos tigres asiáticos, que, porém, já parece superada, e a da Rússia vêm exigindo cada vez mais uma ampla reforma e a institucionalização dos fluxos financeiros. Existe algum mecanismo de controle em vista?” Respondeu: “Não tenho certeza se a crise asiática terminou. Tanto a China como o Japão ainda enfrentam problemas não resolvidos de deflação. Até agora a crise teve o efeito positivo de enfocar o pensamento na necessidade de reformar o sistema financeiro global. Mas não aconteceu nada realmente significativo. Não há sistemas de prevenção de crises implantados atualmente. No futuro, assim como no passado, o sistema financeiro internacional reagirá aos fatos adversos por meio do gerenciamento das crises.” GALISI FILHO, José. Uma nova balança de poderes. Folha de São Paulo, 13/08/2000. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1308200005.htm, com acesso em 06/09/2006. 389 A “Crise Russa” estourou em dezembro de 1998, fazendo com real sofresse uma forte desvalorização frente ao dólar, e que os juros - Taxa CELIC - chegassem a quase 40% ao ano, em 1999. CRUZ, Ney Hayashi da. Despesa com juros aumenta no governo Lula. Folha de São Paulo, 01/08/2003. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi0108200302.htm, com acesso em 06/09/2006. 390 John Gray em entrevista: GALISI FILHO, José. Uma nova balança de poderes. Folha de São Paulo, 13/08/2000. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1308200005.htm, com acesso em 06/09/2006. 391 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 246. 392 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed. Unesp, 2003, p. 157. Neste quadro pintado pela sociedade e por sua economia do final do século XX, corretamente identificado pela sociologia de uma sociedade de risco da Segunda Modernidade, ambivalente, o direito e a política, nos moldes criados no século XVIII e XIX, não mais atendem aos anseios de segurança e bem ordenança, almejados pelos construtores do Estado liberal de direito racional positivista elaborado por representantes eleitos pelo povo. A legalidade não está mais de mãos dadas à legitimidade, pressuposta no modelo oitocentista. A aplicação cognitivista do direito posto abstrato a um caso concreto, subsuntivamente, também não atende aos anseios de eficiência e agilidade impostos pelo mundo globalizado. Duas respostas - antagônicas – a estas constatações podem ser dadas, e relacionam-se de forma central à questão da legitimidade do direito e de sua relação com a política: o reconhecimento da existência de um estado de exceção permanente ou latente, em que a política se misture ao direito e ocupe seu espaço, substituindo-o; ou a construção de um novo paradigma do direito, pós-positivista, composto por princípios, regras e procedimentos, tornando-o mais ágil às necessidades da sociedade de risco global, inclusive econômico, e ainda mais democrático, com a participação direta dos atingidos393 em procedimento administrativo institucionalizado para tanto.394 A primeira posição, que reconhece a existência de um modelo de “Estado de Exceção”395 permanente,396 é fundada no reconhecimento de um estado de exceção.397 Leciona Vladimir Safatle, que a figura do estado de exceção foi criada pela Assembléia Constituinte francesa em 1791, sob o nome de "estado de sítio", traçando um quadro legal para a suspensão da ordem jurídica em "casos extremos", sendo aplicada inicialmente apenas às praças-fortes e portos militares. Em 1811, com Napoleão Bonaparte, ocorre uma extensão das hipóteses de sua declaração, e o estado de sítio 393 Atingido é “todo aquele cujos interesses serão afetados pelas prováveis conseqüências provocadas pela regulamentação de uma prática geral através de normas.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 142. 394 José Eduardo Faria, semelhantemente a Boaventura de Sousa Santos, já citado, fala em “porosidade” para permitir, no plano internacional, “a sobreposição, articulação, intersecção e interpenetração de vários espaços jurídicos misturados.” FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 155. 395 Um “Estado” (organização política) de exceção permanente fundamentado num “estado” de exceção (situação excepcional) que se perpetua. 396 No Brasil, é pioneira a tese de José Ribas Vieira, defendida em 1982, que ensejou a obra O autoritarismo e a nova ordem constitucional do Brasil - Rio de Janeiro: Renovar, 1988. A citada obra analisa a incorporação constitucional de modalidades de estado de exceção. 397 SAFATLE, Vladimir. Conceitos de Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200506.htm, com acesso em 04/09/2006. passa a ser possível em caso uma cidade estar sitiada ou ameaçada militarmente. Esclarece o referido autor que “a partir de então, vemos um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino Unido e EUA, que serão aplicados, durante os séculos 19 e 20, em situações variadas de emergência política ou econômica.”398 Giorgio Agamben, reconhecendo o estado de exceção como paradigma de governo, observa que a partir da década de 1960, “conforme uma tendência em ato em todas as democracias ocidentais, a declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo.”399 É com Carl Schmitt400 que a doutrina do Estado de Exceção alcança seu ápice.401 Para ele, leciona Bernardo Ferreira, “a impossibilidade de um conteúdo normativo se tornar efetivo por si mesmo se revelaria em toda a sua amplitude à luz do tema da Exceção.”402 Ao iniciar a obra Teologia Política, Carl Schmitt afirma: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção.”403 Traz Gilberto Bercovici, que a frase destaca “a soberania como uma função politicamente indispensável para afirmar 398 SAFATLE, Vladimir. Conceitos de Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, com acesso em 04/09/2006. 399 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 28 400 Bendersky traça a seguinte biografia do autor: “Oportunismo sempre foi um fato maior na carreira nacional-socialista de Schmitt, mas igualmente importante foi sua própria crença de que poderia, como o Kronjurist nazista, estabelecer o quadro constitucional para o Terceiro Reich. Para ele o NacionalSocialismo era um movimento precoce que exigia maiores desenvolvimentos de seus fundamentos teóricos legais e políticos. A sua tentativa de fornecer a fundamentação das linhas de um regime autoritário tradicional estava predestinada, e ele conseguiu apenas ajudar a consolidar uma ditadura totalitária .” BENDERSKY, Joseph. Carl Schmitt: theorist for the Reich. New Jersey: Princeton University Press, 1983, p. 242 apud MACEDO JR., Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do direito. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 37. 401 “A tentativa mais rigorosa de construir uma teoria do estado de exceção é obra de Carl Schmitt, principalmente no livro sobre a ditadura e naquele, publicado um ano mais tarde, sobre a teologia política.” AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 53. 402 “Segundo ele [Carl Schmitt] a norma não pode valer em uma situação de exceção, ou seja, em uma situação fora da norma, na qual, por princípio, ela não se aplica.” FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 100. Traz o autor, a seguinte transcrição de Carl Schmitt, constante da obra Legalidade e Legitimidade, de 1932: “Nenhuma norma [...] se interpreta ou se aplica, se protege ou se defende a si mesma; nenhuma validade normativa se faz valer a si mesma; e também não existe – caso não queiramos nos estender em metáforas e alegorias – nenhuma hierarquia de normas, apenas hierarquias de homens e de instâncias concretas.” (Ibid, p. 99) 403 SCHMITT, Carl. Politische theologie: vier kapitel sur lehre von der souveränität, p. 13 apud BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 65. O título teologia política decorre da postura de Schmitt, que defende que “todos os conceitos significativos da teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados”, e que o “estado de exceção tem, para o direito, o mesmo significado do milagre para a teologia.” Ibid. p. 66. Para Schmitt, observa Bercovici, “a soberania do Estado não consiste no monopólio da coerção ou da dominação, mas da decisão.” Ibid. p. 67. uma ordem.”404 Leciona Giorgio Agamben que Carl Schmitt vislumbrava nesta fixação de competência uma ancoragem de sua teoria na ordem jurídica.405 Ressalta Gilberto Bercovici que o sentido concreto de soberania está nas mãos de quem decide, em caso de conflito, “em que consiste o interesse público e o do Estado, a segurança e a ordem públicas.”406 A exceção é inafastável, permanente, e consiste na titularidade imprevisível, “estranha às normas de direito público”, estando o ordenamento à disposição de quem decide.407 O estado de exceção se justifica “pela situação de ameaça política, portanto, não pode ser limitado”, revelando, a exceção, “o fundamento da ordem jurídica, portanto, da normatividade. A normatividade está, assim, subordinada às condições efetivas de sua instauração, ou seja, às decisões fundadoras da ordem jurídica.”408 A situação excepcional, justificadora das medidas de exceção, “não é, ao contrário do que possa parecer, anarquia ou caos, pois sempre subsiste uma ordem, mesmo que não seja jurídica.”409 A exceção está excluída da norma geral de situação normal, mas não está fora da relação com a norma. Esclarece Giorgio Agamben, a relação entre exceção e norma: “Para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção.”410 Aplica-se a norma de direito desaplicando-a. O Estado suspende o direito em razão do direito de auto-preservação.411 Dá-se o que o Giorgio Agamben denomina de força de lei sem lei: “O estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei [...] em que 404 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 65. 405 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 56. Agamben discorda de Schmitt neste aspecto. Para o autor a exceção não se vincula ao direito, mas exclusivamente à política: “São falsas todas aquelas doutrinas que tentam vincular diretamente o estado de exceção ao direito, o que se dá com a teoria da necessidade como fonte jurídica originária, e com a que vê no estado de exceção o exercício de um direito do Estado à própria defesa ou a restauração de um originário estado pleromático do direito (os plenos poderes).” Ibid. pp. 78-79. 406 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, pp. 65. 407 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, pp. 65-66. 408 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 66. 409 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 66. 410 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 63. 411 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 67. potência e ato estão separados de modo radical”. 412 Introduz uma zona de anomia para torna possível a normatização efetiva que o fato requer.413 Há na obra do autor a identificação do precedente histórico da exceção: o instituto romano denominado iustitium, descrito em Roma já no ano de 14 d.C., em que com morte do soberano, “a suspensão do direito torna-se parte integrante da cerimônia fúnebre.”414 Analisando a evolução do significado do termo, que passou à Modernidade como relacionado unicamente ao luto público pela morte do soberano ou de um parente próximo seu, esclarece que “a correspondência entre anomia e luto torna-se compreensível apenas à luz da correspondência entre morte do soberano e estado de exceção.”415 Para tanto, traz à colação a teoria do soberano como “lei viva”, contemporânea ao surgimento do iustitium, calcada em três pontos: a) o rei é o mais justo e o mais justo é o mais legal; a) sem justiça ninguém pode ser Rei, mas a justiça é sem lei; e c) o justo é legítimo e o soberano, que se tornou causa do justo, é uma lei viva.416 A correspondência entre iustitium e luto é assim explicada por Giorgio Agamben: Se o soberano é um nomos vivo, se, por isso, anomia, e nomos coincidem inteiramente em sua pessoa, então a anarquia (que, à sua morte – quando, portanto, o nexo que a une à lei é cortado – ameaça libertar-se pela cidade) deve ser ritualizada e controlada, transformando o estado de exceção em luto público, e o luto em iustitium.417 412 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 61. 413 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 58. Em semelhante linha de raciocínio, mas com postura crítica acerca de tal fato, Gilberto Bercovici analisa este Estado de exceção, que na atualidade é permanente – pela necessidade e urgência de sempre decidir acerca de algo, especialmente no campo econômico. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente – atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004. 414 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 105. 415 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 105. Em Nicolau Maquiavel há a defesa da previsão de uma ditadura provisória, para que o Estado se defenda de fatos extraordinários, reconhecendo que “ordinariamente o ritmo do governo numa república é muito lento” havendo “sempre a necessidade de realizar consultas”, o que pode gerar uma “ação do governo perigosamente lenta quando surge um mal inesperado”. Reconhece que “embora as vias extralegais sejam úteis o seu exemplo é sempre perigoso.” Para reduzir este risco, a legislação da república deverá prever todos os acidentes (situações excepcionais), com seus remédios extraordinários. Maquiavel, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução: Sérgio Bath. 4. ed. Brasília: UNB, 2000, p. 114. 416 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 106. 417 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 107. Observa Giorgio Agamben, em ponto que é essencial ao tema da tese em apresentação, que no estudo do estado de exceção, encontrou “inúmeros exemplos de confusão entre atos do poder executivo e atos do poder legislativo; tal confusão define [...] uma das características essenciais do estado de exceção.”418 A confusão, identifica o autor, nasce com a utilização do sintagma “força de lei”, que se refere tanto na doutrina moderna quanto na antiga, “não à lei, mas àqueles decretos – que têm justamente, como se diz, força de lei – que o poder executivo pode, em alguns casos – particularmente, no caso de exceção – promulgar.”419 O conceito “força de lei” define uma separação entre a forma e a aplicabilidade, “pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua força.”420 418 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 61. E prossegue o autor: “O caso limite dessa confusão é o regime nazista em que, como Eichmann não cansava de repetir, ‘as palavras do Führer têm força de lei”. Ibid. pp. 60-61. 419 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 60. Nesta linha, há um encontro entre o positivismo de Kelsen e o estado de exceção identificado por Agamben, muito embora suas teses sejam diametralmente opostas – direito puro versus predominância política: “Algumas constituições dão a certas autoridades administrativas – chefe de Estado ou ministros de gabinete, por exemplo – o poder de decretar normas gerais por meio das quais são elaboradas as cláusulas de um estatuto”. Tais normas gerais, que não são emitidas pelo chamado órgão legislativo, mas por outro órgão, com base nas normas gerais emitidas pelo legislador, são designadas como regulamentos. Segundo algumas constituições, certos órgãos administrativos – especialmente o chefe de Estado, ou os ministros do gabinete na condição de chefes de certos ramos da Administração – são autorizados, sob circunstâncias extraordinárias, a emitir normas gerais para regulamentar matéria que ordinariamente deve ser regulamentada pelos órgãos legislativos através de estatutos. A distinção entre estatutos e regulamentos é, evidentemente, de importância jurídica apenas quando a criação de normas gerais está, em princípio, reservada a um órgão legislativo. A distinção é especialmente significativa quando existe um parlamento eleito popularmente e o poder legislativo está, em principio, separado dos poderes judiciário e executivo. Deixando de lado o direito consuetudinário, as normas jurídicas gerais devem, então, ter uma forma especial: elas devem ser o conteúdo de decisões parlamentares, essas decisões às vezes precisam da aprovação do chefe de Estado e às vezes exigem publicação num diário oficial a fim de obterem força jurídica. Tais exigências constituem a forma de uma lei. Já que qualquer conteúdo que seja, e não apenas uma norma geral regulando a conduta humana, pode surgir sob essa forma, tem-se então de distinguir leis num sentido material (normas jurídicas gerais na forma de uma lei), de lei num sentido formal (qualquer coisa que tem a forma de uma lei). Pode acontecer que uma declaração sem qualquer significação jurídica seja feita em forma de lei. Existe, então, um conteúdo juridicamente neutro do processo criador de Direto.” KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução: Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 190-191. A força de lei sem lei (da exceção) – que se transmuda em forma de lei, para o positivismo de Kelsen - transita por entre as oposições de ambas as teorias, sem que estas ofereçam uma possibilidade real de controle. O tema será retomado no Capítulo IV desta tese. 420 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 60. Para Agamben, é “a própria relação entre política e direito que deve ser questionada. Problema este que a tradição marxista sempre negligenciou por acreditar que o direito, em última instância, era um instrumento neutro do qual poderíamos nos servir sem problemas. De fato, nossa concepção de democracia ainda está muito dominada pelo paradigma do Estado de Direito, ou seja, pela idéia de que podemos estabelecer um quadro constitucional e normativo a partir do qual uma sociedade justa advém possível. Mas minhas pesquisas me mostraram que o problema fundamental não diz respeito à Constituição ou à lei; diz respeito ao governo.” Agamben, em: SAFATLE, Vladimir. A política da profanação: entrevista a Giorgio Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, com acesso em 04/09/2006. Giorgio Agamben compreende o desenvolvimento dos dispositivos de exceção como manifestação de um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. Tal teoria da generalização do estado de exceção, por um lado, “procura fornecer o quadro de análise para a tendência contemporânea em criar situações nas quais a distinção entre estado de guerra e estado de paz seja impossível.”421 Esta indistinção acaba por transformar o estado de exceção em regra universal.422 Por outro lado, “a partir desta teoria da centralidade de processos de suspensão da norma que não equivalem necessariamente à abolição da norma”, Giorgio Agamben, além de “fornecer uma visão das tendências que atuam na estrutura políticojurídica contemporânea”, critica a noção de “razão vinculada à crença de que racionalizar é assegurar a vida por meio da posição de critérios normativos de justificação intersubjetivamente partilhados.”423 Giorgio Agamben enxerga no estado de exceção uma negação do positivismo e do racionalismo em que foi construído o Estado de direito liberal. O próprio autor, em entrevista, esclarece sua linha de pesquisa, ao afirmar que “Foucault tinha razão ao dizer que queria deixar de lado os ditos ‘universais’ (o Estado, a Lei, a Soberania, o Poder), a fim de analisar o processo concreto e os dispositivos que realizam as relações de poder.” Esclarece que sua teoria sobre o estado de exceção não trata de “responder a questões como: ‘O que é o direito?’, ‘o que é o Estado?’, mas de 421 SAFATLE, Vladimir. A política da profanação: entrevista a Giorgio Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, com acesso em 04/09/2006. 422 A noção de generalização do estado de exceção traz na obra de Agamben importantes conseqüências, como o reconhecimento dos campos de concentração. Constituem estes campos – criados segundo alguns historiadores em 1896 pelos espanhóis ou, segundo outros, no início do século XX, por ingleses – a extensão “a uma inteira população civil, de um estado de exceção ligado à guerra colonial”. A novidade que o autor aponta, com a generalização da exceção, é que “este instituto é desligado do estado de exceção o qual se baseava e deixado em vigor na situação normal. O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente que como tal, permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento moral.” Desta forma, “a um ordenamento sem localização (o estado de exceção, no qual a lei é suspensa) corresponde agora uma localização sem ordenamento (o campo, como espaço permanente de exceção).” Aponta o autor, como campos de concentração, as periferias das grandes cidades. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, pp. 173-182. 423 SAFATLE, Vladimir. A política da profanação: entrevista a Giorgio Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, com acesso em 04/09/2006. Comentando a postura de Agamben: “Mas ao analisar o problema do estado de exceção, o filósofo italiano não procura apenas dar conta de uma situação jurídico-política que parece se impor como regra cada vez mais universal para as sociedades contemporâneas. O que ele tem em mente é, na verdade, a crítica a uma tendência hegemônica na Modernidade em vincular razão e norma, racionalidade e normatização da vida. Com isto, abre-se um amplo quadro de questões vinculadas à reorientação das expectativas da razão moderna e de seus modos de racionalização. É neste quadro que Giorgio Agamben se move.” procurar compreender o modo por meio do qual a máquina político-jurídica funciona.”424 Partindo de idênticos diagnósticos da sociedade e críticas ao Estado formatado pelo paradigma liberal do direito, outra postura pode ser adotada, e passa, diametralmente, pelo reconhecimento do direito como o mais importante meio de integração social e pelo reforço de sua gênese democrática. A teoria do estado de exceção está mais preocupada em identificar as conseqüências da radicalização da Modernidade, a crise do direito e sua desatrelação da política, ocorrida especialmente nos últimos trinta anos que em propor novas categorias como resposta aos males modernos analiticamente identificados.425 Como teoria pós-positivista do direito, partindo da mesma identificação dos problemas traçados pela sociologia do risco426 e do reconhecimento da crescente exceção que proporciona, tem-se a teoria discursiva do direito e da democracia deliberativa, construídas com base na teoria do agir comunicativo e na ética do discurso, capitaneadas por Habermas e por Alexy, que serão expostas nos capítulos seguintes. Constata Habermas que a modernidade, “uma vez consciente de suas contingências, cada vez mais fica dependente de uma razão procedimental, isto é, de uma razão que conduz um processo contra si mesma.”427 A crise de paradigmas não paralisa as ciências humanas, que buscam novas teorias, métodos e padrões para a nova realidade. Neste quadro se apresenta a teoria 424 Agamben, em: SAFATLE, Vladimir. A política da profanação: entrevista a Giorgio Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, com acesso em 04/09/2006. 425 Em entrevista, Agamben trata da necessidade de abrir espaço a uma "violência pura" capaz de expor e de cortar o vínculo entre violência e direito. Nesta idéia de "violência pura", explica o autor, “que o que está em questão é “a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade. E talvez ‘política’ seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas.” SAFATLE, Vladimir. A política da profanação: entrevista a Giorgio Agamben. Folha de São Paulo, 18/09/2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, com acesso em 04/09/2006. 426 Habermas, em sua obra, refere-se expressamente à sociologia de Ulrich Beck, fundando sua crítica ao liberalismo na crise da Modernidade. Há uma inegável aproximação entre a teoria do risco e da teoria discursiva do direito, como uma resposta legítima à permanente necessidade de decidir. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 176. 427 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 12. discursiva do direito e da democracia deliberativa como uma resposta viável, de convivência possível com o risco da Segunda Modernidade. O núcleo da teoria discursiva do direito, sintetiza Robert Alexy,428 “es um sistema de reglas y princípios del discurso cuya observância assegura la racionalidad de la argumentación y sus resultados.”429 O modelo jurídico proposto, de regras/princípios/procedimento é o que assegura o máximo de aplicação da razão prática,430 sendo preferível a todos os outros modelos.431 A crise de paradigmas não impede a adoção de uma teoria promissora, democrática e moralmente correta, que atenda, ao menos aproximativamente,432 ao ideal da Pós-Modernidade – a convivência com a ambivalência e com a diferença.433 Dentre alguns pontos desta teoria,434 nitidamente relacionados com o risco e propondo uma convivência com a inexorável radicalização da Modernidade, merece especial destaque a questão da tolerância e da fraternidade. Na correta observação de Zygmunt Bauman, a prática moderna leva à intolerância, à “negação dos direitos e razões de tudo que não pode ser assimilado – a deslegitimação do outro.”435 Traz ainda o referido autor que a intolerância, por vezes, se mascara na tolerância, “o que muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou generoso e o deixarei viver.”436 No atual estágio da Modernidade – Segunda Modernidade, Modernidade Reflexiva, ou Pós-Modernidade – há que se aprender a viver com a ambivalência, o que 428 Doravante Robert Alexy será referido unicamente como Alexy. ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 175. 430 Leciona Robert Alexy: “La razón práctica no es de aquellas cosas que pueden ser realizadas sólo perfectamente o no en estado absoluto. Es realizable aproximativamente y su realización suficiente no garantiza ninguna corrección definitiva sino tan solo relativa.” ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 177. 431 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 174. Por esta razão se propõe a utilização da teoria discursiva do direito para a conformação do direito regulatório. 432 A teoria do discurso é o sistema de regras e princípios encarregado de assegurar a racionalidade das argumentações e de seus resultados. “Bajo condiciones reales pueden ser realizadas sólo aproximativamente.” ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 176. 433 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 176-180. Nesta nova fase, o Estado tem que buscar se precaver de situações de perigo coletivo. Habermas denomina o modelo de Estado talhado para estes fins de Estado securitário, ou prevencionista. 434 A teoria discursiva do direito será objeto de análise detalhada nos capítulos III e IV desta tese. 435 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 16. 436 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 16. 429 significa também viver com a diferença, e, mais que tolerar, respeitar a alteridade em suas preferências.437 Reconhecendo que a pretensão de hegemonia ordenadora da sociedade, pretendida pela Modernidade, através da imposição de uma verdade, como uma qualidade do conhecimento438 em que os que estão “em erro [...] devem ou têm que mudar de opinião, assim [...] confirmando a superioridade (leia-se: o direito de comando) do detentor da verdade (leia-se: o atribuidor do comando)”439, sustenta Zygmunt Bauman que, ultrapassada essa fase, surge uma nova, que possui a “contingência como destino”. Nesta fase – Segunda Modernidade – a aceitação da contingência440 faz surgir uma emancipação, implicando a: Aceitação de que há outros lugares e outras épocas que podem ser com igual justificação (ou igual ausência de boa razão), preferidos pelos membros de outras sociedades e que, por mais diferentes que sejam, as opções não podem ser discutidas em relação a nada mais sólido e impositivo do que a preferência e a determinação de apegar-se ao que se prefere. A preferência por uma forma de vida própria e comunalmente partilhada deve portanto estar imune à tentação da cruzada cultural.441 O reconhecimento da contingência emancipa na medida em que expurga o horror à alteridade e a abominação da ambivalência. Esclarece o citado autor, com lastro no filósofo pragmático Richard Rorty:442 “A linguagem da necessidade, da certeza e da verdade absoluta não pode senão formular a humilhação – humilhação do outro, do diferente, daquele que não satisfaz os padrões.”443 A linguagem da contingência, diferentemente, cria uma chance de ser gentil e de evitar a humilhação dos outros.444 437 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 249. 438 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 245. 439 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 245. 440 Contingência, no sentido do texto, significa incerteza sobre se alguma coisa vai acontecer ou não; se algum aspecto de algo pode ser ou não ser; qualidade do que é eventual ou incerto. 441 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 248. 442 A obra referida é: Contigency, irony and solidarity, p. 86. 443 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 248. 444 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 248. Este ser gentil, muito mais do que uma finalidade, é o meio de se alcançar o respeito. O “ser gentil” e a tolerância445 que ele representa, não devem ser tomados simplesmente como uma forma de tornar a “coexistência suportável e um pouco menos perigosa.”446 Para que haja a emancipação, oriundo do reconhecimento da contingência como destino – nesta Segunda Modernidade – “não bastaria evitar a humilhação dos outros. É preciso, também, respeitá-los – e respeitá-los precisamente na sua alteridade, nas suas preferências, no seu direito de ter preferências.” 447 É preciso honrar a estranheza do estranho. Nesta linha, Edmond Jabés, citado por Zygmunt Bauman explica: O caso do estranho me diz respeito não apenas porque eu mesmo sou um estranho, mas porque por si mesmo levanta os problemas que enfrentamos em princípio e nas aplicações diárias da liberdade, do poder, do dever e da fraternidade: em primeiro lugar, o problema da igualdade dos homens. Em segundo lugar, o da nossa responsabilidade para com eles e nós mesmos.448 A ligação com o estranho é revelada, desta forma, como responsabilidade de destino, e não mera semelhança de fado – mero destino fático. Se a uma sina comum basta a tolerância mútua, “o destino comum requer solidariedade.”449 Mais ainda: “O direito do Outro à sua estranheza é a única maneira pela qual meu próprio direito pode expressar-se, estabelecer-se e defender-se.”450 Desta forma, “ser responsável pelo outro” e “ser responsável por si mesmo” vêm a ser a mesma coisa, numa só atitude, capaz de reformular a contingência de sina – meramente fática – num destino comum.451 445 Numa versão desdenhosa da tolerância: “Fica-lhe bem ser como é. Que o seja. Só que eu jamais seria assim.” BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 249. 446 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 248. 447 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 249. 448 JABÉS, Edmond. Un étranger avec, suos le bras, un livre de petit format, p. 112-115 apud BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 249. 449 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 249. “Chamem isto como quiserem: camaradagem, identificação imaginativa, empatia; só não podem dizer dessa opção que ela decorre de uma regra ou comando, seja uma injunção da razão, uma norma empiricamente demonstrada pelo conhecimento que busca a verdade, uma ordem de Deus ou um preceito legal.” Ibid. p. 249. 450 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 249. 451 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 249. Este caminho, entretanto, que leva da tolerância à solidariedade,452 é um caninho indeterminado, sendo ele mesmo contingente. “Viver em contingência” esclarece Zygmunt Bauman, “significa viver sem uma garantia, apenas com uma certeza provisória, pragmática, de Pirro, até ordem em contrário, e isso inclui o efeito emancipatório da solidariedade.”453 Conclui o autor: “A consciência da condição pósmoderna revela a tolerância como sina. Ela também torna possível – apenas possível – o longo caminho que leva do fado ao destino, da tolerância à solidariedade.”454 A teoria discursiva do direito e da democracia deliberativa estabelece contato direto com a sociologia do risco, com sua ambivalência, e o reconhecimento da contingência como destino comum. Aponta Habermas a solidariedade como uma das fontes da integração social, no paradigma procedimental de direito, constituído pelo conjunto de liberdades negativas, originário do direito liberal, e de liberdades positivas, da teoria republicana.455 Desta forma, no dizer de Habermas, “ao lado da instância 452 Erhard Denninger sustenta que novos ideais expandem e modificam os conceitos tradicionais herdados da Revolução Francesa, de modo que a fraternidade daria lugar à solidariedade, a igualdade à diversidade e a liberdade à segurança, e que tal fato ensejaria o reconhecimento de um novo paradigma constitucional. DENNINGER, Erhard: “Security, Diversity, Solidarity” instead of “Freedom, Equality, Fraternity”. In: Constellations, Volume 7, n° 4, Oxford: Blackwell Publishers Ltd., 2000. Na mesma edição da revista Constellations, Jürgen Habermas, em análise à tríade de postulados propostos por Denninger, reconhecendo a extensão dada a tais postulados, sustenta que não haveria mudança de paradigma constitucional, que as questões postas pelo autor seriam, em realidade, uma releitura dos mesmos princípios, influenciada pela identificação da radicalização do processo de modernidade, sob influxo do reconhecimento do risco: “For decades, Erhard Denninger has been one of the most productive and astute analysts of the transformation from a liberal to a welfare-state based conception of the constitution. In his earlier publications, he understood this change as a paradigm shift which, in reaction to a new societal challenges (first that of classical industry society, and thereafter that of the postindustrial risk society), realized an objective legal substance that was always implicit in the system of rights. His current perspective, however, extends a radically different understanding of the constitution to its principles and basic rights themselves. Denninger wants to ‘expand and modify’ the ideas of freedom, equality, and fraternity with the postulates of security, diversity, and solidarity [...] The trends which induce Denninger to introduce an additional triad of basic concepts all still seem to move within the normative framework of freedom, equality, and fraternity.” HABERMAS, Jürgen. Remarks on Erhard Denninger’s Triad. In: Constellations, Volume 7, n° 4, Oxford: Blackwell Publishers Ltd., 2000, p. 522/523. 453 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 250. 454 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 251. 455 O Republicanismo é uma filosofia política focada na liberdade, que possui seu eixo axiológico na noção de não-dominação, associada à construção de um Estado livre, configurando, na lição de Quentin Skinner, “uma comunidade na qual as ações do corpo político são determinadas pela vontade dos membros como um todo.” Surge na Roma Clássica, sendo repassada aos modernos a liberdade em que os antigos viviam, em razão de que “nenhuma lei podia ser imposta a eles sem que antes houvesse um consentimento nas assembléias do povo.” SKINNER, Quentin. Liberdade antes do Liberalismo. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1998, pp. 33-43. O estudo do Liberalismo e do Republicanismo pode ser aprofundado em: DUARTE, Fernanda; VIEIRA, José Ribas; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe Camargo; e GOMES, Maria Paulina. Os direitos à honra e à imagem pelo Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 35-94. A obra referida resulta de estudos desenvolvidos no Laboratório de Análise Jurisprudencial, do Grupo de reguladora hierárquica do poder supremo do Estado e da instância reguladora descentralizada do mercado” - poder administrativo e interesse próprio individual (dinheiro)456 – “entram a solidariedade e a orientação do bem comum como uma terceira fonte de integração social.”457 A esfera pública política e a sociedade civil devem garantir força de integração e autonomia à prática de entendimento dos cidadãos.458 O direito na sociedade de risco, assegura Habermas, deve assumir “a figura de ‘programas de relação’, que levam o próprio sistema que está gerando os perigos a re-orientações na regulação. Desta maneira, o direito funciona como catalisador de transformações internas.”459 A solidariedade surge indiretamente do direito, que garante “através da estabilização de expectativas de comportamento, relações simétricas de reconhecimento recíproco entre titulares abstratos de direitos subjetivos.”460 As formas de agir comunicativo que se tornam reflexivas – os discursos461 – desempenham um papel constitutivo na produção e no emprego de normas de direito. A sociedade de risco é uma realidade da Segunda Modernidade, e, para com ela conviver, há que se promover uma maior participação nas decisões que repercutem na sociedade. Desta forma, com Habermas, “a garantia de pretensões à participação no sentido de segurança social (e da proteção contra os perigos ecológicos ou técnicocientíficos) é fundamentada de modo relativo;” permanecendo referida à autodeterminação individual como condição para a autodeterminação política. 462 Em sociedades complexas, o que importa preservar é a “solidariedade social, em vias de Pesquisa “Constituição, Democracia e Direitos Fundamentais”, inscrito e certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), liderado por José Ribas Vieira, Margarida Maria Lacombe Camargo, e Fernanda Duarte, desenvolvido pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Gama Filho. O autor desta tese é integrante do Grupo e co-autor da obra. 456 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 308. 457 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 333. 458 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 333. 459 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 77. 460 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 308-309. 461 Esclarece Klaus Günther: “Os discursos são especializados em fundamentar pretensões de validade. Servem para resgatar, por meio de argumentos, a pretensão de veracidade, que se combina com o sentido ilocucionário de cada afirmativa, e a pretensão de correção, que se combina com o sentido ilocucionário de cada juízo normativo.” GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Tradução: Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 75. 462 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 157. Como adiante se verá, há, na teoria discursiva do direito de Habermas, total imbricação entre garantia dos direitos fundamentais – aí incluídos os direitos de informação – com a democracia. degradação, e as fontes do equilíbrio da natureza, em vias de esgotamento.” E com Habermas, conclui-se: “As forças da solidariedade social contemporânea só podem ser regeneradas através das práticas de autodeterminação comunicativa.”463 Capítulo III – Teoria Discursiva do Direito de Robert Alexy 3.1. Considerações iniciais; 3.2. A Teoria da argumentação jurídica de Robert. Alexy; 3.3. As regras da argumentação jurídica de Robert Alexy; 3.4. Princípios e sua aplicação na Teoria dos Direitos Fundamentais; 3.5. Constitucionalismo moderado e regra da proporcionalidade; 3.6. Proporcionalidade em sentido estrito: regras de colisão e de ponderação. 3.1. Considerações iniciais Nos capítulos anteriores, com o estudo da sociedade de risco, demonstrou-se que a Modernidade passou por profundas mudanças nas últimas décadas, imperando a ambivalência frente à segurança. De igual modo, sustentou-se que o liberalismo político – e tampouco o Estado social surgido em seu seio – atendem ao ideal de participação nas escolhas do Estado, num conclame para a promoção de um modelo de liberdades positivas, em complementação ao modelo de liberdades negativas existente. No campo econômico, o Estado reduz, em nível mundial, suas funções e seus quadros, redefinindo seu papel, afastando-se das concepções keynesianas de Estado Prestador, aproximandose de concepções neoliberais, com uma forma de intervenção mais branda: a regulação econômica. Do diálogo entre o Direito e a Economia, surge o que convencionou denominar de Estado Regulador, caracterizado por uma forma de intervenção estatal na 463 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 189. economia realizada especificamente por atos jurídicos – atos normativos ou contratos – no âmbito de uma legislação menos densa, mais porosa, com uma proeminente atividade de edição de normas pelo Poder Executivo. Partindo da existência de atos de fala que realizam uma ação social – atos regulativos, em que falar é fazer -, a Teoria do Agir Comunicativo, proposta por Habermas e adotada por Alexy, preocupa-se em identificar e propor modelos de fala que produzam resultados mais justos, que promovam o bem comum de todos os envolvidos no processo de fala, e que sejam pautados pelo critério da correção normativa.464 Para tanto propõe Habermas uma modalidade de coordenação do processo de comunicação - atos ilocucionários orientados ao acordo num agir comunicativo forte. Nesta linha, as pretensões de validez dependem de seu reconhecimento por falante e ouvinte, buscadas através de razões discursivamente demonstradas ou demonstráveis se necessidade houver - através de pretensões de verdade, de sinceridade e de correção normativa.465 Formata-se a ética dos falantes – a Ética do Discurso –, uma ética cognitivista, em que há uma substituição da noção de que a conduta correta é a do “eu” universalizável, para a noção de Discurso, de alteridade, onde são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.466 O direito, numa concepção póspositivista, não poderia ficar imune a todas estas transformações, negando-se a sofrer os influxos das demais ciências humanas que com ele intimamente se relacionam.467 464 Estes modelos de interação social serão relevantes quando da elaboração do procedimento no âmbito das agências reguladoras, em que deverá ser estabelecido o papel de cada um dos envolvidos no processo de formação da norma: diretores ou conselheiros, e atingidos – sociedade civil organizada e indivíduos. 465 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 61 a 141. Observa Habermas que a obra “Teoria do Agir Comunicativo”, publicado originalmente em 1981, representa sua virada rumo à “tentativa de uma fundamentação direta pela pragmática lingüística. Desde então, foi de modo independente de questões transcendentais do conhecimento que analisei os pressupostos pragmáticos da ação orientada ao entendimento mútuo.” HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação. Tradução: Milton Camargo Mota. Rio de Janeiro: edições Loyola, 2004, p. 13. 466 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 116. 467 Leciona Nicola Abbagnano que “ciência”, na concepção tradicional, é o conhecimento que inclui uma garantia da própria validade. Na concepção em voga atualmente, sem possuir pretensões de absoluto, busca, na medida do possível, sua correção, sendo a garantia única de sua validade a sua “autocorrigibilidade”. Tornando mais claro: se outrora era a demonstração “segura, certa, imutável fundada na razão” que garantia sua validade, atualmente é sua corrigibilidade que lhe confere validade: “Provar a falsidade de uma asserção significa, de fato, substituí-la por outra asserção, cuja falsidade ainda não foi provada, corrigindo, portanto, a primeira. A noção da autocorrigibilidade sem dúvida constitui a garantia menos dogmática que a Ciência pode exigir da sua própria validade. Permite uma análise menos preconceituosa dos instrumentos de verificação e controle de que cada Ciência dispõe.” ABBAGNANO, Uma teoria pós-positivista do direito, alimentada por conceitos e influenciada por construções das ciências sociais,468 afasta-se, como se procurou demonstrar até agora, da cátedra positivista em todas as suas vertentes. Deve ser contemplada, como esclarece Atienza, “en relación con el sistema social y con los diversos aspectos del sistema social: morales, políticos, económicos, culturales...”469 Em razão de a denominação “pós-positivismo” utilizada ser bastante ampla, englobando um grande leque de teorias, necessário se faz estabelecer as principais características da teoria proposta. Importa esclarecer que a teoria jurídica em tela é uma teoria cognitivista, lastrada que é na Ética do Discurso. A Ética do Discurso, uma teoria da argumentação proposta por Habermas, intenta propor um programa de fundamentação de um modelo procedimental aproximativo que permita a coordenação da ação comunicativa no sentido forte para a solução de questões práticas. Apresenta, para tanto, um modelo de Nicola. Trad. Alfredo Bossi. Dicionário de filosofia. 4. ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003, pp. 136-140. Na tese em exposição, embora as ciências sociais referidas tenham sido utilizadas de forma didática, numa divisão de campos de conhecimento, não se deve perder de vista que a sociologia do risco põe em crise os paradigmas destas ciências, e da própria divisão delas, conforma já explicitado no capítulo II. Nesta linha, esclarecem Marli Navarro e Telma Cardoso: “Esta dimensão vinculada à percepção de risco carreou o tema para as ciências sociais e para o campo da psicologia social, creditando aos estudos a importância da polissemia do termo risco, abrindo assim, as possibilidades de abordagens múltiplas e complementares nas análises de percepção de risco e conseqüentes avaliações, considerando a configuração de processos mentais identificados com os riscos, incluídos na realidade da construção da chamada sociedade de risco, na qual vivemos hoje”. Navarro, Marli B. M. de A.; Cardoso, Telma A. de O. (2005). Percepção de Risco e cognição: reflexão sobre a sociedade de risco. Ciências & Cognição; Ano 02, Vol. 06, nov./2005. Disponível em www.cienciasecognicao.org, com acesso em 26/09/2006. Boaventura de Sousa Santos, em reflexão sobre o conhecimento científico social, assevera: “A hermenêutica da epistemologia é o modo mais adequado de propiciar a transição para uma epistemologia pragmática. É uma hermenêutica crítica e sociológica porque privilegia, por contrapeso, a reflexão sobre a verdade social da ciência moderna como meio de questionar um conceito de verdade científica demasiado estreito, obcecado pela sua organização metódica e pela certeza, e pouco ou nada sensível à desorganização e à incerteza por ele provocadas na sociedade e nos indivíduos. É com esse olhar que se deve analisar a seguir a metodologia das ciências sociais.” SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, p. 45, 2000. Acerca da denominação “ciência pósmoderna”, esclarece o autor: “A época em que vivemos deve ser considerada uma época de transição entre o paradigma da ciência moderna e um novo paradigma, de cuja emergência se vão acumulando os sinais, e a que, à falta de melhor designação, chamo ciência pós-moderna.” Ibid, p. 11. Propõe o autor, como modelo dominante de aplicação do conhecimento científico pós-moderno, a “aplicação edificante”, em substituição à aplicação técnica do conhecimento. A aplicação edificante possui, dentre suas características, a seguinte: “Para além de um limite crítico socialmente definível, uma maior participação numa visão moral e política é melhor que um acréscimo no bem-estar material. O know-how técnico é imprescindível, mas o sentido do seu uso lhe é conferido pelo know-how ético que, como tal, tem prioridade na argumentação.” Ibid., p. 159. Vê-se, a um só tempo, uma contraposição à doutrina utilitarista, com a promoção da participação da sociedade nas escolhas, bem ainda uma prevalência das ciências sociais sobre as ciências naturais, aquelas como balizadoras das atividades destas. 468 A relevância das ciências sociais no estudo do direito foi demonstrada já no Capítulo II desta tese. 469 ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Cátedra Ernesto Garzón Valdés, 2003. Cidade do México: Distribuciones Fontanamara, 2005, p. 120. ética normativa em que atos de fala regulativos possam receber o assentimento racional de todos os envolvidos no processo de comunicação.470 Propõe a existência de decisões corretas – análogas à idéia de verdade -, opondo-se ao realismo jurídico,471 cujo ceticismo axiológico afasta a razão dos juízos de valor.472 A Teoria Discursiva do Direito, com seu correlato conceito de Democracia Deliberativa, se distancia a um só tempo de concepções positivistas e de pós-positivistas conflitantes.473 Propõe, como se demonstrará, refletindo sua origem ética cognitivista e pragmática, a produção de uma decisão - seja pelo Judiciário, Legislativo ou pela Administração Pública - normativamente correta e democrática, com a participação dos atingidos em processos de deliberação – especificamente, em audiências e consultas públicas.474 No âmbito específico da tese que se apresenta, a Teoria Discursiva do 470 A Ética do Discurso é proposta por Habermas em: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I e II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 471 O realismo jurídico é também uma modalidade de positivismo. ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Cátedra Ernesto Garzón Valdés, 2003. Cidade do México: Distribuciones Fontanamara, 2005, p. 98. 472 ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Cátedra Ernesto Garzón Valdés, 2003. Cidade do México: Distribuciones Fontanamara, 2005, pp. 97-98. Observa Atienza que para o realismo jurídico, os juízos de valor exercem um papel relevante na tomada de decisões, mas que sobre eles não é possível construir um discurso justificativo. Os juízos de valor são utilizados de forma retórica para persuadir. Ibid., p. 98. 473 Leciona Calmon de Passos, acerca das correntes procedimentais do direito: “Se o direito é uma das formas de emprestar sentido e significação ao agir do homem, ele reclama, para sua compreensão, ser analisado do ponto de vista da comunicação humana, donde a ineliminável dimensão intersubjetiva e lingüística de sua produção. Torna-se, pois, fundamental institucionalizar-se o que provisoriamente pode ser denominado de status activus processualis, concebido como o reconhecimento do direito fundamental de se participar, ativa e responsavelmente, nos procedimentos que objetivam produzir normas jurídicas, em todos os seus níveis, bem como na institucionalização das respectivas estruturas organizativas. Nessa linha de pensamento, Perez Luño menciona a obra coletiva recentemente publicada sob o titulo de Critical legal thought: an American-German debate, em que Häberle, Denninger e Wiethölter, entre outros, trabalham nessa direção. Diz Luño que se na década de cinqüenta o antiformalismo, o discurso da suplantação do direito legal e o modismo do direito alternativo dos juizes legisladores foi assunto da ordem do dia, a experiência mostrou o alto custo social e político, em termos de segurança jurídica, dessa formulação que, no fundo, era a de um discurso antidemocrático ou no mínimo democraticamente cético. Daí a reação em nossos dias dos chamados procedimentalistas que, para utilizar as palavras de Denninger, representam um esforço no sentido da garantia, através do procedimento, de um equilíbrio de posições entre os membros da sociedade democrática, tanto nas relações entre particulares como na relação destes com os poderes públicos. PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3062, com acesso em: 19/03/2007. É bastante esclarecedora a lição de Antonio-Enrique Pérez Luño, acerca da segurança jurídica no Estado de Direito, ao relacionar legalidade e legitimidade: “Pero el Estado de Derecho no es sólo un Estado de legalidad formal, sino aquel Estado en el que la legalidad se funda en la soberanía popular y se dirige a la tutela de los derechos fundamentales. El Estado de Derecho es, por tanto, una expresión de legitimidad política y precisamente por serlo se identifica con ese principio de legitimidad jurídica que representa la seguridad.” PEREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La seguridad jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 80. 474 Procede a crítica de Habermas ao modelo de Teoria do Discurso de Alexy, que não distingue os discursos de fundamentação – preponderantemente do Poder Legislativo – dos discursos de aplicação – dos Poderes Executivo e Judiciário. A distinção e a crítica a esta postura de Alexy serão tratadas no Direito serve à crítica e ao controle das normas e atos emanados pela Administração Regulatória. A Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa, a mais promissora resposta pós-positivista à crise de paradigmas do atual estágio da Modernidade, não é obra de um gênio só. Deriva da Ética do Discurso, que é na atualidade, como sublinha Arthur Kaufmann, “provavelmente o tema mais debatido da ética e da filosofia do direito formais.”475 Muitas foram as contribuições para sua configuração, destacando-se entre seus mais eminentes construtores Habermas476 e Alexy. As linhas gerais da teoria dos principais teóricos serão expostas de maneira crítica, seguindo-se, na medida do possível, uma linha do tempo que respeite a data da publicação original das principais obras que trataram do tema. 3.2 A Teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy Alexy foi o primeiro filósofo do direito a propor e a construir uma teoria da argumentação jurídica lastrada na Ética do Discurso de Habermas.477 Foi em Teoria da argumentação jurídica,478 publicada originalmente em 1978, que o autor apresentou sua Capítulo IV desta tese. 475 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução: António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 411. 476 A contribuição de Habermas para a institucionalização dos discursos jurídicos, numa vertente democrático-deliberativa, será estudada no Capítulo IV desta tese. 477 Em Habermas tem-se que a Ética do Discurso – Princípio do Discurso - ao deixar de aspirar ao “fundamentalismo da filosofia transcendental tradicional”, permite que novos campos sejam por ela controlados, servindo à construção de teorias jurídicas. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 121. É desta constatação que Alexy se serve para construir em Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, sua Teoria do Caso Especial. Do mesmo modo, o próprio Habermas, em Direito e democracia: entre facticidade e validade, constrói sua obra jurídica. 478 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 209-281. Nesta edição brasileira há um posfácio (pp. 289-314) em que o autor responde a alguns críticos de sua teoria, apresentando esclarecimentos, ampliações e novas questões, sem abandonar, entretanto, as linhas centrais da obra posfaciada. teoria como um caso especial do discurso prático geral, pautada na correção dos enunciados normativos479 – daí a denominação, tese do Caso Especial.480 Em 1985 traz à lume outra produção literária de fôlego: Teoría de los derechos fundamentales,481 em que propõe critérios diferenciados para aplicação de normas jurídicas - princípios e regras -, obra que, somada à primeira, determina o arcabouço teórico de sua produção intelectual até os dias de hoje.482 Nas linhas propostas nestas duas obras, seguiram-se outras, tratando de especificar ou de reformular alguns pontos combatidos por outros 479 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 45. 480 Alexy refere-se à aceitação por Habermas de sua Teoria do Caso Especial em: ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 308 – posfácio à obra. Habermas cita a tese de Alexy - que propõe que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral – já em: HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 110-115. Não há, entretanto, a aceitação desta tese por Habermas: “A tese do caso especial, defendida numa ou noutra versão [Günther ou Alexy], é plausível sob pontos de vistas heurísticos; porém ela sugere uma falsa subordinação do direito à moral, porque ainda não está totalmente liberta de conotações do direito natural.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 291. Nesta obra esclarece Habermas que o princípio do discurso, consubstanciado em princípio democrático, regula “relações interacionais entre pessoas jurídicas que se entendem como portadoras de direitos.” Desta forma, o discurso jurídico-político, institucionalizado conforme o direito – que assegura ao mesmo tempo autonomia privada e pública – “é interpretado e configurado no processo democrático da legislação e em processos da aplicação imparcial do direito.” Evita-se que “os discursos especializados na fundamentação e aplicação de leis tenham que ser introduzidos posteriormente, como casos especiais de discursos morais de fundamentação e de aplicação. (Ibid., p. 291). Os discursos jurídicos são “referidos naturalmente ao direito gerado democraticamente e institucionalizado juridicamente, na medida em que não se trata do trabalho de reflexão da dogmática jurídica. Com isso se torna claro [...] que discursos jurídicos [...] não se referem somente a normas jurídicas, por estarem inseridos no próprio sistema de direitos. Pois, do mesmo modo que os processos democráticos no âmbito da legislação, assim também as ordens dos processos judiciais no âmbito da aplicação do direito devem compensar a falibilidade e a certeza da decisão que resultam do fato de que os pressupostos comunicativos pretensiosos de discursos racionais só podem ser preenchidos aproximativamente.” (Ibid., p. 292) O tema será retomado no Capítulo IV. Alexy aponta numerosas objeções acerca de sua tese do Caso Especial, citando, nominalmente, Habermas: “Assim, Jürgen Habermas fez valer que o discurso jurídico não deveria ser entendido como caso especial do discurso moral, porque no direito, ao lado de fundamentos morais, também éticos e pragmáticos desempenham um papel legítimo.” Refutando a crítica, Alexy ratifica seu entendimento, sustentando que entre os três tipos de fundamentos do discurso jurídico – morais, éticos e pragmáticos – existem não só uma relação de complemento, mas também de penetração: “Se se pressupõe esse conceito do discurso prático geral, então é exata a tese do caso especial.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 40. 481 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 482 Em Teoría de los derechos fundamentales Alexy dedica as últimas vinte e cinco páginas especificamente ao tema da argumentação jurídica – discurso jusfundamental - remetendo o leitor à sua Teoria da argumentação jurídica. Adota a Teoria Discursiva do Direito, expondo sua teoria dos direitos fundamentais como uma teoria cognitivista, sustentada pela pretensão de correção normativa. Utiliza-se, inclusive, das regras do discurso jurídico expostos em sua Teoria da Argumentação, a exemplo das regras sobre a carga de argumentação, e da utilização dos precedentes. Sua Teoria dos Direitos Fundamentais é uma teoria da argumentação dos direitos fundamentais. (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 529-554). filósofos do direito,483 destacando-se El concepto y validez del derecho,484 com sua primeira edição em 1992, em que apresenta uma teoria do direito que une, num modelo de regras, princípios e procedimentos, as teses propostas em Teoria da argumentação jurídica e em Teoría de los derechos fundamentales. Além destes três livros referidos,485 outro estudo de relevo que servirá à compreensão atual da Teoria do Discurso de Alexy é Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales,486 publicado originalmente em 2002 como uma resposta às críticas dirigidas à sua teoria, especificamente à questão dos princípios como mandamentos de otimização, e à racionalidade do método de aplicação proposto – a proporcionalidade baseada na teoria dos princípios. Mais recentemente, em publicação de 2005, Teoría del discurso y derechos constitucionales,487 composta por três artigos – Teoría del discurso y derechos constitucionales; Los derechos constitucionales y el sistema jurídico; e Ponderación, control de constitucionalidad y representación - Alexy reafirma a íntima relação entre a Teoria Discursiva do Direito e a construção dos direitos fundamentais, retomando, na linha proposta em El concepto y validez del derecho,488 a idéia de argumentação e sua 483 Um dos críticos de Alexy é Habermas, que aponta falhas na utilização da regra da proporcionalidade para o alcance de resultados racionais, bem como a substituição de pressupostos comunicativos por um método de aplicação do direito, proposto em Teoria da argumentação jurídica. As críticas às teorias de ambos os autores – e destes, entre si - serão expostas no decorrer da apresentação de suas contribuições para a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa. 484 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004. 485 Quatro livros foram publicados por Robert Alexy, com autoria exclusiva. Além dos três mencionados anteriormente (Teoria da argumentação jurídica; Teoría de los derechos fundamentales; El concepto y validez del derecho), publicou ainda Los derechos fundamentales de la Constitución de Estonia, que não será estudado por fugir ao tema desta tese. O conjunto da obra do autor, entretanto, é muito rico em razão de sua constante atividade de produção literária, que já conta com outros sete livros em co-autoria, oitenta e três artigos publicados, e cinco resenhas de livros. A bibliografia do autor consta em: ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos constitucionales. Cátedra Ernesto Garzón Valdés – 2004. Tradução: Pablo Larrañaga; René González de la Vega. Cidade do México: Distribuciones Fontamara, 2005, pp. 109-125. No Brasil foi lançada uma compilação de artigos reunidos e traduzidos por Luís Afonso Heck sob o sugestivo título de Constitucionalismo discursivo, contando uma esclarecedora apresentação circunstancia de cada um dos artigos, escrita por Alexy. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 486 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004. A obra foi publicada originalmente como um artigo na Revista española de derecho constitucional, ano 22, n. 66, 2002, pp. 13-64. 487 ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos constitucionales. Cátedra Ernesto Garzón Valdés – 2004. Tradução: Pablo Larrañaga; René González de la Vega. Cidade do México: Distribuciones Fontamara, 2005. 488 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004. racionalidade discursiva, identificando a democracia deliberativa como um esforço para a instituição do Discurso como meio de tomada pública de decisões.489 No Brasil foi editada sua coletânea mais recente, composta por nove artigos publicados originalmente entre 1999 e 2005, sob o título Constitucionalismo discursivo,490 enfrentando questões acerca da pretensão de correção de sua Teoria Discursiva do Direito e a institucionalização da razão prática em sede constitucional, mais especificamente, em decisões no âmbito da jurisdição constitucional.491 O centro da teoria da jurisdição constitucional, assevera o autor nesta obra, está na relação entre o legislador e o juiz constitucional.492 Reformula alguns pontos acerca da ponderação, com reflexo nas fórmulas que apresenta.493 Não há na obra de Alexy - diferentemente de Habermas - uma teoria de produção do direito num um procedimento democrático discursivo – democracia deliberativa.494 Alexy prioriza a aplicação das regras e princípios de direito em relação à construção dos direitos humanos, servindo-se de procedimentos argumentativos jurídicos.495 Para a exposição da teoria delineada por Alexy se buscará seguir os passos que o mesmo trilhou, na medida do possível, na seqüência de sua produção literária. 489 Alexy, Robert. Ponderación, control de constitucionalidad y representación. In: ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos constitucionales. Cátedra Ernesto Garzón Valdés – 2004. Tradução: René González de la Vega. Cidade do México: Distribuciones Fontamara, 2005, p. 100. 490 Por constitucionalismo discursivo entende-se a institucionalização da razão e da correção no controle de constitucionalidade das leis. ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos constitucionales. Cátedra Ernesto Garzón Valdés – 2004. Tradução: Pablo Larrañaga; René González de la Vega. Cidade do México: Distribuciones Fontamara, 2005, p. 103. 491 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 492 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 09-17. 493 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 131-153. 494 Reconhece o autor a necessidade de institucionalização de um procedimento legislativo do Estado democrático de direito “definido por un sistema de reglas que, comparado con las alternativa fácticamente posibles garantiza una medida considerable de racionalidad práctica y, en este sentido, es justificable dentro del marco del primer procedimiento” – o discurso prático geral. Embora identifique a raiz para a construção de um modelo discursivo de democracia – a que Habermas denominará de Democracia Deliberativa – não avança neste ponto. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 531. 495 A vertente jurídica de Alexy é substituída pela democrática, em Habermas. Se em Alexy, a moral e o direito estão como temas centrais de sua construção, em Habermas estão presentes a moral e o princípio democrático, como institucionalização da razão discursiva, pautada pelo Princípio do Discurso. A primeira contribuição na construção de uma Teoria Discursiva do Direito foi a Teoria do Caso Especial,496 apresentada em Teoria da argumentação jurídica. Nessa obra, pautada pela identificação e proposição da estrutura lógica dos argumentos e fundamentação de critérios para a racionalidade do discurso - postura analíticonormativa -, Alexy desenvolve sua teoria do discurso jurídico.497 Esclarece Alexy que no discurso prático geral não há qualquer prescrição sobre de “quais premissas devem partir os participantes do discurso”, sendo o ponto de partida do discurso “formado pelas convicções normativas, interesses e interpretações de necessidades dadas (isto é, existentes faticamente), assim como pelas informações empíricas dos participantes.”498 Embora as regras do discurso indiquem que se pode chegar a “enunciados normativos fundamentados” com base nos pontos de partida referidos, não é proposto, nas regras do discurso, um passo a passo para tanto. Desta forma, por não está determinado “como se entrecruzam as interpretações de necessidade, como devem ser modificadas as convicções normativas e como os interesses devem ser limitados, conclui-se que são possíveis diferentes resultados.”499 As regras do discurso – prático geral – definem “um processo de decisão em que não está determinado o que se deve tomar como base da decisão e em que nem todos os passos estão prescritos. Isso por um lado é um defeito e, por outro, uma vantagem.” 500 O defeito – evidente – é que a solução do processo discursivo fica muito aberta; e a vantagem consiste em que a base da decisão – seu ponto de partida – e os passos para o alcance dela não são determinados por qualquer teórico: são constituídos pelos 496 A tese do Caso Especial é a racionalidade jurídica interpretada pela teoria do discurso. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 308 – posfácio à obra. 497 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 45. 498 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 47. 499 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 47. Esta assertiva de Alexy, já na introdução à sua teoria, permite entrever o não acatamento da tese da única decisão/solução correta, defendida por Dworkin e por Habermas em sua Ética do Discurso, com reflexos em sua teoria do direito. Para Alexy, como adiante se demonstrará, tal qual o discurso, a aplicação proporcional de princípios (otimizáveis) também não pretende chegar a uma única solução correta. 500 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 47. afetados501 e pela questão que necessita de uma solução.502 Assim, as regras do discurso prático geral devem ser fracas o suficiente para que pessoas com concepções normativas diferentes possam entrar em acordo quanto a elas, e forte o bastante para que “uma discussão pautada nelas possa ser qualificada como ‘racional’.”503 As regras, ressalta Alexy, só podem ser cumpridas aproximativamente, servindo essencialmente a “pretensão de correção, como critério da correção de enunciados normativos, como instrumento de crítica de fundamentação não-racionais e também como precisão de um ideal a que se aspira.”504 É esta vocação para a produção de normas ou de uma mandamento singular justos que enseja o reconhecimento da serventia da Ética do Discurso à teoria do direito: “A Teoria do Discurso é, portanto, uma das várias formas possíveis para a análise desse conceito tão central para a Ciência do Direito.”505 O ponto de partida de sua investigação é a limitada possibilidade de alcançar soluções vinculantes no discurso prático geral, especialmente na hipótese de ser “possível fundamentar duas proposições normativas ou regras incompatíveis entre si”.506 Em tais discursos, em que há esta “possibilidade discursiva”, fundamentam-se 501 Em Alexy, a decisão que afeta negativamente o interesse de alguém deve ser explicada, justificada. O afetado deve ser convencido que das razões que lhe negaram determinada pretensão. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 214. Neste ponto, nota-se o cariz discursivo atribuído ao ato de decisão judicial. Não há, entretanto, como em Habermas, um espaço efetivo para o discurso, embora haja a preocupação em sustentar as pretensões de validade trazidas na argumentação (fundamentação) da decisão. O discurso efetivo que há é anterior à decisão, no decorrer do processo que ensejou a decisão judicial, e dele só participam as partes e intervenientes do processo. O juiz, neste modelo, é influenciado pelas argumentações das partes, mas, apenas ao encerrar a prestação jurisdicional expõe sua decisão, que – em regra - não mais poderá ser reconsiderada pelo mesmo. Apenas em grau de recurso é que as pretensões de validade trazidas na sentença poderão ser questionadas. Mas aí, repita-se, o juiz não fará parte do novo discurso, promovido - regra geral – em outra instância. 502 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 47. Este é um forte ponto de contato com a teoria democrática de Habermas. 503 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 47. 504 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 47. 505 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 48. Esclarece o autor que a especialidade da argumentação jurídica ameniza as debilidades da argumentação geral, ainda que nunca possam ser eliminadas. A argumentação jurídica racional, com seu procedimento, não garante de forma absoluta, a segurança do resultado. Tal fato, entretanto, não diminui a relevância da teoria, tampouco atinge o direito enquanto ciência: “O simples fato de não se poder alcançar a segurança dificilmente pode ser visto como razão suficiente para se negar à Ciência do Direito o caráter de uma ciência ou de uma atividade racional.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 279. A noção de correção, no atual estágio da Modernidade Reflexiva, substitui a de segurança jurídica pautada na legalidade estrita e no formalismo jurídico, buscada – mas não alcançada – na Primeira modernidade. Vide capítulo II. 506 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 207. “regras que permitem decidir entre duas soluções contraditórias discursivamente possíveis.”507 As regras emanadas pelo Poder Legislativo – pautadas pela representação e pelo respeito à regra da maioria - como também as regras emanadas pelo Poder Judiciário – podendo-se se incluir as normas produzidas pelo Poder Executivo – são “necessárias e razoáveis” para conseguir o desejado efeito vinculante: “Os limites do discurso prático geral508 fundamentam a necessidade de regras jurídicas. Com isso se produz a transição para o discurso jurídico.”509 É central, em Alexy, a idéia de que o discurso jurídico é um caso especial de discurso prático geral, sendo ambos pautados pela correção dos enunciados normativos – mais precisamente, em atos de fala regulativos.510 A pretensão de correção normativa está presente em ambas as modalidades de discurso, sendo o discurso jurídico um caso especial por ocorrer “sob uma série de condições limitadoras”, o que não deve impedir que um enunciado jurídico seja racionalmente fundamentável.511 A discussão jurídica com debates sob a pretensão de correção normativa – têm como referência, portanto, as condições ideais do discurso prático geral.512 Mais ainda: “A argumentação prática geral constitui [...] o fundamento da argumentação jurídica.”513 Quatro aspectos são apontados como vinculantes das duas espécies de discursos: a necessidade do discurso jurídico em virtude da natureza (não-vinculante) do Frise-se que Alexy não é partidário da existência de uma única decisão correta. Sustenta este posicionamento em toda a sua obra, seja quando apresenta critérios para a aplicação e fundamentação de regras - Teoria da argumentação jurídica – seja quando trata da aplicação e fundamentação de princípios - Teoría de los derechos fundamentales. 507 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 208. 508 A incerteza é apontada, genericamente, como sua limitação. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 275-276. 509 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 207-208. Como adiante se demonstrará, em Habermas, a proposta é que o discurso prático seja institucionalizado e se transmude em discurso democrático deliberativo. Ambos os autores - Habermas e Alexy - apontam, entretanto, a carência de vinculação do discurso prático do tipo geral. 510 Não se pode olvidar que a teoria do discurso está atrelada à teoria do agir comunicativo. Uma decisão judicial é um ato de linguagem ilocucionário completo. 511 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 46. 512 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 217. 513 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 274. discurso prático geral;514 a coincidência parcial com a pretensão de correção,515 a coincidência estrutural das regras e formas de ambos os discursos,516 e a necessidade da argumentação prática geral no âmbito da argumentação jurídica.517 A Teoria Discursiva do Direito em Alexy, calcada num sistema jurídico de regras, princípios e procedimentos,518 parte da constatação - irretorquível - de não ser possível, sobre a base da teoria Ética do Discurso, demonstrar que uma determinada solução seja necessária ou impossível: a Ética do Discurso, embora possa concretamente 514 Em Alexy: “A necessidade do discurso jurídico surge da debilidade das regras e formas do discurso geral, que definem um procedimento de decisão que em numerosos casos não leva a nenhum resultado e que, se leva a um resultado, não garante nenhuma segurança definitiva.” Há sempre a possibilidade de não se alcançar nenhum acordo, e tal fato não pode gerar incertezas jurídicas, sendo necessária a institucionalização de um “procedimento que limite o campo do possível discursivamente de maneira mais racional possível.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 275. 515 A pretensão de correção, diferentemente do que ocorre no discurso prático geral, “não se refere à necessidade absoluta de racionalidade dos enunciados normativos em questão, mas à sua fundamentabilidade racional no âmbito do ordenamento jurídico vigente.” Observa Alexy que a racionalidade da argumentação estará sempre relacionada à racionalidade da legislação. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 276. Neste ponto, pode-se compreender por que a legislação, especialmente a textura da lei – maior ou menor densidade normativa – irá determinar a racionalidade da argumentação que relativamente a ela se produzirá. Este ponto é essencial à tese que se apresenta. 516 As regras do discurso jurídico, como se demonstrará, são variantes das regras do discurso prático geral, a começar pela regra da universalidade, que se transmuda na regra de tratamento formalmente igual. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 276-277. Não se deve confundir esta noção de tratamento formalmente igual no processo com o núcleo do princípio da igualdade apresentado na Teoria dos Direitos Fundamentais de Alexy. Nesta obra, o autor relaciona o princípio da igualdade com a proibição de arbitrariedade no tratamento com igualdade ou arbitrariedade: se existir razão justificada discursivamente que permita um tratamento desigual, este estará autorizado. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 381-416. 517 “O fato de a argumentação jurídica depender da argumentação prática geral não significa que seja idêntica ou que se possa reduzir a ela. A argumentação prática geral necessária do discurso jurídico ocorre segundo formas especiais e segundo regras especiais e sob condições especiais. Estas formas e regras especiais levam tanto a uma consolidação como a uma diferenciação da argumentação.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 279. 518 Esta concepção em três níveis é proposta apenas em El concepto y validez del derecho, publicado em 1992 (ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 161-173). Até então, em Teoría de los derechos fundamentales, o autor propunha um sistema de direitos em dois níveis apenas – regras e princípios (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 115-138). Nesta obra, o autor se refere às bases da argumentação jusfundamental - pp. 533-554 - afirmando: “El discurso iusfundamental es un procedimiento argumentativo en el que lo que se trata es de lograr resultados iusfundamentales correctos sobre la base presentada.” (Ibid. p. 553) Em Teoria da argumentação jurídica o foco do autor são as regras de direito, e não os princípios. Nesta obra, o autor chega a afirmar que: “O problema da argumentação a partir de princípios não consiste tanto na justificação dos princípios, mas especialmente no fato de a norma a ser fundamentada não se seguir em geral diretamente dos princípios. É necessária uma concreção dos princípios com a ajuda de novos enunciados normativos.” Esta postura é abandonada determinar algo, deixa a solução muito aberta, pois nem tudo que vale discursivamente, pode ao mesmo tempo possuir validade juridicamente.519 Reconhecendo que a liberdade dos argumentos é limitada externamente pelo ordenamento jurídico - formado por leis, Ciência do Direito, precedentes jurisprudenciais, racionalidade do processo de argumentação, argumentação empírica e por formas especiais de argumentos jurídicos520- propõe “como se deve determinar a relação do controle de correção com o controle de concordância”, levando em conta estas limitações do discurso jurídico.521 O problema mais importante da tese do Caso Especial concerne ao conteúdo da pretensão de correção, com a proposta da formação de afirmações jurídicas e de decisões judiciais “corretas de acordo com a ordem jurídica vigente: isso ocorre se se podem fundamentar racionalmente levando em conta a lei, o precedente e a dogmática.”522 já em Teoría de los derechos fundamentales, onde adota um método de aplicação dos princípios - a proporcionalidade – numa linha argumentativa. O tema será retomado ainda neste capítulo. 519 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 156. 520 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 227. 521 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 47. O fato de se considerar, nesta tese, que a atuação administrativa normativa possui natureza mista, não só de aplicação como também de fundamentação de direito, faz com que se adotem as linhas gerais da construção de Alexy, voltada para a aplicação, como um elemento a ser considerado no procedimento democrático-deliberativo de elaboração de normas. A proporcionalidade, como adiante se demonstrará, pode ser apontada como o mais importante elemento diretor na produção das normas por Agências Reguladoras, desde que submetido às regras de um discurso efetivo. 522 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 310-311 – posfácio à obra. A tese de Alexy foi muito combatida, especialmente por considerarem especialmente Tugendhat, U. Neumann e C. Braun, referidos pelo autor – que o discurso jurídico não seria um minus em relação ao discurso prático geral, mas sim um aliud, uma coisa distinta. (Ibid. p. 311) A teoria do caso especial de Alexy, dirigida especialmente à escolha do método pelos tribunais, oferece uma teoria argumentativa para lidar com a questão da “incompletude da lei”. Dentre as críticas apresentadas à teoria, muitas esclarecidas por Alexy em posfácio à Teoria da argumentação jurídica, têm-se as considerações de Arthur Kaufmann. Reconhecendo a excelência das regras prescritivas de argumentação e de preferência, esclarece que “a objeção está apenas em estas regras valerem na verdade para o discurso racional, mas não para o processo jurisdicional.” Para Kaufmann, não há razão para se conceber o discurso jurídico como um “caso particular” do discurso racional. E explica: “O processo jurisdicional é preponderantemente um agir estratégico, não comunicativo, visa, em considerável medida, utilidades, não apenas o conhecimento verdadeiro, pois não está isento de dominação, os participantes estão vinculados à lei, mesmo a uma lei deficiente, o processo não pode ser continuado até ao infinito ou mesmo apenas até à exaustão dos argumentos (quando existirá acordo sobre uma tal exaustão?) e termina mesmo sem consenso, não tem de servir apenas a verdade e justiça, mas também, e antes de mais a paz jurídica, pelo que a sentenças judiciais, mesmo as injustas, transitam em julgado, o que é totalmente impossível num discurso racional. Que todos os participantes num processo jurisdicional realmente ‘pretendam argumentar racionalmente’, o que Alexy aponta como essencial na sua teoria do caso particular, parece-me, à luz da minha experiência judicial, mais do que duvidoso (o arguido pode até mentir impunemente, alguns processualistas aceitam mesmo que ele tenha um direito à mentira); mas mesmo assim, isto por si só não tornaria ainda o processo jurisdicional num discurso racional, a não ser que a palavra ‘racional’ não se reduza a uma categoria totalmente formal, e seja antes compreendida sobretudo como racionalidade material.” KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução: António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, pp. 134-135. Diferentemente do que afirma Esclarece Alexy que a teoria do discurso - este ponto é central à tese que apresenta - deve ser situada no contexto de uma teoria completa do Estado e do Direito,523 numa trajetória composta por quatro passos: o reconhecimento do caráter aberto do resultado em qualquer caso de discurso prático real; o que justifica o segundo passo: a institucionalização de um procedimento para a produção de normas jurídicas – um “processo de legislação do Estado Democrático de Direito” com “procedimentos de produção do Direito que realizem na maior medida possível o ideal da racionalidade discursiva”;524 a necessidade do discurso jurídico (tese do Caso Especial) como forma de buscar resultados corretos na aplicação do direito, em razão da impossibilidade de a legislação “determinar, para cada caso, de antemão, precisamente uma solução”; 525 e, Kaufmann, o agir estratégico das partes no processo é limitado por normas deônticas que reprimem a litigância de má-fé - no direito processual brasileiro, previstas no Código de Processo Civil (CPC), art. 14-18. Estabelecem deveres de expor o fato conforme a verdade (empírica), de agir com lealdade processual e boa-fé, de não formular pretensões ou defesas cientes da ausência de fundamentação, de não produzir provas ou atos processuais desnecessários à obtenção do provimento judicial, de usar o processo para a consecução de objetivos ilegais e de promover incidentes processuais manifestamente infundados. Proíbem, ainda, a utilização de expressões injuriosas no processo, determinando, em caso de desobediência, que sejam riscadas. Embora pouco utilizadas no cotidiano forense, estabelece o CPC a aplicação de sanções ao litigante de má-fé, consistindo no dever de indenizar à parte contrária os prejuízos que sofreu, mais os honorários advocatícios e demais despesas que efetuou. Há, como bem se pode perceber, uma preocupação do processo com a correção normativa. Este não é, como quer Kaufmann, uma operação agonística, de agir estratégico sem qualquer dever de verdade ou lealdade. O fato de as partes - e seus procuradores – não se pautarem pela correção normativa pode ensejar punições. Alexy, no posfácio de sua obra Teoria da argumentação jurídica, responde aos questionamentos dos críticos, pondo a correção normativa não como um dever processual, mas antes, como uma condição para a obtenção de uma sentença que lhe seja favorável; a correção, ademais, é restrita, referindo-se à compatibilidade com a ordem jurídica vigente. Outro ponto que é essencial à sua compreensão, é que a teoria não é dirigida especificamente às partes no processo, e sim ao juiz. Ainda que as partes ajam estrategicamente, e que apenas dêem a aparência de buscarem algo normativamente correto – justo – o juiz deverá pautar-se não pelo agir das partes, mas por critérios de correção – o juiz dirige o processo e deve reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça – art. 125 do CPC. É pontual Alexy ao afirmar: “As regras e formas do discurso jurídico constituem, por isso um critério de correção para as decisões jurídicas.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 280. Como adiante se demonstrará, há um paralelo entre a atuação das partes no processo judicial, e os afetados num processo de consulta popular ou de audiência pública numa agência reguladora; bem como entre o papel do juiz – com sua imparcialidade e dever de correção fundamentado – e o colegiado que delibera (Diretoria) em agências reguladoras. 523 No Brasil existem obras que tratam especificamente do emprego da racionalidade discursiva à atividade legislativa e à atividade judicial. A atividade administrativa do Estado, que na atualidade exerce funções normativas, não foi, até o momento, contemplada com a preocupação dos estudiosos da teoria do discurso. 524 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 311 – posfácio à obra. Esta é a linha de investigação de Habermas: uma proposta de racionalidade discursiva para a produção de normas de direito. Denomina-se esta forma argumentativa de produção de normas de Democracia Deliberativa. 525 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 311 – posfácio à obra. Esclarece o autor que discurso jurídico não é uma variante do discurso prático destinado a preencher lacunas jurídicas, mas sim “um elemento necessário da racionalidade discursiva realizada.” (Ibid. p. 312) como quarto passo, a necessidade de institucionalização da forma mais racional possível do processo judicial.526 Ocupando-se especialmente do terceiro passo deste sistema jurídico pautado pela racionalidade discursiva,527 apresenta, “regras e formas do discurso” que constituem “um critério de correção para as decisões jurídicas.”528 A tese do Caso Especial se situa no campo da justificação externa de uma decisão jurídica: “Na justificação interna529 verifica-se se a decisão se segue logicamente das premissas que se expõem como fundamentação; o objeto da justificação externa é a correção destas premissas.”530 Tornando mais clara esta passagem: se na justificação interna a questão é de lógica entre premissas e conclusão - o que se convencionou denominar de silogismo jurídico -, na justificação externa se trata de buscar uma fundamentação para as fontes – elementos, regras e formas - que serão utilizadas na argumentação como premissas da justificação interna – do silogismo lógico da decisão. Ainda assim, não são todos os tipos de premissas externas que serão objeto de estudo da Teoria do Caso Especial. 526 Neste tópico específico, esclarece Alexy que num processo judicial, a pretensão de correção não é apenas “uma condição de êxito, mas também uma condição do jogo.” As partes, num processo, não pedem meramente algo que lhe seja mais vantajoso, mas sim algo que seja justo, correto. E será com o argumento da correção que esta conseguirá uma decisão favorável. Se o juiz julgar favoravelmente a alguma parte sem levar em consideração os argumentos de correção e justiça – “outorgo uma vantagem ao Sr. N porque é para ele que mais favoravelmente me tendi” – “não se trata mais de um debate judicial, ainda que tudo se desenvolva dentro do âmbito institucional de um sistema judicial.” A argumentação diante do juiz não só pode, mas “deve ser interpretada no sentido da teoria do discurso.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 314 – posfácio à obra. 527 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 312 – posfácio à obra. 528 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 280. 529 A justificação interna de uma decisão jurídica, embora não seja objeto de análise nesta tese, merece algumas considerações, especialmente em sua relação com a justificação externa. As regras e formas de argumentação da justificação interna referem-se à estrutura formal da argumentação, que “deve seguir-se logicamente ao menos de uma norma universal, junto a outras proposições.” As premissas utilizadas em tal procedimento, entretanto, não podem, em regra, ser deduzidas diretamente de nenhuma lei. A exigência de dedução lógica conduz, desta forma, à necessidade da parte criativa para a aplicação do direito: “As premissas não extraídas diretamente do direito positivo aparecem explicitamente em toda a sua extensão. Esse é talvez o aspecto mais importante da exigência de justificação interna. Fundamentar essas premissas não extraídas diretamente do direito positivo é tarefa da justificação externa.” Outra questão a ser compreendida é a relação entre fato e norma: esclarece Alexy que “para fundamentar as regras necessárias para cada nível particular de desenvolvimento [da justificação interna], é preciso entrar com profundidade tanto nas especificidades dos fatos como nas particularidades da norma. Isso ocorre na justificação externa, na qual são possíveis todos os argumentos admissíveis no discurso jurídico.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 218-226. 530 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 218. O autor distingue três grupos de premissas que apresentam variadas interrelações na fundamentação de discursos jurídicos:531 regras de direito positivo, enunciados empíricos, e premissas que não são enunciados empíricos nem regras de direito positivo.532 As premissas do primeiro grupo se fundamentam em se demonstrando “sua conformidade com os critérios de validade do ordenamento jurídico.”533 O autor não defende, entretanto, a adoção da literalidade da lei com a noção carreada no brocardo medieval In claris cessat interpretatio. Na atualidade, a dogmática é uníssona quanto à não aplicabilidade da máxima. O que o autor entende por “regras de direito positivo” é a discussão que envolve a validade da lei, sua vigência, eficácia; ou ainda a ilegalidade de uma norma baixada pela Administração, por exemplo. Tanto é assim que a interpretação da lei, como se verá, é uma das formas de justificação externa que integra a argumentação jurídica, abarcada por sua teoria. As do segundo grupo valem-se desde “os métodos das ciências empíricas, passando pelas máximas da presunção racional, até as regras de ônus da prova no processo.”534 Os enunciados empíricos podem corresponder “a diversas áreas da ciência, como a Economia, a Sociologia, a Psicologia, a Medicina, a Lingüística, etc.” Disto se conclui que uma teoria da argumentação que leve em conta – em razão da inter-relação entre os três grupos de fundamentação – os problemas do conhecimento empírico, tem que incluí-los na argumentação jurídica, sendo necessária uma “cooperação interdisciplinar.”535 Este aspecto é essencial à tese que se apresenta, por permitir entrever que a argumentação jurídica – e democrática – oferece espaço para que as pretensões de validade sejam dirigidas a questões técnicas, relacionados diretamente com a busca da eficiência. Alexy denomina tal possibilidade de “regras de transição”, que no caso específico, estabelece que para qualquer falante seja possível, em qualquer momento, passar a um discurso empírico.536 531 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 227. 532 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 226. 533 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 226. 534 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 228. 535 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 228. 536 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 229. A regra de transição referida é a 6.1, explicitada às pp. 206-207. São regras de transição: 6.1) Para qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso teórico (empírico). 6.2) Para qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso de análise da linguagem. 6.3) Para Para as do terceiro grupo “aplica-se o que se pode designar de ‘argumentação jurídica’”,537 ponto central de sua teoria da argumentação. Como bem se pode perceber do que foi dito acima, há uma delimitação do campo de atuação de sua tese: fundamentação de premissas postas em decisões judiciais, que não se enquadrem na questão da validade de normas do direito positivo ou em enunciados empíricos, estando fora do campo de sua investigação a compatibilidade lógica entre as premissas e a conclusão que formam uma decisão. Não pretende Alexy cometer os mesmos erros da tópica delineada por Theodor Viehweg,538 que ao propor a utilização de argumentos plausíveis 539 “premissas que parecem verdadeiras com base em uma opinião reconhecida”540 – entendidos “de modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento”,541 subestimou, segundo Alexy, a “importância da lei, da dogmática jurídica e do precedente, na insuficiente penetração na estrutura dos argumentos, assim como na insuficiente precisão do conceito de discussão.”542 Aferrase, entretanto, à tese da tópica de que, ainda que não sejam possíveis fundamentações qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso de teoria do discurso. 537 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 226. 538 Acerca da tópica, esclarece Viehweg: “A tópica prestou [...] grandes serviços à jurisprudência [como expressão sinônima de ciência do direito]. Porém [...] faz com que a jurisprudência não possa converterse em um método, pois só pode chamar-se método um procedimento que seria lógica e rigorosamente verificável e crie um nexo unívoco de fundamentos, quer dizer, um sistema dedutivo.” VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 71. Outra questão essencial da tópica é seu conceito procedimental de justiça: a partir do relacionamento discursivo, “surgem como que por si deveres comunicativos, pois o processo de produção intelectual, que, da situação pragmática inicial, se desdobra em uma dialegesthal, não é, sem estas obrigações, realizável. Quem se envolve em uma situação discursiva, assume deveres, o que outra vez é algo bastante compreensível para o jurista prático.” (Ibid. pp. 106-107) Nestes aspectos residem as principais semelhanças entre a tópica e a Teoria Discursiva do Direito: diferentemente de teorias positivistas tradicionais, o discurso não é pautado por uma lógica formal dedutiva, mas sim por uma lógica informal, extraindo a universalidade, como teste da correção normativa de condutas práticas, de um princípio indutivo – o Princípio da Universalização. Não há, como se pode facilmente perceber, o abandono da racionalidade, mas a proposição de uma nova racionalidade, a discursiva. Esclarece Alexy: “A tese do caso especial afirma que é necessário interpretar a racionalidade jurídica de acordo com a teoria do discurso.” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 309 – posfácio à obra. Reafirme-se que a proposta de Alexy é direcionada à fundamentação das decisões judiciais, ao passo que Habermas propõe sua teoria numa linha democrática de produção de normas – apenas reflexamente trata do controle da atividade jurisdicional. 539 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 50. 540 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 25. 541 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 38. 542 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 52. concludentes, “não se deve conduzir à decisão irracional, assim como a idéia de que o conceito de fundamentação racional está estreitamente entrelaçado com o de discurso racional.”543 Viehweg, em sua Tópica e jurisprudência identifica, na teoria filosófica do discurso, um importante campo de desenvolvimento de sua teoria. Para ele, “quem fala tem de poder justificar sua fala”, e só o preenchimento dos deveres discursivos – como defesa e esclarecimento – garantem afirmações “suficientemente” confiáveis, nas quais exista um interesse geral.544 Reconhecendo que a lei escrita nem sempre cumpre sua função de resolver um problema de forma justa, propõe Alexy que a decisão judicial preencha este espaço – de forma criativa, inclusive -, segundo critérios de razão prática e concepções gerais de justiça, consolidadas na coletividade: “O juiz deve atuar sem arbitrariedade; sua decisão deve ser fundamentada em uma argumentação racional.”545 Admitindo a possibilidade da existência de leis irracionais ou injustas, mesmo em sistemas que possuam tribunais constitucionais desenvolvidos, e permissão – em hard cases - de decidir contra o teor da lei,546 atribui ao discurso jurídico “um papel essencial na decisão da justiça constitucional ou na fundamentação de uma decisão contra legem.”547 Reconhece Alexy que numa obrigatória vinculação de um juiz a uma decisão do tribunal superior há uma limitação à teoria do discurso. Tal fato, entretanto, não invalida a tese do Caso Especial: primeiro, em razão da tese do Caso Especial reconhecer, expressamente, a existência de limites na argumentação (como os já mencionados: lei, precedente, dogmática); e segundo, pela delimitação da pretensão de correção das decisões, que devem ser corretas no âmbito da ordem jurídica válida” 543 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 52-53. 544 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 107. 545 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 53. Acerca de sua pretensão de construção de uma metodologia jurídica: “Não é só Viehweg quem considera necessária a elaboração de uma teoria retórica da argumentação contemporânea amplamente desenvolvida. Hassemer fala que uma teoria da argumentação jurídica pertence às finalidades mais urgentes da ciência do direito. Rottleuthner considera que a Ciência do Direito como disciplina normativa [tem que ser entendida] como teoria da argumentação. Rödig assevera que o juiz não [pode] decidir ... somente com base na capacidade de extrair logicamente conclusões válidas. Ele deve poder argumentar racionalmente também quando não há os pressupostos da demonstração lógica. É claro que tais situações existem, porém, não é claro o método de argumentar ‘racionalmente’ nelas.” (Ibid. p. 53) 546 Para Alexy, apenas quando houver permissão legal poderá o juiz julgar contra o teor da lei. 547 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 312 – posfácio à obra. composta por um “direito válido [que] seja racional e justo.”548 As decisões jurídicas, esclarece Alexy, “pretendem ser corretas enquanto decisões jurídicas.”549 Nesta hipótese, “o lugar do discurso jurídico na aplicação desta lei [injusta] se restringe tanto até ser nulo.”550 Não se anula, entretanto, a sua importância: “A racionalidade discursiva não pode determinar o conteúdo da decisão, mas aponta o motivo de sua incorreção e a medida de sua crítica.”551 A tese do Caso Especial consiste, quanto à questão da pretensão da correção, “na incrustação da argumentação jurídica no contexto de uma racionalidade discursiva que compreende a totalidade do sistema jurídico.”552 O autor constrói sua teoria discursiva com enfoque na fundamentação da decisão judicial, com fito de lhe conferir legitimidade, relacionando-a à questão do controle desta decisão, buscando fornecer um método, ou mais precisamente, um procedimento para tanto.553 Esta preocupação de Alexy com uma racionalidade do método acompanha toda sua obra, seja na oferta das regras de argumentação jurídica constantes em Teoria da argumentação jurídica, seja nas regras da aplicação de princípios, mandamentos de otimização que se servem da regra da proporcionalidade, propostos em Teoría de los derechos fundamentales. Sua postura deriva da concepção da teoria do discurso geral como “teoria procedimental da correção prática”, lastrada na 548 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 312 – posfácio à obra. 549 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 313 – posfácio à obra. 550 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 313 – posfácio à obra. 551 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 313 – posfácio à obra. Este ponto parece ter sido reformulado pelo autor em El concepto e validez del derecho ao adotar o argumento da injustiça (p. 34) em sua concepção de direito: “El derecho es un sistema de normas que (1) formula una pretensión de corrección, (2) consiste en la totalidad de las normas que pertenecen a una Constitución en general eficaz y no son extremadamente injustas, como así también en la totalidad de las normas promulgadas de acuerdo con esta Constitución y que poseen un mínimo de eficacia social o de probabilidad de eficacia y no son extremadamente injustas y al que (3) pertenecen los principios y otros argumentos normativos en los que se apoya el procedimiento de de la aplicación del derecho y/o tiene que apoyarse a fin de satisfacer la pretensión de corrección.” ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 123. 552 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 313 – posfácio à obra. 553 É este, mutatis mutandi, o objetivo da tese que se apresenta: buscar critérios para fundamentar a decisão administrativa regulatória exposta em atos normativos, com a promoção da participação popular para lhe conferir legitimidade, e relacioná-la à questão do controle - popular e judicial - desta decisão, buscando fornecer meios para tanto. definição de que: “Uma norma N é correta rigorosamente então, quando N pode ser o resultado de um procedimento P.”554 Este procedimento do discurso é eminentemente argumentativo, e não fruto de negociação, sendo definido por regras do discurso que expressam as condições ideais em que a argumentação deve se dar.555 3.3 As regras da argumentação jurídica de Robert Alexy Na tese do Caso Especial desenvolvida em Teoria da argumentação jurídica Alexy apresenta regras de justificação externa e formas lógicas de argumentos,556 agrupando-os em seis espécies diferentes. São as regras e formas de: a) interpretação das leis; b) ciência do direito – dogmática; c) uso de precedentes jurisprudenciais;557 d) racionalidade do processo de argumentação prática geral; e) argumentação empírica; f) por formas especiais de argumentos jurídicos – como a analogia.558 São as seguintes regras propostas por Alexy, relacionadas à forma de argumentação de interpretação das leis, repercutindo na qualidade e viabilizando o controle da produção dos atos jurídicos individuais: 554 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 25. 555 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 26. 556 As formas lógicas são postas por Alexy como um reforço de sua defesa da racionalidade na argumentação jurídica. Neste sentido: “Ao transcrevê-los na linguagem lógica, o que implicitamente quer afirmar é que os argumentos jurídicos possuem o condão de racionalidade, tanto que podem ser transcritos na forma lógica.” GERENBERG, Alice Leal Wolf. “O procedimento discursivoargumentativo no interior do espaço público: aproximação do modelo alexiano à democracia deliberativa habermasiana.” In: MAIA, Antônio Cavalcanti, et alli (Org). Perspectivas atuais da filosofia do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 71. 557 Esclarece Alexy, em sua Teoría de los principios fundamentales que: “La ley, el precedente y la dogmática constituyen una línea de fuerza dotada de autoridad claramente decreciente.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 541. Esta ordenação vigora especificamente em sistemas jurídicos que adotaram o modelo da civil law – como a Alemanha e o Brasil. Leciona René David: “Os países do continente europeu vão-se orientar para uma nova fórmula de codificação, muito diferente da fórmula das compilações anteriores. A nova fórmula de codificação conduz-nos ao período moderno da história dos direitos da família romano-germânica: aquela em que a descoberta e o desenvolvimento do direito vão ser entregues, principalmente, ao legislador.” DAVID, René, trad. Hermínio A. Carvalho. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 64. 558 Embora o autor se refira às seis espécies de regras e formas de argumentos jurídicos, não apresenta argumentos jurídicos específicos para a racionalidade do processo de argumentação pratica geral e para a argumentação empírica. Vale-se das regras gerais de argumentação do discurso prático geral. Relativamente à argumentação empírica, é importante a regra de transição que permite a qualquer falante, a qualquer tempo, a passagem a um discurso empírico. (Regra 6.1 de Alexy) 1. Deve ser saturada toda forma de argumento que houver entre os Cânones da interpretação. (Regra J.6 - enumeração de Alexy) 2. Os argumentos que expressam uma vinculação ao teor literal da lei ou à vontade do legislador histórico prevalecem sobre outros argumentos, a não ser que se possam apresentar motivos racionais que dêem prioridade a outros argumentos. (J.7) 3. A determinação do peso de argumentos de diferentes formas deve ocorrer segundo regras de ponderação. (J.8) 4. Devem-se levar em consideração todos os argumentos possíveis que possam ser incluídos por sua forma entre os cânones da interpretação. (J.9) 5. Todo enunciado dogmático, se é posto em dúvida, deve ser fundamentado mediante o emprego, pelo menos, de um argumento prático de tipo geral. (J.10) 6. Todo enunciado dogmático deve enfrentar uma comprovação sistemática, tanto em sentido estrito como em sentido amplo. (J.11) 7. Se são possíveis argumentos dogmáticos, devem ser usados. (J.12) 8. Quando se puder citar um precedente a favor ou contra uma decisão devese fazê-lo. (J.13) 9. Quem quiser afastar-se de um precedente, assume a carga da argumentação. (J.14) 10. As formas de argumentos jurídicos especiais devem ser saturadas. (J.18) A teoria da argumentação jurídica proposta por Alexy, expressa em regras, é um passo importante por demonstrar, com clareza, a intricada relação entre os argumentos jurídicos e os argumentos práticos gerais. Em síntese do que foi demonstrado neste tópico, estes podem ser utilizados: (1) na fundamentação das premissas normativas requeridas para a saturação das diferentes formas de argumentos. (2) na fundamentação da eleição de diferentes formas de argumentos que levam a diferentes resultados, (3) na fundamentação e comprovação de enunciados dogmáticos, (4) na fundamentação dos distinguishing e overruling e (5) diretamente na fundamentação dos enunciados a serem utilizados na justificação interna.559 559 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 273. Distinguishing e overruling são formas de lidar com o uso de precedentes em relação a uma decisão sob demanda. A técnica do distinguishing trata de demonstrar que o caso atual se distingue do caso do precedente, não se aplicando, portanto, seu enunciado: a introdução de uma característica do fato hipotético não existente no caso a ser decidido exerce, por exemplo, este papel. A técnica do overruling, diferentemente, consiste na rejeição do precedente. Tanto o distinguishing quanto o overruling devem ser Na lição de Alexy, “a teoria do discurso oferece um critério, em situações específicas, para a racionalidade de processos de decisão e para a racionalidade das decisões produzidas neles.”560 3.4 Princípios e sua aplicação na Teoria dos Direitos Fundamentais Aproximadamente sete anos após a publicação de sua Teoria da argumentação jurídica, Alexy propõe sua Teoría de los derechos fundamentales, em que reformula alguns pontos de sua teoria, especialmente a posição dos princípios no ordenamento jurídico, destacando-os da dogmática, e determinando seu método argumentativo de aplicação. Os princípios passam a ser categorizados como espécies de normas, e não como mandamentos nucleares propostos ou sistematizados pela dogmática. São tomados como normas oriundas das constituições e das leis, com forma de aplicação diferenciada das regras. Ao serem tratados os princípios como espécies de normas jurídicas, conclui Dworkin, rechaça-se “el primer dogma de los positivistas, que el derecho de una comunidad se distingue de otros estándares sociales mediante algún fundamentados, possuindo os argumentos práticos gerais um papel especial. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 268. 560 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 281. criterio que asume la forma de una regla maestra.”561 Em Alexy, tanto as regras quanto os princípios pautam-se pela noção de direito como argumentação. Neste tópico se aprofundará a questão da aplicação dos princípios,562 com a demonstração das premissas necessárias à compreensão da concepção dos princípios como mandamentos de otimização. Os direitos fundamentais serão abordados apenas indiretamente,563 sendo relevante, para os fins a que esta tese pretende chegar, a estrutura destas normas, assemelhadas às espécies de normas, de baixa densidade 561 DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Tradução: Marta Guastavino. 1. ed., 2. imp. Barcelona: Editorial Ariel, 1995, p. 99. Dworkin apresenta nesta obra a figura do Juiz Hércules, um juiz dotado de habilidade, erudição, paciência e perspicácia sobre-humanas, que aceita que as leis tenham o poder geral de criar e de extinguir direitos, e que os juízes têm o dever geral de se ajustarem a elas, bem ainda de se ajustarem aos precedentes jurisprudenciais dos tribunais superiores - Hércules é um hipotético juiz norteamericano (Ibid., 177). Na solução dos hard cases – casos difíceis – Hércules deverá construir um esquema de princípios abstratos e concretos que ofereça uma justificação coerente para todos os precedentes, os princípios, as leis a Constituição. Em razão da magnitude desta tarefa, Dworkin denomina seu juiz de Hércules – o maior de todos os heróis da mitologia grega, realizador de tarefas cansativas ou impossíveis. Como não existem Hércules no mundo real, devem-se buscar técnicas de julgamento (métodos jurídico) que reduzam o número de erros judiciais, baseados na capacidade relativa que possuem os homens e as mulheres que participam do processo de decisão. Dworkin propõe sua metodologia de aplicação do direito, na obra referida, utilizando-se do conceito de direitos institucionais (ou institucionalmente postos), como constituições, leis, e precedentes que veiculam normas e princípios (Ibid., pp. 171-208). O argumento da falibilidade judicial não impede a construção e a aceitação de uma metodologia jurídica que pretenda alcançar a correção normativa de uma decisão, tampouco abre espaço ao ceticismo ético e jurídico, mas, certamente, serve “como oportuno recordatorio, para cualquier juez, de que bien puede equivocarse en sus juicios políticos y de que, por ende, ha de decidir con humildad los caos difíciles.” (Ibid., p. 208). Dworkin constrói sua teoria jurídica com lastro no conceito de integridade: “O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que disseram) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que ‘lei é lei’, bem como o cinismo do novo ‘realismo’. Considera esses dois pontos de vista como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência do princípio que a integridade requer. O otimismo do direito é, nesse sentido, conceitual; as declarações do direito são permanentemente construtivas, em virtude de sua própria natureza.” DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 274. Para Habermas: “O modelo de Dworkin tem precisamente este sentido: trata-se de um direito positivo, composto de regras e princípios, que assegura, através de uma jurisprudência discursiva, a integridade de condições de reconhecimento que garantem a cada parceiro do direito igual respeito e consideração.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 260. Observa Habermas, entretanto, que por Dworkin adotar um núcleo procedimental no princípio da integridade - “igual direito às liberdades subjetivas de ação fundadas no direito às mesmas liberdades comunicativas” - sua teoria se sustentaria se abandonasse o princípio monológico carregado na figura do virtuoso Juiz Hércules - “ideal da personalidade de um juiz, que se distingue pela virtude e pelo acesso privilegiado à verdade” - e ancorasse, em moldes semelhantes a Häberle, “as exigências ideais à teoria do direito no ideal político de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. normativa e com especificação de finalidades, que regem e delimitam o poder de emissão de normas das agências reguladoras.564 Esclarece Alexy, numa postura diferente da adotada por Dworkin, para quem somente são princípios as normas que se relacionem a direitos individuais,565 que “no es ni necesario ni funcional ligar el concepto de principio al concepto de derecho individual”,566 sendo preferível, em razão da comunhão das propriedades lógicas comuns a direitos individuais e a bens coletivos567 a utilização ampla do conceito.568 Adverte o referido autor que “en el amplio mundo de los principios, hay lugar para muchas cosas. Puede ser llamado un mundo del deber ser ideal.”569 A questão que se Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 277-278. Dworkin adota em seu conceito de integridade, a noção de adequação (em sua acepção deontológica), compartilhada por Habermas e Günther. O tema adequação - será retomado no Capítulo IV. 562 O tema é tratado por Alexy no capítulo III de: ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 81-170. De grande valia a obra Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales, em que o autor promove alguns ajustes em sua concepção original. Mantém-se, entretanto, atrelado à tese central de sua obra: os princípios são espécies de normas que contêm mandamentos de otimização. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004. 563 Ressalte-se que a visão de direitos fundamentais de Alexy é bastante ampla, abragendo os clássicos direitos de liberdade e de igualdade, e também “los derechos a protección, organización y procedimiento, y a prestaciones en sentido estricto.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 81. 564 Como adiante se demonstrará, os princípios são postos por Alexy como espécie de normas de direito em sua teoria do direito: ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 185. 565 “Aunque ningún punto de mi presente argumentación dependerá de tal distinción, quiero enunciar cómo la establezco. Llamo ‘directriz’ o ‘directriz política’ [no inglês original: policies] al tipo de estándar que propone un objetivo que ha de ser alcanzado; generalmente, una mejora en algún rasgo económico, político o social de la comunidad (aunque algunos objetivos son negativos, en cuanto estipulan que algún rasgo actual ha de ser protegido de cambos adversos). Llamo ‘principio’ a un estándar que ha de ser observado, no porque favorezca o asegure una situación económica, política o social que se considera deseable, sino porque es una exigencia de la justicia, la equidad o alguna otra dimensión de la moralidad.” DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Tradução: Marta Guastavino. 1. ed., 2. imp. Barcelona: Editorial Ariel, 1995, p. 72. 566 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 111. 567 O que Alexy denomina de bens coletivos é conceituado como políticas públicas (policies) por Dworkin, ou objetivos, para Habermas. Neste sentido a lição de Marina Velasco: “A distinção tão discutida entre princípios e regras não pode ser confundida com a distinção entre normas e objetivos. Para Habermas, do mesmo modo que para Dworkin, o sistema jurídico se compõe de regras [Regeln], princípios [Prinzipien] e objetivos [Zielsetzingen], correspondentes ao que Dworkin chama de policies. Regras e princípios têm ambos uma estrutura deontológica. Habermas entende, em analogia com a concepção dos direitos como trunfos, de Dworkin, que os direitos estabelecem limites ao que pode ser perseguido como fim coletivo.” VELASCO, Marina. “Habermas, Alexy e a razão prática kantiana.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, pp. 31-32. 568 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 111. Como bens coletivos objetos de princípios são apontados como exemplos: a saúde pública, o abastecimento energético, a garantia de alimentação, a luta contra o desemprego, a segurança nacional, e a proteção da ordem democrática. 569 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 133. põe é como passar deste amplo mundo do dever ser ideal ao estreito mundo do dever ser real, onde se produzem colisões e tensões entre estes princípios, e que devem ser decididas.570 Alexy identifica dois tipos fundamentais de princípios: princípios de conteúdo ou materiais; e princípios formais ou procedimentais: “Un principio formal o procedimental es el que dice que el legislador democrático debe tomar decisiones importantes para la comunidad.”571 Este princípio formal (procedimental) pode ser sopesado, conjuntamente com um princípio relacionada à consecução de bens coletivos, ou com um princípio de direito individual. Este princípio formal – democrático – “es la razón por la cual el Tribunal Constitucional Federal concede numerosos márgenes de acción al legislador.”572 Na tese que se apresenta, é essencial esta compreensão ampla de princípio, relacionada, em muitas das vezes, a políticas públicas.573 Embora Alexy tenha mudado o campo de sua análise – das regras da teoria geral do direito para as regras e princípios de direitos fundamentais constitucionais –, a preocupação central do autor continua sendo a mesma: propor um procedimento metódico de aplicação e de fundamentação de normas de direito em decisões judiciais.574 A distinção estrutural entre princípios e regras é a mais importante na teoria dos direitos fundamentais de Alexy, “uno de los pilares fundamentales del edificio de la teoría de los derechos fundamentales”, ponto de partida para responder à pergunta 570 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 133. 571 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 133. 572 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 133. 573 Como já se demonstrou, as normas que fixam a competência das agências reguladoras estabelecem uma série de objetivos a serem perseguidos pelos agentes reguladores. A denominação pode variar, mas não a natureza dos dispositivos. Na legislação que institui e estabelece as funções das agências reguladoras, além da fixação da competência setorial do ente, é comum a referência à implementação políticas, objetivos, diretrizes ou princípios: políticas e diretrizes da exploração da energia elétrica (ANEEL), princípios e objetivos da política energética nacional (ANP), políticas e diretrizes de assistência suplementar à saúde (ANS), princípios fundamentais dos serviços de telecomunicações (ANATEL), política nacional e diretrizes gerais da vigilância sanitária (ANVISA), política nacional de recursos hídricos (ANAGUA), princípios e diretrizes para o transporte (ANTT e ANTQ). 574 Leciona Manoel Atienza que o que Alexy pretende é “abordar, centralmente, los mismos problemas que habían ocupado a los autores de los más influyentes tratados de metodología jurídica (Larenz, Canaris, Engisch, Esser, Kriele...): o sea, aclarar los procesos de interpretación y aplicación del Derecho y ofrecer una guía y una fundamentación al trabajo de los juristas.” ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Cátedra Ernesto Garzón Valdés, 2003. Cidade do México: Distribuciones Fontanamara, 2005, pp. 69-70. Em Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales Alexy trata da relação entre a legislação e a Constituição ao enfrentar a questão da concepção da Constituição como ordem marco ou como ordem fundamental. O tema será retomado. acerca de sua possibilidade e de sua racionalidade.575 Regras e princípios são espécies de normas “porque ambos dicen lo que debe ser”, podendo ser formulados utilizando-se das expressões deônticas básicas de mandado (ordem, obrigação), permissão, e proibição. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção entre dois tipos de normas.576 A teoria dos princípios, leciona Alexy, “se vincula con la distinción de Esser entre principio y norma y con la dicotomía de reglas y principios de Dworkin.”577 Reconhece, entretanto, que embora os referidos autores tenham identificado corretamente algumas propriedades das regras e dos princípios, não 575 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 81-82. 576 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 83. Alexy refere-se à corrente classificação que opõe norma a princípio, como se vê em Esser (ESSER, J. Grundsatz und norm. 3. ed. Tubinga: n/d, 1974 apud ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 83) e Dworkin (DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Tradução: Marta Guastavino. 1. ed., 2. imp. Barcelona: 1995) – explicitada mais adiante. Aponta Alexy a existência de diversos critérios – nenhum deles satisfatório – para a distinção entre regras (ou normas) e princípios: generalidade (maior em princípios que em normas); determinabilidade de aplicação (maior em normas que em princípios); a gênese (as normas são criadas e os princípios desenvolvidos); conteúdo valorativo (princípios); referência à idéia do direito (princípios); à uma Lei Suprema (princípios); importância para o ordenamento jurídico (princípios). ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 83-84. 577 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 185. Em Los derechos en serio (no original: Taking rights seriously, com primeira edição em 1977), Dworkin dedica-se a distinguir os princípios das normas. DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Tradução: Marta Guastavino. 1. ed., 2. imp. Barcelona: 1995, p. 73. Embora se refira a normas, e não a regras, é destas que trata ao expor suas características e distingui-las dos princípios. Como primeira diferença, realçando que a distinção entre princípio e norma (regra) é de natureza lógica, aponta que “difieren en el carácter de orientación que dan. Las normas son aplicables a la manera de disyuntivas.” Analisados os fatos postos, acerca dos quais deverá ser tomada alguma decisão, “o bien la norma es válida, en cuyo caso la respuesta que da debe ser aceptada, o bien no lo es, y entonces no aporta nada a la decisión.” Os princípios, diferentemente, não estabelecem conseqüências jurídicas que se sigam automaticamente da satisfação das condições fáticas previstas: enunciam “una razón que discurre en una sola dirección, pero no exige una decisión en particular.” Complementa: “Cuando decimos que un determinado principio es un principio de nuestro derecho, lo que eso quiere decir es que el principio el tal que los funcionarios deben tenerlo en cuenta, si viene al caso, como criterio que les determine a inclinar-se en uno u otro sentido.” (Ibid., pp. 75-77) Outra diferença apontada por Dworkin: “Los principios tienen una dimensión que falta en las normas: la dimensión del peso o importancia.” Quando os princípios se contrapõem (“interfieren”), deve-se resolver o conflito levando em conta “el peso relativo de cada uno”, reconhecendo não haver, entretanto, uma medição exata da preponderância de um princípio sobre outro, o que, com freqüência, será motivo de controvérsia. As normas (regras), diferentemente, não possuem esta dimensão, não sendo certo tratar uma regra como mais importante que outra no ordenamento, com a prevalência de uma regra sobre outra: “Si se da un conflicto entre dos normas, una de ellas no puede ser válida.” (Ibid., pp. 77-78) Aponta Dworkin que nem sempre é fácil, na prática – num hard case – distinguir princípios e normas (regras): “Tal vez no se haya establecido cómo operar el estándar, y este problema puede ser en sí mismo motivo de controversia.” Esclarece o autor que a atribuição de uma certa margem de ação ao aplicador funciona como um identificador da natureza principiológica de um dispositivo. Desta forma, “palabras como ‘razonable’, ‘negligente’, injusto’, y ‘significativo’ cumplen precisamente esta función. Cada uno de esos términos hace que la aplicación de la norma que lo contiene dependa, hasta cierto punto, de principios o directrices que trascienden la norma, y de tal manera hace que ésta se asemeje más a un principio.” Sustenta o autor que antes da decisão de uma questão posta em juízo, com base em princípios, não existiria uma norma de direito (regra): “El tribunal cita principios que justifican la adopción de una chegaram ao núcleo da distinção. A diferença entre regras e princípios não é gradual, mas sim “cualitativa”:578 Esta consiste en que los principios son mandatos de optimización. Esto significa que son normas que ordenan que algo sea realizado en una medida lo mayor posible dentro del marco de las posibilidades fácticas e jurídicas. En cambio, las reglas son mandatos definitivos. De esta distinción se siguen todas las otras distinciones, por ejemplo, que los principios, en tanto mandatos de optimización, son realizados en diferente grado mientras que las reglas, en tanto mandatos definitivos, siempre pueden ser realizadas o no.579 Como principal conseqüência da distinção entre regras e princípios, aponta Alexy as divergentes soluções aplicadas em caso de conflito de regras e em hipótese de colisão de princípios. No primeiro caso, de conflito de regras, “lo fundamental es que la decisión es una decisión acerca de la validez.”580 Para tanto, o aplicador se valerá das clássicas regras de solução do conflito aparente de normas – critérios hierárquico, cronológico e de especialidade.581 Na segunda hipótese, de colisão de princípios, Alexy norma nueva.” (Ibid., pp. 78-80) Alexy parte destas considerações de Dworkin, e esclarece que princípios e regras são espécies de normas jurídicas, apontando a característica central dos princípios – mandamentos de otimização -, propondo como método de aplicação destes a regra da proporcionalidade, com suas sub-regras, numa vertente argumentativa. 578 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 86. De forma mais completa, é assim que Alexy diferencia regras e princípios em sua obra Teoría de los derechos fundamentales: “El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existente. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos. En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas e principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 86-87. 579 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 185. 580 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 88. 581 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 88. São os seguintes critérios, com suas regras: hierárquico - lex superior derogat lex inferiori; cronológico - lex posterior derogat legi priori; especialidade – lex specialis derogat legi generali. Na literatura nacional estes critérios são difundidos em diversos manuais e cursos de Direito Civil ou de Introdução ao Direito – p. ex. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: 1º Vol. - Teoria geral do direito civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2002., pp. 87-88. Estão previstos, ademais, na Lei de Introdução ao Código Civil – Dec.-Lei 4.657/42 -, arts. 1º-3º. São interessantes as colocações de Ana Paula de Barcellos acerca do tema conflito de regras. Embora reconheça que as regras de direito não estejam logicamente sujeitas à regra de ponderação, com isso protegendo princípios como a segurança jurídica e a previsibilidade, reconhece a autora, que na prática jurídica – de forma semelhante ao que ocorre na física, onde esquemas intelectuais não conseguem abarcar com exatidão a realidade – exceções e situações excepcionais a autorizam. Mais especificamente, as ponderações não são entre os enunciados normativos das regras, “mas sim entre o conjunto de razões e valores que se acomodam atrás desses enunciados.” BARCELLOS, Ana Paula. Ponderação, aponta a regra da proporcionalidade, mais especificamente, a sub-regra da ponderação 582 (proporcionalidade em sentido estrito) como meio mais adequado à sua solução. Apresenta, para tanto, um método de aplicação da proporcionalidade, sistematizando, inclusive, como adiante se verá, uma regra de colisão e duas regras de ponderação.583 Alexy prossegue em sua linha discursiva do direito, deixando claro, em diversas passagens, que a teoria da argumentação, com sua almejada correção normativa, subjaz em sua teoria dos princípios.584 racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 218. Nos exemplos citados pela autora não há, entretanto, a utilização da regra da proporcionalidade, mas uma ponderação em seu sentido usual, léxico, de comparação entre benefícios e malefícios com a decisão. A autora apresenta três modelos de decisão que podem superar uma “situação de grave injustiça no caso concreto”, quando se teria uma aplicação de regra válida, mas sua incidência provocaria grave injustiça: “(i) em qualquer caso, a regra deverá ser interpretada de acordo com a eqüidade; que (ii) a regra poderá deixar de ser aplicada na hipótese de ser possível caracterizar a imprevisão legislativa; e que (iii) uma determinada norma, produzida pela incidência da regra, poderá ser declarada inconstitucional, ainda que o enunciado da regra permaneça válido em tese. Fora dessas hipóteses, isto é, caso (afora o uso da eqüidade) não seja razoável demonstrar a imprevisão legislativa e não se possa sustentar de maneira consistente a inconstitucionalidade da norma particular, não será legítimo pretender afastar um regra a pretexto de ponderá-la.” (Ibid., pp. 211-212) A autora explica cada uma das três hipóteses às pp. 220-234, para onde se remete o leitor. Adota-se, na tese que ora se apresenta, a postura que em caso de conflito de regras, estas não são ponderáveis. Cabe, entretanto, o seguinte esclarecimento. Nada obsta – como expressamente reconhece Alexy – que haja ponderação na interpretação das regras, especialmente em se tratando de conceitos jurídicos indeterminados, diretrizes, objetivos e demais normas de baixa densidade normativa. Por vezes, a ponderação estará presente na interpretação; outras vezes, por não serem regras em seu sentido tradicional, equiparados por sua generalidade a princípios, a ponderação surgirá em sua aplicação. O que é essencial à Teoria da Argumentação (Teoria Discursiva do Direito), e central a esta tese, é que a ponderação (proporcionalidade em sentido estrito) deverá se pautar por critérios de racionalidade, seja quando ocorre na margem de ação epistêmica normativa (preponderantemente interpretação), seja quando ocorre na margem de ação estrutural (preponderantemente aplicação no espaço de discricionariedade). De todo modo, tanto as regras quanto os princípios, antes de serem aplicadas, deverão ser corretamente interpretados. Na prática, nem sempre é fácil separar o momento exato da interpretação e da aplicação, já que o fato jurídico repercute na interpretação da norma, num ir e vir só terminado com a prolação da decisão. O tema será retomado. 582 Ponderar, no vernáculo: “pon.de.rar vtd (lat ponderare) 1 Pesar no espírito; apreciar maduramente, examinar com atenção: Antes de tomar uma decisão ponderava bem os prós e os contras. vti e vint 2 Meditar, pensar, refletir: Ponderar nas palavras. Ponderar sobre um tema. "A razão jubilada em discernir e ponderar" (Latino Coelho, ap Laud. Freire). vtd 3 Alegar, expor, apresentando razões de peso: Argumentou, ponderando os riscos e desvantagens do negócio. Ponderou à menina os inconvenientes do namoro prematuro. vtd 4 Ter em atenção; considerar: Queira ponderar a nossa reclamação. Disponível em http://www2.uol.com.br/michaelis/, com acesso em 25/02/2007. 583 A “Lei de Colisão” em: ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 94; e as “Leis de ponderação” em: ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 161; e ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 93. 584 Um claro exemplo desta filiação de sua teoria dos princípios à ética do discurso pode ser encontrado nas normas adscritas de direito fundamental. Estas normas, não escritas mas aditada às que estão escritas, dependem para seu reconhecimento, de uma “fundamentación iusfundamental correcta. Se para la norma que se acaba de presentar es posible una fundamentación iusfundamental correcta – algo que aquí se presupondrá – entonces es una norma de derecho fundamental.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 97-98. O autor aprofunda o tema às pp. 66-73. As regras e os princípios são postos como razões para os juízos – emissão de normas em casos concretos.585 Alexy não abandona, em sua Teoría de los derechos fundamentales, a tese do Caso Especial delineada em sua Teoria da Argumentação jurídica: a pretensão de correção, diferentemente do que ocorre no discurso prático geral, não se refere à necessidade absoluta de racionalidade dos enunciados normativos em questão, mas à sua fundamentabilidade racional no âmbito do ordenamento jurídico vigente – com prioridade para as regras e princípios do ordenamento jurídico. As regras são postas como razões definitivas para um juízo concreto de dever ser – uma sentença judicial ou um ato administrativo individual, por exemplo -, aplicáveis, em regra, sem exceção. A forma de aplicação será a subsunção. Diferentemente, os princípios são razões prima facie.586 Esclarece que: “La vía desde el principio, es decir, del derecho prima facie, al derecho definitivo, transcurre, pues, a través de la determinación de una relación de preferencia.”587 Os princípios mesmos não são nunca razões definitivas da regra individual: são a razão, o critério, a justificação da decisão.588 As razões de adotar a regra589 da proporcionalidade - na linha da Teoria Discursiva do Direito, definindo e delimitando o campo e a carga de argumentação para a aplicação dos princípios parte da constatação da vagueza590 e do dissenso acerca dos objetos regrados por formulações do catálogo de direitos fundamentais previstos nas 585 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 101-103. 586 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 101-103. 587 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 103. 588 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 103. 589 O autor apresenta a proporcionalidade no Capítulo III, tópico 8, de sua Teoría de los derechos fundamentales como sendo uma máxima. Em diversas passagens de sua obra, denomina a proporcionalidade - além de máxima – de princípio (p. 539, p.ex.) ou de regra (p. 112, p.ex.). Esclarece, entretanto, que a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito, não são máximas nem princípios, por não serem ponderadas frente a algo diferente. São satisfeitas ou não, e sua não satisfação tem como conseqüência a ilegalidade. “Por lo tanto, las tres máximas parciales tienen que ser catalogadas como reglas.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 112. Cabe neste ponto o seguinte complemento: ilegalidade em se tratado de atos judiciais e administrativos, e inconstitucionalidade, em se tratado de leis (regras) que não atendam a princípios constitucionais. 590 Fala-se em fórmulas lapidares e disposições que carecem de univocidade de conteúdo, de frases programáticas, de aglomerações de cláusulas gerais e de conceitos plásticos, da falta da independência conceitual, de fórmulas vazias sob as quais podem ser subsumidos a qualquer estado de coisa. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 22. Neste sentido a lição de Karl Engisch para quem “infelizmente a terminologia não é uniforme.” ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8. ed. Tradução: J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 208. constituições. As normas de direito fundamental591 - como as demais normas que versam sobre finalidades do Estado, conceitos estruturais da democracia, do Estado de Direito e do Estado Social – disciplinam “de una manera extremadamente vaga cuestiones en parte sumamente discutidas de la estructura normativa básica del Estado y la sociedad.”592 Esta vagueza das disposições de direito fundamentais pode ser maior ou menor.593 Reconhece Alexy, inclusive, a existência de princípios não escritos, “derivados de una tradición de normaciones detalladas y de decisiones judiciales que, por lo general, son expresión de concepciones difundidas acerca de como debe ser el derecho.”594 Esclarece o autor, em estudo mais recente, que “a teoria dos princípios não diz que o catálogo de direitos fundamentais não contém regras; isto é, que ela não contém definições precisas”.595 A teoria afirma que os direitos fundamentais “enquanto balizadores de definições precisas definitivas, têm estrutura de regras,596 como também 591 Os enunciados normativos expressam normas de direito fundamental. Alexy os denomina, para uma maior clareza, de disposições de direito fundamental. Identifica o autor, na Constituição alemã, quais as disposições de direito fundamental que expressam normas de direito fundamental. Propõe – superando a definição de critérios materiais e estruturais para a classificação de normas de direito fundamental – a utilização de critérios formais, apontando para sua forma de positivação. Assim, são fundamentais as normas constantes no capítulo da Constituição (Lei Fundamental) intitulado “Direitos fundamentais”, bem ainda as demais disposições satélites que conferem direitos individuais. Os direitos fundamentais são normas tão importantes que o seu reconhecimento não pode ser deixado à livre disposição das maiorias parlamentares. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 63-65. A questão não é de fácil solução. A dogmática nacional se esforça em identificar quais as matérias que podem ser compreendidas como direitos fundamentais. As limitações constitucionais ao poder de tributar, dentre elas, o princípio da anterioridade, foram tomadas pelo Supremo Tribunal Constitucional, em Ação Direta de Inconstitucionalidade, como direitos fundamentais. Estabelece a Constituição Federal da República do Brasil, no parágrafo 2º do art. 5º, que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela dotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Na prática não é fácil delimitar o que pode ser identificado como direito fundamental, repercutindo tal categorização na limitação imposta pelo art. 60, §4º, IV da Constituição Federal, que estabelece a impossibilidade de emenda à Constituição, por se tratarem de cláusulas pétreas. É o Supremo Tribunal Federal, julgando ações declaratórias de constitucionalidade ou ações diretas de inconstitucionalidade, que estabelece em cada caso, quais são as disposições constitucionais compreendidas como cláusulas pétreas da espécie “direitos e garantias individuais”, ao julgar inconstitucionais as emendas por violação ao art. 60, §4º, IV. 592 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 22-23. 593 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 22. 594 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 104. 595 ALEXY, Robert. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, mimeo, p. 12. Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10/12/1998. 596 Regras que ensejam a possibilidade de uma fundamentação dedutiva. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios acentua que o nível de regras precede prima facie ao nível dos princípios. O seu ponto decisivo é o de que atrás e ao lado das regras existem princípios.”597 A teoria de Alexy ao agregar os direitos fundamentais da dignidade, liberdade e igualdade aos conceitos de finalidade do Estado, de democracia, do Estado de Direito e do Estado Social obtém um sistema de conceitos que abarca “las fórmulas centrales del derecho racional moderno, complementado con el principio del Estado social que expresa las exigencias de los movimientos sociales de los siglos diecinueve e veinte.”598 Encampa, portanto, as constituições dirigentes. A Teoria dos Direitos Fundamentais é “una teoría jurídica general sobre los derechos fundamentales de la Ley Fundamental”, atrelada ao direito positivo – a uma Constituição599 -, caracterizada pelo autor como “la parte general de la dogmática dos derechos fundamentales.”600 Propõe-se Alexy a dar respostas racionalmente fundamentadas a questões vinculadas aos direitos fundamentais, buscando, para tanto, uma reabilitação da axiologia dos direitos fundamentais.601 O autor não rompe com sua Constitucionales, 1997, p. 82. 597 ALEXY, Robert. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, mimeo, p. 12. Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10/12/1998. 598 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 23. 599 A teoria de Alexy é atrelada à Constituição Federal alemã – Lei Fundamental da República Federal Alemã - usualmente denominada de Constituição de Bonn, promulgada em 1949. 600 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 24. Sobre os direitos fundamentais podem ser formuladas teorias de tipo muito diferentes, como teorias: históricas, que explicam seu surgimento; filosóficas, que se ocupam de sua fundamentação – teoria da justiça de Rawls, p. ex.; sociológicas, acerca da função dos direitos fundamentais no contexto social. A teoria de Alexy é jurídica, dogmática. Em linhas semelhantes ao disposto em sua Teoria da argumentação jurídica, já explicitada linhas acima, propõe que a dogmática, por seu uma disciplina pluridimensional, vincule suas três dimensões – analítica, empírica e normativa -, sendo tal vinculação condição necessária da racionalidade da ciência do direito como disciplina prática. (Ibid. p. 33) 601 Isto se torna claro na questão do sopesamento dos princípios, especialmente na terceira sub-regra da proporcionalidade: a proporcionalidade em sentido estrito. Nesta fase, a ponderação opera com os princípios como se operasse com valores, reconhecendo, entretanto, que os direitos fundamentais não são valores, mas sim direitos expressos por princípios. Neste ponto específico - e central de sua teoria -, enfrenta forte oposição de Habermas, para quem: “Princípios ou normas mais elevadas, em cuja luz outras normas podem ser justificadas, possuem um sentido deontológico, ao passo que os valores têm um sentido teleológico. Normas válidas obrigam seus destinatários, sem exceção e em igual medida, a um comportamento que preenche expectativas generalizadas, ao passo que valores devem ser entendidos como preferências compartilhadas intersubjetivamente.” Mais adiante, em síntese, aponta: “Portanto, normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivas referências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da codificação binária ou gradual de sua validade; em terceiro lugar, através de sua obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, através dos critérios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores deve satisfazer. Por se distinguirem segundo essas qualidades lógicas, eles não podem ser aplicados da mesma maneira.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 316-317. Para Habermas, como adiante se demonstrará, não há que se falar em otimização de princípios, tampouco em sua regra de teoria discursiva apresentada em Teoria da argumentação jurídica. Busca demonstrar que a positivação dos direitos fundamentais, que regem todos os poderes do Estado, constitui uma abertura do sistema jurídico frente ao sistema da moral, abertura que é razoável e que pode ser levada a cabo com meios racionais.602 Na linha da Teoria da argumentação jurídica, reafirma Alexy que “la ciencia del derecho, tal como es cultivada en la actualidad, es, ante todo, un disciplina práctica porque su pregunta central reza:¿que es lo debido en los casos reales o imaginados? Esta pregunta es planteada desde una perspectiva que coincide con la del juez.”603 3.5 Constitucionalismo moderado e regra da proporcionalidade Alexy não é o criador da regra da proporcionalidade. Foi o Tribunal Constitucional alemão604 que a desenvolveu a partir do julgamento de processos proporcionalidade, mas sim em coerência do sistema de regras, em adequação ou não adequação: “Ora, adequação significa a validade de um juízo deduzido de uma norma válida, através do qual a norma subjacente é satisfeita.” Ibid. p. 323. Em crítica à falta de critérios das decisões do Tribunal Federal alemão – com reflexos na Teoria dos Princípios de Alexy: “O Tribunal Constitucional Federal também não dispõe de critérios que lhe permitam concluir que certos princípios normativos (tais como o tratamento igual ou a dignidade humana) e metódicos (tais como a adequação e a proporção) são mais adequados que certos imperativos formais (paz nas empresas, agilidade das forças armadas ou da assim chamada reserva de possibilidades). Quando direitos individuais e bens coletivos são agregados e transformados em valores equivalentes, as idéias teleológicas, deontológicas, e sistêmicas se entrelaçam de modo ambíguo. E cresce a suspeita de que o choque entre essas preferências valorativas, não racionalizáveis, privilegia os interesses mais fortes. Essa circunstância esclarece também porque é relativamente fácil prever o final de processos judiciais quando nos apoiamos em princípios da teoria do poder e dos interesses.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 213. A passagem citada está no complemento “Direito e moral”, que integra a obra referida – pp. 193-247. Esta é a divergência fundamental entre Alexy e Habermas – princípios como mandamentos de otimização com estrutura teleológica versus princípios como expressão de obrigação com estrutura deontológica -, que repercute na forma de aplicação dos princípios – proporcionalidade, com utilização da sub-regra da ponderação versus adequação prima facie. O tema será retomado no Capítulo IV desta tese. 602 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 25. 603 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 33. Como já explicitado, a teoria de Alexy é dirigida à aplicação do direito pelo juiz num determinado caso concreto. 604 Friedrich Müller refere-se à sentença exarada no caso Lüth como apogeu de uma tendência “de tratar os direitos fundamentais como ‘valores’, sua totalidade como ‘sistema’ ou ‘sistema de valores’; à tendência de querer solucionar de forma metódica sua concretização, limitação e mediação com outras normas (constitucionais) por meio de procedimentos de ‘ponderação de ‘bens’ ou ‘interesses’.” MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 17. Em crítica a tal postura do Tribunal Constitucional alemão, aponta que “o teor material normativo de prescrições de direitos fundamentais e de outras prescrições de constitucionais é cumprido muito mais e de forma mais condizente com o Estado de Direito com a ajuda dos pontos de vista da hermenêutica e metodicamente diferenciados e estruturantes da análise do âmbito da norma e com uma formulação substancialmente mais precisa dos elementos de concretização do processo prático de geração do direito, a ser efetuada, do que com representações necessariamente formais de ponderação, que paradigmáticos – como o sempre mencionado caso Lüth,605 um clássico de ponderação606 - estabelecendo seus elementos – adequação,607 necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação) – aplicados em uma ordem prédefinida, funcionando como indicadores de medida e de controle da decisão judicial e de atos legislativos e administrativos.608 Neste sentido, como bem identifica Humberto Bergmann Ávila, a regra da proporcionalidade609 cresce em importância, inclusive do direito brasileiro - previsto expressamente no art. 2.º da Lei Geral de Processo conseqüentemente insinuam no fundo uma reserva de juízo em todas as normas constitucionais, do que com categorias de valores, sistemas de valores e valoração, necessariamente vagas e conducentes a insinuações ideológicas.” (Ibid. pp. 18-19) Müller considera que a jurisprudência do Tribunal Constitucional “fornece um quadro sem direção, que professa de modo tão globalizantemente indistinto quão acrítico ‘métodos’ exegéticos transmitidos pela tradição – e caudatários do positivismo legalista na sua alegada exclusividade - , mas rompe essas regras em cada caso de seu fracasso prático sem fundamentar esse desvio.” (ibid., p. 20). A proporcionalidade, para o autor, não seria um novo método de concreção do direito, mas um desvio pontual da exegese tradicional do positivismo legalista. 605 BverfGE 7, 198, julgado em 15 de janeiro de 1958. Neste feito, o Tribunal Constitucional alemão manifestou o entendimento de que os direitos constitucionais constituíam uma ordem objetiva de valores, a serem ponderados no caso concreto. Transcrevendo parcialmente a decisão do Tribunal, esclarece Alexy que ‘bajo la Ley Fundamental [de Bonn, 1949], las suposiciones y formas de hablar axiológicas han ingresado en un amplio frente en la jurisprudencia constitucional. Un ponto culminante lo constituye el fallo Lüth. Por cierto, también en este fallo, el Tribunal Constitucional Federal parte del hecho de que lo ‘derechos fundamentales están en primera línea destinados a asegurar la esfera de la libertad del individuo frente a las intervenciones del poder público’ y que, por lo tanto, son ‘derechos de defensa del ciudadano frente al Estado. Pero, luego agrega: ‘Igualmente correcto es que la Ley Fundamental, que no quiere ser un ordenamiento valorativamente neutro [...], ha establecido en si sección de derechos fundamentales también un ordenamiento valorativo objetivo [...] este sistema valorativo, centrado en la personalidad humana que se desarrolla libremente dentro de la comunidad social, y en su dignidad, tiene que valer en tanto decisión iusconstitucional básica, para todos los ámbitos del derecho.’ En el transcurso de la fundamentación de la decisión, el ordenamiento valorativo es calificado de ‘jerarquía valorativa’ dentro de la cual sería necesario llevar a cabo una ‘ponderación’. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 148. Acerca da importância do caso Lüth na questão dos direitos fundamentais, leciona Luís Roberto Barroso: “Há razoável consenso de que o marco inicial do processo de constitucionalização do Direito foi estabelecido na Alemanha. Ali, sob o regime da Lei Fundamental de 1949 e consagrando desenvolvimentos doutrinários que já vinham de mais longe, o Tribunal Constitucional Federal assentou que os direitos fundamentais, além de sua dimensão subjetiva de proteção de situações individuais, desempenham uma outra função: a de instituir uma ordem objetiva de valores. O sistema jurídico deve proteger determinados direitos e valores, não apenas pelo eventual proveito que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedade na sua satisfação. Tais normas constitucionais condicionam a interpretação de todos os ramos do Direito, público ou privado, e vinculam os Poderes estatais. O primeiro grande precedente na matéria foi o caso Lüth, julgado em 15 de janeiro de 1958”. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. BARROSO, Luís Roberto. “O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil.” Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547, com acesso em 25/10/2006. Como “ensinamentos que já vinham de mais longe”, referidos por Luís Roberto Barroso, pode-se apontar, na lição de Alexy: “Ya en la época de la Constitución de Weimar [Weimar, 1919] fueron sostenidas teorías axiológicas de los derechos fundamentales. Uno de los autores más influyentes fue Rudolf Smend. De acuerdo con una famosa formulación de Smend, el ‘sentido concreto de un catálogo de derechos fundamentales’ reside en que pretende ‘normar una serie concreta, de una cierta unidad cerrada, es decir, un sistema de valores o bienes, un sistema cultural.’ ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 148. 606 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 120. Administrativo Federal, Lei n.º 9.784/1999 -, servindo como instrumento de controle dos atos estatais.610 A teoria dos direitos fundamentais busca demonstrar a estrutura das normas de direito fundamental – posteriormente ampliada para toda a teoria geral do direito em obra mais recente do autor.611 A inovação apresentada por Alexy consiste na concepção dos princípios como mandamentos de otimização e na vinculação da proporcionalidade à teoria da argumentação. Para o autor: “El modelo de la ponderación, basado en la teoría de los principios puede dar una respuesta tal al vincular la estructura formal de la ponderación con una teoría de la argumentación jurídica, que incluye una teoría de la argumentación práctica general.”612 607 Cabe desde já a advertência que a adequação, sub-regra da regra da proporcionalidade, não se confunde com o critério de adequação - proposto por Klaus Günther e adotado por Habermas - como método de aplicação dos princípios - referido acima. Com já explicitado, a diferença entre elas é maior do que parece à primeira vista. Tampouco a regra da proporcionalidade engloba o critério de adequação de Günther/Habermas. A regra da proporcionalidade (incluída a sub-regra da adequação) toma os princípios como mandamentos otimizáveis com estrutura teleológica – relacionada à eficiência e ao Ótimo de Pareto -, ao passo que o critério da adequação defende uma concepção deontológica de princípios, que expressam deveres. O critério de adequação é satisfeito pela validade de um juízo (uma decisão judicial) deduzido de uma norma válida (um princípio), que satisfaz a norma subjacente (um princípio). A norma adequada seria a única norma correta a ser aplica ao caso. Outro ponto que merece um esclarecimento é a questão da eficiência da circulação da riqueza em razão da adoção do Ótimo de Pareto como indicador no alcance das finalidades estabelecidas por normas na Teoria de Alexy. O Ótimo de Pareto, leciona Paulo Sandroni, é uma “situação em que os recursos de uma economia são alocados de tal maneira que nenhuma reordenação diferente possa melhorar a situação de qualquer pessoa (ou agente econômico) sem piorar a situação de qualquer outra. O conceito foi introduzido por Vilfrido Pareto (1848-1923).” SANDRONI, Paulo. Novíssimo dicionário de economia. 13.ed. São Paulo: Editora Best Seller, 2004, p. 437. Não se confunde com o utilitarismo, outro critério que busca a eficiência na circulação de riquezas: pelo critério do Ótimo de Pareto, a transferência de bens de quem os valoriza menos para quem os valoriza mais é “eficiente, numa sociedade, quando alguém fica melhor do que anteriormente com a mudança de alguma atribuição de bens anterior, sem que ninguém fique pior.” Outro critério, o modelo de utilidade preconizado por Bentham e Mill, sugere “que as normas devem ser desenhadas de maneira a gerarem o máximo de bem estar para o maior número de pessoas.” A racionalidade dos agentes, um dos postulados econômicos, leva à procura da maximização das utilidades e à eficiência na alocação de bens. SZTAJN, Rachel. “Law and economics”. In: ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 76. 608 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 30. 609 O autor caracteriza a proporcionalidade como um postulado, e não como regra. O assunto será retomado. ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, pp. 112-125. 610 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, p. 112. No Brasil, como bem observado por Luís Virgílio Afonso da Silva, a proporcionalidade, invocada como fundamento para decisões, é constantemente confundida com critérios de razoabilidade. AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 45. O tema será retomado. 611 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004. 612 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 169. Sustenta que a jurisprudência permanente do Tribunal Constitucional alemão - que exige que para toda restrição de direitos fundamentais se respeitem as subregras de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – corresponde aos resultados teóricos acerca da natureza das normas de direitos fundamentais e de sua teoria dos princípios – estes como mandamentos de otimização.613 Há uma compatibilização da Teoria dos Princípios614 – inserida na Teoría de los derechos fundamentales – com a regra da proporcionalidade, sendo mais nítida - e mais explorada - no campo da sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito. Para a correta compreensão da regra da proporcionalidade na Teoria dos Princípios de Alexy, necessário compreender sua concepção de Constituição,615 613 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 126. Alexy enumera uma série de decisões do Tribunal Constitucional Alemão com este teor: BVerfGE 19, 330 (337); 21, 150 (155); 26, 215 (228); 27, 211 (219); 30, 292 (316). Ibid. p. 126. 614 Princípios como mandamentos de otimização. Reconhece Alexy que a maioria das críticas à sua teoria questiona se a tese dos princípios como mandamentos de otimização conduzem a um modelo adequado de direitos fundamentais. Aponta duas linhas de opositores: uma que aponta a pouca garantia – “demasiado poco”-que a teoria oferece à proteção dos direitos fundamentais: “Los derechos fundamentales primero se debilitan al transformarse en mandatos de optimización y luego amenazan con desaparecer en la vorágine de la ponderación irracional.” ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 16. Habermas é um dos críticos que segue esta linha por entender que a possibilidade de sacrificar direitos fundamentais em razão de fins coletivos afetaria a firmeza dos direitos fundamentais, que somente pode ser garantida mediante uma estrutura deôntica estrita, expressa em regras, exercendo o papel de uma barreira corta-fogo. Outra linha de crítica à Teoria dos Princípios de Alexy aponta o perigo do excesso – o “demasiado”. O perigo estaria na extensão demasiada do âmbito dos direitos fundamentais – abrangendo prestações negativas e positivas do Estado, como de proteção, assistência, organização e processo – que ocupariam um lugar de maior hierarquia no ordenamento jurídico, estando todos já contemplados na Constituição, restando apenas concretizá-los por meio da ponderação. A Teoria dos Princípios, ao abraçar o constitucionalismo (embora Alexy esclareça que seu constitucionalismo é moderado), aceitaria a concepção da Constituição como “um ovo jurídico originário” donde tudo surgiria (expressão de Forsthoff), promovendo, desta forma, uma limitação da autonomia do legislador, com perda considerável do significado do processo político democrático e a transformação do Estado de direito de legislação parlamentar num um Estado jurisdicional – de jurisdição constitucional -, num processo irrefreável. Böckenförde (BÖCKENFÖRDE, E.-W. Grundrecht ais grunsatznormen: zur gegenwärtigen lage der grundrechtdogmatik. In: Staat, Verfassung, Demokratie. Frankfurt, 1991 apud ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 17-20) e Forsthoff (Forsthoff, E. El Estado de la sociedad industrial. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1975 apud ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 19) adotam esta linha crítica. Estes autores enquadram-se, noutra classificação proposta por Alexy, como defensores do legalismo, em contraposição ao constitucionalismo. ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 160. Este tema específico – constitucionalismo versus legalismo – será retomado ainda neste capítulo. 615 Nas palavras de Maria Margarida Lacombe Camargo: “Robert Alexy é um dos pensadores da atualidade que mais tem se ocupado do problema da fundamentação das decisões judiciais, sob a perspectiva da filosofia prática, em que a idéia de correção assume proporções consideráveis. No posfácio que escreve em 2003 defende uma espécie de constitucionalismo moderado, quando apresenta alternativa às posições radicais de alguns críticos, como Böckenförde e Habermas. Ao modelo puramente procedimental de Habermas, para o qual a Constituição serve como simples marco ao não proibir e nem obrigar nada, em princípio, e ao modelo apresentado por Böckenförde, contra a predominância excessiva esclarecida em seu Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales e na obra El concepto e validez del derecho. Duas posturas antagônicas podem ser delineadas: uma que toma a Constituição como ordem marco; outra que a tem como ordem fundamental.616 Dois aspectos da ordem marco podem ser considerados: o aspecto material e o aspecto formal. Como determinantes do conteúdo material de uma ordem jurídica marco,617 três critérios são apontados: o primeiro, denominado de “reducción liberal de la constitución”,618 propõe a eliminação das novas concepções de direitos fundamentais - como as prestações positivas a cargo do Estado - propondo o regresso dos direitos fundamentais aos clássicos direitos de defesa frente ao poder estatal.619 O segundo busca reduzir todas as dimensões dos direitos fundamentais a um conjunto de standards mínimo, como uma redução geral material da Constituição, sem que esta redução coincida, entretanto, com uma delimitação de direitos fundamentais negativos na visão clássica. Um terceiro critério, mais radical, defende que só deve pertencer à Constituição, como direitos fundamentais, aquilo que puder ser definido como a vontade histórica do constituinte.620 de princípios e valores a conterem embrionariamente toda a normativa infraconstitucional (tomando como base a idéia do “ovo jurídico originário” de Forsthoff: Constituição como ordem fundamental), Alexy propõe o que chama de modelo material-procedimental. De acordo com esse modelo, que demanda a ponderação para se saber se há algum direito capaz de vincular a atuação dos poderes constituídos, relativamente ao que pode ser visto como permitido ou proibido pela Constituição, outros são remetidos à discricionariedade do intérprete.” As conclusões são do Laboratório de Análise Jurisprudencial, do Grupo de Pesquisa Jurisdição Constitucional e Democracia - UGF/CNPQ – desenvolvido pelo Programa de PósGraduação da Universidade Gama Filho. O Corte de Análise Hermenêutica, do qual o autor da tese que se apresenta é integrante, é dirigido por Maria Margarida Lacombe Camargo. Os resultados da pesquisa estarão expostos em: VIEIRA, José Ribas; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe Camargo; e GOMES, Maria Paulina. Direito à privacidade e à intimidade pelo Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial. Curitiba: Juruá, no prelo. 616 Constituição como ordem marco está para o Estado jurisdicional assim como a Constituição como ordem fundamental está para o Estado de legislação. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 20-21. “La disyuntiva entre el orden marco y el orden fundamental juega un papel central en la controversia sobre la teoría de los principios.” Ibid., p. 21. 617 Adverte Alexy que “el concepto de orden marco se ha convertido en algo así como una bandera común de los más diversos opositores a la idea de optimización.” ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 21. 618 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 23. 619 Nas palavras de Alexy, propõe Böckenförde, defensor desta teoria: “Decidirse a favor de la reducción de los derechos fundamentales a los clásicos derechos de defensa y, de este modo, a favor del Estado de legislación parlamentaria.” De outro modo, decidir-se a favor da teoria dos direitos fundamentais como princípios – otimizáveis ou concretizáveis – seria optar pela conformação de um Estado jurisdicional. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 20. 620 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 23. Sob a perspectiva formal621 - de maior relevo para a compreensão da teoria de Alexy -, buscando identificar o conceito de ordem marco enquanto tal, especialmente na relação entre a Constituição e a legislação, aponta Alexy a existência de três modelos de ordem marco. O primeiro modelo é o puramente procedimental de Constituição, em que as competências do legislador são ilimitadas do ponto de vista material, embora se sujeitem a limitações quanto à competência, procedimento e forma. Neste modelo, a margem de ação do legislador é ilimitada materialmente, sendo incompatível com a vinculação do legislador aos direitos fundamentais em razão de negar qualquer tipo de vinculação material.622 O segundo modelo, puramente material de Constituição, supõe existir uma ordem ou uma proibição para cada decisão imaginável do legislador. Esta concepção de Constituição – ovo jurídico originário623 – não deixaria qualquer espaço livre à legislação.624 Eliminaria toda a margem de ação legislativa, o que contradiz o 621 “Es preciso diferenciar este tipo de criterios para la determinación del contenido de una Constitución como orden marco, del concepto de orden marco como tal. Este último concepto permanece idéntico en todas las concepciones del marco y es, en cierta medida, de carácter formal.” ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 24. 622 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 24-25. Esclarece Alexy que esta concepção não é a adotada em sua Teoria dos Princípios, como querem crer alguns dos seus críticos. Habermas, por exemplo, entende que a concepção de Alexy – de ordem marco num modelo puramente procedimental – acabaria por derrubar a “barreira corta-fogo” dos direitos fundamentais. Ibid., p. 26. Nas palavras de Habermas, o Tribunal Constitucional Alemão adere à proposta de Alexy, “a qual consiste em interpretar os princípios transformados em valores como mandamentos de otimização, de maior ou menor intensidade. Essa interpretação vem ao encontro do discurso da ‘ponderação de valores’, corrente entre juristas, o qual, no entanto, é frouxo.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 315. Não há na teoria de Alexy, entretanto, uma negação à vinculação material da atividade estatal aos direitos fundamentais. Como esclarece, em texto mais recente: “A teoria dos princípios não diz que o catálogo dos direitos fundamentais não contém regras; isto é, que ela não contém definições precisas. Ela afirma não apenas que os direitos fundamentais, enquanto balizadores de definições precisas e definitivas, têm estrutura de regras, como também acentua que o nível de regras precede prima facie ao nível dos princípios.” ALEXY, Robert. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, mimeo, p. 12. Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10/12/1998. 623 Expressão jocosa de Forsthoff. 624 Em El concepto y validez del derecho Alexy refere-se a esta posição extremada como “constitucionalismo”, contrapondo-a ao “legalismo”. Segundo o “constitucionalismo”, apontando o caso Luth – já referido nesta tese - como origem desta concepção, a Constituição é uma ordem objetiva de valores que, enquanto decisão jurídica fundadora do direito, vale para todos os seus âmbitos, dirigindo e impulsionando a legislação, a administração e o judiciário. A “máxima” da proporcionalidade direciona a aplicação do direito constitucional, relegando a clássica subsunção, substituindo-a por uma ponderação segundo valores e princípios constitucionais. ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 159. Diferentemente, o “legalismo” propõe que o sistema jurídico não deve ser reduzido uma mera concreção da Constituição, apontando o sério risco da instituição de uma tirania dos valores. Alexy refere-se à seguinte passagem de Forsthoff – positivista e liberal: “La jurisprudencia se autodestruye si no sostiene incondicionalmente que la interpretación de la ley es la obtención de la subsunción correcta en el sentido de la inferencia silogística.” FORSTHOFF, E.. Die umbildung des Verfassungsgesetzes. In: Festschrit für C. Schmitt. Barion/Forsthoff/Weber: Berlin, 1959, p. 41, apud ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios princípio da autonomia do legislador democraticamente legitimado.625 O terceiro modelo, adotado pela Teoria dos Princípios de Alexy, “consiste en que se confían algunas cosas a su discrecionalidad [do legislador] y otras no, es decir, hay ciertas cosas que están ordenadas o prohibidas. Esto corresponde al modelo materialprocedimental.”626 Neste modelo, a margem de ação do legislador,627 seu espaço de discricionariedade, encontra-se delimitado pelo marco. Esta metáfora – do marco – pode ser assim explicitada: “El marco es lo que está ordenado y prohibido. Lo que se confía a la discrecionalidad del Legislador, o sea, lo que no está ordenado ni prohibido, es aquello que se encuentra en el interior del marco.”628 Desta forma, o marco e a discricionariedade definem a margem de ação do legislador – margem estrutural, e não apenas cognitiva:629 “Lo que está ordenado por la Constitución es constitucionalmente Constitucionales, 2004, p. 160. Refere-se também à seguinte frase sarcástica de Forsthoff: “Forsthoff se mofa de la concepción según la cual todo el sistema jurídico tan sólo es o debe de ser una concreción de la Constitución. En este contexto habla de la ‘Constitución como protoorigen jurídico del que todo surgiría, desde el Código Pernal hasta la ley sobre fabricación de termómetros’.” ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 160. Sinteticamente, legalismo e constitucionalismo opõem-se nos seguintes pontos: “(1) Norma en vez de valor; (2) subsunción en vez de ponderación; (3) independencia del derecho ordinario en vez de la omnipresencia de la Constitución; (4) autonomía del legislador democrático dentro del marco de la constitución en lugar de la omnipotencia judicial apoyada en la Constitución, sobre todo del Tribunal Constitucional Federal.” ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 160. A confrontação das teorias demonstra o ponto de tensão entre os princípios materiais constantes da Constituição e o princípio democrático – que é formal – que atribui ao legislador eleito poderes de realizar escolhas políticas. Alexy propõe o que denomina de “constitucionalismo moderado”, enfrentando a questão com o auxílio das concepções de ordem marco e de ordem fundamental, como adiante se verá. 625 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 26-27. Esta concepção também não é acolhida pela teoria dos princípios de Alexy. 626 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 28. O modelo adotado por Alexy pretende dar respostas a duas questões: está a Teoria dos Princípios capacitada a estabelecer certas proibições ao legislador, um marco no sentido de limitar a atuação deste? Outra: é possível fazê-lo sem suprimir todas as margens de ação legislativa? Responde o autor: “Esto sería posible si la teoría de los principios estuviera en condiciones de ordenar y prohibir algunas cosas al Legislador, y de no ordenarle ni prohibirle otras. Si algo no está ordenado ni prohibido, está permitido hacerlo u omitirlo. Si está permitido hacerlo u omitirlo, es discrecional.” ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 27. 627 Na tradução para o português: “O tribunal constitucional federal fala muito de espaços. A terminologia é rica. Ao lado da simples palavra ‘espaço’ encontram-se as expressões ‘espaço de estimativa, de valoração e de configuração’, ‘espaço de apreciação’, ‘espaço de atuação’, ‘espaço de decisão’, ‘espaço de prognose’, ‘espaço de experiência e de adaptação’, espaço de interpretação’, ‘espaço de avaliação’, espaço de ponderação’. [...] Se se olha mais rigorosamente, então se encontra a dicotomia decisiva. É a diferença entre espaços estruturais e espaços epistêmicos ou de conhecimento.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 79. 628 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 28. Em sentido semelhante, no Brasil é corrente a utilização da expressão “marco” no campo do direito regulatório. 629 A margem de ação cognitiva – denominada também de epistêmica – “nasce dos limites de reconhecer do que a constituição, por um lado, ordena e proíbe, e, por outro, nem ordena nem proíbe, portanto, libera. necesario; lo que está prohibido por la Constitución es constitucionalmente imposible y lo que la Constitución confía a la discrecionalidad del Legislador es tan solo constitucionalmente posible”.630 O problema da ordem marco é o problema da existência do constitucionalmente possível.631 Propõe Alexy a compatibilidade de sua teoria dos princípios como mandamentos de otimização – e da regra de proporcionalidade 632 – com “el carácter marco de la Constitución”.633 A adoção da regra da proporcionalidade numa vertente argumentativa é uma proposta de utilização racional de argumentos no espaço reservado à discricionariedade - dentro da margem de ação estrutural de [...] Nasce dos limites da capacidade de reconhecer dos limites da constituição.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 79-80. Noutra obra, esclarece o autor que a margem (de ação cognitiva) aparece quando “son inciertos los conocimientos acerca de lo que está ordenado, prohibido o confiado a la discrecionalidad del Legislador por derechos fundamentales.” A incerteza pode recair sobre premissas empíricas ou sobre premissas normativas. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 82. Como regra de limitação à margem epistêmica empírica do legislador, propõe Alexy: “Cuanto más intensa sea una intervención en un derecho fundamental, tanto mayor debe ser la certeza de las premisas que sustentan la intervención.” Ibid., p. 93. A margem de ação cognitiva normativa atribui ao legislador a competência de determinar “dentro de un cierto contorno (exactamente el contorno del margen de acción cognitivo) lo que está ordenado y prohibido y lo que es discrecional, de acuerdo con los derechos fundamentales.” Ibid., p. 98. Tal margem, esclarece Alexy, deve ser limitada para não por em risco a margem de ação estrutural – e a vinculação do legislador aos direitos fundamentais. A margem de ação cognitiva normativa é relevante unicamente quando as premissas carecem de certeza, sendo aceita somente em caso de “inseguridad normativa”. Ibid., p. 99. O perigo, identificado por Alexy, é que sob o manto da margem de ação cognitiva normativa – interpretação do texto da Constituição, hermenêutica constitucional – limite-se de sobremaneira o espaço de discricionariedade – margem de ação estrutural – do legislador, com sérios danos ao princípio - formal – democrático. Tal fato - a falta de certeza sobre os limites do ponderável -, reconhece o autor, também derrubaria por terra toda a sua teoria, calcada na proporcionalidade. Ibid., p. 109. Sustenta, entretanto, que a divergência acerca dos limites na margem de ação cognitiva é controlada e limitada em cada caso, com a consideração da Constituição tomada sistematicamente. A relativa falta de certeza acerca dos limites materiais dos direitos fundamentais – causada pela divergência acerca da margem de ação cognitiva normativa – é o “imprescindible tributo que los ideales iusfundamentales tienen que pagar a cambio del triunfo, nunca suficientemente apreciado, de su institucionalización en el mundo, tal como es.” Ibid. p. 111. Não é demais lembrar que a proporcionalidade não é uma técnica de interpretação de normas constitucionais, mas sim um método para a tomada de escolhas – ou decisões corretas nos limites trazidos pela Constituição – e pela lei – num modelo de ordem jurídica marco. 630 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 29-30. A metáfora do marco, embora utilizada “por razones de simplicidad” (ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 24) apenas ao tratar da relação entre Constituição e legislação, é de grande utilidade na compreensão dos limites da atividade da administração e da jurisdição. O espaço de discricionariedade da Administração para a edição de normas de direito regulatório estará delimitado pela Constituição e pelas normas constantes de leis – ou das espécies normativas previstas no artigo 59 da Constituição Federal. Quanto menor a densidade normativa – da Constituição e das leis -, maior a margem de ação estrutural da Administração Pública. E, quanto maior a margem de ação estrutural, maior a necessidade de legitimar sua atuação através da participação discursiva dos atingidos. 631 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 20. 632 Nesta obra o autor refere-se a princípio da proporcionalidade e seus subprincípios – adequação (idoneidad), necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 32-81. ponderação.634 A proporcionalidade, com suas três sub-regras, “definen o que se debe entenderse por ‘optimización’, de acuerdo con la teoría de los principios.”635 Anote-se que a discricionariedade atribuída ao legislador, numa ordem marco, possui seu correlato nas atividades jurisdicionais e administrativas. A Constituição como ordem fundamental pode ser concebida em dois sentidos: quantitativo e qualitativo. A Constituição é uma ordem fundamental em sentido quantitativo “si no confía nada a la discrecionalidad del Legislador. Es decir, si para todo tiene un mandato o una prohibición.”636 Todos os princípios jurídicos e possibilidades de equilíbrio para a configuração da ordem jurídica estão nela contidos.637 O legislador, neste modelo, vê seu papel reduzido, limitado a declarar, sob a vigilância da jurisdição constitucional, as escolhas que já estariam contidas na Constituição. Em crítica, observa Alexy que a eliminação da liberdade de configuração política do legislador é incompatível “con los principios del parlamentarismo democrático y de división de poderes.”638 Neste sentido, o conceito de Constituição como ordem fundamental se contrapõe ao conceito de Constituição como ordem marco. No sentido qualitativo, diferentemente, não ocorre tal oposição: “Una Constitución es una orden 633 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 38. 634 Esclarece Alexy que “o espaço estrutural é definido por nada mais que pela ausência de mandamentos e proibições definitivos. O que a constituição nem ordena bem proíbe, ela libera. [...] Espaços estruturais iniciam, portanto, rigorosamente ali onde termina a normatividade material definitiva da constituição. Como o controle judicial-constitucional é exclusivamente controle no critério da constituição, segue forçosamente que lá, onde se inicia o espaço estrutural, cada controle judicial-constitucional termina.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 79. A margem de ação estrutural do legislador (ou espaço estrutural, na tradução brasileira) pode referir-se a: fixação de fins (quando as normas de direito fundamental deixam abertas as razões para a intervenção legislativa ou menciona razões para intervir, sem ordená-la, entretanto); eleição de meios (quando as normas de direito fundamental proíbem certas intervenções legislativas, ordenam a execução de algumas condutas positivas e tratam de deveres de proteção – direitos negativos); ponderação em sentido amplo (quando, em caso de colisão de normas de direito fundamental, estas devem ser ponderadas buscando-se sua otimização, com a utilização das sub-regras da idoneidade (ou adequação), necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Nesta ponderação, não há um ponto máximo de otimização, tampouco uma única resposta correta como resultado). Nestas três hipóteses, há margem de ação estrutural a ser preenchida discricionariamente pelo legislador. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 31-39; ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 80-81. Nestas três hipóteses, há margem de ação estrutural a ser preenchida discricionariamente pelo legislador. 635 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 38. 636 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 30. 637 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 25. 638 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 20-22. fundamental cualitativo o sustancial si mediante ella se deciden asuntos fundamentales para la comunidad. Esto concepto de orden fundamental sí es compatible con el concepto de orden marco.”639 Esclarece Alexy que, segundo sua teoria dos princípios, uma boa Constituição deve decidir assuntos fundamentais – e neste sentido ser uma ordem fundamental – mas, ao mesmo tempo, deixar muitos pontos em aberto - e neste sentido ser uma ordem marco.640 Alexy propõe o que denomina de “constitucionalismo moderado.”641 Isto será possível: Si, en primer lugar, la Constitución ordena y prohíbe algunas cosas, es decir, establece un marco; si, en segundo lugar, confía otras cosas a la discrecionalidad de los poderes públicos, o sea deja abiertos márgenes de acción; y, en tercer lugar, si mediante mandatos y prohibiciones decide aquellas cuestiones fundamentales para la sociedad que pueden y deben ser decididas por una Constitución.642 O que Alexy busca, com sua Teoria dos Princípios – direitos fundamentais com estrutura de princípios otimizáveis - é a satisfação destes postulados. Não há, em Teoría de los derechos fundamentales, um aprofundamento acerca das sub-regras da adequação e da necessidade.643 Tampouco em Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales estas sub-regras são tratadas analiticamente pelo autor.644 Em sua teoria é central a questão da ponderação – proporcionalidade em sentido estrito645 -, sustentando o autor que, em hipótese de colisão entre princípios que se contrapõem na decisão de um caso concreto posto em juízo, a argumentação fundada na proporcionalidade daria uma resposta fundamentada racionalmente. Na mesma linha de sua Teoria da 639 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 31. 640 Não é demais esclarecer que Alexy propõe o que denomina de “constitucionalismo moderado” não como uma teoria da atividade legislativa, mas sim como uma teoria jurídica de controle dos atos legislativos. A preocupação central de Alexy é, como já mencionado por diversas vezes nesta tese, com a aplicação do direito por juízes, e, especificamente na questão dos direitos fundamentais, por juízes do Tribunal Constitucional alemão, em questões de constitucionalidades de leis. 641 ALEXY, Robert. El concepto y validez del derecho. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 161. 642 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 31. 643 O autor trata das sub-regras da necessidade e da adequação às pp. 111-115. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 112. Nesta obra são referidas como máximas. 644 Nesta obra, são denominadas de subprincípios. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 39-48. 645 “La máxima de la proporcionalidad en sentido stricto, es decir, el mandato de ponderación, se sigue de la relativización con respecto a las posibilidades jurídicas.” Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 112. argumentação jurídica, Alexy vale-se de fórmulas lógicas e matemáticas para sustentar a racionalidade de seu processo de decisão. Por possuir na tese em apresentação um papel central a regra da proporcionalidade, bem como por serem precedentes lógicos da ponderação (proporcionalidade em sentido estrito) as sub-regras da adequação e da necessidade, farse-á um pequeno excurso da regra da proporcionalidade, em cotejo com a Teoria dos Princípios de Alexy, exposta em sua Teoría de los derechos fundamentales e em seu Epílogo, pontos de contato da proporcionalidade com a Teoria da Argumentação Jurídica – e desta com a Ética do Discurso e com a Teoria do Agir Comunicativo. A origem remota da regra da proporcionalidade646 – usualmente denominada de princípio, máxima ou postulado da proporcionalidade – é identificada, na pena de Suzana de Toledo Barros, como uma decorrência da passagem do Estado de Polícia para o Estado de Direito, formulada com o intuito de controlar o poder de coação do monarca - poder de polícia -, ilimitado quanto aos fins e quanto aos meios que poderia empregar, estando inicialmente ligado à questão da proporção das penas.647 No excurso que se apresenta, o estudo da proporcionalidade se circunscreverá à conformação que lhe foi dada pelo Tribunal Constitucional Federal, a 646 Nesta tese se adotará as expressões “regra” e “sub-regras” da proporcionalidade. Com já exposto, a regra da proporcionalidade, bem como as sub-regras da adequação, da necessidade e da ponderação (proporcionalidade em sentido estrito) não são ponderadas frente a algo diferente. O que se impõe é a satisfação destas regras sob pena de ilegalidade ou inconstitucionalidade do ato jurídico, seja legislativo, judicial, ou administrativo. Não são princípios na concepção de Alexy – adotada nesta tese: não são mandamentos de otimização, mas sim regras para a aplicação de princípios. O próprio autor (Alexy), embora claramente expresse compreender a proporcionalidade como regra (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 112 – nota de roda-pé explicativa n.º 84) refere-se, por diversas vezes à proporcionalidade como máxima ou mesmo como princípio, o que gera uma certa confusão. Em sentido semelhante do aqui exposto, adotando a proporcionalidade como regra: AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 25. Em sentido semelhante, excluindo a natureza de princípio em relação à proporcionalidade, Humberto Bergmann Ávila, que classifica a proporcionalidade como um postulado normativo específico aplicativo, decorrente do caráter principiológico de normas de direito. ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, pp. 112-125. 647 BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, pp. 37-39. Aponta Luís Virgílio Afonso da Silva ser comum a identificação - errônea - da origem remota da regra de proporcionalidade já na Carta Magna de 1215 – fonte primeira do princípio da razoabilidade e também da proporcionalidade: “É de se questionar até mesmo a afirmação de que a regra da razoabilidade tenha origem neste documento.” AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 29. partir do já mencionado caso Lüth, de 1958, quando foram fixados seus requisitos – aqui denominados de sub-regras.648 Antes adentrar no tema específico da regra da proporcionalidade - com suas sub-regras - cabe esclarecer, com o auxílio de Luís Virgílio Afonso da Silva, a freqüente confusão que se faz entre a proporcionalidade, a proibição do excesso, a proibição da insuficiência e o princípio da razoabilidade.649 A proibição de excesso, embora estivesse relacionada à regra da proporcionalidade na construção jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão, não deve gerar qualquer confusão com esta. Ainda que a regra da proporcionalidade seja 648 A trajetória da construção da proporcionalidade pode ser encontrada na didática obra de Suzana Toledo Barros, acima referida. Ressalte-se que a autora confunde proporcionalidade com razoabilidade: “O princípio da proporcionalidade, a que se faz alusão neste trabalho, como uma construção dogmática dos alemães, corresponde a nada mais do que o princípio da razoabilidade dos norte-americanos, desenvolvido mais de meio século antes, sob o clima de maior liberdade dos juízes na criação do direito.” BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 59. Toma-se a lição de Willis Santiago Guerra Filho, ao tratar do “princípio da proporcionalidade”: “Que nossas palavras finais, então, se dirijam aos que, em nossa Dogmática Jurídica, especialmente no campo do direito público, vêm confundindo o princípio da proporcionalidade, de origem germânica, com um outro, de origem anglosaxônia, aqui denominado, ao que parece por influência argentina, ‘princípio da razoabilidade’, quando, na própria tradição britânica se fala em ‘princípio da irrazoabilidade’. O princípio da proporcionalidade, como aqui se procurou evidenciar, não se destina a evitar que absurdos sejam perpetrados na elaboração do Direito, mas sim que este seja interpretado e aplicado atendendo a um princípio de racionalidade, apto a determinar qual a melhor dentre as diversas interpretações possíveis, do ponto de vista da promoção simultânea e equânime do Estado de Direito e da Democracia, com a gama de direitos fundamentais e valores que lhes são inerentes, sendo esse mesmo compromisso com a racionalidade o principal de toda teoria, também no campo do Direito.” GUERRA FILHO, Willis Santiago. “Princípio da proporcionalidade e teoria do direito”. In: GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 283. 649 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002. Na jurisprudência brasileira do Supremo Tribunal Federal, a decisão proferida no julgamento do RE 18.331, em 21 de setembro de 1951, é apontada como primeira a acolher o principio da proporcionalidade. A decisão enfrentava a constitucionalidade da majoração pelo Município de Santos do imposto de licença incidente sobre cabinas de banho. Nesta decisão assentou o Ministro Orosimbo Nonato, em passagem histórica de seu voto, que: “O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comercio e de indústria e com o direito de propriedade. É um poder, cujo exercício não pode ir até o abuso, excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui a doutrina fecunda do détournement de pouvoir. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito ente a norma comum e o preceito da Lei Maior pode se acender não somente considerando a letra do texto, como também e principalmente, o espírito do dispositivo invocado”. MORAES, Germana de Oliveira, Controle jurisdicional da administração pública, São Paulo: Dialética, 1999, p. 137; BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, pp. 105-106. A adoção deste posicionamento pelo Supremo Tribunal Federal resultou na edição das súmulas de jurisprudência de número 70, 323 e 547, orientadoras na solução de conflitos entre a Fazenda Pública e o Contribuinte no que tange às coerções praticadas pela Administração fazendária com fito de receber tributos sem se valer do processo de execução fiscal previsto em lei. Como adiante se demonstrará, a decisão em tela se pauta pela razoabilidade, e não pela proporcionalidade. preponderantemente utilizada como instrumento de controle do excesso de poderes estatais, ganha importância, na atualidade, sua utilização como instrumento contra a omissão ou insuficiência de poderes estatais – a denominada proibição de insuficiência.650 Tal possibilidade impede o uso da expressão “vedação ao excesso” como sinônima de “regra de proporcionalidade”.651 Esclarece Luís Virgílio Afonso da Silva que num discurso jurídico, os termos razoabilidade e proporcionalidade são tomados em seu sentido técnico-jurídico, não sinônimo, expressando “construções jurídicas diversas.”652 Embora o “princípio da razoabilidade” e a “regra ou princípio da proporcionalidade” destinem-se a “controlar as atividades legislativa ou executiva, limitando-as para que não restrinjam mais do que o necessário os direitos dos cidadãos, esse controle é levado a cabo de forma diversa, caso seja aplicado um ou outro critério.”653 Diferenciam-se tanto por sua origem quanto por sua estrutura. O princípio da razoabilidade, denominada pelos ingleses de “princípio da irrazoabilidade”,654 surge concretamente na Inglaterra, “em decisão judicial proferida em 1948.” Leciona Luís Virgílio Afonso da Silva que o teste da irrazoabilidade, “conhecido teste Wednesbury, implica tão somente rejeitar atos que sejam excepcionalmente irrazoáveis.” Aponta o autor a seguinte fórmula: “Se uma decisão [...] é de tal forma irrazoável, que nenhuma autoridade razoável a tomaria, então pode a Corte intervir.”655 O teste da razoabilidade – melhor dizendo, da irrazoabilidade – é menos intenso que a da proporcionalidade, 650 Aponta Luís Virgílio Afonso da Silva que a expressão foi utilizada pela primeira vez “ao que tudo indica” por Claus-Wilhem Canaris em 1984, ganhando importância na jurisprudência alemã a partir da decisão sobre o aborto exarada no processo BverfGE 88, 203 [245]. AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 27. 651 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, pp. 26-27. 652 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 28. 653 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 28. 654 GUERRA FILHO, Willis Santiago. “Princípio da proporcionalidade e teoria do direito”. In: GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 283. Aponta o autor que a adoção da terminologia “princípio da razoabilidade” em lugar do original “princípio da irrazoabilidade” deve-se à influência de tradução argentina (p. 283). 655 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 29. afastando-se apenas o atos “absurdamente irrazoáveis.”656 Nada impede que um ato desproporcional não seja considerado irrazoável.657 A razoabilidade, informa Humberto Ávila, “não faz referência a uma causalidade entre um meio e um fim, tal como o faz o postulado da proporcionalidade.”658 Funciona como dever de harmonização do geral com o individual, como instrumento para determinar que as circunstâncias do fato devem ser consideradas, ou ainda para expressar que a aplicação da regra geral depende do enquadramento do caso concreto. A regra da proporcionalidade não se configura uma mera pauta que sugere que os atos estatais devam ser razoáveis, tampouco mera análise de relação meio-fim. Sintetiza Luís Virgílio Afonso da Silva: Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes – a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito -, que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade.659 Adverte Humberto Ávila que a regra da proporcionalidade não se confunde com a idéia geral de proporção, em suas variadas manifestações. Aplica-se apenas a 656 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 29. Esclarece o autor que a diferenciação é confirmada por debate existente na Inglaterra, acerca dos Human Rights Act de 1998, em que se discute a o papel da regra da proporcionalidade ao lado da irrazoabilidade, o mesmo a substituição desta pela primeira regra. 657 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 30. Aponta o autor a decisão da Corte Européia de Direitos Humanos Smith and Grady v. United Kingdom [1999], § 137, como exemplo de decisão que considerou uma ato jurídico desproporcional, embora razoável. Nada impede, entretanto, que uma decisão razoável seja tomada por desproporcional. Para Germana de Oliveira Moraes razoabilidade e proporcionalidade não se confundem: “O teste da racionalidade envolve a adoção dos critérios de proporcionalidade – adequação e exigibilidade, enquanto o teste de razoabilidade, relacionado à questão da proporcionalidade em sentido estrito, configura um método de obtenção do equilíbrio entre os interesses em conflito [...]” (MORAES, Germana de Oliveira, Controle jurisdicional da administração pública, São Paulo: Dialética, 1999, p. 133). Reconhece a autora que o Poder Judiciário usa indiscriminadamente um princípio por outro, tendo Supremo Tribunal Federal considerado a proporcionalidade como abrangente da razoabilidade. (Ibid., p. 134) A postura da autora - ao relacionar racionalidade a adequação e exigibilidade, e razoabilidade à proporcionalidade em sentido estrito - mostra o quanto o tema ainda é polêmico. 658 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, p. 110. 659 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 30. Leciona o autor referido que a classificação ternária é amplamente majoritária, sufragando a binária (adequação e necessidade) e a quaternária (adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito e legitimidade dos fins). Ibid. p. 35. situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos discerníveis:660 um meio e um fim.661 Debruçando sobre estes elementos, meio e fim, três exames devem ser feitos:662 O da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamental(is) afetado(s)?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?).663 Alexy define o papel da proporcionalidade em sua teoria dos princípios: “Los principios son mandatos de optimización con respecto a las posibilidades jurídicas e fácticas.”664 Adequação e necessidade relacionam-se às possibilidade fáticas, 660 Humberto Ávila refere-se a “empiricamente discerníveis”. Como a proporcionalidade em sentido estrito não pondera medidas, e sim uma medida que proporciona ou protege um direito fundamental em detrimento de outro, sendo, como adiante se demonstrará, basicamente uma ponderação de direitos, optou-se por retirar a expressão “empiricamente”, o que poderia causar alguma confusão. O sentido da expressão, na frase do autor, acerca da proporcionalidade (no sentido amplo – regra da proporcionalidade) não é de uma comparação de fatos, mas sim de uma ponderação efetiva de medidas, ou entre uma determinada medida e um determinado direito fundamental. ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, pp. 112-113. 661 Prossegue o referido autor: “Sem um meio, um fim concreto e uma relação de causalidade entre eles não há aplicabilidade do postulado da proporcionalidade em seu caráter trifásico.” ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, p. 113. 662 O exame da proporcionalidade deve ser realizado por todos os envolvidos nos processos de criação, interpretação e de aplicação do direito. Embora Alexy tome por foco a atuação do juiz (judicial review) no controle da atividade legislativa, e incidentalmente administrativa, o exame da proporcionalidade dever ser efetuado também por legisladores e por administradores, limitados que estão, numa ordem constitucional marco, por princípios de direitos fundamentais constitucionais e por normas delineadoras de políticas públicas, estas com baixa densidade normativa, e com forma de aplicação equivalente à dos princípios em sentido estrito. Ainda que não diretamente relacionado com o objetivo central da tese que se apresenta, mas por se reconhecer a repercussão da Teoria dos Princípios de Alexy no âmbito da intensidade do controle dos atos legislativos e administrativos pelo Judiciário, cabem as seguintes lições de Humberto Ávila. Reconhecendo que a questão apresenta grandes dúvidas quanto aos seus limites, e, com o abandono da noção de insindicabilidade das escolhas legislativas ou administrativas, propõe o autor critérios que aumentem ou restrinjam, a depender do caso concreto, o controle a ser exercido pelo Judiciário: “De um lado, o âmbito de controle pelo Poder Judiciário e a exigência de justificação da restrição a um direito fundamental deverá ser tanto maior quanto maior for: (1) a condição para que o Poder Judiciário construa um juízo seguro a respeito da matéria tratada pelo Poder Legislativo; (2) a evidência de equívoco da premissa escolhida pelo Poder Legislativo como justificativa para a restrição do direito fundamental; (3) a restrição ao bem jurídico constitucionalmente protegido; (4) a importância do bem jurídico constitucionalmente protegido, a ser aferida pelo seu caráter fundante ou função de suporte relativamente a outros bens (por exemplo, vida e igualdade) e pela sua hierarquia sintática no ordenamento constitucional (por exemplo, princípios fundamentais). [...] De outro lado, o âmbito de controle pelo Poder Judiciário e a exigência de justificação da restrição a um direito fundamental, deverá ser tanto menor, quanto mais: (1) duvidoso for o efeito futuro da lei; (2) difícil e técnico for o juízo exigido para o tratamento da matéria; (3) aberta for a prerrogativa de ponderação atribuída ao Poder legislativo pela Constituição.” ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, pp. 125-126. O autor adota, como adiante se demonstrará, as regras de ponderação de Alexy. 663 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, pp. 112-113. 664 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 112. e a proporcionalidade em sentido estrito à possibilidade jurídica. Nestes âmbitos, ressalta Marina Velasco, que a base epistemológica da regra da proporcionalidade é a relação entre meios e fins665 – teleológica, portanto. Aponta Luís Virgílio Afonso da Silva que as sub-regras da proporcionalidade “guardam uma relação de subsidiariedade, o que significa dizer que nem sempre será necessária a aplicação de todas elas.”666 Por vezes a medida sob exame será tomada como inadequada, sendo irrelevante seguir sua análise acerca de sua necessidade ou de sua proporcionalidade em sentido estrito. Outros casos podem correr em que, na aplicação otimizada de princípios, não ocorra qualquer colisão destes, resolvendo-se a questão pelas sub-regras da adequação e da necessidade. A adequação, também denominada de idoneidade, primeira das sub-regras a incidir no exame da proporcionalidade de um ato estatal - legislativo, judicial ou administrativo – limita-se ao exame da aptidão para o alcance ou fomento dos objetivos visados pelo ato estatal. Adequado, na lição de Luís Virgílio Afonso da Silva, “não é somente o meio com cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado.”667 Uma medida somente seria inadequada quando sua “utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objeto pretendido.”668 Em Alexy, não é demais ressaltar, a adequação – como também a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito – estão dentro do campo de ação estrutural do legislador.669 O foco de sua Teoria, entretanto, é a atuação do julgador, 665 VELASCO, Marina. “Habermas, Alexy e a razão prática kantiana.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 36. 666 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 45. 667 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 36. O autor credita à imprecisa tradução do verbo alemão fördern, que significa “fomentar, promover”, por “alcançar” a razão da compreensão – bastante difundida, mas errônea – da adequação como meio apto para alcançar o resultado pretendido. 668 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 38. 669 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 32. Reconhece que as sub-regras da adequação e da necessidade, embora sejam adotadas dentro da margem de ação estrutural, exercem também um importante papel dentro da margem epistêmica, especialmente a empírica. Sustenta esta assertiva colacionando decisão do Tribunal Constitucional alemão que julgou constitucional a lei penal que estabelecia pena para a aquisição de cannabis sativa – maconha. Nesta decisão, o fundamento da constitucionalidade da sanção penal foi a ausência de “conocimientos científicamente fundados que hablen necesariamente a favor de la corrección de una o de otra alternativa” – liberalização da maconha ainda que no julgamento pelo Tribunal Constitucional acerca da constitucionalidade ou não de uma lei.670 Desta forma, a adequação (idoneidade) funciona como um critério negativo mediante o qual se pode verificar quais meios são idôneos ou não à otimização.671 Há sempre uma pergunta implícita para sua satisfação: o meio escolhido é adequado (idôneo) ao atendimento – ou ao menos ao fomento672 – do objetivo visado?673 Sua resposta não busca atingir um ponto máximo, tampouco uma única resposta correta: há, entretanto, a pretensão de alcançar a maior realização possível de acordo com as possibilidades fáticas.674 A sub-regra da adequação (idoneidade), explicita Alexy, “es compatible con la idea de orden marco. Como elemento de orden marco, su función consiste en excluir lo no idóneo, sin que de este modo llegue a fijarlo todo.”675 A necessidade, segunda das sub-regras da proporcionalidade, exige para seu atendimento, na precisa lição de Alexy, que “de dos medios igualmente idóneos sea escogido el más benigno con el derecho fundamental afectado.”676 Nesta linha, traz Luís Virgílio Afonso da Silva que: “Um ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objeto perseguido não possa ser promovida, com mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido.”677 O exame da necessidade difere do exame da adequação: este é versus perigo causado pelo comércio ilegal (trafico). ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 44. 670 Como adiante se demonstrará, a proporcionalidade é de grande serventia na orientação, produção e controle dos atos administrativos. 671 A sub-regra da adequação, como a da necessidade, destina-se a selecionar os meios para o alcance (ou fomento) dos fins eleitos em lei ou na Constituição. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 43. 672 Como esclarece: AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 36. 673 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 41. 674 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 39. Alexy vincula a adequação à busca da eficiência, expressa no Ótimo de Pareto, já explicitado no corpo desta tese – “una posición pode ser mejorada sin que otra empeore.” Ibid., p. 41. 675 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 41. 676 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 41. 677 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 38. um exame absoluto,678 ao passo que aquele é “imprescindivelmente” comparativo.679 Neste exame comparativo, para que seja um meio aceito como necessário, é imperioso que se faça um cotejo com as medidas alternativas.680 Exemplifica Alexy sua adoção pelo Tribunal Constitucional alemão na questão envolvendo a fabricação de doces e confeites com a utilização de cacau em pó adicionado a grande quantidade de gordura vegetal – especialmente de arroz. A questão envolvia a proibição de comercialização destes produtos, ou a proibição da utilização do termo “chocolate” em sua embalagem, com a devida advertência de conter grande quantidade de gordura vegetal. Na análise do caso, verifica-se que ambas as medidas são adequadas ao alcance de seu objetivo: “Si una mercancía no puede ser introducida en el comercio disminuye el peligro de que sea comprada por equivocación.”681 Havia, entretanto, um meio também idôneo (adequado) mas menos restritivo ao direito de liberdade de ofício: a etiquetação dos produtos, o que “podía prevenir el peligro de 678 Alexy parece discordar desta assertiva. Em Teoría de los derechos fundamentales explica: se o meio (M1) não é adequado para a consecução do fim (F) exigido por P1, é indiferente para P1 se M1 se realiza ou não. Se sob certas condições M1 afeta P2 (um princípio colidente), ao tomar os princípios como mandamentos de otimização com relação às possibilidade fáticas (adequação), M1 estará proibido por P2. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 114-115. Em Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales, no mesmo sentido, ao tratar da sub-regra da adequação, apresenta como inadequado um meio que impede a realização de um princípio (P1 – liberdade de exercício profissional), sem que apresente condições de favorecer outro princípio colidente (P2 - proteção do consumidor). Assevera o autor, ao analisar decisão do Tribunal Constitucional alemão que julgou inconstitucional a exigência de prova de conhecimentos comerciais específicos para operar uma máquina de venda automática de cigarros – similares às de refrigerantes que vemos comumente no Brasil – que “la prueba de conocimientos comerciales específicos no era idónea para proteger a los consumidores de daños económicos o de daños para la salud. En consecuencia, esta medida resultaba prohibida por el principio de idoneidad y vulneraba por tanto el derecho fundamental a la libertad de profesión y oficio.” ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 40. Em que pese a qualidade dos argumentos de Alexy, a medida (lei, decisão ou ato administrativo – M1) ao não ser idônea à produção dos fins (F) protegidos por P1 é, desde já, inadequada. A questão da redução de outro princípio colidente (P2) estará superada, prejulgada, prejudicada. No caso específico da adequação, o que se tem, em realidade, é uma questão de maximização de P1. O reconhecimento desta maximização, entretanto, não é incompatível, ou diminui a densidade da Teoria dos Princípios de Alexy. Esclarece o autor que opta por “simplicidad” pela expressão “otimização” ao invés de “maximização”. Entende que a primeira definição, mais geral, não cria confusão em hipótese de aplicação isolada de um princípio de direito fundamental. A expressão “maximização” seria menos precisa, e necessitaria de uma complementação, já que seria imprópria a idéia de maximizar princípios que se chocam. Em caso de colisão de princípios, otimizar significa ponderar as possibilidades jurídicas. Na hipótese de aplicação isolada de um princípio, embora os princípios continuem sendo definidos como mandatos de otimização, a questão é de maximização, e sua aplicação refere-se apenas às possibilidades fáticas de seu cumprimento. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 91. 679 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 38. 680 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 39. 681 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 42. confusiones y equivocaciones ‘de una manera igualmente eficaz, pero menos gravosa’.”682 A idéia de otimização está presente na decisão: o princípio da proteção dos consumidores (P2) se realiza com a obrigatoriedade da etiquetação dos produtos (M1) em medida equivalente àquela da proibição da comercialização do produto (M2). Para P2 tanto faz a adoção de M1 ou de M2. Ocorre, entretanto, que relativamente à liberdade de profissão e ofício (P1), M2 intervém de maneira substancialmente mais intensa que M1. Se tanto M1 como M2 são faticamente adequados, P1 sofrerá uma restrição menos gravosa com a adoção de M1. Desta forma, a otimização de P1 e de P2 proíbem que seja adotado M2 (proibição de comercialização do produto).683 Essencial para a compreensão da passagem do exame da sub-regra da necessidade (possibilidades fáticas) para a sub-regra da proporcionalidade (possibilidades jurídicas) a seguinte lição de Alexy: “Cuando también el medio más benigno afecta la realización de P2, a la máxima de la necesidad, hay que agregar-le siempre la máxima de la proporcionalidad en sentido estricto, es decir, el mandato de ponderación.”684 A proporcionalidade em sentido estrito será analisada em tópico próprio, em razão da relevância que possui na Teoria dos Princípios de Alexy. 3.6 Proporcionalidade em sentido estrito: regras de colisão e de ponderação A proporcionalidade em sentido estrito, terceira sub-regra da proporcionalidade, consiste, na pena de Luís Virgílio Afonso da Silva, “em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva.”685 682 Assim decidiu o Tribunal – BverfGE 53, 135 (146), apud ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 42. 683 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 42-43. Nesta linha, leciona Alexy, a sub-regra da necessidade é também uma expressão do Ótimo de Pareto. 684 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 114. 685 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 40. É bastante elucidador o exemplo – extremo - citado pelo autor: se para o combate à disseminação da AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida) o Estado decidisse que, além da obrigatória realização de exame para sua identificação, fossem todos os infectados (HIV positivos) encarcerados, ter-se-ia a seguinte situação: A medida seria, sem dúvida, adequada e necessária – nos termos previstos pela regra da proporcionalidade -, já que promove a realização do fim almejado. Embora seja fácil imaginar medidas alternativas que restrinjam menos a liberdade e dignidade dos cidadãos, nenhuma dessas medidas alternativas teria a mesma eficácia da medida citada. 686 Somente o sopesamento que proporcionalidade em sentido estrito exige é capaz de evitar que esse tipo de medidas descabidas seja considerado proporcional, visto que, após ponderação racional, não há como não decidir pela liberdade e dignidade humana (art. 5º e 1º, III), ainda que isso possa, em tese, implicar um nível menor de proteção á saúde pública.687 Não é necessário, para que uma medida seja considerada desproporcional, que a restrição a um direito fundamental seja total – “que implique a não-realização de um direito fundamental”, tampouco que atinja seu “núcleo essencial”.688 Para que seja desproporcional basta que “os motivos que fundamentam a adoção da medida não tenham peso suficiente para justificar a restrição ao direito fundamental atingido.”689 Ainda que pequena a restrição a um direito, esta pode ser desproporcional em sentido estrito se a importância do direito fundamental que justifica a medida não for suficiente.690 686 Este ponto da assertiva de Luís Virgílio Afonso da Silva é essencial para que não se confunda a subregra da necessidade com a da proporcionalidade em sentido estrito: para a aferição da necessidade, ambas as medidas alternativas promovem – no dizer de Alexy – uma proteção em medida equivalente a um determinado direito fundamental. Para a aferição da proporcionalidade em sentido estrito, as medidas alternativas possuem eficácia diferente. Neste último caso, a questão posta em ponderação é se a efetivação da medida necessária (alternativa mais eficiente) se justifica em face da não realização, de elevado grau de diminuição, ou de alguma restrição a um direito fundamental. Outra questão essencial na diferenciação: a sub-regra da necessidade opera com a otimização de um princípio “em relação às possibilidades fáticas presentes.” A proporcionalidade em sentido estrito – mandamento de ponderação, sopesamento – busca atingir uma grau ótimo de realização de cada um dos direitos fundamentais envolvidos no processo. Não se pondera acerca das medidas fáticas alternativas, já que se sabe qual a medida mais eficiente. “A otimização de um direito fundamental, nesse caso, vai depender das possibilidades jurídicas presentes, isto é, do resultado do sopesamento entre os princípios colidentes, que nada mais é do que a sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito.” Pondera-se uma determinada medida e o direito por ela supostamente protegido, com outro, ou outros direitos fundamentais. AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, pp. 38-44. 687 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, pp. 40-41. 688 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 41. 689 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 41. A questão do “peso”, com graus de restrição da medida e graus de importância do direito fundamental, é explorada por Alexy em Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. 690 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002, p. 41. O tema será mais bem elucidado com a demonstração das reformulações da Teoria dos Princípios apresentas por Alexy em Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Esclarece Alexy que, numa situação de contradição de princípios, cada um deles limita a possibilidade jurídica do cumprimento de outro.691 A pergunta implícita, proposta por Humberto Ávila, é a seguinte: “O grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais?”692 Conforme mencionado linhas acima, a questão da proporcionalidade em sentido estrito é central à teoria dos Princípios de Alexy. Sua concepção de ordem marco, de discricionariedade dentro da margem de ação estrutural, de princípios como mandamentos de otimização, e de colisão de princípios sustentam-se na concepção argumentativa da regra da proporcionalidade – mais especificamente, na sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito. Ponderar princípios opostos que colidem implica em reconhecer que a regra da proporcionalidade em sentido estrito é dedutível do caráter principiológico das normas de direito fundamental. 693 Procedimental que é, o princípio da proporcionalidade não necessita de qualquer fundamentação específica na Constituição – alemã ou brasileira – derivando, exclusivamente, da estrutura das normas de direitos fundamentais,bem como das normas que estabelecem políticas públicas – os denominados bem coletivos. Na hipótese de colisão de princípios, levando em conta as circunstâncias do caso, ensina Alexy, “se establece entre los principios una relación de precedencia condicionada” que consiste em estabelecer determinadas condições sob as quais um princípio precede a outro. Sob condições fáticas diferentes, a questão da precedência poderá ser solucionada de modo diverso.694 O conceito de “relação de precedência condicionada” é essencial à compreensão da solução da colisão de princípios e da Teoria dos Princípios. Uma colisão pode ser solucionada através de uma relação de precedência condicionada – relativa, concreta.695 A questão decisiva é sob quais condições qual princípio tem precedência e qual deve ceder. Nestas situações, aponta Alexy que o Tribunal 691 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 91. 692 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2004, p. 124. 693 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 112. 694 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 92. 695 Informa Alexy que o Tribunal Constitucional alemão exclui qualquer relação de precedência incondicionada (absoluta, abstrata), com seguinte frase: “ninguno de estos intereses merece sin más la precedencia frente al otro.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 92. Constitucional Alemão “se sirve de la muy difundida metáfora del peso.”696 Prossegue Alexy: “El principio P1 tiene, en un caso concreto, un peso mayor que el principio opuesto P2 cuando existen razones suficientes para que P1 preceda a P2, bajo las condiciones C dadas en el caso concreto.”697 P1 e P2 são princípios contraditórios, C representa as condições fáticas concretas, e P a relação de precedência. Desta forma, tem-se a seguinte formulação: (P1 P P2) C. Ou ainda, sob condições fáticas diversas: (P2 P P1) C’. A ponderação, na fórmula adotada pelo Tribunal Constitucional alemão, consiste em mencionar as condições de precedência (C) e a fundamentação da tese de que, sob estas condições, P1 precede a P2 – ou, P2 precede a P1. Nesta fundamentação vislumbra Alexy espaço à argumentação na linha da ética do discurso – boas razões para que um princípio preceda a outro: “El carácter prima facie de los principios puede reforzarse introduciendo una carga de argumentación en favor de terminados principios o de determinados tipos de principios.”698 Adverte Alexy que C possui uma função dúplice: estabelece a preferência de um princípio em detrimento de outro em determinadas condições, mas também estabelece condições sob as quais se produz uma lesão a um direito fundamental, sendo esta, portanto, proibida do ponto de vista da otimização dos direitos fundamentais: “Si una acción satisface las condiciones C, entonces pesa sobre ella una prohibición iusfundamental.”699 C é um pressuposto fático de uma norma que estabelecerá a solução da controvérsia acerca da colisão de princípios. Para tanto, Alexy apresenta uma regra de colisão, que denomina de “Lei de Colisão”: K : se o princípio P1, sob as circunstâncias C, precede o princípio P2 - (P1 P P2) C – e se de P1 sob as circunstâncias C resulta a conseqüência R, então vale uma regra que contenha C como pressuposto fático e R como conseqüência jurídica: C → R. 700 Esta regra de colisão é assim formulada por Alexy: “Las condiciones bajo las cuales un principio precede a otro constituyen el supuesto de hecho de una regla que expresa 696 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 93. 697 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 93. 698 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 101. 699 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 93. 700 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 94. Alexy, tal qual em sua Teoria da argumentação jurídica, utiliza-se de fórmulas lógicas como meio de demonstrar a racionalidade dos métodos propostos. la consecuencia jurídica del principio precedente.”701 Dos enunciados condicionados de preferência seguem-se regras.702 A questão de que a Teoria dos Princípios de Alexy se ocupa é de propor uma racionalidade discursiva da ponderação aplicada à fundamentação do enunciado de preferência:703 “Una ponderación es racional si el enunciado de preferencia al que conduce puede ser fundamentado racionalmente.”704 Desta maneira, o problema da racionalidade da ponderação conduz à questão da possibilidade de fundamentação racional dos enunciados que estabelecem as preferências condicionadas entre os princípios colidentes.705 Alexy não adota uma tese radical acerca da racionalidade de seu método. Ao contrário, defende que a ponderação não é procedimento que em cada caso conduza necessariamente a um único resultado.706 Sua tese é moderada. Sustenta, em seu Epílogo que, com a ajuda da ponderação, “ciertamente no en todos, pero sí en algunos casos, puede establecerse un resultado de manera racional y que la clase de estos casos es suficientemente interesante como para la existencia de la ponderación como método esté justificada.”707 É precisamente neste ponto que a regra da proporcionalidade se socorre da teoria da argumentação jurídica – tese do Caso Especial - como forma de obter ganhos no que se refere à sua racionalidade. Para a fundamentação dos enunciados condicionados de preferência (P1 P P2) C, que possuem o caráter de fundamentação de 701 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 94. 702 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 159. 703 Ressalta Alexy que o modelo de determinação da precedência condicionada segue um procedimento racional de fundamentação, e não um modelo subjetivo de decisão. Por este último modelo, a ponderação derivaria exclusivamente das concepções subjetivas de quem pondera, não se podendo falar em ponderações corretas ou falsas – o resultado seria racionalmente incontrolável. O modelo de fundamentação, diferentemente, postula que o julgador se pauta, na formulação de sua regra individual (derivada da regra de colisão) por critérios racionais, sendo possível, portanto, tratar estas normas como corretas ou falsas. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 158. Esta postura de Alexy deriva da adoção da Ética do Discurso no âmbito do direito – teoria discursiva do direito. A Ética do Discurso é uma teoria cognitivista da moral que sustenta que os juízos morais são passíveis de verdade – ou mais precisamente, de validade. Em Habermas: “A Ética do Discurso refuta o cepticismo ético, explicando como os juízos morais podem ser fundamentados.” HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 121. 704 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 159. 705 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 159. 706 Na mesma linha de sua Teoria da argumentação jurídica. 707 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 50. Como já exposto no capítulo II desta tese, as certezas esmaeceram com o surgimento da Segunda Modernidade, onde impera o risco e a ambivalência. uma regra concreta (C→R: sob certas condições, C ordena a conseqüência jurídica R), pode-se utilizar de todos os argumentos possíveis na argumentação de direito fundamental: “cánones de interpretación, argumentos dogmáticos, prejudiciales, prácticos y empíricos en general, como así también las formas de argumentos específicamente jurídicos.”708 Esta fundamentação do enunciado de preferência condicionado e de sua regra correspondente (C→R) pode fazer referência, portanto, à vontade do legislador constitucional, às conseqüências negativas de uma determinação de preferência diferente da sustentada, a consensos dogmáticos e a decisões anteriores.709 E, na medida em que isto ocorre, “la fundamentación de un enunciado de preferencia condicionado no se diferencia de la fundamentación de reglas semánticas establecidas para mayor precisión a conceptos vagos.”710 Além das regras gerais da argumentação jurídica, expostas linhas acima neste capítulo, Alexy se refere à existência de argumentos específicos de ponderação regras constitutivas para as ponderações. Formula duas regras de ponderação, construídas tomando por base a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão. A primeira regra de ponderação, também denominada de “lei da ponderação material”,711 exposta pelo autor já em Teoría de los derechos fundamentales, é assim enunciada: “Cuanto mayor es el grado de la no satisfacción o de afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser la importancia de la satisfacción del otro.”712 Por 708 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 159. 709 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 159. 710 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 159. Reafirma Alexy, neste ponto, a semelhança estrutural entre os conceitos jurídicos indeterminados (“vagos”) e os princípios. Prossegue o autor: “La diferencia desaparece aún más si se tiene en cuenta que, también dentro del marco de la interpretación habitual, se llevan a cabo regularmente ponderaciones.” Ibid. Estas ponderações em interpretações de regras, entretanto, não seguem o procedimento descrito por Alexy, com o estabelecimento de uma regra de precedência condicionada numa hipótese de colisão. A ponderação referida por Alexy, como se depreende das razões presentes comumente em decisões jurídicas (vontade do legislador constitucional, conseqüências negativas de uma determinação de preferência diferente da sustentada, consensos dogmáticos e decisões anteriores), é a ponderação no sentido usual, de estudo dos benefícios e malefícios que o resultado que uma determinada interpretação causará. 711 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 93. 712 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 161. A regra, que vigora preponderantemente no âmbito da margem de ação estrutural - está transcrita também em: ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 48; e em ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 133. Nesta obra mais recente, foi desta forma traduzida para o português: “Quanto mais alto é o grau do não-cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro.” esta regra, a medida de não satisfação ou de afetação de um princípio depende do grau de importância da satisfação do outro princípio colidente. Expressa claramente que o peso dos princípios não é tomado absolutamente, mas em regra713 relativamente.714 E, mais importante: “Dice qué es lo que hay que fundamentar para justificar el enunciado de preferencia condicionado que representa el resultado de la ponderación”:715 a fundamentação terá por base enunciados acerca dos graus de afetação e de importância,716 acerca do peso das razões que justificam ou não a intervenção. Assim, “la razón para la intervención, que tiene un peso intenso, justifica la intención leve.”717 Esclarece Alexy, em seu Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales, que a regra de ponderação mostra que a ponderação pode se dividir em três passos:718 En el primer paso es preciso definir el grado de la no satisfacción o de afectación de uno de los principios. Luego, en un segundo paso, se define la importancia de satisfacción del principio que juega en sentido contrario. Finalmente, en tercer paso, debe definir-se si la importancia de la 713 A expressão “em regra” deve-se à constatação de Alexy que, por vezes, como adiante se demonstrará, o peso abstrato dos princípios poderá influenciar no resultado da ponderação. Em seu Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales e em Constitucionalismo discursivo o autor complementa sua “fórmula peso”, admitindo a influência do peso abstrato dos princípios. Em regra, entretanto, os princípios possuem pesos abstratos idênticos, o que faz com que se desconsidere esta variável. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 68; ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 151. 714 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 161. Alexy, seguindo seu objetivo de demonstrar a racionalidade de seu método, faz uso de curvas de indiferença, comumente utilizadas nas ciências econômicas, para demonstrar a relação de substituição de direitos fundamentais. As curvas de indiferença aclaram as idéias que estão por trás da Lei de Ponderação, mas não oferecem um procedimento definitivo de decisão: “Sin embargo, la ley de ponderación no es inútil.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 161-164. 715 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 164. 716 Apenas em Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales a questão dos graus é devidamente explorada por Alexy. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 59-81. Os graus - leve, médio e grave - são propostos à p. 60. Observa Alexy que dentre as razões apresentadas em decisões de ponderação do Tribunal Federal alemão, encontram-se diferentes juízos valorativos: referências a fatos, a resultados danosos hipotéticos, e a juízos normativos. Tais espécies de juízos são necessárias na determinação do campo de ação dos conceitos jurídicos indeterminados, “en el ámbito de la interpretación clásica.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 165. Os conceitos jurídicos indeterminados (conceitos vagos) devem ser interpretados. As valorações exercem relevante papel na determinação do campo de ação destes conceitos. Esta interpretação não deixa de ser racional por se reconhecer a importância da ponderação. Ibid., p. 166. 717 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 52. 718 Estes três passos são também referidos em ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 133. satisfacción del principio contrario justifica la afectación o la no satisfacción del otro.719 Sustenta Alexy que é possível emitir juízos racionais sobre os graus de intensidade e de importância em que se vêem afetados os princípios, e que estes juízos podem ser relacionados entre si para a fundamentação de um resultado.720 A ponderação não se realiza de forma arbitrária ou irreflexiva. 721 Trata de identificar o que é correto para a Constituição, servindo-se de um discurso – mais precisamente, de um procedimento – racional que possibilite um ponto de vista uniforme – o ponto de vista da Constituição.722 Exemplifica com a decisão do Tribunal Constitucional alemão num processo em que uma revista de humor – Titanic – chamou um soldado portador de necessidade especiais (paraplégico) de aleijado (“tullido”). O Tribunal reconheceu que tal conduta implicava uma humilhação pública e uma falta de respeito que afetavam sua dignidade: “No se trata entonces, simplemente, de una afectación grave, sino de una afectación muy grave o extraordinariamente grave.”723 Conclui, da decisão do Tribunal, que uma afetação grave quase nunca pode ser justificada pela contundência das razões que jogam a favor da intervenção. Esta circunstância funciona como uma “barrera cortafuego” de proteção dos direitos fundamentais. O estudo do denominado “caso 719 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 49. Ao rebater críticas de Habermas, acerca da racionalidade do método de ponderação, assevera Alexy: “La objeción de Habermas en contra de la teoría de principios estaría esencialmente justificada, si no fuera posible emitir juicios racionales, en primer lugar, sobre las intensidades de las intervenciones en los derechos fundamentales; en según lugar, sobre los grados importancia de la satisfacción de los principios; en tercer lugar, sobre la relación que existe entre uno e otro.” Rebatendo Böckenförde: “La objeción de Böckenförde estaría esencialmente justificada, si la ponderación exigiera siempre una decisión exacta del Legislador, es decir, si no existieran márgenes estructurales para la ponderación.” (Ibid.) Assevera o autor que “julgamentos sobre a proporcionalidade erguem, como todo julgamento, uma pretensão de correção, e essa pretensão se apóia em julgamentos a respeito do grau de intensidade como razões. Isto basta para o argumento de que a ponderação não nos tira do âmbito da justificação e correção.” ALEXY, Robert. “Constitutional rights, balancing, and rationality.” In: Ratio Juris, Vol. 16, n.º 2, junho de 2003, p. 139 apud VELASCO, Marina. “Habermas, Alexy e a razão prática kantiana.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, pp. 33-34. 720 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 58. 721 Esta é a crítica de Habermas. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 322-323. Habermas, como adiante se demonstrará, adota, na linha de Günther, o critério de adequação – “validade de um juízo deduzido de uma norma válida, através do qual a norma subjacente é satisfeita.” 722 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 142. Não é demais lembrar que a Teoria de Alexy deriva de uma ética cognitivista e procedimental, que estabelece que uma norma correta possa resultar de um procedimento. A correição moral (e jurídica) é análoga à verdade empírica. 723 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 57. Titanic”, além desta barreira de proteção aos direitos fundamentais, permite entrever a possibilidade de uma gradação de intensidades na estrutura da ponderação.724 Para aplicar seu método de sopesamento, propõe Alexy uma escala triádica de graus: leve, médio e grave. Estes graus “formam uma escala que tenta sistematizar classificações que se encontram tanto na prática cotidiana como na argumentação jurídica.”725 Exemplifica a possibilidade de seu reconhecimento da seguinte forma: numa colisão entre a proteção à saúde da população e à liberdade de ofício de profissão, três medidas podem ser tomadas: a primeira, de intensidade leve, consiste em colocar advertências sobre os perigos que implica em fumar; a segunda, de intensidade grave, consiste em proibir todo que qualquer produto que contenha o tabaco; a terceira medida, intermediária no caso exposto, seria, por exemplo, a proibição de venda de cigarros e assemelhados por meio de máquinas somada à restrição de sua comercialização a determinados estabelecimentos – tabacarias. De outro lado, como o conhecimento da medicina atual assegura que fumar causa câncer, doenças cardíacas e vasculares, o peso dos fundamentos que justificam uma intervenção é alto, pesando gravemente. Desta forma, fixada “a intensidade da intervenção como leve e o grau de importância do fundamento da intervenção como alto, então o resultado é fácil de reconhecer. O fundamento de intervenção grave justifica a intervenção leve.”726 Sendo mais claro: o peso elevado (grave) do direito que fundamenta uma intervenção, justifica a afetação 724 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 57. Refere-se Alexy à lei de taxa marginal de substituição, explicitada em sua Teoría de los derechos fundamentales, decorrente de curva de indiferença em que x = segurança externa, e y = liberdade de imprensa. Desta curva extrai a seguinte regra: “Si disminuye la libertad de prensa, se requieren aumentos cada vez mayores de la seguridad externa, a fin de compensar una disminución aún mayor de la libertad de prensa, y vice versa.” ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 162. Os desenhos das curvas de indiferença que não tocam, sequer se aproximam do ponto O (origem), demonstram que na ponderação de princípios de direitos fundamentais, por maior que seja a importância de um deles (P2 – segurança externa, por exemplo), o princípio que com ele colide (P1- liberdade de imprensa, por exemplo) jamais poderá ser restringido ou gravemente afetado. Há, aplicando-se a Teoria dos Princípios de Alexy, uma proteção - uma barreira corta-fogo - aos direitos fundamentais. E esta proteção foi posta por Alexy já em sua Teoría de los derechos fundamentales. Em seu Epílogo Alexy exemplifica e traduz em palavras aquilo que as curvas de indiferença já expressavam – embora de forma não tão óbvia. Este ponto é essencial à Teoria dos Princípios de Alexy: além de propor uma fundamentação racional, é asseguradora dos direitos fundamentais. A Lei de Ponderação continua firme frente às objeções de Habermas. 725 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 143. 726 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 134. (prejuízo, não realização, não cumprimento) leve de um direito fundamental que com ele colide no caso concreto.727 Aponta Alexy que: “De esta manera, se forma una escala triádica con los grados ‘leve’, ‘medio’ e ‘grave’. Nuestro ejemplo muestra que es posible concebir una ordenación válida de dichos grados.”728 A gradação das intensidades de não satisfação ou de afetação de um princípio e o grau de importância da satisfação do princípio colidente são objetos de valoração como leve (reduzido, débil), médio, e grave (elevado, forte).729 Razões plausíveis – justificadas ou justificáveis730 - respaldam a gradação da intensidade de intervenção e a importância do princípio contrário.731 Seguindo sua proposta de apresentação lógica de sua teoria procedimental, Alexy estabelece as seguintes formulações. Primeiramente, substitui, por simplicidade, “intensidades de não satisfação ou de afetação de um princípio” pela expressão “intensidade da intervenção”. Utilizando-se “Pi” como variável para o princípio cuja vulneração se examina (princípio atingido por uma determinada medida), tem-se que a intensidade da intervenção pode ser representada por “IPi". Ressaltando o caráter concreto de sua ponderação, sempre condicionada e frente a princípio colidente, agrega a especificação “C”. Tornando explícita esta relação: “IPiC” – intensidade de 727 O exemplo dado por Alexy é um caso manifesto de proporcionalidade da medida adotada pela Administração alemã – semelhante à postura brasileira: a colocação de advertências em embalagens de produtos de tabaco acerca do risco de seu consumo. 728 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 51. Rebate críticas afirmando que é possível conceber uma ordenação válida de graus: “Basta imaginar que alguien catalogara la prohibición de todos los productos derivados del tabaco como una intervención leve en la libertad de profesión y oficio y, por el contrario, el deber de colocar advertencias el los paquetes como una intervención intensa. Sería difícil tomarse en serio estas apreciaciones.” (Ibid.) Assevera Alexy que as intensidades de intervenção e os graus de importância não podem ser medidos com a ajuda de uma escala cardinal – 0, 1, 2... ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 66. Em Constitucionalismo discursivo, na tradução de Luís Afonso Heck, leve, médio e grave são abreviados como l, m e s. Em nome da clareza, optar-se-á pela abreviação constante de Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. 729 No exemplo citado: “A gradação das intensidades de não satisfação ou de afetação de um princípio” dizem respeito às medidas alternativas que afetam o princípio da liberdade de comércio e de ofício (proibição total do comércio, proibição parcial somada à advertência; e advertências nos maços de cigarros); “o grau de importância da satisfação do outro princípio (colidente)” que justifica a intervenção no direito fundamental de liberdade de ofício e de profissão diz respeito à proteção do consumidor, especialmente de sua saúde. Observa Alexy que as intensidades de intervenção e os graus de importância não podem ser medidos com a ajuda de uma escala cardinal – 0, 1, 2... ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 66. 730 Na linha da Ética do Discurso. 731 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 57-58. intervenção no princípio i em um caso concreto732 a ser decidido.733 Expressando de forma mais concisa: “Ii”.734 Acerca do grau de importância da satisfação do outro princípio (colidente), aponta que esta não deve ser medida exclusivamente no caso concreto, sendo possível construir um conceito de importância abstrato integrado a uma situação concreta: a proteção à vida possui, em abstrato, um peso maior que a liberdade geral de fazer ou de não fazer o que se quer – autonomia privada. Numa situação dada, a importância da proteção à vida pode ser determinada por seu peso considerado abstratamente e segundo seu risco no caso concreto. Em regra, entretanto, o peso abstrato dos princípios (e dos direitos por ele protegidos) é igual, o que faz com que a decisão dependa unicamente da importância no caso concreto. Esta importância pode ser assim enunciada: “I” representa a importância, “Pj” o princípio colidente que fundamenta a medida; e “C” o fato de se tratar da importância no caso concreto. Daí resulta que a importância concreta de “Pj” pode ser demonstrada por: “IPjC” – grau de importância do princípio j colidente no caso concreto.735 Expressa de forma concisa: “Ij”.736 732 As intensidades de intervenção em Pi necessariamente são concretas. Pode-se atribuir, entretanto, um peso abstrato a Pi: “O peso abstrato de um princípio Pi é o peso que cabe a Pi relativamente a outros princípios, independente das circunstâncias de alguns casos.” A consideração abstrata de Pi pode ser assim expressa: “GPi”. Esclarece Alexy, entretanto, que o peso abstrato (A em oposição à C) de Pi “GPiA” somente desempenha um papel na ponderação “quando ele se distingue do peso abstrato do princípio contrário. Se os pesos abstratos de ambos os lados são iguais, então eles neutralizam-se reciprocamente.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 138-140. 733 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 60-61; ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 138-139. 734 Esta formulação aparece apenas em ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 139 e seguintes. Neste novo artigo de Alexy – “A fórmula peso”, publicado originalmente em 2003 e compilado em edição brasileira de 2007, o autor se serve de argumentos e exemplos já expostos em seu Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales – com publicação original em 2002. Há, entretanto, sensíveis alterações nas fórmulas que apresenta. Por serem mais recentes, e por certo, influenciadas por críticas, num caminho de aperfeiçoamento, serão estas últimas fórmulas as utilizadas nesta tese. 735 Neste ponto, especialmente, há uma reformulação por Alexy da ponderação proposta em seu Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Nesta obra, Alexy se utiliza de um conceito de importância concreta do princípio atingido pela medida em exame a que denomina de W. Mais recentemente, entretanto, em artigo publicado originalmente em 2003 na Alemanha, traduzido para o português com o título “A fórmula do peso”, publicado no Brasil em 2007, o autor expressamente adota uma outra solução: “O conceito de importância concreta de Pj é, como exposto, idêntico com o conceito da intensidade da intervenção em Pj por omissão da intervenção em Pi. [...] O equivalente para ‘IPiC’ é, portanto, ‘IPjC’.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 141. A formulação com o “W” pode ser encontrada em ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 61-62. Os elementos do caso concreto que são essenciais para decisão acerca da constitucionalidade ou não da medida são os efeitos que sua execução ou sua não execução produzem nos princípios colidentes implicados na ponderação. 736 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 141. Os objetos da avaliação como l, m ou g estão fixados: Ii e Ij. Dois passos já foram dados: Ii e Ij podem ser avaliados como l, m ou g. Estes dois primeiros passos resolvem grande parte das colisões de princípios.737 O terceiro passo decorre logicamente dos dois primeiros passos, apresentando três resultados possíveis em nove hipóteses. Quando a intervenção em Pi é mais intensa que a importância do cumprimento de Pj, prevalece Pi:738 1) Ii:g, Ij:l; 2) Ii:g, Ij:m; 3) Ii:m, Ij:l. Diferentemente, prevalecerá Pj nos seguintes casos:739 4) Ii:l, Ij:g; 5) Ii:m, Ij:g; 6) Ii:l, Ij:m. Além destas seis hipóteses, resolvidas pela escala triádica, outras três hipótese de empate podem ocorrer: 7) Ii:l, Ij:l; 8) Ii:m, Ij:m; 9) Ii:g, Ij:g. Alexy apresenta duas fórmulas que expressam a relação entre Ii (intensidade de intervenção de Pi) e Ij (grau de importância de Pj) e demonstram a estrutura por trás do modelo triádico, utilizando-se para tanto de números. A “fórmula diferença”740 e a “fórmula peso”741 demonstram, uma com o auxílio da aritmética, outra com auxílio de progressões geométricas, medições calculáveis do peso dos princípios. Servem, na linha geral da obra do autor, para demonstrar a racionalidade de seu método (procedimento), sem acrescentar novos argumentos à discussão.742 737 Reconhece Alexy que, em algumas ocasiões, a classificação da intensidade de intervenção em leve, médio e grave pode gerar problemas, não sendo fácil, na prática realizar algumas distinções. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 67. Nestas hipóteses, a ponderação não poderá se apoiar na diferença das intensidades de intervenção. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 143. 738 Expressa na Lei de Colisão: (Pi P Pj)C. 739 Expressa na Lei de Colisão: (Pj P Pi)C. 740 Apresentada somente em ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 144-145. 741 Apresentada em ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 67-71; e constante de ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 146-150. 742 Este fato não desincumbe a demonstração de suas principais formulações. A “fórmula diferença” é assim representada: Gi,j=Ii-Ij. Gi,j representa o peso concreto de Pi relativamente a Pj. Ao se empregar os números 1, 2 e 3 para l, m, e g, respectivamente, surgem resultados positivos, negativos e neutros. Serão positivos nos seguintes casos: Ii:g, Ij:l; onde 3-1=2; Ii:g, Ij:m; onde 3-2=1; e Ii:m, Ij:l; onde 2-1=1. Nestas hipóteses, Pi prevalece sobre Pj. Serão negativos nos seguintes casos: Ii:l, Ij:g; onde 1-3= -2; Ii:m, Ij:g; onde 2-3=-1; e Ii:l, Ij:m; onde 1-2=-1. Nestas hipóteses, Pj prevalece sobre Pi. Os resultados serão neutros nas seguintes hipóteses: Ii:l, Ij:l; onde 1-1=0; Ii:m, Ij:m; onde 2-2=0; e Ii:g, Ij:g; onde 3-3=0. O auxílio de números “tem a vantagem da simplicidade da plausibilidade intuitiva alta.” A “fórmula peso” toma como escala a progressão geométrica de 2: 2º, 2¹, e 2², portanto, 1, 2 e 4. Esta formulação tem a vantagem de demonstrar que os intervalos entre os graus não são iguais, mas sim crescentes em intensidade de intervenção ascendente, correspondendo à curva de indiferença da taxa marginal de substituição decrescente demonstrada em Teoría de los derechos fundamentales (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 162) já referida e explicada nesta tese. A “fórmula peso” se utiliza de uma fórmula de quociente: Gi,j=Ii/Ij. Gi,j representa o peso concreto de Pi relativamente a Pj. Atribuindo-se Aponta o autor a possibilidade de construção de um modelo triádico duplo como meio de solução de alguns casos de empate. Desta forma ter-se-ia: (1) ll, (2) lm, (3) lg, (4) ml, (5) mm, (6) mg, (7) gl, (8) gm, e (9) gg.743 Reconhecendo a utilidade e a plausibilidade deste recurso, mas enfocando a estrutura dos direitos fundamentais, esclarece que estes não são “una materia que pueda ser dividida en segmentos tan finos, de tal modo que se suprima la posibilidad de que existan empates estructurales – es decir, de verdaderos empates – en la ponderación, o de tal modo que éstos se hagan prácticamente insignificantes.”744 Estes casos de empate fazem surgir uma margem para a ponderação,745 entendida como uma margem de ação estrutural para a legislação, a os valores decorrentes da progressão geométrica de 2 – 1, 2 e 4 – apresentam-se os seguintes resultados: Ii:g, Ij:l; onde 4/1=4; Ii:g, Ij:m; onde 4/2=2; e Ii:m, Ij:l; onde 2/1=2. Nestas hipóteses, em que o resultado quociente é superior a 1, Pi prevalece sobre Pj. O resultado será inferior a 1 nos seguintes caos: Ii:l, Ij:g; onde 1/4= 0,25; Ii:m, Ij:g; onde 2/4=0,5; e Ii:l, Ij:m; onde 1/2=0,5. Nestas hipóteses, Pj prevalece sobre Pi. Os resultados serão neutros nas seguintes hipóteses: Ii:l, Ij:l; onde 1/1=1; Ii:m, Ij:m; onde 2/2=1; e Ii:g, Ij:g; onde 4/4=1. Nestas hipóteses, com resultado igual a 1, o caso é de empate, com espaço à ponderação estrutural discricionária. Aponta Alexy a vantagem desta formulação geométrica em relação à formulação aritmética na hipótese de ampliação para um modelo triádico duplo: (1) ll, (2) lm, (3) lg, (4) ml, (5) mm, (6) mg, (7) gl, (8) gm, e (9) gg. Enquanto a intensidade na escala aritmética estaria compreendida entre os números 1 a 9, na escala geométrica a intensidade de uma intervenção estaria compreendida entre 1/256 (0,00390625) a 256. Na fórmula quociente, em situações extremas, os valores tendem ao zero e ao máximo –“infinito”. Observa ainda, o autor, que em ponderações, não só as intensidades concretas, mas também os pesos abstratos podem desempenhar um importante papel. Relaciona, desta forma, as intensidades de intervenção e de importância (Ii e Ij) aos pesos abstratos GPiA (resumidamente, Gi) e GPjA (resumidamente, Gj). Desta relação, três hipóteses surgem: a primeira, em que os pesos abstratos são diferentes (Gi e Gj), mas as intervenções são (Ii e Ij) são iguais, quando a intensidade dos pesos abstratos de Pi e Pj dará a solução da ponderação; a segunda - essencialmente mais freqüente e com isso muito mais importante - em que os pesos abstratos são iguais (Gi e Gj) e as intensidades de intervenção diferentes (Ii e Ij), hipótese em que a ponderação se resolverá pela gradação da intensidade de intervenção (Ii e Ij); e a terceira, quando são diferentes tanto os pesos abstratos de Pi e Pj (Gi e Gj) como as intensidades de intervenção (Ii e Ij), hipótese em que a ponderação se resolverá pela gradação das quatro grandezas. Estas variantes são expressas na seguinte fórmula: Gi,j=Ii.Gi/Ij.Gj. Nesta fórmula, não custa lembrar, Gi,j representa o peso concreto de Pi relativamente a Pj. Gi e Gj representam o peso abstrato dos princípios colidentes Pi e Pj; e Ii e Ij representam as intensidades de intervenção no caso concreto – mais precisamente, o grau de intensidade de intervenção de determinada medida em Pi, e o grau de importância de Pj que fundamenta a medida. Na aplicação da fórmula, a escala triádica deverá ser também aplicada a Gi e a Gj de modo semelhante ao estabelecido para Ii e Ij. Desta aplicação surge uma nova grandeza: o “peso concreto não-relativo” resultante de Ii.Gi; e de Ij.Gj. Assim, tem-se Wi=Ii.Gi; e Wj=Ij.Gj. Da equação, com a utilização da escala progressiva geométrica (2º, 2¹, 2²) e mais precisamente do quociente de Wi por Wj resulta Gi,j. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 144-150. 743 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 77; ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 147. 744 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 80. 745 “Aqui, a constituição não decide a colisão. O que, porém, a constituição não decide é, por ela, liberada. No caso de empate de ponderação existe, com isso, um espaço de ponderação estrutural.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 85. jurisdição e também, a Administração Regulatória.746 O espaço é de discricionariedade.747 Mesmo nestes casos não se pode perder de vista que um direito fundamental jamais poderá ser restringido ou gravemente afetado. Uma afetação grave quase nunca pode ser justificada pela contundência das razões que jogam a favor da intervenção. Esta é a barreira corta-fogo de proteção dos direitos fundamentais na Teoria dos Direitos Fundamentais de Alexy. 748 A segunda regra de ponderação, também denominada de “lei de ponderação epistêmica”,749 inferida de decisões do Tribunal Constitucional alemão,750 e apresentada em Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales, tem a seguinte formulação: “Cuanto más intensa sea una intervención en un derecho fundamental, tanto mayor debe ser la certeza de las premisas que sustentan la intervención.”751 Dirige-se à qualidade epistêmica das premissas, especialmente, as empíricas.752 Relaciona-se ao grau de certeza das apreciações empíricas que dizem respeito à medida examinada, e 746 Alexy refere-se somente à legislação e à jurisdição. Não é o único espaço de discricionariedade do legislador, conforme já explicitado. A margem de ação estrutural que confere discricionariedade ao legislador pode referir-se à escolha de fins, escolha de meios e, na ponderação, em hipótese de “empate” – quando a regra da proporcionalidade não oferecer uma decisão ao conflito de princípios. 748 Isto decorre da formulação de Alexy das curvas de indiferença, explicadas linhas acima. 749 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 93; ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 150. 750 Especificamente em BverfGE 50, 290 (332): “La incertidumbre sobre los efectos de una ley en un futuro incierto no puede eliminar la competencia del Legislador para proferir una ley, aun cuando ésta sea de gran trascendencia. [...] La falta de certeza por sí misma no puede ser suficiente para fundamentar la existencia de un margen legislativo para hacer pronósticos, margen que escape al control de constitucionalidad.” ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 91-92. O autor refere-se ainda, exemplificando a aplicação desta segunda lei de ponderação, à sentença do Tribunal Constitucional alemão no denominado de Caso Cannabis (BverfGE 90, 145 (181 e ss.) em que julgou constitucional a proibição de produção e comercialização de produtos derivados de maconha. Neste processo, o Tribunal ao não estabelecer a verdade das premissas empíricas do legislador, reconhecendo, ao contrário, a falta de certeza destas, decidiu: “No se dispone de conocimientos científicos fundados que hablen necesariamente a favor de la corrección una o de otra alternativa.” Admitindo a intervenção no direito fundamental de liberdade de comércio e de ofício, reconheceu que o legislador dispõe de uma margem de ação epistêmica do tipo empírica (relacionada ao conhecimento de fatos relevantes no caso concreto). ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, pp. 82-84. 751 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 93. Esta regra vigora no âmbito da margem de ação cognitiva (ou epistêmica) empírica: “En cuanto principios, los derechos fundamentales exigen que la certeza de las premisas empíricas que sustentan la intervención sea mayor cuanto más intensa sea la intervención en el derecho.” Ibid., p. 92-93. Na tradução brasileira, é assim enunciada: “Quanto mais grave uma intervenção em um direito fundamental pesa, tanto maior deve ser a certeza das premissas apoiadoras da intervenção.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 150. 752 Reconhece o autor que em contextos complexos quase nunca se dispõe de conhecimentos empíricos que expressem uma verdade absoluta. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 90. 747 que implicam na não-realização de Pi em razão da realização de Pj.753 Para a aplicação desta segunda regra de ponderação, é recomendada a utilização de uma escala triádica referente à “segurança da suposição empírica” relativamente a Pi e a Pj.754 Alexy propõe a utilização dos seguintes graus epistêmicos: “certo ou seguro (g), sustentável ou plausível (p) e não evidentemente falso (e).”755 Estas variáveis também integram a “fórmula peso”, refletindo na decisão acerca a proporcionalidade ou não da medida. 756 Estas regras, embora não ofereçam um procedimento definitivo de decisão,757 sem a pretensão de apresentarem uma única resposta correta à solução do caso, estabelecem o que há de ser justificado para fundamentar o enunciado de preferência condicionado à situação fática de ponderação.758 Estabelecem, portanto, o campo e a carga da argumentação – os enunciados acerca dos graus de importância, afetação, peso e segurança empírica. A Teoria da Argumentação Jurídica e dos Direitos Fundamentais de Alexy são teorias procedimentais da correção jurídica. Por lastrarem-se numa teoria ética cognitivista, propõem que as decisões jurídicas são passíveis de uma correção normativa análoga à verdade empírica - resultam de seu procedimento argumentativo. Este procedimento argumentativo é pautado por regras do discurso jurídico, aplicáveis tanto no campo de fundamentação de decisões lastradas em regras, quanto em decisões lastradas em princípios, ainda que colidentes. 753 ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 96. 754 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 150. 755 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 150. 756 Se a suposição empírica for evidentemente falsa, a intervenção está de pronto desautorizada. Esta conseqüência decorre da segunda regra de ponderação. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 150; A formulação consta também em: ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 96. Alexy introduz os conceitos Si (expressão resumida de SPiC) e Sj (expressão resumida de SPjC) para representarem, respectivamente, “a segurança da suposição empírica acerca [...] da não realização de Pi [...] no caso concreto”, e a “a segurança da suposição empírica acerca [...] da realização de Pj no caso concreto”. Si e Sj passam a integrar a “fórmula peso”, numa escala progressiva de incerteza, em progressão geométrica negativa, com valores atribuídos de 2º, 2‾¹, 2‾². Os resultados desta gradação geométrica são: 1, 1/2, 1/4. A “fórmula peso” completa, com as variáveis intensidade, peso abstrato e segurança empírica é assim representada: Gi,j= Ii.Gi.Si/Ij.Gj.Sj. Apresenta Alexy, ainda, uma fórmula peso ampliada que contempla colisões entre mais de dois princípios, assim representada: Gi,j-n = Ii.Gi.Si/Ij.Gj.Sj+...In.Gn.Sn. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 151-152. 757 Alexy é expresso ao reconhecer tal fato. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 164. 758 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 164. As regras da argumentação e da ponderação, embora não consubstanciem passos concatenados de um processo, pautam a conduta dos que integram qualquer procedimento que dependa de uma decisão jurídica. Delimitam, inclusive, os espaços de atuação do legislador, ao estabelecerem suas margens estruturais e cognitivas. Com fórmulas lógicas e matemáticas relacionadas ao método de aplicação da subsunção (regras) e da proporcionalidade (princípios), além de indicarem o caminho para a formação de uma norma correta, oferecem subsídios para a crítica e a revisão judicial de decisões de outros poderes – e do próprio judiciário. A segurança e a previsibilidade jurídicas, tão caras à sociedade moderna do formalismo jurídico, passam a contar, no atual estágio da sociedade reflexiva, impregnada pelo conceito de risco, com a busca da correção de decisões jurídicas como instrumento para sua consecução aproximada. A proporcionalidade na aplicação de princípios e de diretrizes de políticas públicas deve pautar a atuação do Poder Legislativo, como expressamente expresso por Alexy, e também dos Poderes Executivo e Judiciário. O fato de em judicial review se exigir o atendimento às sub-regras da proporcionalidade, sob pena de invalidação, implica em reconhecer, como condição de constitucionalidade – da atividade do legislador - e de legalidade – das atividades do julgador e do administrador - o atendimento destas sub-regras. Não há na teoria de Alexy - que é de um constitucionalismo moderado759 - um amplo espaço para o ativismo judicial em razão do Alexy, com seu constitucionalismo moderado, reage à jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, que adota o que se denomina de neoconstitucionalismo. Identifica Luís Roberto Barroso as origens do neoconstitucionalismo: “O primeiro grande precedente na matéria foi o caso Lüth, julgado em 15 de janeiro de 1958”. Para o referido autor, defensor do neoconstitucionalismo, “o sistema jurídico deve proteger determinados direitos e valores, não apenas pelo eventual proveito que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedade na sua satisfação. Tais normas constitucionais condicionam a interpretação de todos os ramos do Direito, público ou privado, e vinculam os Poderes estatais.” Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. BARROSO, Luís Roberto. “O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil.” Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp? id=7547 com acesso em 25/10/2006. Neste campo, de “hiperconstitucionalização da lei ordinária”, é lapidar a lição de Luís S. Cabral Moncada: “Constitucionalização, sim, mas não hiperconstitucionalização da lei ordinária. A não ser assim, teremos de tratar a figura da discricionariedade legislativa à semelhança da administrativa, censurando judicialmente o legislador pela violação de toda uma série de limites externos e internos à respectiva liberdade discricionária de aplicar ao procedimento legislativo todo o formalismo próprio do administrativo (obrigação de fundamentação, princípio do contraditório, etc.), bem como de pensar a responsabilidade do Estado por actos legislativos à imagem e semelhança da responsabilidade por actos administrativos e de admitir a plena jurisdição dos tribunais competentes para o conhecimento dos actos legislativos, o que levaria a desculpar que os tribunais constitucionais pudessem adoptar deliberações que se não ficavam pelos tradicionais efeitos negativos das suas sentenças, avançando para outra tipologia de efeitos, agora positivos, através de sentenças interpretativas ‘conformes à Constituição’ e mesmo mais, sentenças aditivas, que completam a lei e substitutivas, que a transformam.” MONCADA, Luís Cabral S. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 145-146. Nesta linha de raciocínio, Gilberto Bercovici sustenta que o neoconstitucionalismo atenta contra a democracia, fazendo pender a balança para o constitucionalismo, em detrimento da democracia: “Esse tal ‘neoconstitucionalismo’ que, ao defender a superação ou negação do poder constituinte do povo, a redução da democracia às decisões judiciais e a defesa da ordem de mercado, ou seja, de ‘neo’ não tem 759 papel confiado ao Tribunal Constitucional. Este agirá, ainda que pautado por argumentos práticos gerais como fundamento último de suas decisões, como legislador negativo.760 Alexy não propõe a fixação de políticas públicas ou soluções alternativas às escolhas democráticas do legislador pelo Tribunal Constitucional. O enfoque de Alexy é no controle de legalidade e de constitucionalidade dos atos legislativos, sem que proponha, entretanto, uma linha de decisão fora destes argumentos. Estabelece um procedimento que permite o controle de qualidade dos atos judiciais numa linha póspositivista calcada na Ética do Discurso. nada em relação ao velho constitucionalismo, nada mais é que a nova roupagem da infeliz ‘doutrina brasileira da efetividade’, cuja luta para a não realização do programa constitucional nos deu tantas contribuições, como as ‘normas programáticas’, a discussão bizantina de regras e princípios e agora esta do neoconstitucionalismo. Repare, sempre contra o aprofundamento e ampliação da democracia, em defesa de uma visão cada vez mais judicialista (e, portanto, oligárquica e controlada) de lidar com o texto constitucional excluindo as questões políticas.” BERCOVICI, Gilberto. José Ribas Vieira em diálogo com Gilberto Bercovici. O entendimento expresso pelo autor consta dos anais do Grupo de Pesquisa “Laboratório de Análise Jurisprudencial”, inscrito e certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) em 2006, liderado por José Ribas Vieira e Margarida Maria Lacombe Camargo, do qual o autor desta tese é integrante. Acerca da adoção do neoconstitucionalismo pelo Supremo Tribunal Federal, apresenta-se as conclusões da obra Os direitos à honra e à imagem pelo Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial, decorrentes de pesquisas realizadas em 2005 pelo Grupo de Pesquisa “Constituição, Democracia e Direitos Fundamentais”, inscrito e certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), liderado por José Ribas Vieira, Margarida Maria Lacombe Camargo, e Fernanda Duarte, desenvolvido pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Gama Filho: “Ao mesmo tempo em que se propala doutrinariamente a consagração principiológica, nos pronunciamentos de nossa Corte maior, constatamos estar presente em nosso debate interpretativo uma denominada perspectiva de neoconstitucionalismo, decorrente de uma constitucionalização do direito e da adoção de novas categorias interpretativas pela jurisdição constitucional. Porém, a despeito das afirmações teóricas que têm circulado em nosso meio jurídico, entendemos que a adoção de uma postura neoconstitucionalista pelo STF teria outras implicações, mais profundas e diversas do que a simples incorporação de certas categorias interpretativas. Significaria que, após a Constituição Federal de 1988, o STF teria, na verdade, queimado etapas no seu quadro metodológico de interpretação. Assim, se estamos condenados a seguir a trajetória do Tribunal Constitucional alemão, teríamos de ter passado por uma experiência desse modelo ‘constitucionalista’ radical e valorativo, como ocorreu na jurisdição disciplinada pela Lei Fundamental de 1949. O que de fato, entre nós, não ocorreu. Aliás, no particular, Robert Alexy observa, inclusive, que essa fase dos primeiros anos de existência do “Bundesverfassugsgericht” foi sucedida por uma visão de legalismo (como se vê nos votos sobre o aborto, proferidos pelo juiz Ernst-Wolfgang Böckenförde).” Na análise das decisões que envolviam direitos à honra e à imagem, verificou-se que “o STF prende-se a um emaranhado de precedentes (muitos deles frágeis, como os que fundamentam o dano moral como desconforto, referindo-se à perda de malas de viagem) ou de ‘súmulas impeditivas’ [de recursos], a critérios obscuros de proporcionalidade, como ocorreu no exame de determinados recursos extraordinários, que vedam a análise da questão fática.” DUARTE, Fernanda; VIEIRA, José Ribas; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe; e GOMES, Maria Paulina. Os direitos à honra e à imagem pelo Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 356-358. 760 Para superar eventual déficit democrático em sua teoria, ao tratar especificamente do processo de argumentação, propõe, sem esclarecer suficientemente como esta se daria, a “institucionalización de una justicia constitucional cuyas decisiones pueden y requieren ser justificadas y criticadas en un discurso iusfundamental racional.” (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 554) Nesta mesma linha a proposta de Habermas, mais elaborada, ao tratar do “fardo da legitimação suplementar” de um direito vago tornado concreto pelo poder judiciário, que poderia ser assumido pela apresentação de justificações “perante um fórum judiciário crítico. Isso seria possível através da institucionalização de uma esfera pública jurídica capaz de ultrapassa a atual cultura de especialistas e suficientemente sensíveis para A teoria de Alexy é uma teoria jurídica democrática adequada ao modelo de Estado liberal – com especial enfoque à atividade do legislador em razão da adoção de seu constitucionalismo moderado. Não propõe, como faz Habermas, com seu conceito de Estado Procedimental, um modelo de Estado e de direito que acolha as contribuições da teoria política republicana. Uma questão essencial à Ética do Discurso, e à tese que se apresenta, não é devidamente tratada por Alexy: a questão da participação popular.761 A liberdade dos antigos, positiva, tão cara ao modelo político republicano, é postergada pelo autor, que se vale, por vezes, de um discurso hipotético, outras vezes, de um transformar as decisões problemáticas em foco de controvérsias públicas.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 183-184. Mais recentemente, Alexy sugere o que denomina de representação argumentativa: “A única possibilidade de reconciliar a jurisdição constitucional com a democracia consiste nisso, compreendê-la também como representação do povo.” Esta representação argumentativa que supera a objeção da necessidade de eleição para a representação, e ainda a primazia da representação eletiva em relação à representação não-eletiva, existirá se o tribunal promover “a pretensão de que seus argumentos são os argumentos do povo ou do cidadão” e se “um número suficiente de cidadão”, aceitar de maneira prolongada “esses argumentos como corretos.” ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 162-165. Ainda assim, note-se, a na proposta de Alexy, diferentemente da de Habermas, não existem discursos efetivos. Há, por parte de Alexy, uma aproximação à proposta de Peter Häberle de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: “O juiz constitucional já não interpreta, no processo constitucional, de forma isolada: muitos são os participantes do processo; as formas de participação ampliam-se acentuadamente; [...] A esfera pública pluralista desenvolve força normatizadora. Posteriormente, a Corte Constitucional haverá de interpretar a Constituição em correspondência com a sua atualização pública;” HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 41. 761 Alexy refere-se à Teoria do Status de Georg Jellinek, utilizada ainda na atualidade como base para a classificação dos direitos fundamentais. Jellinek sustenta que o status - em sua teoria - é uma relação do indivíduo com o Estado: “debe ser una situación y, en tanto tal, distinguirse de un derecho.” Para estabelecer essa atuação relacional do indivíduo com o Estado Jellinek faz distinção entre o “ser” jurídico e o “ter” jurídico: “Así, al dotar una persona del derecho de sufragio y del derecho a adquirir libremente la propiedad, se modifica su status y, con ello, su ser, mientras que la adquisición de un determinado inmueble sólo afecta su tener”. Na sua descrição sobre a relação entre direito fundamental e status Jellinek tipifica quatro categorias ou relações de status: o status passivo, o status negativo, o status positivo e o status ativo. O status passivo revela a condição de submissão do indivíduo ao Estado, pois se situa dentro da esfera do dever individual evidenciando que existem circunstâncias em que o Estado tem competência para estabelecer um ordenamento jurídico que contenha normas proibitivas que afetam todos os indivíduos indistintamente. O conceito status negativo faz referência a “derechos de defensa, es decir, a derechos a acciones negativas frente al Estado”. Ocorre que o efeito negativo de uma ação frente ao Estado deve ser uma ação de efeito jurídico irrelevante para o Estado no que diz respeito à relação Estado/cidadão. O status positivo indica o reconhecimento de que um indivíduo tem capacidade jurídica para reclamar para si o poder estatal, ou seja, o reconhecimento de que o Estado confere ao indivíduo um status civilizado, quando lhe garante as pretensões de sua atividade facilitando-lhe os meios jurídicos para sua realização. Sintetizando essa pretensões jurídicas Jellinek menciona que esta se refere a “la capacidad jurídicamente protegida para exigir prestaciones positivas del Estado”. O status ativo corresponde ao que se denomina “ciudadanía activa” e se relaciona à participação na formação da vontade estatal. Um exemplo desse tipo de status é o direito de sufrágio. Para o status ativo é de vital importância a compreensão das diferentes posições dos diferentes tipos de status, haja vista que o exercício de uma competência “está siempre bien ordenado o prohibido (status pasivo) o es libre (status negativo)”. O status ativo é indicativo de ampliação da capacidade de ação jurídica de um indivíduo. Atua combinado com o status negativo e também com o status positivo na medida em que se reconhece que um dever como a obrigação de votar, por exemplo, é capaz de ampliar a capacidade de ação jurídica de um indivíduo, e desta forma tem-se uma atuação simultânea do direito, da capacidade e da discurso deficiente, bastante restrito, como o que ocorre num processo judicial: 762 as regras de colisão e de ponderação podem ser utilizadas monologicamente.763 Portanto, e por reconhecer que a Administração Pública regulatória oferece espaço à participação dos envolvidos na produção de suas normas, bem ainda em razão dos amplos poderes decisórios que exercem no âmbito dos princípios e demais normas de baixa densidade que estabelecem sua competência e atuação, há que se tornar efetivo um modelo de deliberação argumentativa, em que as regras do discurso jurídico determinem a produção democrática do Direito Regulatório. Direito sustentado por pretensões de validade reconhecidas por integrantes do processo de decisão, buscadas através de razões discursivamente demonstradas ou demonstráveis, através de pretensões de verdade, de sinceridade e de correção normativa. Habermas é o autor que melhor trata do tema, objeto de análise do capítulo que se segue. competência para sufragar o voto. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, pp. 247-261. Este status ativo não se confunde, entretanto, com a liberdade dos antigos defendida pela concepção republicana de Estado. A participação democrática em Jellinek é liberal, de votar e ser votado, e, com isto, repercutir na delimitação das demais categorias de direitos fundamentais. Habermas, como adiante se demonstrará, adota o paradigma de cidadania de Marshall. 762 Esta é a razão de alguns críticos – como explicitado linhas acima – entenderem que a teoria de Alexy não decorre da Ética do Discurso. 763 Marina Velasco conclui, em crítica à regra da proporcionalidade nos moldes propostos por Alexy, que o juízo de ponderação não pode satisfazer à pretensão de correção em sentido forte (ou seja, moral) que, para Alexy, todo enunciado jurídico levanta. VELASCO, Marina. “Habermas, Alexy e a razão prática kantiana.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 36. A conclusão da autora reforça – como já delineada no decorrer deste capítulo – a necessidade de se promover uma “carga de legitimidade” na Teoria de Alexy através da institucionalização de procedimentos de participação dos atingidos na elaboração de normas pela Administração Regulatória, procedimentos estes que deverão se pautar pela Ética do Discurso. Capítulo IV – Teoria Discursiva do Direito e Democracia Deliberativa 4.1. Considerações iniciais; 4.2. O direito como mediador entre facticidade e validade; 4.3. A reconstrução da legitimidade; 4.4. Reconstrução do direito pela Teoria do Agir Comunicativo; 4.5. Estado de direito e modalidades de Discurso; 4.6. Administração Pública e crise do Estado de direito: o papel da esfera pública; 4.7. Democracia Deliberativa. 4.1. Considerações iniciais A Teoria Discursiva do Direito de Alexy não explora um ponto que é essencial à tese que se apresenta: a criação democrática do direito. Sua teoria não é falha, entretanto. Apenas não é dirigida ao processo de criação de normas gerais. Não se ocupa dos discursos ocorridos no seio do Poder Legislativo, onde imperam os discursos de fundamentação. Ainda quando trata das normas criadas pelo Legislativo, seu enfoque é o controle discursivo destas normas pelos juízes constitucionais, num modelo de constitucionalismo discursivo. A legitimidade de que se ocupa é a da decisão judicial, e não a da norma em que esta se baseia. Nenhum demérito à sua teoria, que aprofunda a questão da aplicação do direito lastrada num procedimento argumentativo que permite a produção de decisões corretas, ou mesmo sua crítica em caso de incorreção - pautandose pela tese do Caso Especial e pela regra da proporcionalidade, na hipótese de aplicação de princípios. Habermas, influenciado pela publicação da Teoria da argumentação jurídica de Alexy,764 desenvolve e estende sua teoria ética da moral para o direito. Ocupa-se, entretanto, prioritariamente de uma outra faceta do direito: sua produção legítima. Não especificamente da decisão concreta, relacionada a um caso específico delimitado num processo judicial, mas da produção de normas gerais,765 servindo-se 764 VELASCO, Marina. “Habermas, Alexy e a razão prática kantiana.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 17. 765 “O conteúdo de uma lei só é geral, no sentido de um tratamento materialmente igual, quando expressar um consenso racional em relação a todos esses tipos de problemas.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 195. para tanto - a par de discursos de aplicação - de discursos de fundamentação.766 Sua teoria democrática vai ao encontro de um fenômeno da Segunda Modernidade: o individualismo institucionalizado767 que diminui a importância e o poder das coletividades da Primeira Modernidade, tais como grupos religiosos, econômicos, classes, partidos políticos e sindicatos, em que predominava a adoção de decisões em bloco. Outro ponto, também referendado pelo autor: a produção do direito pela administração não pode configurar um estado de exceção permanente.768 A permanente necessidade de decidir, numa sociedade de risco global, não autoriza o alargamento da exceção, mas impõe a necessidade de um teoria de produção do direito democrática, com a participação de todos os afetados em procedimentos institucionalizados para tanto. A Teoria Discursiva do Direito e a Democracia Deliberativa de Habermas surgem do “pressentimento de que, numa época de política inteiramente secularizada, não se pode ter nem manter um Estado de Direito sem democracia radical.” Direito e democracia: entre facticidade e validade “pretende transformar esse pressentimento num saber explícito.”769 Habermas tem em mente “a idéia de um Estado de direito que separa os poderes e que apóia sua legitimidade770 na racionalidade de processos de legislação e de jurisdição capazes de garantir a imparcialidade.”771 Para tanto, o poder comunicativo, ao ser institucionalizado, transmuda-se em poder democrático – de liberdades positivas – sendo balizado pelos direitos fundamentais previstos nas constituições – liberdades negativas. Neste modelo de Estado Procedimental, configurado pelo paradigma procedimental do direito, constrói sua Teoria Discursiva do Direito que, somada à concepção de Alexy, servirá de base teórica à propositura de um 766 O tema será retomado ainda neste capítulo. Estudado no capítulo II desta tese. 768 Tratado no capítulo II desta tese. 769 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 13. 770 Nesta linha de raciocínio, a lição de Tércio Sampaio Ferraz: “O fundamento da legitimidade é sempre momento de força, que procura justificar, estando, pois, pelo menos implicitamente, referido a uma fundamentabilidade discursiva, isto é, possibilidade de que a posição normativa (definição da relação como autoridade/sujeito) seja justificável e defensável quando criticada, devendo-se notar, porém, que esta referência implícita, por sua vez, não é conseqüência de si própria, mas de uma cosmovisão garantidora da dominação, numa palavra, ideologia.” FERRAZ, Tércio Sampaio. “A legitimidade pragmática dos sistemas normativos.” In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Orgs). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p. 295 771 HABERMAS, Jürgen. “Direito e Moral” In: Ibid. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 246. Esta idéia e posta como um dos princípios do Estado de direito, como adiante se verá. 767 procedimento discursivo (deliberativo) - eficiente e democrático - de produção de normas por agências reguladoras. Compreende-se nesta tese que os atos da administração regulatória, embora sejam atos de aplicação de direito – atos administrativos -, pautam-se por discursos de fundamentação e de aplicação, e por critérios de correção normativa, o que justifica uma simbiose do que de melhor a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa produziu acerca da criação do direito e de sua aplicação. Daí porque as menções à Teoria Discursiva do Direito vêm sempre acompanhadas da Democracia Deliberativa. Acerca da relação entre a Ética do Discurso e a Democracia Deliberativa, esclarece Alexy, que, “al incluir en el concepto de democracia la idea de argumentación, la democracia se torna en deliberativa.”772 Os momentos e as formas dos discursos impõem como solução uma teoria eclética, um modelo de Discurso Regulatório não tão aberto como os discursos de fundamentação ético-normativos num procedimento de Democracia Deliberativa, tampouco tão restritos como os discursos de aplicação do direito, típicos do Judiciário. Não se abandona, como um objetivo, um ideal aproximativo, a busca da única decisão normativamente correta. O desafio que se impõe ao Direito Regulatório, nos moldes aqui propostos, é conciliar a contribuição dos teóricos da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa e propor uma teoria de argumentação que atenda ao núcleo da fundamentação legítima – validade773 - e sua aplicação efetiva – facticidade.774 É de se ressaltar que a atenção dirigida à administração pública pelos principais expoentes da teoria – Habermas e Alexy – é apenas indireta. 775 Não há a construção sistemática de um discurso da administração regulatória que atenda a critérios de legitimação, correção e eficiência: não priorizam os autores a criação de normas gerais e abstratas pela administração pública. 772 Alexy, Robert. “Ponderación, control de constitucionalidad y representación” In: ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos constitucionales. Cátedra Ernesto Garzón Valdés – 2004. Tradução: Pablo Larrañaga; René González de la Vega. México, D.F.: Distribuciones Fontamara, 2005, p. 100. 773 Aceitabilidade dos argumentos sobre os quais ela apóia sua pretensão de validade. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 59. 774 Aceitação da ordem jurídica. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 59. 775 Habermas dedica-se ao tema ao identificar a crise do Estado de direito e da separação dos poderes, caracterizadas pelos amplos poderes normativos reconhecidos à administração contemporânea. O tema será retomado. A cada dia há menos contradições entre as teses dos principais autores da Teoria Discursiva do Direito. Se Habermas defendia como ponto de chegada de seu processo discursivo uma única resposta correta, atualmente, influenciado por críticas, 776 põe tal questão como um objetivo a ser alcançado, uma “aposta em favor do futuro.” 777 Se Alexy, em sua Teoria do Caso Especial, não diferenciou os discursos em modelos de fundamentação e de aplicação, na atualidade é expresso ao propor sua teoria à aplicação judicial das normas de direito.778 De tal maneira, a Teoria Discursiva do Direito vem ganhando unidade e densidade, fixando seus postulados essenciais, permitindo sua atuação prática. Não mais como uma proposta distante, de algo idealizado, mas como uma busca aproximativa de soluções mais justas - corretas - que possam ser igualmente boas para todos os envolvidos.779 Manuel Atienza780 refere-se à Teoria Discursiva do Direito aludindo ao “derecho como argumentación”,781 apontando Alexy como autor da teoria padrão da argumentação, que se ocupa de “aclarar los procesos de interpretación y aplicación del Derecho y ofrecer una fundamentación al trabajo de los juristas.”782 776 Especialmente as de Thomas McCarthy a quem se refere com distinção: “Thomas McCarthy é um caso de sorte para mim: na maioria das vezes, tenho a impressão de que ele entende meus textos melhor que eu mesmo. Ainda que exercendo todo tipo de crítica, ele salvaguarda o que nesse ínterim passei a conhecer e reconhecer como nossa posição comum e defende-a contra objeções (especialmente por parte de Foucault, Rorty e dos desconstrutivistas).” HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. 2. ed. Tradução: George Sperber et alli. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 318. 777 Acerca da premissa da “única resposta correta” esclarece Habermas, em “Apêndice a Facticidade e validação: réplica às comunicações em um simpósio da Cardozo Law School”: “Nesse campo pantanoso, em que é preciso tomar decisões em prazos determinados, não podemos esperar indefinidamente por idéias construtivas que nos ocorram de repente. Se estiver correta nossa suposição, diante de tais situações normativamente insolúveis apenas operaríamos com a premissa (genericamente válida) da ‘resposta correta única’, assim como se fosse uma aposta a descoberto em favor do futuro. Porém, jamais poderemos abandonar esta premissa, caso não queiramos que o processo democrático, ao perder sua racionalidade procedimental inerente, perca também sua força legitimadora.” HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. 2. ed. Tradução: George Sperber et alli. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 337. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. 2. ed. Tradução: George Sperber et alli. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 305. 778 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 289-314 – posfácio. 779 O repositório de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é recheado de decisões que se referem à regra da proporcionalidade. Não há, entretanto, a adoção de uma teoria que abarque suas sub-regras, sendo a regra da proporcionalidade confundida com critérios de razoabilidade, vedação ao excesso, adequação e ponderação. O tema foi tratado no capítulo III. 780 Manuel Atienza é ao lado de Isabel Espejo tradutor do alemão para o espanhol de Teoría de la argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 781 ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Cátedra Ernesto Garzón Valdés, 2003. Cidade do México: Distribuciones Fontanamara, 2005, pp. 69-70. 782 ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Cátedra Ernesto Garzón Valdés, 2003. Cidade do México: Distribuciones Fontanamara, 2005, pp. 69-70. Esclarece o autor que Alexy se propõe a abordar os mesmo problemas enfrentados por autores dos tratados de metodologia jurídica. Aponta Atienza, entretanto, uma diferença: “En mi opinión, la diferencia en el uso que hoy se da a la expresión ‘argumentación jurídica’ frente a la de ‘método jurídico’ radica esencialmente en que la primera tiende a centrarse en el discurso jurídico justificativo (particularmente, el de los jueces), mientras que ‘método jurídico’ (por lo menos entendido en sentido amplio) tendría que hacer referencia también a otra serie Como contra-posturas a serem mitigadas nesta tese, estão algumas propostas de Habermas e Alexy. Para o primeiro, o discurso será moral ou democrático - o jurídico refere-se naturalmente ao democrático-,783 ao passo que para o segundo, será moral ou jurídico, sendo este um caso especial daquele. Em Habermas, o discurso ocorre para a formação da norma, sendo seu enfoque eminentemente democrático, ao passo que em Alexy o discurso se dá na fundamentação de uma decisão judicial a ser justificada e criticada num discurso racional.784 Para Habermas, somente se pode falar em Discursos efetivos, reais, ao passo que Alexy admite como discursos, operações mentais levadas a cabo pelo aplicador do direito. A divergência fundamental entre ambos, esclarece Marina Velasco, se dá “a respeito de como devem ser adequadamente conceitualizados princípios jurídicos.”785 Para Alexy estes são conceitualizados como mandamentos de otimização, com estrutura teleológica, e aplicados mediante juízos de ponderação, com auxílio da regra da proporcionalidade, conforme demonstrado no capítulo anterior. Habermas, diferentemente, tem a concepção deontológica dos princípios jurídicos,786 tomando-os como normas que exprimem obrigações, aplicáveis pelo critério da adequação – por influência de Klaus Günther –, que trata de “encontrar, entre as normas aplicáveis prima facie, aquela que melhor se ajusta à situação de aplicação descrita de forma mais exaustiva possível sob todos os pontos de vista relevantes”.787 de operaciones llevadas a cabo por los juristas profesionales y que no tienen estrictamente (o non sólo) un carácter argumentativo”. Ibid., p. 70. 783 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 294. 784 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 554. 785 VELASCO, Marina. “Habermas, Alexy e a razão prática kantiana.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 17. 786 Habermas, na esteira de Dworkin, distingue princípios e regras de objetivos (policies), traçados em leis finalísticas, e onde predominam os discursos pragmáticos - escolhas de tecnologias e estratégias de ação para alcance de fins estabelecidos previamente. Günther refere-se - criticamente - à postura de Alexy, que não diferencia princípios de políticas públicas: “Ao proceder à ponderação, os critérios para a avaliação do grau de importância dos valores em colisão resultem da respectiva ordem hierárquica existente. O que isso significa poderá esclarecido pela desistência, sugerida por Alexy, de distinção entre princípios e alvos políticos estabelecidos, que Dworkin havia introduzido. É verdade que, assim, acerta-se o estado factual da jurisprudência constitucional, mas também, simultaneamente, adota-se, em seu lugar, a mistura de princípios imperativos e imperativos funcionais, que caracteriza o sistema administrativo ou econômico.” GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 322. 787 VELASCO, Marina. “Habermas, Alexy e a razão prática kantiana.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 31. Para maior clareza do texto, as divergências de Habermas à teoria de Alexy, objeto do capítulo III, foram postas em notas explicativas, no rodapé das páginas. Neste capítulo IV, as divergências de Alexy à teoria de Habermas serão, preferencialmente, também por razões de clareza, postas como notas explicativas. Este capítulo se ocupará da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa de Habermas, trazendo as contribuições mais relevantes de um de seus autores mais eminentes, colacionando seus principais postulados aplicáveis ao cerne desta tese: a produção democrática, através de consulta popular ou de audiência pública, e normativamente correta de atos administrativos gerais e abstratos (resoluções) por agências reguladoras. Para tanto, as linhas gerais da teoria de Habermas serão expostas, enriquecidas por críticas, tomando como ponto de partida os conhecimentos delineados nos capítulos anteriores.788 4.2. O Direito como mediador entre facticidade e validade Habermas constrói sua Teoria Discursiva do Direito a partir do conceito da racionalidade comunicativa789 que possibilita uma coordenação baseada em pretensões de validade – verdade proposicional, veracidade subjetiva (sinceridade) e correção normativa.790 A razão prática, reinterpretada pela racionalidade comunicativa, adquire um valor heurístico.791 O conceito de razão prática “se transforma num fio condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos formadores da opinião e preparadores da decisão, na qual está embutido o poder democrático exercitado conforme o direito.”792 788 A presente tese baseia-se em concepções sociológicas, políticas, econômicas, filosóficas e jurídicas que ensejaram o reconhecimento da Teoria Discursiva do Direito, e de sua correlata Democracia Deliberativa, como respostas possíveis à normatização no atual estágio da sociedade – de Modernidade Reflexiva. Muito do que Habermas põe como pilares de sua construção teórica foi tratado, amiúde, nos capítulos anteriores. Em razão disto, o presente capítulo tende a se restringir à sua contribuição para a construção da Democracia Deliberativa, servindo-se, na medida do necessário, dos alicerces de sua teoria jurídica, e da contraposição de teorias conflitantes. 789 Habermas em obra mais recente (original de 1999), acrescenta à sua teoria da racionalidade o elemento “reflexão”, ressaltando que “a estrutura discursiva cria uma correlação entre as estruturas ramificadas de racionalidade do saber, do agir e da fala ao, de certo modo, concatenar as raízes proposicionais, teleológicas e comunicativas.” Ressalta Habermas que: “Nesse modelo de estruturas nucleares engrenadas umas nas outras, a racionalidade discursiva deve seu privilégio não a uma operação fundadora, mas a uma operação integradora.” HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação. Tradução: Milton Camargo Mota. Rio de Janeiro: edições Loyola, 2004, p. 101. A racionalidade comunicativa é o elemento preponderante na racionalidade discursiva do agir comunicativo forte. 790 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 21. 791 Conforme explicitado linhas atrás, heurística é a capacidade de um sistema fazer inovações positivas para um determinado fim, para descobrir algo, ou resolver determinado problema. 792 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 21. Observa Habermas que a teoria da política e do direito, arrastadas para cá e para lá, entre facticidade793 e validade, decompõem-se em facções que nada têm a ver uma com a outra. A tensão entre validade – “princípios normativistas que correm o risco de perder o contato com a realidade social” – e facticidade – “princípios objetivistas, que deixam fora de foco qualquer aspecto normativo” - serve de advertência para que se mantenha aberto a: Diferentes posições metódicas (participante versus observador), a diferentes finalidade teóricas (explicação hermenêutica do sentido e análise conceitual versus descrição e explicação empíricas), a diferentes perspectivas de papéis (do juiz, do político, do legislador, do cliente e do cidadão) e a variados enfoques pragmáticos na pesquisa (hermenêuticos, críticos, analíticos, etc.). As pesquisas delineadas a seguir movimentam-se nesse amplo espaço.794 Para tanto, apóia sua teoria do direito e do Estado de Direito no princípio do Discurso, procedimental, introduzindo um “paradigma procedimentalista do direito”.795 A Teoria do Agir Comunicativo pretende assimilar a tensão entre facticidade e validade “que se introduz no próprio meio de coordenação de ação”796 ao preservar o engate entre sociedade e razão - reproduzido na vida social - e ao atrelar a idéia de condução consciente de vida. O “medium do direito”797 é posto por Habermas como um dos canais aptos a amortizar as instabilidades da socialização que se realiza através da tomada de posição com relação a pretensão de validade criticáveis.798 O problema de estabilizar a validade de uma ordem social, reconhecendo-se o crescente risco de dissenso no agir comunicativo desligado de autoridades sagradas e de 793 Facticidade é “o que caracteriza a existência como lançada no mundo, ou seja, à mercê dos fatos, ou no nível dos fatos e entregue ao determinismo dos fatos.” ABBAGNANO, Nicola. Trad. Alfredo Bossi. Dicionário de filosofia. 4. ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 423. 794 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 23. 795 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 24. Embora a teoria discursiva seja procedimental, não é puramente procedimental. É também seletiva: é o conteúdo que determinará a necessidade de um procedimento argumentativo. Os conteúdos serão processados no Discurso. Esclarece Habermas: “Nas consultas sobre leis e políticas, a questão fundamental: ‘o que devemos fazer?’ modificase conforme o tipo da matéria a ser regulamentada.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 200.. 796 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 25. 797 A palavra é utilizada em seu sentido terminológico. Medium, no campo dos estudos da linguagem, significa meio para a transmissão de uma mensagem; seu plural é media. A tradução para o inglês fornece mais subsídios à compreensão de seu significado: means by which something is accomplished; means of expression; e, especialmente, channel of communication. 798 A Teoria do Agir Comunicativo pauta-se pela noção de condição de validade, atendida apenas com a satisfação das pretensões de verdade, sinceridade e correção normativa. instituições fortes,799 transfere ao direito produzido democraticamente800 um papel central na integração social.801 A saída apontada pelo autor à sobrecarga da moral802 como meio de integração social é a “regulamentação normativa de interações estratégicas”803 sobre as quais os atores se entendem, como forma de unir facticidade a validade. No agir orientado pelo sucesso – o agir estratégico – os componentes de determinada situação transformam-se em fatos valorizados à luz da preferência do ator (facticidade), ao passo que no agir orientado pelo entendimento os componentes da situação dependem de uma compreensão da situação, negociada em comum, com a interpretação de fatos relevantes à luz de pretensões de validade reconhecidas intersubjetivamente (validade).804 As regulações de interações estratégicas buscam, ao delimitar a atuação estratégica do agente e desenvolver uma força social integradora – “na medida que impõem obrigações aos destinatários”805 – , aglutinar “a coerção fática e a validade legítima”, alcançando “validade com a força do fático”.806 Leciona Habermas que a facticidade (ou validade social) “de normas do direito é determinada pelo grau em que consegue se impor, ou seja, pela sua possível aceitação fática no círculo dos membros do direito” apoiada na “ameaça de sanções definidas conforme o direito e que podem ser impostas pelo tribunal.” A validade (ou legitimidade de regras) “se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa” e o que conta, “em última instância, é o fato de elas terem surgido num processo legislativo racional.” A validade de uma norma807 independe do fato de 799 O individualismo institucionalizado foi tematizado no capítulo II desta tese. Numa democracia radical. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 13. 801 Em razão da fundamental posição da democracia em sua teoria do direito, é central em sua obra o capítulo VII – Política Deliberativa: um conceito procedimental de Democracia - constante em Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 09-56. 802 A relação entre moral e direito é fundamental para a compreensão da Teoria Discursiva do Direito de Habermas, e será exposta ainda neste capítulo. 803 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 46. 804 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 47. 805 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 47. 806 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 47. Aponta Habermas os direitos subjetivos privados, talhados para busca estratégica de interesses privados, como o núcleo do direito moderno. 807 Neste capítulo, norma jurídica. 800 conseguir impor-se.808 Conclui o autor – essencial à compreensão da tese que se apresenta – que o direito, por referir-se tanto a facticidade (validez social, fática) quanto a legitimidade (pretensão ao reconhecimento normativo) “permite aos membros da comunidade jurídica escolherem entre dois enfoques distintos em relação à mesma norma: objetivador ou performativo.”809 Para o primeiro (orientado pelo sucesso), a norma é um empecilho em razão da expectativa de sanção em hipótese de transgressão, ela limita externamente seu espaço de opções; para o segundo, a norma “amarra sua ‘vontade livre’ através de uma pretensão de validade deontológica”,810 situando-se “no nível de expectativas obrigatórias de comportamento, em relação às quais se supõe um acordo racionalmente motivado entre parceiros jurídicos.”811 Não há, entretanto - em razão do direito subjetivo à assunção estratégica de interesses próprios812 -, como compelir o cidadão a pautar-se por um agir comunicativo. Neste caminho, o processo de legislação constitui o lugar propriamente dito da integração social.813 Para tanto, supõe-se que “os participantes de processo de legislação saem do papel de sujeitos privados do direito e assumem, através de seu papel de cidadãos, a perspectiva de membros de uma comunidade livremente associada” baseada num acordo sobre os princípios normativos assegurados “através da tradição” ou alcançados através de regras reconhecidas normativamente.814 Este processo de legislação – de produção de normas jurídicas – deve ser estruturado de forma que “os cidadãos devem poder participar na condição de sujeitos do direito que agem orientados 808 A tensão entre facticidade e validade identificada por Habermas em Direito e democracia: entre facticidade e validade é explicitada por Antônio Cavalcanti Maia do seguinte modo: “Nesta obra Habermas lança mão de uma interpretação do direito ocidental moderno que contempla – em permanente tensão – uma dimensão descritiva (da facticidade, coerção imposta por sanções externas), percebidas por qualquer observador que se depare com o fenômeno jurídico, e uma dimensão normativa (da validade, da força vinculante das condições racionalmente fundadas), sem a qual a ordem jurídica não conseguiria obter uma estabilidade mínima.” MAIA, Antônio Cavalcanti. “Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia.” In: Albuquerque Mello, Celso; Torres, Ricardo Lobo (Orgs.). Arquivos de direitos humanos. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar. 2000, p. 49. 809 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 50-51. 810 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 51. 811 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 51-52. Como se percebe, há uma identificação entre o enfoque objetivador da norma e a relação entre lei e liberdade do liberalismo; e o enfoque performativo do agir comunicativo e a relação entre lei e liberdade no modelo republicano de Estado. 812 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 53. 813 Esta postura de Habermas difere da posição de Alexy, que como já demonstrado, prioriza a atividade do juiz, especialmente o constitucional. 814 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 53. não apenas pelo sucesso.” Os direitos de comunicação e de participação têm que ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento, numa prática intersubjetiva, democrática: “A pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos subjetivos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da ‘vontade unida e coincidente de todos’ os cidadãos livres e iguais.”815 Habermas, na construção de seu conceito procedimental de democracia – Democracia Deliberativa - apóia-se: Unicamente na premissa segundo a qual o modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico, quando não se leva em conta a dimensão de validade do direito e a força legitimadora da gênese democrática do direito.816 Neste modelo de ordem jurídica, e de Democracia Deliberativa como adiante se verá, as liberdades subjetivas de ação (direitos clássicos liberais, como a liberdade de arbítrio) são complementadas por direitos subjetivos de autonomia: só se consegue garantir força integradora ao direito se “a totalidade dos destinatários singulares da norma jurídica puder considerar-se autora817 racional dessas normas. [...] O direito moderno nutre-se de uma solidariedade concentrada no papel do cidadão que surge, em última instância, do agir comunicativo.”818 Em sociedades complexas, sublinha Habermas, através das práticas de autodeterminação comunicativas, “o que 815 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 53. 816 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 09. 817 Acerca da política de inclusão feminista, com seus aspectos de liberdade de ação e de autonomia, é bastante clara a seguinte passagem de Habermas, constante em A inclusão do outro: estudos de teoria política: “Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autonomia das pessoas do direito por meio de liberdades subjetivas para haver concorrência entre indivíduos em particular, ou então mediante reivindicações de benefícios outorgadas a clientes da burocracia de um Estado de bem-estar social, surge agora uma concepção jurídica procedimentalista, segundo a qual o processo democrático precisa assegurar ao mesmo tempo a autonomia privada e a pública: os direitos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos em igualdade de direito quando isso se dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado.” HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. 2. ed. Tradução: George Sperber et alli. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 305. 818 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 54. Esclarece Habermas: “Não há nada mais improvável aos olhos de um sociólogo esclarecido do que as realizações de integração do direito moderno virem a se alimentar somente ou, em primeira linha, de um acordo normativo já pronto ou conseguido em fontes da solidariedade.” Ibid., p. 55. importa preservar é, antes de tudo, a solidariedade social, em vias de degradação, e as fontes do equilíbrio da natureza, em vias de esgotamento.”819 Através do direito positivo,820 esclarece Habermas, “inventa-se um sistema de regras que une e, ao mesmo tempo, diferencia ambas as estratégias, a da circunscrição e a da liberação do risco do dissenso embutido no agir comunicativo”. 821 A garantia estatal da normatização do direito oferece uma estabilização de expectativas equivalente à autoridade sagrada. De outro lado, a liberdade comunicativa assume a prática de uma autodeterminação organizada – e permanente - mediada por instituições e processo jurídicos. O direito positivo deve legitimar-se para que o destinatário obedeça “ao direito pelo motivo não-coercitivo do dever.”822 A positividade somada à pretensão de legitimidade do direito (aceitabilidade racional) expõe, desta forma, todas as normas e valores a um exame crítico.823 A institucionalização jurídica dos processos de comunicação formaliza a comunicação do dia-a-dia, mas, ainda assim, no agir comunicativo, “o risco de contradição é prolongado discursivamente e transformado na força produtiva de uma formação política, presumivelmente racional, da opinião e da vontade.”824 Na linha exposta, o direito funciona como um “mecanismo que alivia as sobrecarregadas realizações de entendimento dos que agem comunicativamente de tarefas da integração social” (positividade)825 sem anular o espaço de comunicação 819 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 189. 820 Leciona Habermas: “O direito positivo serve naturalmente à redução da complexidade social.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol.I I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 55. 821 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 59. 822 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 52. 823 Na linha da Ética do Discurso, em razão da seletividade, é a quebra do equilíbrio normativo que ensejará a tematização de determinado assunto - a necessidade de um procedimento argumentativo. 824 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 60. Esclarece Habermas que a formação política da vontade, através de decisões e de leis, será formulada na linguagem do direito. Tal fato implica no controle das normas produzidas “quando se examina a possibilidade de os novos programas se encaixarem no sistema jurídico vigente. O legislador político só pode utilizar suas autorizações de normatização jurídica para a fundamentação de programas de leis compatíveis com o sistema de direitos e acopláveis ao corpus das leis vigentes. Sob esse aspecto jurídico todas as resoluções têm que ser submetidas a um exame de coerência.” No Estado de direito - constitucional - estas normas deverão estar conformes à Constituição, e sujeitas a um controle de compatibilidade por um Tribunal Constitucional. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 210. 825 O alter ego da positividade é sua modificabilidade; e aí repousa o princípio democrático. (pretensão de aceitabilidade racional).826 Se a positividade é construída com base em decisões arbitrárias, corre-se o risco de perder seu poder de integração social: a força do direito é extraída da aliança entre positividade (aceitação) e pretensão de legitimidade (aceitabilidade). A positividade se serve da facticidade, através da coerção do direito; e a pretensão de legitimidade atrela-se à aceitabilidade, servindo-se da noção de autolegislação. Com a união destes elementos – e da modificabilidade das escolhas democráticas827 -, resgata-se a pretensão de legitimidade das próprias regras, o que as torna racionalmente aceitáveis.828 O poder político, institucionalizado juridicamente, impõe politicamente este direito legitimamente produzido. 826 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 60. 827 Em Alexy a tensão entre positividade e modificabilidade é compreendida pela solução do impasse entre legislação e constitucionalismo. Como se demonstrou, Alexy opera o conceito de constitucionalismo moderado, conferindo em alguns temas prioridade à Constituição, e em outros temas, prevalência ao princípio democrático, exercitado pelo legislador infraconstitucional. Habermas não propõe um modelo de constitucionalismo, mas deixa entrever, pela radical faceta democrática de sua teoria, que seu constitucionalismo é mais fraco que o defendido por Alexy. Refere-se Habermas à concepção de Peter Häberle (HÄBERLE Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre. Sergio Fabris Editor, 2002), com seu ideal político de uma “sociedade aberta dos intérpretes da constituição”, contrapondo-a à figura do Juiz Hércules de Dworkin, apoiada no ideal da personalidade de um juiz que se distingue pela virtude e pelo acesso privilegiado à verdade. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 277-278). Habermas identifica na teoria de Häberle linhas do pensamento republicano em sua comunidade de intérpretes da constituição, uma esfera pública jurídica politizada e crítica (Ibid., p. 347). Aponta o autor que a teoria de Häberle tem o mérito de chamar a atenção para o nexo interno entre autonomia privada e pública, mas falha ao sobrecarregar o direito processual (constitucional), “transformando-o no substituto de uma teoria democrática.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 150. A Constituição, para Habermas, é “a instituição de um processo de aprendizagem falível, através do qual uma sociedade vence, passo a passo, sua natural incapacidade para uma autotematização normativa.” (Ibid., p. 189) Ressalta o autor que a Constituição, um “projeto de realização do direito”, não pode ser meramente formal. Importante para esta compreensão a concepção e a relevância dos direitos fundamentais na teoria de Habermas, a ser tratada ainda neste capítulo. 828 Observa Habermas que a tensão entre facticidade e validade, no âmbito da jurisdição, poder ser identificado pela “tensão entre o princípio da segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas.” A questão central de que se ocupa a teoria geral do direito, em suas variadas vertentes, é como garantir simultaneamente segurança jurídica - no sentido de previsibilidade - e correção - no sentido de justiça. Três caminhos são identificados por Habermas: o da hermenêutica histórica de Gadamer, que parte de uma pré-compreensão valorativa que estabelece uma relação entre norma e estado de coisas, inserindo a razão no complexo histórico da tradição; o do realismo jurídico, que, como será explicado mais adiante, rejeita existência de uma lógica do direito, tomando a decisão jurídica como o resultado de interesses, enfoques políticos e estruturas da personalidade dos julgadores, anulando a função de estabilização do direito; o do positivismo jurídico, que, como já explicado nesta tese, ocupado com a função estabilização do direito, não vincula a legitimidade de decisões jurídicas às tradições éticas. Como opção a estas teorias, apresenta Habermas sua Teoria Discursiva do Direito, derivada da Ética do Discurso, com a especificidade dos discursos jurídicos, de aplicação imparcial do direito, institucionalizados conforme o direito. O tema será retomado. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 245-251. Além do direito, com suas normas de processos de entendimento, outros dois meios de integração829 são identificados por Habermas: o dinheiro (poder econômico) e o poder administrativo (administração pública). Ambos coordenam as ações de forma objetiva, “como que por trás das costas dos participantes da interação, portanto não necessariamente através da consciência intencional ou comunicativa.”830 O direito, observa o autor, está ligado às outras duas fontes de integração: Através de uma prática de autodeterminação, que exige dos cidadãos o exercício comum de suas liberdades comunicativas, o direito extrai sua força integradora, em última instância, de fontes de solidariedade social. As instituições do direito privado e público possibilitam, de outro lado, o estabelecimento de mercados e a organização de um poder do Estado; pois as operações do sistema administrativo e econômico, que se configura a partir do mundo da vida, que é parte da sociedade, completam-se em formas de direito.831 O direito, que extrai sua força integradora da solidariedade social832 – em razão da pretensão de legitimidade que lhe é inerente -, interligado que está ao poder administrativo e ao dinheiro, “assimila, em suas realizações integradoras, imperativos de diferentes procedências.”833 Nesta assimilação ocorre, por vezes, a imposição de interesses do poder administrativo e do poder econômico por serem os mais fortes, “servindo-se da força legitimadora da forma jurídica, a fim de disfarçar a sua imposição meramente factual.”834 E o direito, por si, não denota, à primeira vista, se as realizações de integração social que assume estão atreladas ao consenso (solidariedade social), à 829 Em Luhmann, como adiante se demonstrará, a economia (ter/não ter dinheiro) e o poder político (poder/não poder) são subsistemas integrantes do sistema fundamental social, e não meios de integração social. 830 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 61. Refere-se o autor à mão invisível do mercado, em Adam Smith. 831 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 62. O mundo da vida é composto pela interligação de cultura, sociedade e estruturas da personalidade através de uma linguagem multifuncional. A noção de mundo da vida, integrado, opõe-se à diferenciação de sistemas proposta por Luhmann, como adiante se demonstrará. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 81. 832 O tema será retomado. 833 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 62. 834 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 62. É exemplo desta imposição a pressão política das demais forças integradoras no direito, em defesa de determinados interesses – lobby –, seja através da interação legítima dos atores sociais, seja através da interação criminosa e corruptora para a obtenção de vantagens ilícitas. autoprogramação do Estado (poder administrativo) ou ao poder econômico (dinheiro), tampouco se esta atrelação produz “a necessária lealdade das massas.”835 A principal fonte de interação social das sociedades modernas - o direito-, embora permaneça sob a pressão da economia de mercado e do aparelho do Estado, realizada através do dinheiro (poder econômico) e do poder da administração pública burocratizada (poder administrativo), deve permanecer ligado ao processo integrador da autodeterminação dos cidadãos. Há, como identifica Habermas, uma tensão entre “o idealismo do direito constitucional e o materialismo de uma ordem jurídica, especialmente de um direito econômico” que reflete a distribuição desigual do poder na sociedade, e encontra eco em diferentes abordagens do direito.836 A relação do direito com os meios de integração dirigidos pelo dinheiro e pelo poder administrativo não pode suplantar a consciência da sociedade como um todo. Esta relação por vezes colidente entre o direito e os demais meios de integração - com a freqüente vitória do poder econômico e do poder administrativo - fez surgir o que Habermas denomina de “desencantamento sociológico do direito”,837 cedendo espaço a teorias céticas realistas (ou pseudo-realistas) do direito.838 835 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 62. Habermas mantém-se, durante toda a sua obra, coerente à sua proposta de democracia radical. 836 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 63. A teoria de Habermas opõe-se, radicalmente, à Teoria dos Sistemas de Luhmann, um baluarte moderno do ceticismo jurídico. O tema será aprofundado ainda neste capítulo. 837 Esclarece Luhmann: “Decerto que veremos as relações no centro do sistema de forma diferente de um observador externo, e [é] desta forma que se estabelece a diferença entre o modo pelo qual juristas e sociólogos observam o direito.” LUHMANN, Niklas. “A restituição do décimo segundo camelo: do sentido de uma análise sociológica do direito.” Tradução: Dalmir Lopes Júnior. In: ARNAUD, AndréJean; LOPES JR., Dalmir (Orgs). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 36. 838 A teoria sistêmica de Luhmann (pseudo-realista) e o realismo jurídico – o legal realism de matriz americana – parecem chegar a resultados equivalentes, mas por vias opostas. Para Luhmann o direito é um sistema auto-referente e autopoiético (como mais adiante se explicitará) fechado a argumentações práticas, cujas questões são resolvidas exclusivamente pelo código (lícito/ilícito) do direito, sendo eventuais argumentações apenas “ficções necessárias” para dar a impressão de que os argumentos determinaram a decisão. (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 75). Luhmann defende o que denomina de racionalidade sistêmica.. Para o legal realism, capitaneado pelo norteamericano Jerome Frank, os juízos não pertencem ao campo da razão. (ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Cátedra Ernesto Garzón Valdés, 2003. Cidade do México: Distribuciones Fontanamara, 2005, p. 98) Jerome Frank é apontado por Atienza como o representante característico de uma versão extremada do realismo jurídico, com três características opostas à noção de direito como argumentação (Teoria Discursiva do Direito): ceticismo axiológico, sustentando que os juízos de valor não pertencem ao campo da razão, podendo existir unicamente uma espécie de discurso persuasivo; enfoque conducionista das razões explícitas, já que estas, que aparecem nas motivações, não são as verdadeiras razões que produziram as decisões; e indeterminabilidade radical do direito em relação às normas e aos fatos por elas contemplados, sustentando que não se pode falar propriamente em argumentação jurídica ou em método jurídico. Ibid., pp. 98-99. A segurança jurídica, neste modelo, seria 4.3 A reconstrução da legitimidade Habermas estabelece como eixo central de sua teoria a reconstrução da legitimidade do direito, rompendo com a hegemonia positivista que equipara uma mera ficção. Fernando M. Toller e Gustavo D. Martínez Urrutibèhéty apontam Jerome Frank (1889-1957) como um dos mais destacados representantes do legal realism norte-americano, “cuyo núcleo doctrinal es que el Derecho es lo que los jueces crean en sus decisiones, que en tal creación están menos ligados a derivaciones silogísticas a partir de normas jurídicas que a sus intuiciones políticas e morales, y que es central la tarea jurídica el predecir la conducta judicial futura. La principal contribución de Frank a esta corriente es la introdución de la perspectiva psicológica y el desarrollo del escepticismo fáctico, que conduce a reconocer la falta de certezas en el proceso judicial.” Para Frank – tese fundamental de sua Law and the modern mind, 1930 – a decisão judicial deve ser abordada a partir de uma perspectiva psicológica, uma vez que o julgador concorre com uma soma incindível de fatores que nutrem a decisão final. Este elemento psicológico demonstra o quanto é mítica e irreal a consideração do direito como algo certo, claro e indubitável, descoberto mediante um processo lógico de subsunção. A sentença, para Frank, diferentemente do que sustenta a formulação tradicional, não deriva da aplicação de uma norma a um caso concreto (Norma x Fatos = Sentença), mas sim do resultado de estímulos aplicados à personalidade (elementos psíquicos) do julgador (Estímulo x Personalidade = Sentença). Neste arcabouço, os estímulos significam as forças sociais, dentre as quais, as normas jurídicas, TOLLER, Fernando M.; URRUTIBÈHÉTY, Gustavo D. Martínez. “Jerome Frank”. In: DOMINGO, Rafael. (org) Juristas universales, vol. 4 – juristas del siglo XX. Barcelona: Marcial Pons, 2004, pp. 191-194. Ao legal realism a filosofia do direito opõe o legal idealism. Aponta Tony Ward, como as duas maiores escolas do legal idealism, a denominada Sheffield School, capitaneada por Alan Gewirth, e Teoria Discursiva do Direito, de Alexy e de Habermas – embora reconheça diferenças marcantes entre estes. WARD, Tony. “Two school of legal idealism”. In: Ratio Juris, vol. 19, n.º 2, junho de 2006, pp. 127-140. Para uma escola do direito – uma teoria jurídica - ser considerada idealista, pontua Ward, deve sustentar, num nível conceitual, uma necessária conexão entre direto (law) e moralidade. A validade do direito depende de seu mérito moral. Ibid., pp. 128-129. Uma faceta do realismo jurídico - sentença cuja motivação apenas aparentemente justifica uma decisão tomada de antemão pelo Juiz – pode ser encontrada facilmente nos processos em que se julgam crimes dolosos contra a vida perante o Tribunal do Júri. Ainda que no Tribunal do Júri as decisões não estejam, em regra, adstritas a motivação, em termos semelhantes às demais sentenças de natureza criminal, haja vista a decisão acerca da existência de crime (autoria, materialidade, tipicidade, ilicitude e culpabilidade) ser tomada pelo Conselho de Sentença – composto por sete jurados que votam secretamente sim/não – sem o dever ou mesmo a possibilidade de fundamentar os votos proferidos na Sessão, o Juiz deverá fundamentar os parâmetros utilizados para a fixação da pena – tanto a pena-base (art. 59 do Código Penal) quanto as causas de aumento e de diminuição da pena (distribuídas pela parte geral e especial do Código Penal), agravantes e atenuantes (arts. 61 a 67 do Código Penal), quando não estabelecidas em índices únicos (v.g., causa de aumento que, reconhecida pelos jurados, determina a duplicação da pena-base - art. 122, parágrafo único, Código Penal). Desta forma, o Juiz deverá fundamentar por que fixou a pena-base, em algo entre seis e vinte anos (v.g., art. 121, caput) bem ainda o porquê da fixação de causa de diminuição em um percentual entre um sexto a um terço (v.g., art. 121, § 1.º). Na sistemática recursal do Código de Processo Penal, há a previsão de uma espécie de recurso denominada “protesto por novo júri” (art. 607 do Código de Processo Penal), privativo da defesa, cabível sempre que a pena imposta na condenação imposta pelo Tribunal do Júri for igual ou superior a vinte anos. Ocorre com grande freqüência na prática forense, a condenação por homicídio qualificado - cuja pena-base pode ser fixada entre doze e trinta anos e agravada por circunstâncias legais estabelecidas no art. 61 do Código Penal – a penas de dezenove anos e seis meses, ou ainda, dezenove anos e onze meses. Tais sentenças partem do fim para o começo: em razão da gravidade do crime, que é hediondo, mas para não gerar o direito a um recurso que invalide a decisão do Tribunal do Júri, estabelece-se a sentença – o número de anos e meses da condenação – e posteriormente, trata-se de dar legitimidade a legalidade,839 pressuposta nos sistemas de direito da atualidade. 840 Esta postura de Habermas é identificada já em A crise de legitimação no capitalismo tardio, publicado originalmente em 1973, em que assevera que “só a forma legal técnica, a pura legalidade, não são aptas a garantir o reconhecimento, a longo prazo, se o sistema de autoridade não puder se legitimar independentemente da forma legal de exercer autoridade.”841 Aponta que a sociologia jurídica – de Max Weber 842 e Talcott Parsons,843 dentre outros - identifica, na passagem das sociedades tribais para a das grandes culturas, uma evolução caracterizada por uma forma de organização do Estado em que “o direito e o poder político formam uma síntese digna de consideração.”844 Nesta síntese, o Estado torna possível a institucionalização de processos jurisdicionais e de imposição de direito, e, por seu turno, o Estado constitui-se “na figura de uma hierarquia de cargos e funções” legitimando-se através da forma jurídica do exercício uma aparência de motivação à pena fixada, de antemão, pelo Juiz. O “protesto por novo júri”, por estabelecer, na prática, um teto para as condenações do Tribunal do Júri, está em vias de extinção através de diversos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. A Câmara dos Deputados aprovou, em março de 2007, o Projeto de Lei n.º 4.203/01, ainda sujeito a aprovação pela Senado Federal. Esta reforma – como esclarece Luiz Flávio Gomes, “retira do sistema recursal pátrio o protesto por novo júri, recurso que era privativo da defesa, cujo cabimento se restringia às hipóteses de condenação a uma pena igual ou superior a vinte anos. Trata-se de uma postura a ser aplaudida, vez que para evitar a interposição desse recurso, muitas vezes os juízes fixam a pena abaixo desse quantum, mesmo quando evidente que o indivíduo é merecedor de uma sanção superior.” GOMES, Luiz Flávio. Um novo procedimento para o Júri. Disponível em: http://www.lfg.blog.br, com acesso em 11/04/2007. 839 MAIA, Antônio Cavalcanti. “Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia.” In: Albuquerque Mello, Celso; Torres, Ricardo Lobo (Orgs.). Arquivos de direitos humanos. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar. 2000, p. 11. 840 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 82. 841 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Tradução: Vamirch Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980, p. 128. 842 Observa Habermas que na concepção do direito de Weber, em sua sociologia da dominação, as bases de sua validade são postas de forma cética quanto a valores, e sustenta nas funções que o direito preenche para a organização e o exercício da dominação legal. O direito moderno “entra a tal ponto num nexo funcional com a dominação burocrática da instituição estatal racional, que a função racionalmente integradora, própria do direito, não é levada em conta.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 102. O sistema de dominação burocrático de Max Weber foi delineado em pelo autor em: WEBER, Max. Economia e sociedade, v. 1. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991. 843 Em Parsons o direito moderno juridifica o poder político, “que se realiza sob as limitações estruturais dos fundamentos racionais da validade do direito moderno, ancorado na sociedade civil, na esfera pública política e no status de cidadãos.” A moral e o direito funcionam como uma garantia para a realização da integração social de todas as demais ordens institucionais: “O direito é uma ordem legítima que se tornou reflexiva com relação ao processo de institucionalização”, e forma o núcleo de um sistema de comunidade que é a estrutura nuclear da sociedade. A proposta de Parsons difere da de Weber em razão de uma “evolução social do direito sob o aspecto de sua função própria, da garantia da solidariedade social, não sob o aspecto da contribuição trazida para a forma de dominação.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 102-103. 844 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 103. administrativo do poder.845 Desta forma, pontua Habermas, “o direito sancionado através do Estado e o poder político exercido conforme o direito promovem-se mutuamente.”846 Neste nível, formam-se os elementos do sistema de direito:847 Normas do direito ou programas de decisão, que são referidos a possíveis casos futuros e garantem ex ante pretensões jurídicas, normas jurídicas secundárias que tornam possível a constatação e a modificação das normas de comportamento primárias; uma organização da jurisdição que transforma pretensões de direito em possibilidades de demanda judicial; uma execução do direito, sobre a qual se apóia a ameaça de sanções, etc.848 Na primeira Modernidade,849 dominada pelo processo de diferenciação, ocorre a formação dos subsistema sociais - apresentados por Habermas como meios de integração sociais - o econômico (dinheiro) e o administrativo (burocrático): “Ambas as formações de subsistemas significam que a sociedade civil se desliga da economia e do Estado. As formas tradicionais da comunidade modernizam-se na figura de uma sociedade civil” que, seguindo os passos do pluralismo religioso, distancia-se dos próprios sistemas culturais.850 Deste processo de diferenciação surge uma nova necessidade de integração dos subsistemas, pelo medium do direito: primeiro, o dinheiro e o poder administrativo são institucionalizados juridicamente – o surgimento do direito econômico e crescimento do direito administrativo e constitucional no decorrer do século XX atestam a juridicização dos referidos subsistemas; segundo, são juridificados os conflitos interacionais, com a resolução dos litígios através da solução de pretensões 845 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 103. 846 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 103. 847 Para Weber, o direito estatal assume feições de um sistema de direito, sendo este parte de um sistema político. Menos plausível “o passo que Luhmann dá a seguir e que consiste em desmembrar novamente o direito da política transformando-o num subsistema próprio, independente, ao lado da administração, da economia, da família, etc.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 104. 848 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 103-104. São normas jurídicas secundárias “as normas de competência, que revestem as instituições do Estado com autorizações, como também de formas de organização, que determinam procedimentos segundo os quais se criam programas de leis que são elaboradas na administração ou na justiça.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 183. 849 As características da Modernidade (Primeira e Segunda) foram expostas no capítulo II desta tese. Como características básicas da Primeira Modernidade, com suas categorizações sociais: a) sociedades do Estado nacional; b) sociedades grupais coletivas; c) distinção entre sociedade e natureza, como fonte inesgotável de recursos; d) e sociedades do trabalho ou do pleno emprego, fruto da dinâmica industrial. 850 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 104. de direito; e terceiro, através da universalização do status de cidadão,851 juridificando, potencialmente, todas as relações sociais.852 Neste ponto, esclarece Habermas: O núcleo dessa cidadania é formado pelos direitos de participação política, que são defendidos nas novas formas de intercâmbio da sociedade civil, na rede de associações espontâneas protegidas por direitos fundamentais, bem como nas formas de comunicações de uma esfera pública política produzida através da mídia.853 Nesta linha, de cidadania como inclusão, com direitos de acesso e participação cada vez mais amplos,854 assevera Habermas que a positivação do direito moderno, que resulta da racionalização de suas bases de validade, somente conseguirá estabilizar expectativas de comportamento numa sociedade pluralista e complexa – “que inclui mundos da vida estruturalmente diferenciados e subsistemas funcionalmente independentes” – se “assumir a função de lugar-tenente de uma ‘societal community’ que se transformou numa sociedade civil, mantendo a pretensão de solidariedade herdada, na forma de uma pretensão de legitimidade digna de fé.”855 Para tanto, necessário o “gozo real de um status de cidadão ativo, através do qual o indivíduo singular pode influir na transformação democrática de seu status.”856 Como observa Flávio Beno Siebeneichler, Habermas trabalha com a hipótese de que “mesmo que as condições complexas e multifuncionais das nações e grupos humanos da sociedade contemporânea sugiram o contrário, é possível pensar que o direito está ligado essencialmente à idéia de uma auto-organização de cidadãos livres e iguais.”857 Para tanto, “formula a tese segundo a qual é possível discutir a 851 Habermas trabalha com a seqüência de aquisição de direitos da concepção da cidadania – com elementos civil, político e social - proposta por T.H.Marshall. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1967. Leciona Habermas que Marshall defende a tese que a seqüência - civil, político e social – tornou “possível assegurar e ampliar sucessivamente o status da cidadãos nas sociedades ocidentais nos últimos dois ou três séculos.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 107. 852 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 104-105. 853 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 105. 854 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 108. A participação popular, além de promover a legitimidade, é um instrumento para implantar a transparência administrativa. O tema será retomado. 855 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 105 856 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 108. 857 SIEBENEICHLER, Flávio Beno. “O direito das sociedades pluralistas.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 55. validade e a legitimidade do direito se lançarmos mão do princípio da razão comunicativa – procedimental.”858 Habermas reconstrói, em sua teoria jurídica, o conceito de cidadania, de sistema de direitos e de princípios do Estado de direito sob os pontos de vista da teoria do discurso – introduz a categoria do direito moderno na ótica da Teoria do Agir Comunicativo.859 Por sua importância e clareza, cabe a seguinte transcrição de seu conceito de direito moderno: Por “direito moderno” eu entendo o moderno direito normatizado, que se apresenta com a pretensão à fundamentação sistemática, à interpretação obrigatória e à imposição. O direito não representa apenas uma forma do saber cultural, como a moral, pois forma, simultaneamente, um componente importante do sistema de instituições sociais. O direito é um sistema de saber e, ao mesmo tempo, um sistema de ação. Ele tanto pode ser entendido como um texto de proposições e de interpretações normativas, ou como uma instituição, ou seja, como um complexo de reguladores de ação. E, dado que motivos e orientações axiológicas encontram-se interligados no direito interpretado como sistema de ação, as proposições do direito adquirem uma eficácia direta para a ação, o que não acontece nos juízos morais. De outro lado, as instituições jurídicas distinguem-se de ordens institucionais naturais através de seu elevado grau de racionalidade; pois, nelas, se incorpora um sistema de saber mantido dogmaticamente, isto é, articulado, trazido para um nível científico e interligado com uma moral conduzida por princípios.860 Este conceito de direito não pode prescindir de conceitos como “povo do Estado” ou “associação de parceiros livres e iguais”. Tais construções, “inevitáveis do sistema jurídico”, são, entretanto, inadequados “como modelos para a sociedade tomada como um todo.”861 Habermas se serve, para tanto, do conceito sociológico de mundo da vida: “Uma rede ramificada de ações comunicativas que se difundem em espaços sociais e épocas históricas”, que se nutre não apenas “das fontes das tradições culturais e das ordens legítimas, como também dependem das identidades de indivíduos socializados.”862 O mundo da vida não é posto como uma organização superdimensionada, à qual os membros da sociedade se filiam, nem como uma associação ou liga, na qual o indivíduo se inscreve, tampouco uma coletividade, 858 SIEBENEICHLER, Flávio Beno. “O direito das sociedades pluralistas.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 55. 859 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 113. 860 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 110-111. 861 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 111. 862 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 111. O individualismo institucionalizado, característico do atual estágio da Modernidade (Segunda Modernidade), foi explicitado no capítulo II desta tese. compostas por membros. As condições de reconhecimento recíproco – “articuladas nas tradições culturais e estabilizadas em ordens legítimas”863 – permitem que os indivíduos socializados afirmem-se como sujeitos. Desta relação de reprodução cultural (cultura), integração social (sociedade) e socialização (pessoa) resulta a prática comunicativa cotidiana na qual o mundo da vida está baseado. O sistema de ação “direito”, na Teoria do Agir Comunicativo, integra o componente social (sociedade) do mundo da vida:864 Como este só se reproduz junto com a cultura e as estruturas da personalidade, através da corrente do agir comunicativo, as ações jurídicas formam o medium através do qual as instituições do direito se reproduzem junto com as capacidades subjetivas da interpretação de regras do direito.865 As regras do direito, que são parte do componente “sociedade”, formam “ordens legítimas de um nível superior”, ao mesmo tempo em que - “enquanto simbolismo jurídico866 e enquanto competências jurídicas socializatórias adquiridas”867 – estão representadas nos outros dois componentes do mundo da vida - cultura e pessoa. Esclarece o autor que os três componentes do mundo da vida – cultura, sociedade e pessoa – participam na produção de ações jurídicas: as regras do direito referem-se reflexivamente “à integração social realizada no fenômeno da institucionalização”, que se dá através do “medium da linguagem coloquial ordinária pelo qual passam as realizações de entendimento, socialmente integradoras, do mundo da vida”.868 Desta forma o direito extrai sua força integradora da solidariedade social e reflete seu saber e sua ação sobre o mundo da vida. De modo semelhante, o direito, que recebe os influxos do mundo da vida869 traduz estas mensagens (do mundo da vida, onde impera a linguagem coloquial) para os “códigos especiais da administração dirigidos pelo poder, e da economia, dirigida pelo 863 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 111. 864 Conforme já demonstrado, a teoria de Habermas opõe-se diametralmente ao isolamento do direito como um sistema periférico – dentre outros sistemas fechados – de integração social. 865 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 112. 866 Símbolo em razão de ser um signo convencional, não natural. 867 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 112. 868 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 112. 869 Além do mundo da vida, de onde extrai a força integradora da solidariedade social, recebe influxos do poder econômico e do poder administrativo, como tratado linhas acima. dinheiro.”870 Nesta medida, o direito opera como um transformador da relação entre os sistemas de integração (direito, poder econômico e poder administrativo), o que não acontece com a moral, limitada que está à esfera do mundo da vida. 4.4 Reconstrução do Direito pela Teoria do Agir Comunicativo Antes de apresentar sua Teoria da Democracia Deliberativa – em que retoma a tensão entre facticidade e validade, e propõe, como adiante se verá, sua concepção procedimental de democracia - Habermas reconstrói, na ótica da Teoria do Agir Comunicativo, e com o auxílio da Ética do Discurso, a autocompreensão das ordens jurídicas modernas. Nesta empreitada, o autor toma como “ponto de partida os direitos que os cidadãos têm que atribuir uns aos outros, caso queiram regular legitimamente sua convivência com meios do direito positivo.”871 Nesta atribuição de direitos, o direito moderno que prepondera na função de integração social – e que deve ser legitimado através da aceitabilidade das pretensões de validade – alivia o indivíduo do peso das normas morais, e transfere a responsabilidade de tal integração para as normas que garantem a compatibilidade das normas de ações: as normas que definem os direitos subjetivos.872 Esclarece Habermas que, por obterem as normas sua legitimidade através de um processo legislativo, apoiado no princípio da soberania popular, há o paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da legalidade.873 870 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 112. 871 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 113. 872 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 114. Três concepções de direito subjetivo são apresentadas por Habermas: direito subjetivo como vontade (Windscheid); direito subjetivo como proveito (Ihering); e finalmente direito subjetivo como interesse juridicamente protegido somado à liberdade de arbítrio (Kelsen). Na teoria deste autor há o desengate do conceito do direito do conceito da moral, sendo as decisões metódicas do direito que estabelecem o que é ou não direito subjetivo. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 116-119. 873 Este paradoxo reflete-se na relação entre os direitos fundamentais (legalmente estabelecidos) e a soberania popular (princípio formal democrático). Aponta Habermas que estas idéias “determinam até hoje a autocompreensão normativa de Estados de direito democráticos” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 128). Mais ainda: “Os direitos humanos e o princípio da soberania do povo forma as idéias em cuja luz ainda é possível justificar o direito moderno”. Ibid., p. 133. O autor identifica a existência de tal paradoxo por dois motivos. Primeiro, em razão da idêntica estrutura dos direitos de cidadania (políticos, de autonomia) e de todos os demais direitos subjetivos (civis, de liberdade) que “abrem ao indivíduo esferas de liberdade de arbítrio”, sustentando que “os direitos políticos também devem poder ser interpretados como liberdades de ação subjetivas, as quais simplesmente fazem do comportamento legal um dever”.874 Segundo, porque o processo legislativo democrático deve se pautar pelas expectativas do bem da comunidade, que por sua vez extrai sua força legitimadora de um processo de entendimento dos cidadãos sobre sua convivência.875 A legitimidade dos direitos subjetivos (direitos fundamentais, na terminologia de Alexy) se esgota na legalidade de uma dominação política, interpretada em moldes positivistas: “Não se conseguiu esclarecer de onde o direito positivo obtêm sua legitimidade.”876 A fonte de legitimidade, situada no processo democrático de legislação, apela para o princípio da soberania popular, que é introduzido, preso que está à legalidade positivista, sem a preservação do “conteúdo moral independente dos direitos subjetivos - a proteção da liberdade individual”.877 Do mesmo modo, as qualidades “lógico-semânticas” das leis gerais – “forma gramatical de mandamentos universais” – nada dizem sobre a validade das leis.878 Para Habermas – que a partir desta constatação constrói sua teoria do direito - “o visado nexo interno entre soberania do povo e direitos humanos reside no conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, que é assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade”.879 Esta formação “só se estabelecerá, se o 874 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 114. É corrente a classificação dos direitos humanos – tomados muitas vezes como sinônimos de direitos fundamentais, estes efetivamente previstos em determinada Constituição - em gerações: A primeira geração dos direitos humanos – direitos de liberdade - engloba os direitos civis e políticos; a segunda geração – direitos de igualdade – assegura a obtenção de prestações que reduzam a desigualdade social; a terceira geração – de fraternidade ou solidariedade – relaciona-se aos direitos difusos, coletivos por excelência. Mais recentemente a doutrina brasileira tem apontado o surgimento dos direitos humanos de quarta geração, referentes à institucionalização de procedimentos de democracia direta, de direito amplo de informação, e do pluralismo: “Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 571. 875 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 115. 876 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 122. 877 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 122. 878 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 122. 879 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 137. A teoria democrática de sistema dos direitos apresentar as condições exatas sob as quais as formas de comunicação – necessárias para uma legislação política autônoma – podem ser institucionalizadas juridicamente.”880 Neste modelo, a autonomia privada não pode ser sobreposta nem subordinada à autonomia política. Esta co-originalidade – os destinatários são simultaneamente os autores de seus direitos – que identifica a autolegislação pode ser explicada desta forma pela Teoria do Discurso: “A substância dos direitos humanos insere-se, então, nas condições formais para a institucionalização jurídica deste tipo de formação discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica.”881 Sustenta Habermas que a moral e o direito “encontram-se numa relação de complementação recíproca”882 e que “quanto mais o direito é tomado como meio de Habermas é procedimental, como adiante se demonstrará, em razão da constatação do autor de ser o modo de exercício da autonomia política o que assegura a legitimidade do direito. 880 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 138. 881 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 139. 882 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 141. A relação entre moral e direito é fundamental para a compreensão da Teoria Discursiva do Direito de Habermas. Em Direito e democracia: entre facticidade e validade o direito é posto como um meio de comunicação social diferenciado da moral, numa relação de complementaridade funcional. Acerca da complementaridade entre moral e direito: “Eu penso que no nível de fundamentação pós-metafísico, tanto as regras morais como as jurídicas diferenciam-se da eticidade tradicional, colocando-se como dois tipos diferentes de normas de ação, que surgem lado a lado, complementando-se.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 139. Em outra passagem: “Tentarei clarificar as determinações formais do direito, lançando mão da relação complementar entre direito e moral.” Ibid., p. 147. Mais adiante: “Naturalmente a moral, no papel de uma medida para o direito correto, tem a sua sede primariamente na formação política da vontade do legislador e na comunicação política da esfera pública. Os exemplos apresentados para uma moral no direito significam apenas que certos conteúdos morais são traduzidos para o código do direito e revestidos com um outro modo de validade. Uma sobreposição dos conteúdos morais não modifica a diferenciação entre direito e moral, que se introduziu irreversivelmente no nível de fundamentação pós-convencional e sob condições do moderno pluralismo de cosmovisões. Enquanto for mantida a diferença das linguagens, a imigração de conteúdos morais para o direito não significa uma moralização do direito. Quando Dworkin fala de argumentos de princípios que são tomados para a justificação externa de decisões judiciais, ele tem em mente, na maioria das vezes, princípios do direito que resultam da aplicação do princípio do discurso no código jurídico. O sistema dos direitos e princípios do Estado de direito são, certamente, devidos à razão prática, porém, na maioria das vezes, à figura especial que ela assume no princípio da democracia. O conteúdo moral de direitos fundamentais e de princípios do Estado de direito se explica pelo fato de que os conteúdos das normas fundamentais do direito e da moral, às quais subjaz o mesmo princípio do discurso, se cruzam.” Ibid., p. 256. Observa Habermas que o direito e a moral complementam-se “a partir da compensação das fraquezas de uma coordenação da ação apoiada exclusivamente na razão prática.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 55. Tornando clara a posição do autor, com seus reflexos na quebra da antinomia público versus privado, tem-se: “Uma divisão regional entre as competências da moral e do direito de acordo com domínios de ação públicos e privados não faz sentido, uma vez que a formação da vontade de legislador político se estende também aos aspectos morais da matéria a ser regulamentada. Em sociedades complexas, a moral só obtém efetividade em domínios vizinhos, quando é traduzida para o código do direito.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. regulação política e de estruturação social, tanto maior é o peso de legitimação a ser carregado pela gênese democrática do direito.”883 O direito, que não é apenas um sistema de símbolos, mas também um sistema de ação, não é mera cópia da moral. As normas de ação, que se ramificam em regras morais e jurídicas, podem ser analisadas com o auxílio do Princípio do Discurso (D). Este princípio possui certamente um conteúdo normativo, por explicitar “o sentido da imparcialidade de juízos práticos. Porém, ele se encontra num nível de abstração, o qual, apesar desse conteúdo moral, ainda é neutro em relação ao direito e à moral”.884 O princípio (geral) do Discurso possui a seguinte formulação: “D: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.”885 ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 145. Reconhecendo esta complementaridade, aponta outra característica: “Normas jurídicas não se encontram no mesmo nível de abstração que as normas morais.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 193. Na introdução de Direito e democracia: entre facticidade e validade, Habermas anuncia esta sua perspectiva da relação entre moral e direito, diferente da sustentada na Tanner Lecture proferida em 1986, em que se baseava numa concepção “por demais normativista” de Karl Otto Apel (Ibid., p. 10). Nesta palestra, transcrita e apensada ao segundo volume da edição brasileira de Direito e democracia: entre facticidade e validade, Habermas sustentava: “Quanto mais a moral se interioriza e se torna autônoma, tanto mais ela se retrai para os domínios privados. Por isso, em todos os domínios de ação onde conflitos, problemas e matérias sociais em geral exigem uma regulação coercitiva, as normas de direito têm que absorver as inseguranças que surgiriam, caso ficassem entregues a uma regulação do comportamento puramente moral.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 217. As Tanner Lectures, por sua relevância, são postas como apêndices da edição brasileira, e foram proferidas no decorrer do ano de 1986, bem anteriores à publicação original de Direito e democracia: entre facticidade e validade – em 1992. Luiz Moreira, na introdução à edição brasileira da Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação de Klaus Günther, identifica esta nova postura de Habermas, contraposta à do autor da obra prefaciada, que retira a racionalidade de normas jurídicas das normas morais. Embora Günther e Habermas tenham participado do grupo de pesquisa que culminou com a publicação de Direito e democracia: entre facticidade e validade, não há uma estreita correspondência entre as teses dos autores. GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 11. Aponta Habermas que Günther considera, em moldes semelhantes a Alexy, o discurso jurídico como um caso especial de discursos moral - mais precisamente, em Günther, “um caso especial do discurso de aplicação moral.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 289. A contribuição de Günther à Teoria Discursiva do Direito será exposta neste capítulo. 883 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 171. 884 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 142. 885 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 142. Cabe a explicitação dos elementos da definição: “válidas”, o predicado de ações, expressa o sentido de validade normativa – na linha da Teoria do Agir Comunicativo; “normas de ação”, referem-se às “expectativas de comportamento generalizadas temporal, social e objetivamente”; “atingido” é “todo aquele cujos interesses serão afetados pelas prováveis conseqüências provocadas pela regulamentação de uma prática geral através de normas”; “discurso racional” é “toda a tentativa de entendimento sob pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que permitem o movimento livre de temas e Habermas introduz a especificação do Princípio do Discurso em razão de seu campo de atuação: Princípio do Discurso como princípio moral, e Princípio do Discurso como Princípio Democrático. O princípio moral do Discurso - ou simplesmente, princípio moral - “resulta de uma especificação do princípio geral do discurso para normas de ação que só podem ser justificadas sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses.”886 O princípio democrático do Discurso – ou simplesmente princípio da democracia – “resulta de uma especificação correspondente para tais normas de ação que surgem na forma do direito e que podem ser justificadas com o auxílio de argumentos pragmáticos, ético-políticos e morais – e não apenas com o auxílio de argumentos morais.”887 Os tipos de argumentos empregados nos discursos dependem da “lógica do respectivo questionamento.”888 contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente a expressão refere-se também a negociações, na medida em que estas são reguladas através de procedimentos fundamentados discursivamente.” Ibid. Os elementos “normas de ação” (com as proposições correspondentes) e “discurso racional” (onde ocorrem as argumentações e negociações justificadas racionalmente) são conceitos amplos (“indeterminados”) que abrem espaço tanto para o discurso moral, quanto para o discurso democrático. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 321. Acerca das negociações como processos de entendimento, esclarece Habermas que: “O caminho do princípio do discurso, que deve garantir um consenso não-coercitivo, é indireto, desdobrando-se através de procedimentos que regulam as negociações sob pontos de vista da imparcialidade. Desta maneira, o poder de negociação não neutralizável deve ser disciplinado, ao menos através de uma distribuição igual entre os partidos [partes]. Se a negociação de compromissos decorrer conforme procedimentos que garantem a todos os interesses iguais chances de participação nas negociações e na influenciação recíproca, bem como na concretização de todos os interesses envolvidos, pode-se alimentar a suposição plausível de que os pactos a que se chegou são conformes à eqüidade. [...] Negociações eqüitativas não destroem, pois, o princípio do discurso, uma vez que o pressupõem.” As negociações serão válidas se atenderem a três condições, que estabelecem um arranjo que é: “a) vantajoso para todos; b) que exclui pingentes que se retiram da cooperação; c) exclui explorados que investem na cooperação mais do que ganham com ela. Processos de negociação são adequados para situações nas quais não é possível neutralizar as relações de poder, como é pressuposto nos discursos racionais.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 207-209. 886 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 143. 887 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 143. Esta constatação de Habermas é essencial à compreensão do processo de criação de normas por Agências Reguladoras, num modelo de Discurso Regulatório, como adiante se verá. Abre-se o discurso a elementos pragmáticos inerentes aos discursos práticos gerais, em moldes semelhantes à proposta de Alexy. Ressalte-se que para Alexy, os discursos são jurídicos, e abertos a questões práticas, ao passo que para Habermas, são democráticos, mas igualmente abertos às questões práticas. 888 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 143. O Discurso é seletivo: é a questão problematizada que define o conteúdo do Discurso. Conforme se será tratado mais adiante, em questionamentos pragmáticos, os discursos pautam-se pela relação entre o fim estabelecido e os meios para alcançá-los. Em questionamentos ético-políticos, presentes em discurso democráticos – regidos pelo princípio da democracia - “a forma de vida ‘de nossa respectiva’ comunidade política constitui o sistema de referência para a fundamentação de regulamentações que valem como expressão de um autoentendimento coletivo consciente.” Nos discursos de fundamentação moral “o princípio do discurso O princípio moral (princípio moral do Discurso) diferencia-se do princípio da democracia (princípio democrático do Discurso) por seu nível de referência. O primeiro opera no nível de constituição interna da argumentação, da possibilidade da decisão racional das questões práticas, mais precisamente, de todas as fundamentações realizadas nos discursos. Explica como é possível abordar discursivamente questões políticas.889 Em complementação, o segundo princípio opera no nível externo: por se destinar a traçar um procedimento de normatização legítima do direito, implica “que somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva.”890 Outra distinção é dada pela natureza das normas que com os princípios (moral e democrático) se relacionam: “Enquanto o princípio moral se estende a todas as normas de ação justificáveis como auxílio de argumentos morais, o princípio da democracia é talhado na medida das normas do direito.”891 O direito, partindo da distinção entre princípio moral e princípio democrático, deve “institucionalizar uma formação da vontade política racional” e também “proporcionar o próprio medium no qual essa vontade pode se expressar como vontade de membros do direito livremente associados” servindo-se para tanto de regras jurídicas de ação.892 O ponto de partida - já mencionado no início deste tópico - são os direitos fundamentais que os cidadãos têm que atribuir uns aos outros, “caso queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo.”893 assume a forma de um princípio da universalização”, preenchendo o “papel de uma regra de argumentação”. O princípio moral (do discurso) pode ser fundamentado a partir de pressupostos gerais da comunicação, na linha do agir comunicativo. Em discursos de aplicação, o princípio do discurso “é complementado através de um princípio de adequação”. Ibid., pp. 143-144 889 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 145. 890 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 145. 891 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 145. Indica Habermas que as normas de direito possuem um caráter artificial em relação às normas morais: “Formam uma camada de normas de ação produzidas intencionalmente, reflexivas, isto é, aplicáveis a si mesmas.” Daí a constante menção que Habermas faz ao “símbolo” do direito - um signo convencional, por oposição a signo, referência natural. 892 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 147. Esclarece o autor que a existência das regras de ação do sistema jurídico retira das pessoas o “poder de definição do que é justo e do que é injusto. Sob o ponto de vista da complementaridade entre direito e moral, o processo de legislação parlamentar, a prática de decisão judicial institucionalizada, bem como o trabalho profissional de uma dogmática jurídica, que sistematiza decisões e concretiza regras, significam um alívio para o indivíduo, que não precisa carregar o peso cognitivo da formação do juízo moral próprio.” Ibid., p. 151. 893 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 154. Esclarece Habermas que estes direitos fundamentais, “devem ser introduzidos inicialmente na perspectiva de alguém que não está participando”894 - como no direito racional clássico do Estado Liberal. O medium do direito pressupõe direitos que definem o status de pessoas como portadoras de direitos em geral. Os direitos pressupostos - são talhados “respeitando as liberdades de ação subjetivas”, que garantem uma autonomia privada “que também pode ser descrita como liberação das obrigações da liberdade comunicativa.”895 A liberdade comunicativa (ou de comunicação) é tomada por Habermas seguindo Günther - “como a possibilidade - pressuposta no agir que se orienta pelo entendimento - de tomar posição frente aos proferimentos de um oponente e às pretensões de validade aí levantadas, que dependem de um reconhecimento intersubjetivo”896 Esta liberdade comunicativa “só existe entre atores que desejam entender-se entre si sobre algo num enfoque performativo e que contam com tomadas de posição perante pretensões de validade reciprocamente levantadas.”897 A liberdade subjetiva, posta como base de tomada de posições, chega a resultados opostos a estes, pouco importando se os argumentos que embasam as decisões podem ser aceitos por outros atores envolvidos no processo de comunicação: “Por isso, a autonomia privada de um sujeito do direito pode ser entendida essencialmente como a liberdade negativa de retirar-se do espaço público das obrigações ilocucionárias recíprocas para uma posição de observação e de influenciação recíproca.”898 Nesta linha, o “sujeito do direito” não precisa apresentar publicamente argumentos aceitáveis, retirando-se do agir comunicativo, fundamentado na privacidade899 “que libera do peso da liberdade comunicativa atribuída e imputada reciprocamente.”900 894 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 154. 895 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 155. 896 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 155. 897 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 156. O conceito de liberdade comunicativa se serve dos conceitos da teoria do agir comunicativo no sentido forte. 898 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 156. 899 Acerca da relação entre o público e o privado, o corte de análise “Republicanismo” constante da obra Laboratório de análise jurisprudencial: os direitos à intimidade e à vida privada pelo Supremo Tribunal Federal. CAMARGO, Margarida et. alli. Renovar, prelo. 900 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 156. O princípio do direito de Kant - derivado de seu imperativo categórico901 carrega o peso da legitimação ao dispor que: “É justa toda a ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade de arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais.” 902 Para Habermas o núcleo deste princípio consiste na previsão de iguais liberdades subjetivas: “A liberdade de cada um deve poder conviver com a igual (gleiche) liberdade de todos, segundo uma lei geral.” Aponta o autor que somente assim entra em jogo a pretensão de legitimidade do direito positivo, negligenciada por determinações formais do direito. O direito, partindo desta constatação de Kant, só se coaduna com a coerção jurídica que assegure “motivos racionais para a obediência do direito.”903 Nada impede, entretanto, que os destinatários do direito se neguem a exercer suas liberdades comunicativas e a tomar posição em relação à pretensão de legitimidade do direito. Num caso concreto, podem abandonar o enfoque performativo “trocando-o pelo enfoque de um ator que calcula as vantagens e que decide arbitrariamente. Normas jurídicas devem poder ser seguidas com discernimento.”904 Diferentemente da noção de autonomia (ou autolegislação) moral de pessoas singulares, a autolegislação de cidadãos não pode ser produzida monologicamente, mas sim com a utilização de um procedimento argumentativo - Ética do Discurso aplicável à moral e ao direito - que deve assumir, pela via de institucionalização, a figura de um princípio da democracia que passa a conferir legitimidade ao processo de normatização: “O princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica”.905 Deste entrelaçamento Habermas enxerga uma gênese lógica de direitos: Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades de ação em geral - constitutivo para a forma jurídica enquanto tal - e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equiparar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo 901 O imperativo categórico de Kant é assim enunciado pelo autor: “Age segundo uma máxima que possa ao mesmo tempo ter valor de lei geral.” KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 39. 902 KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 46. 903 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 157-158. 904 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 158. 905 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 158. circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção do direito legítimo, portanto o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário.906 O autor apresenta as categorias de direito que supõe regular legitimamente a convivência dos cidadãos e que geram o próprio código jurídico, devendo ser estabelecidos por meio do direito positivo:907 (1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. (2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito; (3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual; (4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo; (5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) até (4).908 As três primeiras categorias (1, 2, 3) de direitos fundamentais resultam da aplicação do princípio do discurso ao medium do direito, e referem-se “às condições de formalização jurídica de uma socialização horizontal em geral.”909 Garantem a autonomia privada dos sujeitos de direito na medida em que se reconhecem como os destinatários das leis, e possibilitam a satisfação da pretensão de fazer valerem os direitos estatuídos. A quarta categoria (4) assegura aos sujeitos de direito o papel de autores da ordem jurídica.910 Os direitos políticos fundamentam o status de cidadãos livres e iguais. A quinta categoria (5) decorre do reconhecimento da possibilidade de modificação da posição material do cidadão - igualdade material - com relação aos direitos referidos nas quatro categorias antecedentes, permitindo a configuração da 906 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 158. 907 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 158-159. 908 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 159-160. 909 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 159. 910 Habermas refere-se à “dupla face de Janus” do direito, que se orienta de um lado para seus destinatários, e de outro lado, para seus autores. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 167. Janus, na mitologia grega, é deus dos portais e transições, dos inícios e dos fins. É o deus de face dupla - bifronte - que vê o passado e o futuro, o começo e o final, à frente e atrás... Janeiro deriva de Janus, significando o mês da abertura, da passagem - o mês do ano consagrado a Janus. autonomia pública e privada de forma inclusiva.911 Para Habermas, não existe nenhum direito legítimo sem estes direitos fundamentais.912 Este sistema direitos fundamentais913 assegura tanto a autonomia pública quanto a privada, operacionalizando a tensão entre facticidade e validade - entre positividade e legitimidade. Aponta Habermas: De um lado, o sistema dos direitos conduz o arbítrio dos interesses de sujeitos singulares que se orientam pelo sucesso para os trilhos de leis cogentes, que tornam compatíveis iguais liberdades subjetivas de ação; de outro lado, esse sistema mobiliza e reúne as liberdades comunicativas de civis, presumivelmente orientados pelo bem comum, na prática da legislação. 914 O direito não pode, entretanto, obrigar a um emprego comunicativo de direitos subjetivos, “mesmo quando os direitos políticos dos cidadãos sugerem exatamente esse tipo de uso público.”915 4.5 Estado de Direito e modalidades de Discurso O poder de tomar decisões obrigatórias para toda a sociedade - poder político - somente se desenvolve através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais.916 O direito, por seu turno, não consegue, por si, alcançar seu sentido normativo através de sua forma ou através de um conteúdo moral pré-estabelecido. Será apenas através de um procedimento que o instaure legitimamente que alcançará seu objetivo. E no nível pós-tradicional da justificação, esclarece 911 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 159-160. 912 As categorias de direitos fundamentais - de Alexy, no capítulo anterior, ou de Habermas, neste capítulo - não são o foco da tese que apresenta. O relevo da demonstração destes princípios é relação circular e indissociável entre direito e democracia, bem ainda a questão da aplicação das normas de direito. Para um aprofundamento acerca da natureza específica de cada uma destas categorias remete-se o leitor para: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 160-168. 913 Os direitos fundamentais contidos nas constituições ensejam o reconhecimento da “primazia técnica e jurídica da constituição face às simples leis”. Esclarece Habermas: Toda constituição “é um projeto cuja durabilidade depende de uma interpretação constitucional continuada, desencadeada em todos os níveis da positivação do direito.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 166. 914 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 167. Noutra passagem: “Os direitos subjetivos só podem ser estatuídos e impostos através de organismos que tomam decisões que passam a ser obrigatórias para a coletividade. E, vice versa, tais decisões devem a sua obrigatoriedade coletiva à forma jurídica da qual se revestem.” Ibid., p. 170 915 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 168. A situação é diferente, como adiante se verá, quando se tratar do uso da razão discursiva por servidores públicos - aí incluídos os agentes políticos - que devem se pautar por um agir comunicativo no sentido forte. 916 O direito organiza o poder do Estado, e o poder do Estado organiza o direito. Habermas, “só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade.”917 O direito mantém sua força legitimadora enquanto puder funcionar como fonte de justiça,918 cuja pretensão de validade é absoluta.919 A autonomia política, nos termos da teoria do discurso, esclarece que a produção de um direito legítimo implica a mobilização das liberdades comunicativas, que constitui um verdadeiro poder comunicativo, que surge entre os homens quando agem em conjunto e desaparece tão logo os homens se espalham.920 Desta forma, se o poder administrativo - poder da administração em conformidade com o direito - não estiver apoiado num poder comunicativo, secará a fonte da justiça da qual o direito extrai sua legitimidade. 921 O direito legitimamente produzido “é o médium através do qual o poder comunicativo se transforma em poder administrativo.”922 O Estado de direito cumpre a exigência de “ligar o sistema administrativo, comandado pelo código do poder, ao poder comunicativo, estatuídos do direito, e de mantê-lo longe das influências do poder social, portanto, da implantação fática de interesses privilegiados.”923 Disciplina o “aspecto político de um equilíbrio entre os três poderes da integração da sociedade: dinheiro, poder e solidariedade.”924 A interligação entre normatização jurídica e a formação do poder comunicativo parte de questionamentos pragmáticos, passando pela formação de 917 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 172. Aponta Habermas que no Estado democrático de direito o poder político diferencia-se em poder comunicativo e poder administrativo. 918 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 184. 919 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 193. Este ponto fundamenta a discordância de Habermas em relação à postura de Alexy. Para Habermas, se o “justo” é o predicado para a validade das proposições normativas (na moral e no direito), e se a pretensão de validade da justiça é absoluta e não ponderável como são os valores, então a decisão (moral ou jurídica) acerca de determinada questão somente poderá ser justa ou injusta - nunca mais justa ou menos justa. Desta forma só se admitiria uma única decisão correta - a decisão adequada. Diferentemente para Alexy, a ponderação das normas de direito - tal qual a ponderação dos valores - oferece critérios racionais para as decisões jurídicas. 920 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 186. 921 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 186. 922 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 190. 923 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 190. 924 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 190. compromissos éticos, clarificados por questões morais, “chegando finalmente a um controle jurídico de normas.”925 Os argumentos926 postos em discursos de fundamentação e de aplicação do direito - terminologia proposta por Günther - estão em relação com os bens e fins coletivos perseguidos pelos cidadãos, e deverão estar a serviço da resolução de três tipos básicos de questionamentos: pragmáticos, éticos e morais. As questões pragmáticas relacionam-se à busca dos meios apropriados para realização de fins previamente estabelecidos. Técnicas ou estratégias são eleitas com base em comparações e ponderações (no sentido de prós e contras). Estas questões pragmáticas são postas e decididas em discursos pragmáticos “que referem o saber empírico a preferências dadas e fins estabelecidos e que julgam as conseqüências de decisões alternativas (que geralmente surgem sem que se tenha ciência) de acordo com máximas estabelecidas.”927 Nesta linha, “as deliberações servem para a ponderação e o discernimento de fins coletivos, bem como para a construção e a escolha de estratégias de ação apropriadas à obtenção desses fins”.928 Pressupondo que se sabe o que se quer, examina-se se as estratégias de ação são adequadas ao seu atingimento. 925 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 204. Este escalonamento de questões pode ser visto com clareza na contestação da constitucionalidade da Lei de Biossegurança - Lei n.º 11.105/2005 por Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADIn n.º 3526) interposta pelo Procurador Geral da República especificamente no que atine à permissão, para fins de pesquisa ou terapia, de utilização de “células-tronco embrionárias”, estabelecida no art. 5.º da referida Lei. Em razão da presença marcante de questionamentos científicos e éticos, o Ministro Relator Carlos Ayres de Britto designou a primeira audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal, com a participação de especialistas favoráveis e contrários à permissão legal. O que se vislumbra na questão da Lei de Biossegurança é um conflito - identificado com maestria por Gadamer e delineado com clareza por Boaventura de Sousa Santos - entre o know how técnico e o know how ético. Para um grupo de cientistas, a questão técnica prevalece: estabelecidos os fins - a cura através da terapia com células-tronco -, a questão passa a ser unicamente teleológica - estabelecer os meios para alcançá-los -, dando espaço unicamente a questões e argumentos pragmáticos - técnicas e estratégias para o alcance dos fins. Acontece, entretanto, que os valores que justificam as questões pragmáticas podem ser problematizados tratamento dos portadores de necessidades especiais ou o direito à vida dos embriões? Neste passo, os discursos pragmáticos cedem espaço aos discursos éticos de autocompreensão, para a solução de questões axiológicas graves (com implicações religiosas, inclusive), que estabelecerão os valores que a comunidade escolheu para si. O julgamento referido é um caso paradigmático desta passagem de discursos (pragmáticos e éticos), bem como da necessidade do controle jurídico das normas que envolvem estas questões. 926 “Argumentos são razões que resgatam sob condições do discurso, uma pretensão de validade levantada através de atos de fala constatativos e regulativos, movendo racionalmente os participantes da argumentação a aceitar como válidas proposições normativas ou descritivas.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 280-281. 927 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 200-201. 928 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 202. As questões éticas surgem quando os valores929 (as máximas estabelecidas) orientadores das questões pragmáticas tornam-se problemáticos. Neste passo, a questão “o que devemos fazer?” ultrapassa o horizonte da racionalidade teleológica. Questões que pedem “decisões axiológicas graves” envolvem uma autocompreensão coletiva em que os membros de determinada comunidade necessitam esclarecer a “forma de vida que estão compartilhando” e os “ideais que orientam seus projetos comuns de vida.” 930 Esclarece Habermas que questões como “quem sou eu? quem desejo ser? que tipo de vida é bom para mim?” postas no singular repetem-se no plural, dando sentido à identidade do grupo - surge um “nós” que complementa a autocompreensão do “eu”.931 A apropriação de formas de vida e de tradições determina a identidade do cidadão: “Decisões axiológicas graves resultam da autocompreensão cultural e política de uma comunidade histórica e se transformam junto com ela.”932 Nos discursos éticos também denominados pelo autor de discursos ético-políticos -, “o horizonte de orientações axiológicas, no qual se colocam essas tarefas de escolha e de realização de fins, pode ser introduzido no processo da formação racional da vontade pelo caminho de um auto-entendimento que se apropria das tradições.”933 Nestes discursos se busca certificar a configuração de valores que a comunidade realmente deseja para si. As questões morais surgem do exame da regulação da convivência da comunidade no interesse simétrico de todos: “Uma norma só é justa, quando todos podem querer que ela seja seguida por qualquer pessoa em situações semelhantes. Mandamentos morais têm a forma semântica de imperativos categóricos ou incondicionais.”934 Nestas questões “o que fazer?” significa buscar uma prática correspondente que seja justa. Os discursos morais tratam de fundamentar as respostas a esta estirpe de questões: “São decisivos os argumentos que conseguem mostrar que os interesses 929 incorporados em normas contestadas são pura e simplesmente Leciona Habermas que “valores concorrem sempre com outros valores. Eles exprimem quais bens determinadas pessoas ou coletividades ambicionam ou preferem em determinadas circunstâncias. Somente na perspectiva delas os valores podem ser trazidos para uma ordem transitiva.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 193. 930 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 201. 931 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 201. 932 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 201. 933 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 202. 934 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 203. generalizáveis.”935 Observa Habermas - na linha da Teoria do Agir Comunicativo - que “a perspectiva etnocentrista de uma determinada coletividade se alarga, assumido a perspectiva abrangente duma comunidade comunicativa não-circunscrita”, em que cada membro se coloca na situação, compreensão e autocompreensão um dos outros.936 Partindo das idéias de que “o direito legítimo é produzido a partir do poder comunicativo” e de que o poder comunicativo “é novamente transformado em poder administrativo pelo caminho do direito legitimamente normatizado”, delineadas linhas acima, Habermas desenvolve os princípios do Estado de direito “na perspectiva da institucionalização da rede de discursos e negociações”.937 Os seguintes princípios são propostos pelo autor: a) princípio da soberania popular; b) princípio da ampla garantia legal do indivíduo; c) princípios da legalidade da administração e do controle judicial e parlamentar da administração; d) princípio da separação entre Estado e sociedade.938 Os discursos - institucionalizados em atendimento aos princípios do Estado de direito - diferenciam-se conforme ocorram no âmbito de processo jurídicos, 935 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 203. Nos discursos de fundamentação o Princípio da Universalização opera esta generalização, em que se verifica a possibilidade do assentimento refletido de todos os atingidos. Em discursos de aplicação, para Habermas e Günther, será o princípio da adequação que garantirá a imparcialidade do juízo. Alexy vale-se da regra da proporcionalidade. O tema será retomado. 936 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 202. 937 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 212. 938 O princípio da soberania popular estabelece que o poder do Estado emana do povo, que o exerce através da igualdade de chances na formação democrática da vontade; o princípio da ampla garantia legal do indivíduo proporciona uma justiça independente; os princípios da legalidade da administração e do controle judicial e parlamentar da administração estabelece a possibilidade de controle dos atos administrativos (do Executivo) por outros poderes do Estado (Legislativo e Judiciário) e ainda por tribunais administrativos criados para tanto; o princípio da separação entre Estado e sociedade “visa impedir que o poder social se transforme em poder administrativo, sem passar antes pelo filtro da formação comunicativa do poder.” O poder do Estado eleva-se acima das forças sociais como um poder neutro. Esta neutralidade, como adiante se verá, está intrinsecamente relacionada à questão da democracia deliberativa. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 212-221. Habermas sintetiza desta forma a dinâmica do Estado de Direito: “A organização do Estado de direito deve servir, em última instância, à auto-organização política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu, como auxílio do sistema de direitos, como uma associação de membros livres e iguais do direito. As instituições do Estado de direito devem garantir um exercício efetivo da autonomia política de cidadãos socialmente autônomos para que o poder comunicativo de uma vontade formada racionalmente possa surgir, encontrar expressão em programas legais, circular em toda a sociedade através da aplicação racional, da implementação administrativa de programas legais e desenvolver sua força de integração social - através da estabilização de expectativas e da realização de fins coletivos. Ao se organizar o Estado de direito, o sistema de direitos se diferencia numa ordem constitucional, na qual o medium do direito pode tornar-se eficiente como transformador e amplificador dos fracos impulsos sociais e integradores da corrente de um mundo da vida estruturado comunicativamente.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 220-221. legislativos ou administrativos. Em procedimentos do Legislativo - “uma rede complexa de processos de entendimento e de práticas de negociação” - são especialmente relevantes para as deliberações parlamentares “o equilíbrio eqüitativo de interesses, o auto-entendimento ético e a fundamentação moral de regras”.939 Desta forma: “Em negociações nas quais se ponderam interesses, pode formar-se uma vontade geral agregada; em discursos hermenêuticos de auto-entendimento, uma vontade geral autêntica;940 em discursos morais de fundamentação e aplicação, uma vontade autônoma.”941 Os discursos ético-políticos conduzidos por representantes dos cidadãos nos Parlamentos devem ocorrer sob condições de participação simétrica: devem ser “porosos e sensíveis aos estímulos, temas e contribuições, informações e argumentos fornecidos por uma esfera pública pluralista, próxima à base, estruturada discursivamente, portanto, diluída pelo poder.”942 Em discursos morais, diferentemente, “o círculo dos possíveis atingidos não se limita aos membros da própria coletividade”, mas, de igual modo, o teste de generalização (universalização) “exige uma abertura incondicional das deliberações institucionalizadas para o fluxo de informações, para a pressão dos problemas e o potencial estímulo da opinião pública não-organizada.”943 Habermas identifica o equilíbrio eqüitativo de interesses em procedimentos do legislativo como tendente a formar uma vontade agregada, decorrente do somatório dos interesses representados por “delegados encarregados das tarefas de formação de compromissos; o modo de escolha deve cuidar para que haja uma representação 939 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 225. 940 “Discursos de auto-entendimento exigem a convivência reflexiva, corajosa e disposta a prender com as próprias tradições culturais, formadoras da identidade.” Em discursos ético-políticos, “todos os membros têm que poder tomar parte no discurso, mesmo que os modos sejam diferentes.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 227. 941 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 225. 942 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 227-228. 943 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 228. O discurso moral que trata de uma determinada questão tornada problemática em determinado momento, sujeita os argumentos ao teste de correção moral. Acerca dos argumentos morais, em discursos jurídicos, esclarece Habermas: “O ponto de vista moral transcende as fronteiras de qualquer comunidade jurídica concreta, introduzindo uma distância em relação ao etnocentrismo da vizinhança mais próxima.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 228. eqüitativa de situações de interesses e de preferências dadas.”944 Propõe, numa linha oposta ao tradicional modelo agregativo,945 o que denomina de modelo deliberativo, 946 em que: Auto-entendimento coletivo e fundamentação moral exigem, ao contrário, a escolha dos participantes, em discursos conduzidos representativamente; o modo de escolha precisa garantir uma inclusão de todas as perspectivas de interpretação relevantes, mediadas através de decisões pessoais. Além disso, da lógica dos discursos da justiça e do auto-entendimento resultam argumentos normativamente cogentes para abrir a formação institucionalizada, porém porosa, da opinião e da vontade política aos círculos informais da comunicação política geral.947 Nesta linha, os parlamentos devem trabalhar sob os parâmetros de uma opinião pública - “fontes espontâneas das esferas públicas autônomas”948 - que é destituída de um sujeito, formada na pressuposição de uma cultura política liberal. O Estado de direito deve ligar-se aos motivos e aos modos de pensar dos cidadãos livremente associados. A relação entre parlamento e esfera pública se dá através de uma soberania comunicativamente diluída dos cidadãos, que: Se faz valer no poder dos discursos públicos que resultam de esferas públicas autônomas e procedem democraticamente, tomando forma em resoluções de corporações legislativas politicamente responsáveis, não se sufoca o pluralismo das convicções e interesses, o qual é liberado e reconhecido em compromisso e decisões da maioria. A unidade de uma razão inteiramente procedimentalizada se recolhe, então na estrutura discursiva de comunicações públicas.949 Em procedimentos jurídicos - procedimentos argumentativos ocorridos no âmbito dos tribunais - trata-se de definir, proteger e estruturar os espaços em que devam ocorrer as argumentações, ainda que não se normatize a argumentação enquanto tal. A decisão judicial constitui uma “interligação entre dois tipos de procedimentos, ou seja, entre o procedimento jurídico institucionalizado e um processo de argumentação jurídica que se subtrai, em sua estrutura interna, à institucionalização jurídica.”950 Neste 944 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 228. 945 A distinção entre o modelo agregativo e o modelo deliberativo de democracia será retomada ainda neste capítulo. 946 É essencial à compreensão da teoria de Habermas a aplicação do modelo deliberativo ao modelo jurídico institucionalizado de democracia representativa e de democracia participativa. 947 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 228-229. 948 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 229. 949 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 231-232. 950 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 222. cruzamento, o universo do direito pode se abrir a argumentos pragmáticos, éticos e morais sem suspender o jogo da argumentação ou “detonar, de outro lado, o código jurídico.”951 Tais argumentos, insertos no procedimentos jurídico, estão submetidos, em razão da institucionalização do procedimento, a uma série de limitações (temporais, sociais, objetivas): formas de participação no processo, distribuição de papéis, leque temático (objetos do litígio), e fluxo processual (concatenação de atos e preclusão). Um aspecto essencial do processo jurídico é ressaltado por Habermas: “A obrigatoriedade social de um resultado obtido conforme o processo, tomada de empréstimo ao direito, entra no lugar de uma racionalidade procedimental, apenas imanente, isto é, assegurada somente através da forma da argumentação.”952 A lógica da argumentação, assegura o autor, “não é silenciada, e sim, colocada a serviço da produção de decisões que têm força de lei.”953 A regra da maioria, estabelecida para a solução de julgamentos realizados por órgãos colegiados em que não se alcança a unanimidade, é posta como um elemento de busca da validade argumentativa. Este tipo de decisão, embora solucione o caso concreto posto em juízo, opera, em realidade, uma interrupção de uma discussão sobre uma determinada matéria de direito que ainda permanecerá em andamento em abstrato, “fixando de certa maneira o resultado provisório de uma formação discursiva da opinião.”954 A posição da minoria vencida no Tribunal pode ser compreendida como um consentimento com a validade da decisão da maioria desde que fique a assegurada a possibilidade de ela vir a conquistar a maioria no futuro, alcançada inclusive com a mudança de alguns membros, e, na base do melhor argumento, de fazer prevalecer seu entendimento, e modificar a decisão (posicionamento do tribunal acerca de determinada matéria) - que passará a valer para os casos futuros. 951 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 222. 952 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 223. Há, como se observa, um ponto de contato entre o autor e Alexy, que vislumbra a existência de verdadeiros discursos no âmbito de processos judiciais. O tema foi tratado no capítulo III desta tese. 953 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 223. 954 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 223. Em sua Teoria Discursiva do Direito, Habermas se afasta da “tese do Caso Especial”955 por não aceitar “uma falsa subordinação do direito à moral.”956 Se a moral é complementar ao direito - como tratado linhas acima - a relação que há entre ambos os discursos (morais e jurídicos) é unicamente de referência. O discurso jurídico não é um caso especial de argumentação moral ligada ao direito, limitado ao que é moralmente vigente. Ao invés disso, os discursos jurídicos de aplicação imparcial do direito são “referidos naturalmente ao direito gerado democraticamente e institucionalizados juridicamente, na medida em que não se trata de reflexão da dogmática jurídica.”957 Não se referem unicamente a normas jurídicas, pois devem “compensar a falibilidade e a certeza da decisão que resultam do fato de que os pressupostos comunicativos pretensiosos de discursos racionais só podem ser preenchidos aproximativamente.”958 A Teoria Discursiva do Direito da Habermas busca fundamentar os princípios do processo na figura de uma teoria da argumentação jurídica, apoiada num conceito forte de racionalidade procedimental. A almejada correção de juízos normativos significa “aceitabilidade racional, apoiada em argumentos.”959 A validade é definida a partir do preenchimento das condições de validade, verificáveis “através do discurso - ou seja, pelo caminho de uma fundamentação que se desenrola argumentativamente.”960 Aponta Habermas que “o conteúdo da tensão entre a legitimidade e a positividade [facticidade e validade] do direito é controlada na jurisdição como um problema da decisão correta e, ao mesmo tempo, consistente.”961 As 955 tese proposta por Alexy e por Günther. Neste ponto há uma discordância entre as teorias de Habermas e de Alexy, apresentada no capítulo III desta tese. Tal discordância foi apresentada e analisada no referido capítulo. 956 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 291. 957 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 292. 958 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 292. 959 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 281. 960 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 281. 961 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 292. A Teoria Discursiva do Direito de Habermas, como se percebe, deixa questões muito abertas. Embora trace as linhas mestras para a produção de um direito válido, não se ocupa de oferecer um método de aplicação do direito, como faz Alexy. A noção de adequação adotada pelo autor, como adiante se demonstrará, muito se assemelha ao conceito de subsunção das regras, interpretadas sistematicamente. Sua teoria jurídica é mais bem compreendida com o auxílio das premissas da Teoria do Agir Comunicativo e da Ética do Discurso. De especial relevo em sua obra jurídica: a relação de complementaridade entre a moral e o direito (que se afasta da tese do Caso Especial de Alexy); a compreensão dos princípios do direito como normas deontológicas (que se afasta da ponderação teleológica de Alexy); o entendimento de que processo jurídicos são espaços de argumentações postas na lógica do discurso (na linha do defendido por Alexy). regras processuais institucionalizam uma prática de juízo e de argumentação que pode ser compreendida como um “jogo de argumentação”. O direito processual, afirma o autor, embora não delimite a argumentação jurídico-normativa, “assegura, numa linha temporal, social e material, o quadro institucional para decorrências comunicativas nãocircunscritas, que obedecem à lógica de discursos de aplicação.”962 Ressalta o autor que argumentação ocorre entre as partes - de modo agonístico - e que o juiz - um terceiro imparcial - observará seu andamento de modo neutro, podendo determinar a produção de provas acerca dos fatos que embasarão sua decisão. As regras do processo garantem os “espaços para discursos jurídicos que se transformam no objeto do processo” que será posto no resultado - a sentença. Esta sentença, que reflete os argumentos ocorridos no processo, deverá ser cuidadosamente fundamentada, em razão da possibilidade de revisão por uma instância superior. Outro ponto destacado por Habermas, é a uniformização do direito e seu aperfeiçoamento, ocorrido através de decisões das cortes superiores. O interesse público nesta uniformização reflete na lógica da jurisprudência: “O tribunal tem que decidir cada caso particular, mantendo a coerência da ordem jurídica.”963 Tais conseqüências servem à proteção dos direitos individuais. Habermas identifica, sob o ponto de vista da lógica da argumentação, uma predominância na relação entre modalidades de discursos e a divisão clássica dos três poderes do Estado: os discursos ético-políticos e morais relacionados ao Poder Legislativo; os discursos pragmáticos ao Poder Executivo (administração pública); e discursos jurídicos ao Poder Judiciário.964 Acerca das espécies de discursos, outra classificação é introduzida por Günther965 e adotada por Habermas, para quem a distinção entre discursos de fundamentação e discursos de aplicação é pressuposta na lógica da argumentação: 966 “Validade e adequação devem separar-se no nível pós-convencional.”967 962 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 292. 963 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 295. 964 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 232-240. 965 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004. 966 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 269. 967 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 371. Observa Habermas que os discursos de fundamentação, em que “normas e valores podem encontrar o assentimento racionalmente motivado de todos os atingidos”, partem da assunção da perspectiva de um “nós” que assume “de modo não-coagido e não-reduzido, as perspectivas da compreensão do mundo e da autocompreensão de todos os participantes.”968 Como forma reflexiva do agir comunicativo, caracteriza-se “através de uma reversibilidade completa de todas as perspectivas dos participantes, liberando a intersubjetividade mais alta da coletividade deliberativa.969 Esclarece Luiz Moreira que discursos de fundamentação (ou de justificação) referem-se a critérios de validade expressos “por meio da universalidade do princípio moral, com a qual se estabelece um sentido recíproco-universal de imparcialidade”,970 alcançando a norma produzida um assentimento racional de todos os participantes. Aponta Günther que a versão fraca do Princípio da Universalização - “U” - pode ser compreendida “como uma regra de argumentação em discursos de fundamentação, que resgatam a pretensão de validade de uma norma tendo em vista o interesse comum de todos os afetados, sob condições de um conhecimento restrito a respeitos de possíveis contextos de aplicação.”971 Discursos de fundamentação devem, “em disposição hipotética, para além da situação concreta, generalizar uma norma adequada proposta em consonância com o estágio do nosso conhecimento.”972 Somente após “olhar para todos os lados, cautelosamente, é que, então, cada um deverá mergulhar mo caso concreto, aqui e agora.”973 Luiz Moreira identifica o motivo da passagem de discursos de fundamentação para discursos de aplicação: “Em virtude de o conhecimento dos participantes em discursos ser limitado e o tempo finito, a dimensão de justificação 968 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 284. 969 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 284. 970 Moreira, Luiz. “Introdução” In: GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 16. 971 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 78. 972 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 80. 973 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 80. Neste sentido, a transcrição de Habermas apresentada por Günther: “A validade, requerida para proposições e normas, transcende espaços e tempos, ‘elimina’ espaço e tempo, mas a pretensão é manifestada aqui e agora, em determinados contextos, e aceita ou rechaçada com conseqüências fáticas.” HABERMAS, Jürgen. Der philosophische disckurs der moderne [O discurso filosófico da modernidade]. Frankfurt, 1985, p. 375 apud GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 79. necessita da dimensão de aplicação.”974 Esclarece Günther que a questão da aplicação de regras indeterminadas procura explicar “como a segurança de expectativas pode tornarse possível sob condições de exigüidade de tempo e de conhecimento incompleto.”975 Aponta o autor que é possível a concepção de um discurso de aplicação que transforme em procedimento “o sentido aplicativo de imparcialidade” e que tenha como tema “a adequação de uma norma a uma circunstância, em consideração a todos os sinais característicos da situação de aplicação.”976 Nesta perspectiva, assevera Günther, a versão forte do Princípio da Universalização - “U” - pode ser compreendida “de modo a envolver a adequação de uma norma em uma única situação” obrigando o aplicador a considerar, em cada situação de aplicação, todos os elementos característicos da norma. Aponta o autor que “somente dessa forma é que ocorre um entrecruzamento dialético, entre validade geral e contextos concretos.” Ressalta que: “Discursos de aplicação combinam a pretensão de validade de uma norma com o contexto determinado, dentro do qual, em dada situação, uma norma é aplicada.”977 Nos discursos de aplicação, embora haja a suposição de que as normas produzidas em discursos de fundamentação - sejam válidas, referindo-se aos interesses de todos os possíveis atingidos, ocorre, no momento da definição de qual dentre tantas normas é a adequada para a solução de uma questão determinado, a retração dos atingidos - das partes imediatamente envolvidas - na busca da satisfação de seus interesses.978 Surgem as interpretações das situações do fato (ato jurídico - lícito ou ilícito), diferentemente compreendidas por autor do fato e pelo atingido pelo fato. Em discursos de aplicação, ainda assim, “as perspectivas particulares dos participantes têm que manter, simultaneamente, o contato com a estrutura geral de perspectivas que, durante os discursos de fundamentação, esteve atrás das normas supostas como válidas.”979 A passagem dos discursos de fundamentação aos discursos de aplicação em que se converte as perspectivas dos participantes de discursos de fundamentação em 974 Moreira, Luiz. “Introdução” In: GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, pp. 16-17. 975 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 391. 976 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, pp. 78-79. 977 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 79. 978 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 284. 979 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 284-285. perspectivas das partes em determinado procedimento de discurso de aplicação - é representada “através de um juiz imparcial.980 A aplicação, esclarece Luiz Moreira, diz respeito à adequação: “Para que se determine se algo é ou não adequado, é necessário que haja concreção. É a aplicação que determina se uma norma é ou não adequada.” 981 O problema da aplicação, ressalta Günther caracteriza-se “por termos perdido a certeza de normas pré-determinadas, válidas e adequadas.982 O que buscamos é ‘socorro para a decisão em caso de conflito ou de falta de clareza’”.983 A adequação é posta por Günther como uma resposta à “crescente indefinição do direito.”984 Sua hipótese é a de que a aplicação “examina todos os sinais característicos de uma situação”, fazendo parte “do nível pós-convencional de normas morais”.985 A tarefa de aplicar normas adequadas recai cada vez mais “sobre a jurisprudência, porque o número e o tipo de situações conflituosas já não podem ser controlados.”986 A indeterminação da norma é uma “perífrase do procedimento de aplicação imparcial.”987 Necessária a criação de espaços de argumentação de adequação: 980 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 285. 981 A assertiva de Luiz Moreira pode ser encontrada na introdução da obra: GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 17. Conforme já delineado neste capítulo e no capítulo anterior, a adoção por Habermas dos discursos de aplicação como uma versão forte de universalização, pautada pela noção de adequação de normas deontológicas, implica no não acatamento da regra da proporcionalidade aplicada a princípios (direitos fundamentais), proposta por Alexy. Acerca dos bens coletivos - políticas públicas, policiesexpressas em leis finalísticas, não há qualquer vedação da adoção da regra da proporcionalidade para a solução de questões pragmáticas. 982 Essencial para compreensão a seguinte passagem: “Se uma determinada instituição como a do legislador tiver decidido antecipadamente a respeito da adequação da norma, ela poderá ser aplicada como uma regra.” A regra é aplicada com a exclusão de sinais característicos irrelevantes (não previstos hipoteticamente pela norma), que não se referem aos fatos de uma determinada situação. GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, pp. 392-393. 983 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 298. 984 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 394. 985 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 395. Conforme já mencionado neste capítulo, a racionalidade das normas jurídicas em Günther - sua aplicação adequada - decorre diretamente da racionalidade moral uma moral pós-convencional. Em Habermas não há derivação, mas sim complementaridade. Tal discordância, entretanto, não impede Habermas de adotar a noção de “argumentações adequadas” em sua Teoria Discursiva do Direito. 986 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 395. Jurisprudência no sentido de decisões reiteradas dos tribunais. 987 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 398. A aplicação do Direito deve criar espaços, nos quais - in casu - são possíveis argumentações de adequação que possam apoiar-se em uma multiplicidade de princípios relevantes. Para relacionar entre si o maior número possível de aspectos efetivos e normativos de uma situação, deve haver espaços na própria aplicação do Direito, nos quais também possam ser destacados os princípios políticos e morais que representam o nível pós-convencional de argumentação moral. Desse modo, a aplicação de normas, por sua vez, é de novo “procedimentalizada” e, com isso, novamente vinculada a argumentações imparciais de adequação.988 Na lógica de argumentações de adequação, assevera Günther, “apenas uma exaustão coerente de todas as normas e das suas variantes de significado que possam ser aplicadas a uma decisão situacional completa cumpre o princípio de aplicação imparcial.”989 Dois caminhos alternativos de busca da construção dos discursos de adequação são postos por Günther. Um deles, a hermenêutica, que constrói entre “a fundamentação situacionalmente independente” de uma regra e o “descobrimento situacionalmente dependente” do fato jurídico o “estágio particularmente autônomo da justificação da sua adequação situacional.”990 Outro caminho, a integridade, proposta por Dworkin,991 mais vantajosa que a hermenêutica em razão de “explicar a idéia de uma consideração imparcial de todos os sinais característicos relevantes de uma situação.”992 Günther identifica na integridade o “ideal de tomar decisões a respeito de normas jurídicas em conformidade com uma teoria política completamente coerente”, relacionando as decisões a ideais de “lealdade, justiça e devido processo”, resultando na “máxima de tratar casos iguais de modo igual.” 993 O juiz ao julgar conforme um conjunto coerente de princípios - explícitos e implícitos - resolvendo as colisões entre normas e princípios, deverá atender ao “pleito de compatibilidade com a melhor das interpretações.”994 Postula Günther que “integridade pode ser compreendida como “um princípio para argumentações de adequação.”995 Esclarece que a colocação dos princípios como ponderações que vão além das próprias regras coloca a aplicação do 988 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 396. 989 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 399. 990 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 400. 991 Vide capítulo III. 992 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 405. 993 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 407. 994 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 411. 995 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 414. no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. direito “sob o pleito de esgotar todos os aspectos de uma caso que puderem ser interpretados à luz de princípios.”996 A decisão se pautará não por uma norma isolada, mas sim por “uma porção de princípios como direitos” que enseja um tratamento igual em consideração e respeito, constituindo, desta forma, o núcleo da “estrutura de argumentações de adequação.”997 Sintetizando a distinção, a lição de Habermas, para quem em discursos de aplicação (ocorridos em processos judiciais e administrativos998), “é preciso decidir qual das normas tidas como válidas, numa situação dada, e cujas características são descritas da forma mais completa possível, é adequada.” 999 Nestes discursos, as partes apresentam “todos os aspectos litigiosos de um caso” a um juiz, “como um representante imparcial da comunidade.”1000 O julgador deverá “fundamentar seu julgamento perante uma esfera pública jurídica, em princípio ilimitada.”1001 Nos discursos de fundamentação - esta noção é essencial à tese que se apresenta - “há apenas participantes.”1002 4.6 Administração Pública e crise do Estado de direito: o papel da esfera pública 996 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 414. 997 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 414. Há a construção de uma racionalidade sistêmica na adoção da adequação, que adota os princípios como mandamentos de dever ser. Percebe-se da leitura de seus postulados, que a “aplicação como adequação” é muito solta, podendo cair no decisionismo do juiz, deixando pouca margem de controle de seus atos, ou mesmo de atos de aplicação da administração pública. Não é de se admirar que Dworkin se valha do juiz Hércules para conhecer todos os princípios explícitos e implícitos do direito, da lealdade, da justiça... para proferir uma decisão adequada. A regra da proporcionalidade, como se demonstrou na proposta de Alexy, onde os princípios são postos como mandamentos de otimização, fornece critérios mais seguros para a aplicação do direito - especialmente de uma legislação finalística, como a encontrada em campos como o direito econômico e o administrativo. 998 Mais especificamente, processos administrativos em que as decisões possuem destinatários identificados: os que fizeram parte do processo. 999 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 215. 1000 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 215. Neste ponto parece haver um contato entre a denomina “representação imparcial do juiz” de Habermas e a “representação argumentativa” de Alexy. Ambos pautam-se pela noção de imparcialidade que resulta, em última análise, da observância das regras do discurso. 1001 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 215-216. 1002 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 216. A distinção entre discursos de aplicação e de fundamentação e a identificação atingidos como partes ou participantes, respectivamente, demonstra o quanto a questão da produção de um direito regulatório - normas gerais e abstratas emitidas por agências reguladoras - é ambivalente. Por ora, importa reconhecer, com Habermas, que “estatutos, ordens, prescrições e medidas que contradizem uma lei” são nulos. Ibid. O tema será retomado. Os discursos pragmáticos, que disciplinam a atividade administrativa, “são talhados para a escolha das tecnologias e estratégias apropriadas para a concretização dos valores e fins existentes na legislação.”1003 Há na separação funcional dos poderes uma nítida primazia da legislação democrática, ligada ao poder comunicativo como seu fundamento, tendo no poder administrativo seu executor. A Administração deve estar, desta forma, “retroligada” ao poder comunicativo.1004 “O poder administrativo só se regenera a partir do poder comunicativo produzido conjuntamente pelos cidadãos.”1005 Observa Habermas, entretanto, que a tradicional função de mera aplicação do poder administrativo no quadro das leis, reservada ao Poder Executivo, baseada num conceito estrito de lei - “lei como norma geral que obtém validade através do assentimento da representação popular”1006 - perde sua atualidade “à medida que as leis deixam de ser vistas como programas condicionais, assumindo a forma de programas finalísticos.” Estas leis contêm - este ponto é essencial à tese que se apresenta “cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados ou concretos, finalidades que servem de medida, que abrem à administração um amplo espaço de opinião.”1007 Uma administração pública pautada pelo intervencionismo - planejadora, executora, configuradora, em suma: reguladora - “não pode mais restringir-se à implementação 1003 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 232. 1004 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 233. 1005 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 216. 1006 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 235. 1007 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 236. Este ponto merece uma especial atenção. As leis finalísticas, na definição de Habermas, enquadram-se no sentido amplo de Alexy, para quem policies e princípios se equivalem. Se as leis de índole administrativas, que fixam políticas públicas, são leis finalísticas, que vem a ser aplicadas com a utilização de argumentos pragmáticos (eficiência, tecnologia a serviço do atingimento de um fim), há menos contradições entre as teorias dos autores do que parece à primeira vista. Note-se, como ressalta Marina Velasco (VELASCO, Marina. “Habermas, Alexy e a razão prática kantiana.” In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Org.). Direito, moral, política e religião nas sociedades pluralistas: entre Apel e Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, pp. 31-32), que Habermas, seguindo linha de Dworkin, distingue princípios e regras de objetivos (diretrizes, policies) (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 258). Princípios e regras possuem natureza deontológica, e objetivos, natureza teleológica. Ora, possuindo natureza teleológica, nada impede que sejam ponderados. A legislação, como função que dá a conformação do próprio Estado, faz repercutir suas decisões em todos os âmbitos do Estado de direito - e em seus discursos. Ressalta Habermas, na esteira de Dworkin, que “as justificações externas são possíveis, porque o próprio direito vigente já incorporou conteúdos teleológicos e princípios morais, assimilando os argumentos da decisão do legislador político.” A colocação de objetivos têm seu lugar genuíno no processo de legislação. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 257. técnica de normas gerais e suficientemente determinadas sem levar em conta questões normativas.”1008 Ressalta Habermas que a Administração - em decorrência do espaço de decisão deixado pelo legislador1009 - realiza escolhas que vão além de meras definições técnicas ou de execução competente. Em razão destas atribuições, passa a ser necessário um modelo de legitimação da Administração Pública.1010 Neste processo de legitimar a administração, surgem tentativas de “embutir novas formas de participação e de estruturas do discurso no decurso da decisão administrativa, a fim de afastar o perigo de uma autoprogramação indesejável.”1011 Os atingidos passam, desta forma, a ter novos direitos procedimentais frente à burocracia, como a participação em “processos de escuta” - audiência pública e consulta popular.1012 Somente o Legislador, adverte Habermas, “tem o poder ilimitado1013 de lançar mão de argumentos normativos e pragmáticos, inclusive os constituídos através de negociações eqüitativas”.1014 A Administração, diferentemente do Legislativo ou do Judiciário, não constrói (Legislativo), nem reconstrói (Judiciário) argumentos normativos: As normas sugeridas amarram a persecução de fins coletivos a premissas estabelecidas e limitam a atividade administrativa no horizonte da racionalidade pragmática. Elas autorizam as autoridades a escolher tecnologias e estratégias de ação, com a ressalva de que não sigam interesses ou preferências próprias - como é o caso de sujeitos do direito privado. [...] Na medida em que, por exemplo, a implementação de programas teleológicos sobrecarrega a administração com tarefas relacionadas com o aprimoramento do direito e aplicação da lei, a base de legitimação das estruturas administrativas tradicionais não é mais suficiente. Então a lógica da divisão de poderes precisa ser realizada em estruturas modificadas - por exemplo, através da introdução de formas de comunicação e de participação 1008 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 237. 1009 Como se vê em Alexy, a legislação tem um papel relevante na fixação da argumentação: a racionalidade da argumentação estará sempre relacionada à racionalidade da legislação. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 276. 1010 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 237. 1011 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 238. É modelo de autoprogramação a administração expertocrática, em que agentes especializados - quer seja pelo tratamento repetitivo do mesmo problema, quer seja por treinamento apropriado -, membros de autarquias administrativas, pretendem alcançar resultados que legisladores - generalistas que são - não conseguiriam alcançar, em termos de eficiência. 1012 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 238. 1013 Em termos: poderes ilimitados de escolha, porém pautados pela Constituição. 1014 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 239. correspondentes ou através do estabelecimento de processos judiciais ou parlamentares, de processos da formação de compromissos, etc. 1015 Por “estabelecimento de processos judiciais ou parlamentares” realizados pela administração pública, entende-se processos administrativos semelhantes aos que ocorrem no âmbito do Poder Judiciário, ou semelhantes aos que ocorrem no âmbito do Poder Legislativo. Na primeira hipótese, caso almejem uma decisão individual legítima, com a participação do atingido pela norma individual; na segunda hipótese, para a formação de uma norma geral legítima, com a participação de todos os possíveis atingidos pela norma geral - num modelo de Democracia Deliberativa. Adverte Habermas que a partir do momento em que se estabelecem políticas públicas que não atendam às “condições da gênese democrática do direito, perdem-se os critérios que permitiriam avaliá-las normativamente.”1016 A administração pública poder administrativo - substitui-se às “medidas de legitimidade da regulação jurídica” ao poder democrático.1017 O direito instrumentalizado politicamente (gerado democraticamente) é açambarcado por um sistema administrativo independente da lei. A “formação política da opinião e da vontade” e a “implantação eficiente” são tomadas como duas possibilidades - excludentes - de atuação na estrutura social.1018 Aponta o autor, reconhecendo a complexidade a incerteza que impera no atual estágio da sociedade,1019 que a partir do momento em que as tomadas de decisão se tornaram contingentes,1020 há um desenraizamento do direito produzido pelo Poder Legislativo, afastando-se o direito “cada vez mais do terreno da normatização legítima.”1021 Afastado de processos de livre articulação das necessidades, ocorridos no 1015 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 239-240. 1016 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 171. 1017 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 172. 1018 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 172. 1019 Tema do capítulo II desta tese. 1020 Günther identifica este movimento de atribuição de competências à Administração: “É que as situações mudam mais rapidamente e, à medida que aumenta o conhecimento, aparecem de modo ainda mais complexo do que acreditava Aristóteles, ao atribuir à phronesis a tarefa de mediar entre contingencial e a meta de vida boa. Por isso, é fácil de se compreender que se transfira a decisão a respeito de sinais característicos situacionais, que sejam relevantes para haver sucesso, não a um discurso de aplicação, mas a ‘peritos’ que sejam competentes no ‘assunto’ - por exemplo, a uma administração pública.” GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 363. 1021 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 172. Para o autor, não há, entretanto, um inevitável solapamento do Estado de direito - não se deve adotar um discurso fatalista a seio do Poder Legislativo, a face normativa da administração se ressente de parâmetros que ela não pode produzir, passando, desta forma, a se autoprogramar. Nesta autoprogramação, adverte Habermas: As instâncias estatais que instrumentalizam direitos para realizar fins coletivos tornam-se autônomas, entrando numa parceria com seus clientes mais poderosos e formando uma administração de bens coletivos, sem subordinar a escolha dos fins ao projeto de realização de direitos inalienáveis. Hoje em dia é impossível desconhecer tais tendências que levam à autonomização do poder ilegítimo.1022 Habermas identifica dois pontos centrais como pivôs da atual crise do Estado de direito: “A lei parlamentar perde cada vez mais seu efeito impositivo e o princípio da separação dos poderes corre perigo.”1023 A lei, elaborada pelo Poder Legislativo, como dito linhas atrás, para subvencionar a Administração do Estado do Bem-Estar social, que assume “tarefas de previsão, de elaboração de infra-estrutura, de planejamento e de previsão de riscos” age voltada para o futuro, cobrindo grandes espaços.1024 O elevado grau de complexidade e de incerteza, que se encontra na atual prática de administração, revela que as respostas possíveis não podem ser captadas plenamente pelo pensamento tampouco determinadas de modo conclusivo. Não funcionam mais os tipos clássicos de leis que estabeleciam nos fatos os pressupostos para uma atuação pré-definida. Desta constatação, ocorre que: O leque das formas do direito foi ampliado através de leis relativas a medidas, leis experimentais de caráter temporário e leis de regulação, de prognóstico inseguro; e a inserção de cláusulas gerais, referências em branco e, principalmente, de conceitos jurídicos indeterminados na linguagem do legislador, desencadeou a discussão sobre a ‘indeterminação do direito’, a qual é motivo de inquietação para a jurisprudência americana e alemã.1025 este respeito. 1022 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 173. O autor de refere ao risco de captura dos entes que regulam a economia, como as agências reguladoras. Adverte que as escolhas públicas - definição de finalidades - devem ser feitas pelo Poder Legislativo. A fala do autor não se distancia da prática da administração pública brasileira, com a exposição desta dura realidade em Comissões Parlamentares de Inquérito na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. 1023 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 173. Este ponto específico exercício de poder normativo pela administração pública - foi delineado no capítulo I desta tese. Cabe, neste passo, o registro da postura de Habermas em razão das conseqüências que traz para a adoção de processos de consulta popular e de audiência pública. A tese que se apresenta se serve de uma terminologia abrangente, que equipara, na linha proposta por Alexy, políticas públicas a direitos fundamentais em sua aplicação otimizada: diretrizes/objetivos/princípios. 1024 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 174. 1025 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 174. A inquietação - identificada por Habermas - surge do vácuo constitucional e legislativo na normatização da Administração.1026 Por não haver tratamento constitucional ou legal de determinada matéria administrativa, não há que se falar em reserva legal; e sem esta, restaria impossibilitado o controle judicial dos atos administrativos normativos.1027 Nestes espaços, existe uma autoprogramação da administração, que procede de acordo com máximas ou princípios, como o da proporcionalidade, ou cláusulas que atenuam as exigência excessivas (razoabilidade) ou reduzem as medidas suscetíveis de conter injustiças, máximas e cláusulas que não permitem um tratamento normativamente neutro dos textos legais.1028 Com o advento do que se convencionou chamar de sociedade de risco “riscos inerentes à força nuclear ou à técnica genética”, por exemplo -, os perigos “ultrapassam as capacidades analíticas e de prognose de especialistas e a capacidade de elaboração, vontade de ação e velocidade de reação da administração”, ocorrendo uma radicalização dos problemas de segurança jurídica e de submissão à lei - problemas já existentes no Estado do Bem-Estar Social. Habermas diagnostica a atual crise do Estado de direito, sustentando que o crescimento das tarefas de regulação traz certa independência do poder administrativo em relação ao legislador - menosprezado -, e também, enreda “o Estado em negociações com sistemas funcionais da sociedade, como grandes organizações, associações, etc., que se subtraem, em larga escala, a uma regulação imperativa”, não se submetendo a sanções, e sem nenhum dever de obediência à “regulação indireta” promovida pela administração.1029 A soberania do Estado é solapada por “corporações socialmente poderosas” que se associam ao exercício público do poder, sem serem legitimadas para tanto. De igual modo, os 1026 No Brasil, embora a Constituição de 1988 seja uma Constituição dirigente, e exista uma enormidade de leis vigentes, não se tratou ainda de elaborar um marco regulatório que estabeleça regras claras em setores de infra-estrutura. A constatação de Habermas - acerca do direito alemão - serve para o Brasil, no campo do Direito Regulatório. 1027 A postura de Habermas, neste ponto, merece esclarecimentos. O fato de inexistir lei acerca de determinado tema não autoriza a Administração a normatizá-lo. Diferentemente, no espaço deixado pelas leis de baixa densidade normativa que estabelecem diretrizes/objetivos/princípios os poderes deixados à administração para a implementação destes comandos é bastante amplo. A constatação de Habermas aplica-se a esta segunda hipótese. 1028 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 176. Sustenta-se nesta tese que em normas finalísticas, com a fixação de objetivos (bens coletivos, policies), a racionalidade teleológica da regra da proporcionalidade cumpre o papel de maximizar o comando legal. Não haveria, portanto, qualquer desvirtuamento das escolhas (normativas) postas pelo legislador democrático. 1029 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 177. partidos políticos passam a formar cartéis autônomos, que monopolizam o núcleo do sistema político, sem se submeterem ao esquema de separação entre os poderes. A crise do Estado de direito - identificada pelo crescente poder de emissão de normas pelo Poder Executivo1030 e pela relativização da separação entre as três funções (poderes) do Estado - não implica no abandono do Estado de direito,1031 tampouco na aceitação da inevitabilidade deste movimento: “O raciocínio segundo o qual a complexidade das novas tarefas de regulação ultrapassa o medium do direito enquanto tal, não é conclusivo. Pois a força de integração social do direito só seria superada estruturalmente, caso a crise do Estado de direito se revelasse sem saída.”1032 Habermas, reconhecendo a crescente complexidade das tarefas do Estado, identifica uma especialização crescente do Estado de direito, em direção ao que denomina de Estado prevencionista ou securitário:1033 A domesticação do poder do Estado absolutista, a superação da pobreza produzida pelo capitalismo e a prevenção contra os riscos gerados pela ciência e pela técnica fornecem os temas e os fins: segurança jurídica, bemestar social, e prevenção. E as formas do Estado ideal - o Estado de direito, o Estado social e o Estado securitário - devem estruturar-se de acordo com esses objetivos. [...] A administração intervencionista do Estado de direito liberal maneja o direito, ao passo que a atividade estruturadora do Estado 1030 Cabe uma nota acerca do que se convencionou denominar de “presidencialismo de coalizão”: Leciona Filomeno Moraes: “Na verdade, sob a nova ordem constitucional, desenvolveu-se um padrão de governança que a literatura denomina ‘presidencialismo de coalizão’ (Abranches, 1988 e 2001; Figueiredo e Limongi, 1999; Santos, 2001), cujo principal eixo de impacto está na relação entre os Poderes Executivo e Legislativo. E, como afirma Abranches (2001): ‘Por ser presidencialismo, esse regime de governança reserva à presidência um papel crítico e central, no equilíbrio, gestão e estabilização da coalizão. O presidente precisa cultivar o apoio popular - o que requer a eficácia de suas políticas, sobretudo as econômicas - para usar a popularidade como pressão sobre sua coalizão; ter uma agenda permanentemente cheia, para mobilizar atenção da maioria parlamentar e evitar sua dispersão; ter uma atitude proativa na coordenação política dessa maioria, para dar-lhe direção e comando.’ A Constituição Federal dotou o Presidente da República de possibilidades muito grandes de influência na legislação, de muitos mecanismos de intervenção no processo legislativo. Na verdade, os poderes de agenda do Presidente da República vão desde a capacidade para editar medidas provisórias com força de lei, o que permite ao presidente implementar sua agenda, sobretudo de natureza econômica e administrativa, superando possíveis obstáculos congressuais. Por outro lado, a constante utilização das medidas e a necessidade de reeditá-las periodicamente para manter sua continuidade normativa acabam por congestionar a pauta dos trabalhos legislativos, contraindo o tempo destinado ao exame de outras matérias, possivelmente de origem no próprio Legislativo (Santos, 2000). MORAES, Filomeno. Executivo e Legislativo no Brasil pós-constituinte. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0102-88392001000400006&script=sci_arttext com acesso em 07/06/2007. 1031 Não autoriza, por exemplo, a adoção de um Estado de Exceção permanente, como esclarecido no capítulo II desta tese. 1032 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 178. 1033 O que Habermas denomina de Estado prevencionista ou securitário coincide com a proposta de Ricardo Lobo Torres de Estado Subsidiário (LOBO TORRES, Ricardo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 246), bem ainda com a permanente necessidade de decidir do que se denominou de Estado Regulador numa concepção mais ampla, relacionada prioritariamente ao aspecto econômico. social e a regulação indireta do Estado prevencionista têm que apoiar-se cada vez mais noutras fontes: no dinheiro e em realizações estruturais, em informações e conhecimentos de especialistas.1034 Os problemas “são cada vez menos de natureza jurídica”, mas tal fato “não significa que a correspondente prática de administração se subtraia, cada vez mais às regulações jurídicas.”1035 Os “novos riscos em matéria de segurança” - a configuração da sociedade de risco global, inclusive econômicos, como já se demonstrou - agudiza o velho problema do direito tipificador de todas as hipóteses cujos fatos a estas se subsumiriam, já identificado no âmbito do Estado do Bem-Estar social. Além da proteção jurídica individual, surge a necessidade de implantar uma proteção jurídica coletiva - especialmente, difusa. Este desengate entre o poder administrativo - cada vez mais autônomo - e as normas do Estado de direito oriundas do Legislativo traz conseqüências: a administração tem que abandonar a neutralidade no trato com as normas, previstas no esquema clássico, e, na medida em que assume tarefas do legislador político - o poder de emissão de normas jurídicas -, passando a desenvolver programas próprios, “ela tem que decidir por conta própria a questão da fundamentação e da aplicação de normas. Todavia, essas questões práticas não podem ser decididas sob pontos de vista da eficácia, pois exigem uma abordagem racional de argumentos normativos.”1036 Para Habermas, o que mais “irrita”, na situação atual, é o fato de que a administração “lança mão, em larga escala e a qualquer hora, de argumentos normativos, os quais, segundo o esquema clássico da separação entre os poderes, estavam reservados à justiça e ao legislador parlamentar.”1037 Necessário, portanto, a institucionalização de novas práticas de legitimação. O paradigma procedimental de direito e de Estado parte do pressuposto que o modelo de Estado liberal e social de direito interpretam e realizam o direito de modo 1034 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 178-179. A postura ideológica de Habermas, originariamente marxista, identificada pelo mesmo como socialista, permite entrever sua filiação ao que se convencionou denominar de esquerda. Reafirme-se que a adoção da Teoria de Habermas, nesta tese, deve-se à sua proposta de produção de um direito normativamente correto, válido, legitimado por sua gênese democrática. Não se compartilha da desconfiança que o autor apresenta, reiteradamente, da ciência e da tecnologia. 1035 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 179. 1036 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 180. 1037 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 182. “concretista” - de liberdades negativas asseguradas positivamente - “ocultando a relação interna que existe entre autonomia privada e pública”.1038 No modelo procedimental, as liberdades positivas são redimensionadas. Habermas ao tratar da possibilidade de delegação legislativa do Parlamento à Administração, toca no ponto que é essencial à compreensão da tese que se desenvolve: 1039 se o Parlamento introduz o que denomina de “direito regulativo, tem que tomar cuidados para compensar, de forma legítima, a insuficiente força de imposição de que dispõe tal direito na justiça e na administração.”1040 O paradigma procedimentalista do direito, como já se demonstrou, “procura proteger, antes de tudo, as condições do procedimento democrático.” 1041 Na medida em que os programas contidos nas leis dependem de uma concretização que contribui para desenvolver o direito, “os discursos acerca da aplicação do direito têm que ser complementados, de modo claro, por elementos dos discursos de fundamentação. Esses elementos de uma formação quase-legisladora da opinião e da vontade necessitam certamente de outro tipo de legitimação.”1042 Essencial a formação discursiva da vontade através de um procedimento democrático - Democracia Deliberativa. Em razão do domínio de uma Administração sobrecarregada com tarefas regulativas - emissão de normas gerais -, que não pode mais se limitar a executar de forma neutra as leis no quadro de atribuições normativas claras, a Administração, ao “implementar programas de leis abertos não pode abster-se de lançar mão de argumentos normativos”, devendo desenvolver, para tanto, “formas de comunicação e procedimentos que satisfaçam às condições de legitimação do Estado de direito.” 1043 Estas práticas não devem ser tomadas como sucedâneos de proteção jurídica1044 - como 1038 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 182. 1039 Habermas põe a seguinte questão: Será que o legislador parlamentar pode, através de uma descentralização de competências legislativas especificadas funcionalmente, desobrigar-se de decisões que ele mesmo não poderia tomar com suficiente determinação?” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 183. 1040 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 183. Daí a necessidade de institucionalização de procedimentos que garantam a produção legítima de um direito regulatório. 1041 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 183. 1042 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 184. 1043 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 184. 1044 Para Habermas, a participação democrática num modelo de cidadania ativa tem alcance maior que a publicidade ou a transparência, por estar a serviço de um novo paradigma de direito, e não apenas garantir no modelo de Estado e de direito liberal -, mas “sim como processos destinados à legitimação de decisões, eficazes ex ante, os quais, julgados de acordo com seu conteúdo normativo, substituem atos da legislação ou da jurisdição.”1045 Nestes processos de legitimação, que devem tomar parte os atingidos, os indivíduos ou grupos menos favorecidos deverão ser capacitados para que possam, em igualdade de condições, tematizar seus interesses no processo de decisão do Estado. O Estado tem que estar apto a captar as decisões políticas importantes e impô-las, servindo-se, para tanto, da vigilância da esfera pública: Mesmo no caso em que ele [Estado] aparece como um conselheiro inteligente ou como um supervisor que coloca à disposição um direito procedimental, a normatização do direito tem que continuar referida, de modo transparente, controlável e reconstituível, aos programas do legislador. Não existem receitas capazes de levar a isso. E, para impedir, em última instância, que um poder ilegítimo se torne independente e coloque em risco a liberdade, não temos outra coisa a não ser uma esfera pública desconfiada, móvel, desperta e informada, que exerce influência no complexo parlamentar e insiste nas condições da gênese do direito legítimo.1046 Desta forma, Habermas expõe o que considera o núcleo do paradigma procedimentalista do direito: a combinação e a mediação entre a soberania do povo institucionalizada e a não-institucionalizada como a chave para entender a gênese democrática do direito. Os “fluxos comunicacionais” e a as “influências públicas que procedem da sociedade civil e da esfera pública política” são transformados em poder comunicativo, sendo fundamental o “cultivo de esferas públicas autônomas,1047 a participação maior das pessoas, a domesticação do poder da mídia,1048 e a função mediadora dos partidos políticos não-estatizados.”1049 A esfera pública funciona como a “ante-sala do complexo parlamentar”, de onde se originam os impulsos: “Ela exerce influência sobre o estoque de argumentos normativos, porém sem a intenção de a atuação satisfatória do paradigma liberal de cidadania. 1045 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 184-185. 1046 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 185. 1047 Instrumentalizada através de propostas plebiscitárias, de participação direta nas escolhas do Estado, tais como referendos, consultas, audiências públicas. 1048 Meios de comunicação com espaço de ação que “viabilize a sua independência em relação às elites políticas e funcionais, e os coloque em condição de assegurar o nível discursivo da formação pública da opinião, sem prejudicar a liberdade comunicativa do público que toma posição.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 186. 1049 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 186. Partidos não-estatizados no sentido colaboradores da formação da vontade é da educação políticas, que “deveriam distinguir-se pelo esforço em interpretar adequadamente as necessidades, em escolher temas relevantes, em descrever corretamente os problemas e em propor soluções melhores para os problemas.” Ibid., p. 187. conquistar partes do sistema político.”1050 Através dos “canais das eleições gerais” e de formas específicas de participação popular, a opinião pública exerce funções de autorização sobre o legislador, e de legitimação sobre a administração reguladora.1051 4.7. Democracia Deliberativa Por democracia, ensina Norberto Bobbio, “entende-se uma das várias formas de governo, em particular aquelas em que o poder não está nas mãos de um só ou de poucos, mas de todos, ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a monarquia e a oligarquia.”1052 Não há, em regra, conceitos jurídico-constitucionais de democracia, tampouco um modelo completo e acabado, mas apenas postulados fundamentais indispensáveis à sua configuração.1053 Habermas identifica como constitutivas mínimas de um modelo de política democrática, na esteira de Bobbio,1054 as seguintes características: a) participação política de um maior número de pessoas; b) regra da maioria em decisões políticas; c) liberdades de comunicação que assegurem a escolha entre diferentes programas e grupos dirigentes; d) proteção da esfera privada.1055 Postula Simone Goyard-Fabre que “a democracia tem que ser 1050 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 187. 1051 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 187. 1052 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 1. ed. 5ª. re. Brasília: Editora Brasiliense, 2005, p. 7. Bobbio adota, em sua classificação, a tradição do pensamento político clássico, que remonta a Aristóteles. BOBBIO, Norberto. Verbete: “Democracia”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. V. I. 5.ª ed. Brasília: Editora UNB, 2004, pp. 319-329. 1053 PEIXINHO, Manoel Messias. “Teoria democrática dos direitos fundamentais.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 135. 1054 Bobbio enumera as “regras do jogo” democrático em: BOBBIO, Norberto. Verbete: “Democracia”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. V. I. 5.ª ed. Brasília: Editora UNB, 2004, p. 327. 1055 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 27. Habermas refere-se a cinco exigências de Robert Dahl, preferíveis às modestas exigências de Bobbio, para que as decisões em processos democráticos possam adquirir obrigatoriedade (no sentido de legitimidade): “a) a inclusão de todas as pessoas envolvida; b) chances reais de participação no processo político, repartidas eqüitativamente; c) igual direito a voto nas decisões; d) o mesmo direito para a escolha dos temas e para o controle da agenda; e) uma situação na qual todos os participantes, tendo à mão informações suficientes e bons argumentos, possam formar uma compreensão articulada acerca das matérias a serem regulamentadas e dos interesses controversos.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 42-43. A obra referida por Habermas é: DAHL, Robert. Democracy and its critics. New Haven, 1989, p. 307. Robert Dahl enfrenta em obra mais recente a questão acerca das vantagens de desvantagens do “sistema majoritário” e do “sistema consensual” de escolha democrática: “The ideal solution, it seems to me, would be a political system that provides strong incentives for political leaders to search for the incessantemente recomeçada e remodelada”, sendo ela “o único regime aberto para o humanismo liberal, o único que, em face da ameaça totalitária, desenha-se, apesar de suas imperfeições, como um horizonte de esperança.”1056 Para tanto, aponta Gilberto Bercovici, “a democracia deve ser cumprida no cotidiano para a realização dos direitos fundamentais.”1057 Bobbio ressalta que a democracia adquire na atualidade um significado formal, representando um “método ou um conjunto de regras de procedimento para as constituições de Governo e para a formação das decisões políticas (ou seja, das decisões que abrangem a toda uma comunidade) mais do que uma determinada ideologia.”1058 A par da clássica distinção entre democracia participativa e representativa,1059 fundada na estrutura institucional da manifestação da vontade, a teoria política contemporânea identifica dois modelos de democracia, distintos em razão do procedimento em que suas decisões tão tomadas. No modelo agregativo, a democracia é vista como o somatório das opções e preferências pessoais da maioria. Ocorre a pura e simples agregação de preferências pessoais na escolha de candidatos ou de políticas que melhor convenham aos atores sociais do processo de escolha. A formação de decisões no modelo agregativo tanto tem lugar na democracia participativa quanto na democracia broadest feasible agreement before adopting a law or policy and yet allows the decisions to be made, if need be, by majority vote always, of course, within the limits set by the need to preserve fundamental democratic rights. No majority should have the right, moral or constitutional to foreclose decisions by future majorities.” DAHL, Robert. How democratic is the American Constitution? New Heaven: Yale University Press, 2002, p. 148. Dois pontos são ressaltados por Dahl em sua teoria democrática: a) as oportunidades de expressar a opinião e vontade devem ser reais, efetivas, em um procedimento que estabelece condições para tanto. O autor refere-se, como exemplo de aparente atribuição de direito de participação em decisões políticas, à permissão de manifestação de todos os participantes em uma reunião, mas por dois minutos para cada participante. Tal atribuição, por certo, restringe a efetiva participação; b) os recursos oferecidos aos participantes devem ser equivalentes, pois somente assim os cidadãos poderão aproveitar a oportunidade e exercer seus direitos. Ibid., pp. 151-153. Da lição de Dahl vem à mente a campanha presidencial de 1989, em que um dos candidatos, um médico cardiologista, com quinze segundos disponíveis, mal tinha tempo de dizer seu nome na propaganda eleitoral gratuita, tornando-se, por seu bordão, motivo de chacota. 1056 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? Tradução: Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 253. 1057 BERCOVICI, Gilberto. “Constituição e política: uma relação difícil.” In: Lua Nova, n. 61, 2004, p. 23. 1058 BOBBIO, Norberto. Verbete: “Democracia”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. V. I. 5.ª ed. Brasília: Editora UNB, 2004, p. 327. A democracia estabelece as “regras do jogo”, mas não o que decidir. 1059 Leciona Bobbio que a democracia propriamente dita - sem outra especificação - coincide com a democracia direta, participativa, que era o ideal de Rousseau. Através de escritos liberais - Constant, Tocqueville, e Mill - foi se consolidando a idéia de que a única forma de democracia compatível com o Estado liberal é a democracia representativa, ou parlamentar, onde “o dever de fazer leis diz respeito, não a todo o povo reunido em assembléia, mas a um corpo restrito de representantes eleitos, por aqueles cidadãos a quem são reconhecidos direitos políticos.” BOBBIO, Norberto. Verbete: “Democracia”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. V. I. 5.ª ed. Brasília: Editora UNB, 2004, pp. 323-324. representativa. O processo político de escolha, numa ou noutra forma de exercício, privilegia os interesses particulares dos emitentes da vontade. Ainda assim, há de se falar em democracia, porém deficiente, por se afastar do ideal de justiça subjacente à democracia.1060 O modelo deliberativo, diferentemente, privilegia a qualidade das decisões tomadas num Estado Democrático, dando especial ênfase à deliberação.1061 É posto como uma forma de razão prática, merecendo especial relevo no processo a argumentação, tendo sempre em vista o alcance do bem comum. Observa Joshua Cohen que a deliberação almeja alcançar um consenso racionalmente motivado: “Encontrar razões que sejam convincentes a todos aqueles comprometidos em atuar para a produção de resultados, decorrentes estes de um processo livre e racional de avaliação de alternativas entre iguais.”1062 A Democracia Deliberativa passa a figurar na agenda dos principais cientistas políticos do cenário mundial – especialmente norte-americano - a partir de 1990,1063 com uma súbita mudança no enfoque com que um substancial número de autores passou a analisar a democracia. Leciona Pablo Sanges Ghetti que deliberar “é hesitar decidir imediatamente, é submeter-se radicalmente ao outro, à alteridade, é reconhecer o caráter assimétrico da política e os limites da racionalidade e o caráter efêmero de toda e qualquer decisão.”1064 Não há consenso firmado acerca da integralidade dos elementos da Democracia Deliberativa. Os enfoques apresentados por seus teóricos são díspares, existindo diversos modelos normativos de Democracia Deliberativa. Não há, entretanto, desvirtuamento de suas idéias centrais: a razão prática, a argumentação, o consenso e, especialmente, o alcance da solução mais justa para o atingimento do bem comum. 1060 Neste sentido: RICHE, Flávio Elias. “Revisitando a deliberação pública.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 04-05. 1061 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 87. 1062 COHEN, Joshua. “Deliberation and democratic legitimacy.” In: Deliberative democracy: essays on reason and politics. Cambridge: The Mit Press, 1999, p. 75 apud RICHE, Flávio Elias. “Revisitando a deliberação pública.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 09. 1063 Informa Filipe Carreira da Silva que foi Joseph Bessette quem cunhou a expressão “democracia deliberativa”, ainda em 1980. SILVA, Filipe Carreira da. Democracia deliberativa: avaliando seus limites. Disponível em: www.ces.uc.pt/publicaçoes/oficina/203/203.pdf, com acesso em 22/11/2004. 1064 GHETTI, Pablo Sanches. “Às margens da deliberação: notas sobre uma política deliberativa por vir.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 50. Em apertada síntese, pode-se identificar as linhas mestras do raciocínio de alguns de seus teóricos: James Bohman adota o que denomina de modelo dialógico, vislumbrando a possibilidade de parcialidade num processo deliberativo que objetive a troca de razões para a solução de situações problemáticas que não podem ser resolvidas sem coordenação e sem cooperação social, sendo o sucesso deliberativo representado pela efetiva contribuição dos participantes no resultado.1065 Iris Marion Young abraça a idéia de democracia comunicativa, defendendo o maior grau possível de inclusão, proporcionando uma efetiva possibilidade de cada membro influenciar no pensamento dos demais;1066 Chantal Mouffe vê na deliberação o campo de disputas vibrantes e passionais, em que inimigos se aceitam e se toleram, sendo “amigavelmente inimigos”, atraindo a atenção dos cidadãos, potencializando a democracia que passa por um momento de indiferença e de apatia;1067 Gary Remer aponta a deliberação como um discurso persuasivo e emotivo voltado para o povo, talhado para lidar com um público inculto cujas paixões são seu motor central, realçando o caráter agonístico da deliberação, numa disputa para se alcançar maior prestígio na arena pública;1068 Cass Sustein, reconhecendo a fragmentação da sociedade norte-americana, aponta para a oitiva de todos os grupos de interesse, dando-lhes a oportunidade de expor suas razões e argumentos, caracterizando essa democracia heterogênea em razão de sua moralidade interna, resultante da proteção de uma série de direitos individuais;1069 Stephen Griffin 1065 BOHMAN, James. Public deliberation: pluralism, complexity and democracy. Cambridge: The Mit Press, 1996; BOHMAN, James. “The coming age of deliberative democracy.” In: The journal of political philosophy. Vol. 06, n.º 4, 1998; apud RICHE, Flávio Elias. “Revisitando a deliberação pública.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 18-24. Interessante notar que Bohman enfraquece o consenso das teorias procedimentais (Habermas), pondo-o como um “consenso suficiente” para que os participantes dêem continuidade ao processo de cooperação. 1066 YOUNG, Iris Marion. Comunicação e o outro: além da democracia deliberativa. In: Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UNB, 2001; Id. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2002; Id. Justice and the politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 1990; apud RICHE, Flávio Elias. “Revisitando a deliberação pública.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 25– 30. 1067 MOUFFE, Chantal. “Deconstruction, pragmatism and the politics of democracy.” In: MOUFFE, Chantal. (Org.) Deconstruction and pragmatism. Londres: Verso, 1999; MOUFFE, Chantal. “Carl Schmitt and the paradox of liberal democracy.” In: MOUFFE, Chantal. (Org.) The challenge of Carl Schmitt. Londres: Verso, 1999; MOUFFE, Chantal. The democratic paradox. Londres: Verso, 2000, apud GHETTI, Pablo Sanches. “Às margens da deliberação: notas sobre uma política deliberativa por vir.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 39-43. 1068 REMER, Gary. “Political oratory and conversation. Cicero versus deliberative democracy.” In: Political Theory, vol. 27, n.º 1, 1999 apud GHETTI, Pablo Sanches. “Às margens da deliberação: notas sobre uma política deliberativa por vir.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 47-50. 1069 SUSTEIN, Cass R. Designing democracy – what constitution do. Oxford: Oxford University Press, 2001 apud VIEIRA, José Ribas. “A estrutura constitucional e a democracia deliberativa: o contexto vislumbra a responsabilidade do Estado na criação e efetivação dos direitos civis, reconhecendo a existência de arenas democráticas prontas para decidir em matéria de direitos, criando e efetivando os direitos, numa democracia de direitos civis; 1070 Joshua Cohen formula um procedimento ideal de deliberação, apresentado como modelo para instituições públicas, em que a vida política de uma sociedade seja regulada por fóruns de deliberação coletiva tendentes a alcançar um consenso racionalmente motivado, resolvendo-se a questão, na hipótese deste não ser alcançado, com o auxílio da regra da maioria;1071 Joseph Bessette identifica a Democracia Deliberativa como um processo racional de decisão coletiva, estabelecido já pela Convenção Constitucional de 1787, sendo o Congresso o principal local de deliberação dos Estados Unidos da América, num modelo de democracia representativa;1072 Jon Elster trabalha com as idéias de racionalidade e de imparcialidade, sem excluir a lógica do voto e da negociação, apontando a assembléia constituinte como fórum propício para a eleição de propostas políticas concretas;1073 Seyla Benhabib entende que a racionalidade se apóia no processo construtivo do discurso, em que as próprias normas sobre o procedimento deliberativo são objeto de deliberação, dando especial relevo à motivação, à publicidade e ao reexame das decisões;1074 Carlos Santiago Nino identifica na justificação a dimensão qualitativa e a garantia da imparcialidade dos atores envolvidos: os direitos são o resultado do processo democrático garantido por direitos a priori, numa relação de circularidade que se auto-alimenta.1075 brasileiro.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 154-157. 1070 GRIFFIN, Stephen M. “Judicial Supremacy and equal protection in a democracy rights.” In: Journal of constitutional law. University of Pennsylvania, vol. 4, Jan. 2002, n.º 2 apud VIEIRA, José Ribas. “A estrutura constitucional e a democracia deliberativa: o contexto brasileiro.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 157-159. 1071 COHEN, Joshua. “Deliberation and democratic legitimacy.” In: HAMLIN, Alan; PETTIT, Philip (Orgs.). The good polity – normative analysis of the State. Oxford: Blackwell, 1989; apud TORRES, André de A. “Resenhas.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 221-230. 1072 BESSETTE, Joseph. The mild voice of reason: deliberative democracy and American national government. Chicago: The University of Chicago Press, 1994 apud CORDEIRO, Alexandre Delduque. “Resenhas.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 231-235. 1073 ELSTER, Jon. Deliberative democracy. New York: Cambridge University Press, 1998 apud PEREIRA, Guilherme; ESPÌRITO, Filomeno. “Resenhas.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 236-239. 1074 BENHABIB, Seyla. “Democratic moment and the problem of difference.” In: BENHABIB, Seyla. Democracy and difference – contesting de boundaries of the political. New Jersey: Princeton University Press, 1996 apud CALAZANS, Paulo Murilo. “Resenhas.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 240-246. 1075 NINO, Carlos Santiago. The constitution of deliberative democracy. New Haven: Yale University Press, 1996 apud FERNANDES, Bianca Stamato. “Resenhas.” In: VIEIRA, José Ribas (Org.) et alli. Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 253-260. Leciona Cláudio Pereira de Souza Neto que: Duas são as matrizes principais da democracia deliberativa: a procedimental, de Habermas, e a substantiva, de Rawls. A primeira entende que a deliberação deve estar aberta quanto a resultados, se obrigando apenas a respeitar as suas ‘condições procedimentais’; a segunda, que a deliberação deve promover a aplicação de princípios justificados previamente através de um procedimento monológico de construção, estando, portanto, parcialmente fechada quanto aos resultados.1076 John Rawls, lastreado no liberalismo político em que propõe um consenso razoável de doutrinas abrangentes,1077 apresenta sua proposta de Democracia Deliberativa, no estudo “A idéia de razão pública revista”, inserido na obra O direito dos povos.1078 As perguntas “torturantes” que norteiam o autor são as seguintes: “A democracia e as doutrinas abrangentes, religiosas ou não, podem ser compatíveis? Se podem, como?” Para respondê-las, o autor identifica três elementos essenciais em sua teoria democrática: a idéia de razão pública; uma estrutura de instituições democráticoconstitucionais que especifique o cenários dos corpos legislativos deliberativos; e o conhecimento e a vontade dos cidadãos em geral “de seguir a razão pública e concretizar o seu ideal da conduta política.”1079 Como implicações imediatas destes três elementos aponta o financiamento público de campanhas eleitorais e o estabelecimento de ocasiões públicas para a “discussão ordenada e séria de questões fundamentais e de questões de política pública.”1080 A deliberação pública deve ser possibilitada e reconhecida como uma característica básica da democracia, “livre da maldição do dinheiro.”1081 Essencial para compreensão do modelo de democracia de Rawls sua concepção de razão pública, impregnada de valores, de conteúdo.1082 Para o autor, um 1076 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 295. É interessante observar, entretanto, as limitações impostas pela aceitação dos direitos fundamentais propostos na teoria de direito de Habermas, o que delimita, para o bem, os resultados da democracia deliberativa procedimental. Para Habermas não existe nenhum direito legítimo sem estes direitos fundamentais. 1077 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 226. 1078 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 173-235. 1079 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 183. 1080 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 183. 1081 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 184. 1082 Esclarece Cláudio Pereira Souza Neto: “Esse atrelamento da deliberação a princípios de justiça previamente justificados é o aspecto distintivo do modelo substantivo de democracia deliberativa.” SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 120. cidadão participa da razão pública quando delibera num contexto de uma concepção política de justiça que considere sinceramente como a mais razoável, “uma concepção que expresse valores políticos dos quais também possamos pensar razoavelmente que outros cidadãos, como livres e iguais, poderiam endossar.”1083 O conteúdo da razão pública é dado por uma família de concepções políticas liberais de justiça que adotam muitas formas de razão pública: “Destas, a justiça como eqüidade,1084 quaisquer que sejam seus méritos, é apenas uma.”1085 As concepções políticas liberais de justiça devem apresentar as seguintes características: Primeiro, os seus princípios aplicam-se às instituições políticas e sociais básicas (a estrutura básica da sociedade); segundo, elas podem ser apresentadas independentemente das doutrinas abrangentres de qualquer tipo (embora possam ser, naturalmente, sustentadas por um consenso de sobreposição razoável de tais doutrinas); e finalmente, podem ser elaboradas a partir das idéias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de um regime constitucional, tais como as concepções de cidadãos como pessoas iguais e livres, e da sociedade como um sistema justo de cooperação.1086 Habermas, diferentemente de Rawls, que vincula sua teoria democrática unicamente ao campo da filosofia política,1087 relaciona seu conceito de Democracia Deliberativa à Teoria Discursiva do Direito, à Ética do Discurso e à Teoria do Agir Comunicativo, apresentado sua proposta num quadro teórico bem demarcado de direito procedimental e de Estado, o que faz com que sua teoria seja preferível às demais, merecendo o devido aprofundamento. 1083 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 185. O autor refere-se a doutrinas abrangentes razoáveis. “Todas as doutrinas razoáveis afirmam tal sociedade com as suas correspondentes instituições políticas: direitos e liberdades básicos iguais para todos os cidadãos, incluindo a liberdade de consciência e a liberdade de religião. Por outro lado, as doutrinas abrangentes que não podem sustentar tal sociedade democrática não são razoáveis.” Ibid., p. 226. 1084 “A teoria da justiça como eqüidade tenta arbitrar entre estas tradições concorrentes, em primeiro lugar propondo dois princípios de justiça para servirem como guias na efetivação, pelas instituições básicas, dos valores da liberdade e da igualdade, e depois definindo um ponto de vista segundo o qual esses princípios aparecem como mais apropriados do que outros para a natureza dos cidadãos de uma democracia, se eles forem considerados como pessoas livres e iguais.” RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução: Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 207. 1085 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 185. 1086 RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 188-189. Esclarece o autor, ao tratar da questão do aborto, que “o liberalismo político não sustenta que o ideal da razão pública deva sempre levar a uma concordância geral de concepções e que não é uma falha que isso não aconteça. Os cidadãos aprendem e lucram com o debate e a discussão, e quando seus argumentos seguem a razão pública eles instruem a cultura política da sociedade e aprofundam sua compreensão mútua mesmo quando não se pode chegar a um acordo.” Ibid., p. 223. 1087 Neste sentido: SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 127. A teoria do direito de Habermas concentra-se na gênese e na legitimação do direito como decorrentes de uma política legislativa que envolve negociações e formas de argumentação, sob “condições exigentes, derivadas de processos1088 e pressupostos1089 da comunicação, onde a razão, que instaura e examina, assume figura procedimental.”1090 Em sua “sociologia reconstrutiva da democracia” apóia-se na premissa de que “o modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico,1091 quando não leva em conta a dimensão de validade do direito e a força legitimadora da gênese democrática do direito.”1092 A tensão entre facticidade e validade, na democracia, pode ser expressa pela tensão entre a “autocompreensão normativa” do Estado de direito e a “facticidade social dos processos políticos”.1093 A Teoria do Discurso, com sua correlata noção de Democracia Deliberativa, que constitui “o âmago do processo democrático”,1094 assimila elementos da teoria liberal - Estado como protetor de uma sociedade econômica - e da teoria republicana comunidade ética institucionalizada na forma de Estado -, “integrando-os no conceito de um procedimento ideal para a deliberação e a tomada de decisão.”1095 Leciona Habermas: Esse processo democrático estabelece um nexo interno entre considerações pragmáticas, compromissos, discursos de auto-entendimento e discursos da justiça, fundamentando a suposição de que é possível chegar a resultados racionais e eqüitativos. Nesta linha, a razão prática passa dos direitos humanos universais ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade para as regras do discurso e as formas de argumentação, que extraem seu conteúdo normativo da base de validade do agir orientado pelo 1088 Escalonamento de atos. Pressupostos da ética do Discurso, como as situações ideais de fala, ou as regras da argumentação de Alexy, adotadas por Habermas em sua Ética. 1090 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 09. 1091 Em sua proposta de democracia deliberativa, Habermas rebate as teorias empiristas, cunhadas por teorias realistas, como a teoria do sistema ou da ação, que reduzem a “impregnação normativa do poder político” ao poder social. A democracia segue a regra da maioria, que recomenda uma solução “aceitável para a minoria”, protegida por liberdades fundamentais clássicas, que protegem do risco da perpetuação de maiorias tirânicas: “A maioria, através do medo de perder seu poder, e a minoria, através da perspectiva de uma mudança de poder.” A teoria empírica busca fundamentar, em última instância, as regras de democracia liberal. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 10-17. 1092 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 09. 1093 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 10. 1094 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 18. 1095 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 19. 1089 entendimento e, em última instância, da estrutura da comunicação lingüística e da ordem insubstituível da socialização comunicativa.1096 A Teoria Discursiva do Direito compreende “os princípios do Estado de direito como uma resposta coerente à pergunta acerca do modo de institucionalização das formas pretensiosas de comunicação de uma formação democrática da opinião e da vontade.”1097 A política deliberativa depende da institucionalização dos processos e dos pressupostos comunicacionais, e também do “jogo entre deliberações institucionalizadas e opiniões públicas que se formaram de modo informal”, 1098 que implicam no reconhecimento de uma sociedade descentrada. A intersubjetividade de processos de entendimento ocorre, portanto, “através de procedimentos democráticos ou na rede comunicacional de esferas públicas políticas.”1099 Esclarece Habermas que: O fluxo comunicacional que serpeia entre formação pública da vontade, decisões institucionalizadas e deliberações legislativas, garante a transformação do poder produzido comunicativamente, e da influência adquirida através da publicidade, em poder aplicável administrativamente pelo caminho da legislação.1100 No modelo de democracia proposto por Habermas, sociedade e Estado são separados, seguindo o modelo liberal. Entretanto, para o autor, a sociedade civil, “base social de esferas públicas autônomas”, distingue-se também do poder econômico.1101 Desta distinção surge a necessidade de redimensionar o papel nas relações entre poder econômico (dinheiro), poder administrativo (administração, Estado) e solidariedade social (sociedade civil organizada e não-organizada). A força social da solidariedade deve desenvolver-se através de “um amplo leque de esferas públicas autônomas e de 1096 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 19. 1097 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 21. 1098 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 21. Como se percebe, Habermas enfraquece algumas noções do Republicanismo em seu modelo procedimental de Estado. Os valores e uma cidadania capaz de agir por si mesma são substituídos pela deliberação, devidamente institucionalizada. 1099 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 22. 1100 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 22. Em crítica ao modelo de democracia proposto por Joshua Cohen, aponta Habermas que a teoria do autor não esclarece questões como a vinculação entre a comunicação e poder (institucionalização do poder comunicativo em poder democrático), bem ainda, não enfrenta a relação existente entre as deliberações institucionalizadas e os processos de formação informal da opinião e da vontade na esfera pública. Ibid., p. 32 1101 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 22. O desacoplamento da sociedade civil do poder econômico é essencial à compreensão da Democracia Deliberativa de Habermas, justificando a inclusão de cidadãos em processos de consulta, não mais restritos aos grupos de interesse de um determinado setor econômico. processos de formação democrática da opinião e da vontade” institucionalizados, que deverão atingir os outros meios da integração social (poder econômico e poder administrativo) através do medium do direito.1102 Os “processos e pressupostos comunicativos” de formação da vontade e opinião democrática funcionam como a via mais importante para a racionalização discursiva das “decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei.”1103 Ressalta Habermas, entretanto, que somente o sistema político pode “agir”, constituindo um sistema parcial “especializado em decisões que obrigam coletivamente”, enquanto que as esferas públicas “formam uma rede ampla de sensores que reagem à pressão de situações problemáticas da sociedade como um todo e estimulam opiniões influentes.”1104 A opinião pública não pode dominar “por si mesma” o uso do poder administrativo, “mas pode, de certa forma, direcioná-lo.”1105 A Democracia Deliberativa “parte da imagem de uma sociedade descentrada, a qual constitui - ao lado da esfera pública política - uma arena para a percepção, a identificação e o tratamento de problemas de toda a sociedade.” 1106 A idéia de soberania do povo é interpretada de maneira intersubjetivista, fazendo valer-se como um poder comunicativo - soberania produzida comunicativamente.1107 Em síntese: Esse poder resulta das interações entre a formação da vontade institucionalizada constitucionalmente e esferas públicas mobilizadas culturalmente, as quais encontram, por seu turno, uma base nas associações de uma sociedade civil que se distancia tanto do Estado quanto da economia.1108 A política deliberativa, realizada através de procedimentos formais institucionalizados, ou informais, em redes de esfera pública política, depende, em última instância, das fontes do mundo da vida, que se formam e se regeneram quase sempre de modo espontâneo. 1102 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 22. 1103 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 23. 1104 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 23. 1105 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 23. 1106 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 24. 1107 Conforme já esclarecido neste capítulo, este poder comunicativo deriva das liberdades de comunicação garantidas pelos direitos fundamentais. 1108 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 24. Leciona Habermas que a chave da concepção procedimentalista da democracia consiste no fato de que “o processo democrático institucionaliza discursos e negociações com o auxílio de formas de comunicação às quais devem fundamentar a suposição da racionalidade para todos os resultados obtidos conforme o processo.”1109 É a expectativa de uma qualidade racional de seus resultados que confere à política deliberativa sua força legitimadora. A relação entre os processos institucionalizados e as esferas públicas, no modelo de Democracia Deliberativa ocorre do seguinte modo: instaurados processos parlamentares para a discussão e tomada de decisão acerca de determinado tema, constituem-se estes os pontos de referência para a constituição de esferas públicas (delimitadas social e temporalmente) e para a organização de negociações relativas ao tema. As esferas públicas organizam-se tendo em vista a solução cooperativa de questões práticas, que consiste menos da sensibilização para colocação de novas questões problemáticas do que na “justificação da escolha dos problemas e na decisão entre propostas de solução concorrentes.”1110 As corporações parlamentares estruturamse como um “conjunto de justificação” que depende do trabalho institucionalizado (em razão de sua competência), e especialmente do “contexto de descoberta de uma esfera pública não regulada através de processos, da qual é titular o público dos cidadãos em geral. Esse público ‘fraco’ é o sujeito da ‘opinião pública.’”1111 A formação da opinião numa “rede pública e inclusiva de esferas públicas subculturais que se sobrepõem umas às outras” se dá de maneira mais ou menos espontânea, “num quadro garantido pelos direitos humanos.”1112 Formam um complexo “selvagem”, que não se deixa organizar, estando mais exposto “aos poderes de repressão e de exclusão do poder social” do que as “esferas públicas organizadas do complexo parlamentar, que são regulados por processos.”1113 Porém, apresentam a vantagem de ser um meio de comunicação ilimitado, “no qual é possível captar melhor 1109 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 27. 1110 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 32. 1111 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 32. O modelo teórico de Habermas traz a marca da observação de um sociólogo: identifica-se na prática social esta comunicação entre opinião pública e processo parlamentar institucionalizado que, entretanto, resta diminuída na hipótese de choque entre a vontade da “opinião pública” e os interesses dos parlamentares. 1112 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 33. 1113 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 33. novos problemas, conduzir discursos expressos de auto-entendimento e articular, de modo mais livre, identidades coletivas e interpretações de necessidades.”1114 Para desenvolver-se plenamente, a esfera pública precisa contar com uma base social em que os direitos de igualdade dos cidadãos consigam eficácia social (igualdade material), “lançando fora os grilhões da estratificação social e da exploração”, para só assim produzir “formas de vida capazes de gerar novos significados.”1115 Numa sociedade secularizada, num “pluralismo cultural”, a esfera pública ao regular a cooperativamente a “solidariedade entre estranhos”, deve reconhecer mutuamente “o direito de permanecer estranhos entre si.”1116 Numa Democracia Deliberativa, seguindo o modelo procedimental de direito e de Estado, todos os assuntos podem ser tematizados: a tematização de “questões-limites”1117 não significa uma invasão em campos da privacidade. Esta assertiva - que relativiza a questão público/privado - torna-se clara ao se perceber que a “hierarquização da política deliberativa” segue dois caminhos de formação da opinião e da vontade: o formal institucionalizado e o informal da esfera pública.1118 Esclarece Habermas: “Dado que a esfera pública geral é ‘ilimitada’, no sentido que seus fluxos comunicacionais não são regulados através de processos, ela se adapta de preferência à ‘luta pela interpretação de interesses’.”1119 Somente após esta “luta por reconhecimento”1120 desencadeada publicamente, os interesses questionados podem ser introduzidos, discutidos e decididos por instâncias políticas. A produção de um direito legítimo através da política deliberativa configura um “processo destinado a solucionar problemas”, operando com o saber ao mesmo tempo em que elabora este saber, “a fim de programar a regulação de conflitos e a 1114 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 33. 1115 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 33. Como se percebe, o paradigma de cidadania de Marshall é utilizado por Habermas também na construção da esfera pública - elementos civil, político e social como formadores da cidadania. Defende Habermas que é preciso capacitar os cidadãos para ele possam formar seus interesses e discuti-los no processo de decisão do Estado. Ibid., p. 185. 1116 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 33. 1117 Violência doméstica, aborto e pornografia, por exemplo. 1118 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 41. 1119 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 41. 1120 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 41. persecução de fins coletivos, tapando buracos de outros mecanismos de integração social, através do medium do direito.1121 Onde os outros meios de integração social falharam, a política e o direito, filtrados discursivamente, solucionam “o mesmo tipo de problemas enfrentados pelos sobrecarregados processos sociais que ele substitui.”1122 Tornando mais claro seu pensamento, sintetiza Habermas: “O processo democrático condiciona a criação do direito legítimo a um tratamento presuntivamente racional de problemas, cujo modo de interrogação corresponde aos problemas que sempre foram elaborados de forma quase inconsciente.”1123 Aponta o autor, em razão da necessidade de coordenação funcional nas atuais sociedades complexas não pode ser suprida por modelos de divisão de trabalho ou da cooperação entre coletividades ou indivíduos: “São necessários mecanismos de regulação indireta do sistema administrativo.”1124 A socialização,1125 mediada pela comunicação, dá-se através da atuação de “atores ligados a um corpo, socializados em formas de vida concretas, localizados no tempo histórico e no espaço social, envolvidos nas redes do agir comunicativo,” que se alimentam das fontes de seu mundo da vida.1126 Este mundo da vida está contido em tradições e formas de vida existentes, reconhecendo-se o “pluralismo das atuais subculturas, cosmovisões e conjunções de interesses.”1127 Os atores não dependem só do seu mundo da vida, pois esse mundo da vida só pode reproduzir-se através do agir comunicativo, entendido como “processos de entendimento que dependem da tomadas de posição em termos de sim/não.”1128 Habermas, em sua teoria democrática, reconhece as limitações comunicativas, cognitivas e motivacionais - de realização de um modelo de socialização comunicativa. Elenca como limitações: os gastos de tempo e de energia e o 1121 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 45. 1122 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 46. 1123 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 47. 1124 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 48. 1125 Refere-se o autor a “uma liberdade que se constitui através da sociedade”. A sociedade não limita, como no paradigma liberal, a liberdade. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 52. 1126 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 53. 1127 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 53. 1128 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 53. investimento em termos de organização que as comunicações e tomada de decisões ocupam; as decisões proteladas ou abandonadas em razão da pressão do tempo para a escolha dos temas e das contribuições dos participantes; a distribuição desigual de competências e de conhecimento gerada em razão da divisão do trabalho de organização da produção do saber; as assimetrias inevitáveis no tocante a informações e às chances desiguais de intervenção, validação e apresentação de mensagens; a distribuição casual e desigual das capacidades individuais; e as escassas fontes da participação - o tempo de que cada indivíduo possui é exíguo, a atenção prestada aos temas é episódica, a disposição e a capacidade de dar contribuições aos temas é pequena, e “existem enfoques oportunistas, afetos, preconceitos, etc., que prejudicam uma formação racional da vontade.”1129 Esclarece Habermas que estas limitações indicam “desvios do modelo de socialização comunicativa pura”, chamando atenção para a escassez das fontes da participação de que dependem em grande parcela os processos de formação da opinião e da vontade.1130 Observa o autor, em defesa de sua teoria democrática, que “nenhuma sociedade complexa conseguirá corresponder ao modelo de socialização comunicativa pura, mesmo que sejam dadas condições favoráveis.”1131 Tal modelo de “socialização comunicativa” tem o sentido de uma “ficção metódica” com o objetivo de aclarar os pressupostos do agir comunicativo,1132 sendo fictício por considerar uma sociedade sem direito e sem política, “projetando a idéia da auto-organização sobre a sociedade em sua totalidade.”1133 Ressalta Habermas que: Mesmo assim, o conceito procedimental de democracia empresta a esta idéia a figura de uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma. Segundo ela, o modo discursivo de socialização tem que se implantado através do medium do direito. E os momentos que não são levados em conta pelo modelo de socialização “pura” já estão incorporados, enquanto tais, no direito.1134 1129 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 54. 1130 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 54. 1131 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 54. 1132 A Teoria do Agir Comunicativo é implementada num modelo de argumentação discursiva - Ética do Discurso -, com o auxílio de regras de uma argumentação ideal. 1133 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 54. 1134 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 55. Os fluxos comunicacionais da esfera pública somente se transformam em poder político quando passam através das “comportas do processo democrático e do sistema político em geral, instaurado na forma de Estado de direito.” 1135 As instituições do Estado de direito devem compensar as limitações comunicativas, cognitivas e motivacionais, tornando possível a prática de uma política deliberativa.1136 Capítulo V – Direito Regulatório Deliberativo 5.1. Considerações iniciais; 5.2 Direito regulatório e regras do discurso jurídico; 5.3 Legitimidade e participação na elaboração do Direito Regulatório; 5.4 Processo de criação das normas das agências reguladoras; 5.5 Processo de criação do Direito Regulatório Deliberativo 5.1. Considerações iniciais Na tese em apresentação é fundamental a compreensão do modo de operar da Administração Pública regulatória, que, em razão da necessidade de legitimação de suas normas, deve pautar seus discursos quase-legislativos por um modelo misto de aplicação e fundamentação. O discurso regulatório não será tão vasto quanto o ocorrido no Legislativo, nem tão estrito quanto o da Administração tradicional. As leis finalísticas pautam, sob pena de ilegalidade, o poder normativo da Administração Regulatória. Por sua vez, a Constituição pauta as leis de criação e de atribuição de competências das agências reguladoras. A presença marcante de questões ético-normativas da Administração Pública contemporânea faz como que seja necessária a institucionalização dos discursos de fundamentação, servindo-se do conceito de Democracia Deliberativa - a democracia pautada pela Ética do Discurso. A atuação da Administração, balizada por normas postas em leis cada vez mais vagas, irrita de positivistas do porte de Karl Engisch a pós-positivistas da cepa de 1135 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 56. 1136 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 56. Habermas.1137 Não existe a possibilidade, como reconhece Habermas,1138 de fazer uma separação exata de onde acaba a aplicação de uma norma legislativa, e de onde começa a fundamentação de uma norma administrativa.1139 Necessário, portanto, que o procedimento de produção das normas por agências reguladoras especifique os meios de legitimá-las - os chamados “filtros de legitimação”1140 -, pautando-se pelo atendimento das finalidades previstas nas leis que delimitam a atuação das agências reguladoras. Por outro lado, não se pode olvidar a questão da eficiência, implícita na atribuição de competências reguladoras tendentes ao alcance das finalidades estabelecidas em políticas públicas. A Teoria Discursiva do Direito, com sua correlata Democracia Deliberativa, não apresenta um projeto ambicioso de instituição de uma sociedade justa - projeto idealizado e por vezes afastado da realidade e da prática.1141 Ao contrário, a Teoria do Discurso parte da constatação das mudanças de paradigmas em diferentes ciências que repercutem na integração social e, especialmente, no direito. É uma teoria pós-positiva do direito por acatar estes influxos e transformá-los, democraticamente, em direito válido e factível. Não é fundante de um novo modelo de Estado e de sociedade, mas decorrente das mudanças ocorridas especialmente nos últimos vinte e cinco anos do século XX em diversos campos das ciências sociais: a sociologia dos riscos globais, a teoria política republicana, o neoliberalismo econômico, a Administração Regulatória, a virada lingüística, a ética do discurso... É nitidamente formatada pela observação do que acontece na sociedade global contemporânea. A vantagem que apresenta em relação a outras teorias gerais ou filosofias do direito é a fidelidade com que enxerga o mundo e, sem procurar redesenhá-lo idealmente, propõe soluções democráticas para uma integração social não violenta. A adoção da Teoria Discursiva do Direito não é mera opção dentre um grupo de respostas possíveis às questões contemporâneas, como se procurou demonstrar com a análise e crítica de teorias jurídicas e abrangentes 1137 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8. ed. Tradução: J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 205; HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 182. 1138 Habermas refere-se à necessidade de discursos envolvendo fundamentação e aplicação de normas. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 184. 1139 Num sentido mais prático, é difícil identificar onde acaba o regular e onde começa o legislar. 1140 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 184. 1141 Como exemplo de projeto teórico desta magnitude: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. Tradução: Almiro Pisetta; Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. concorrentes, mas uma escolha conseqüente para todo aquele que não quer se afastar da realidade social, mas que não abre mão de conceitos de legitimidade e justiça, inerentes à idéia do direito. No âmbito do Direito Regulatório, como se procurou demonstrar no decorrer desta tese com a apresentação de seus pressupostos, a Teoria Discursiva do Direito é fundamental à compreensão das novas tarefas da Administração Pública Regulatória, quer seja por reconhecer a necessária agilidade para a prevenção de riscos,1142 ou por identificar a redução das atribuições de prestação de serviços públicos, com a proeminência do papel regulador exercido por meio de seu poder de emissão de normas.1143 Propõe um reforço de legitimação do Estado de direito contemporâneo, cuja legalidade não mais está atrelada à legitimidade, por culpa quase sempre do legislador, muitas vezes constituinte, que atribui à Administração poderes normativos cada vez maiores - isto sem falar na oposição de interesses entre o cidadão e seus representantes eleitos. Em socorro da legitimidade perdida, a liberdade dos antigos, republicana, atrelada, entretanto, a um catálogo de direitos fundamentais, oferece uma solução satisfatória à conformação do Estado pelo direito, cada vez mais participativo. A Democracia Deliberativa, na proposta discursiva, fornece elementos para melhorar a qualidade das decisões políticas, e legitimá-las, no interesse da sociedade. Neste quadro, resta ao pensador do direito contemporâneo propor uma solução à questão da legitimidade das normas emitidas sem parcimônia pela Administração Regulatória, enfrentando sua relação com a legalidade e com a eficiência. É o que se delineará neste capítulo, especificamente no campo das agências reguladoras, servindo-se das construções teóricas apresentadas nos capítulos anteriores. As questões que se impõem versam sobre como justificar, e mais ainda, viabilizar o controle judicial e democrático de atos administrativos normativos. No paradigma liberal de direito e de Estado, somente a lei, proveniente do Legislativo ou espécie normativa com participação necessária deste – medida provisória, por exemplo -, pode criar direitos e estabelecer obrigações. Como sustentar a validade de regulamentos do chefe do Executivo ou de resoluções de agências reguladoras que não sejam de mera execução? E, se de mera execução, porque se questionar a validade e a 1142 1143 Estado Prevencionista ou Securitário, como se refere Habermas. A denominação “Estado Regulador” realça o aspecto econômico deste modelo intervenção. legitimidade destes atos, já que, em última instância, trazem minudências para o desempenho da lei? Mais ainda: para que instituir autarquias especiais, com estrutura onerosa, para exercitar algo que um departamento técnico de um Ministério poderia fazer a contento? As respostas somente poderão ser dadas tomando-se por base novos paradigmas sociais, políticos, econômicos, e filosóficos, com grandes repercussões no direito e na produção democrática do direito. Tais respostas, reafirma-se aqui, devem satisfazer ao trinômio legalidade, legitimidade e eficiência. 5.2 Direito regulatório e regras do discurso jurídico As normas das agências reguladoras foram analiticamente conceituadas nesta tese como atos regulatórios normativos gerais e abstratos emitidos com fundamento no poder normativo previsto nas leis de instituição das agências reguladoras para o exercício da discricionariedade administrativa na aplicação de regras, bem como para a escolha dos meios eficientes para a implementação de diretrizes/objetivos/princípios expressos em legislação finalística, que, pautados pela regra da proporcionalidade, especificam direitos e obrigações a todos os atingidos do setor regulado. A produção do direito das agências reguladoras - atos administrativos regulatórios gerais e abstratos - é pautada pela liberdade de escolha de meios dentro do marco das leis de criação e atribuição de competências das agências reguladoras, em moldes semelhantes à atuação do legislador numa ordem constitucional marco,1144 mas com a especificação de perseguirem as finalidades determinadas pela lei de criação e fixação de competência das agências reguladoras - processadas, em regra, por iniciativa do Presidente da República. A produção democrática e eficiente do Direito Regulatório deverá pautar-se por regras do discurso que expressem, além das pressuposições de discursos práticos 1144 No modelo adotado pela Teoria dos Princípios de Alexy, material-procedimental, alguns assuntos estão confiados à discricionariedade do legislador, e outras não, existindo condutas ordenadas e condutas proibidas. Como já explicitado no capítulo III, a margem de ação do legislador, seu espaço de discricionariedade, encontra-se delimitado pelo marco constitucional. A metáfora do marco significa o que está ordenado e proibido. O que se confia à discricionariedade do legislador - o que não está ordenado nem proibido - é aquilo que se encontra no interior do marco. ALEXY, Robert. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004, p. 28. gerais relacionadas ao controle de correção de seus resultados (enunciados normativos fundamentados), as limitações dos discursos jurídicos relativas ao controle de concordância, expresso pela exigência da legalidade.1145 As regras do discurso compreendem regras da argumentação jurídica acerca da aplicação das regras do direito, somadas às regras específicas para a aplicação de diretrizes/objetivos/princípios, consubstanciadas na regra da proporcionalidade, englobadas nesta as sub-regras da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, abrangendo esta última sub-regra a lei de colisão e as denominadas regras da ponderação. Para a satisfação da proporcionalidade em sentido estrito, deverão ser ponderados todos os elementos que repercutem na decisão administrativa, em especial o peso concreto, o peso abstrato e o grau de certeza empírica acerca da realização de diretrizes/objetivos/princípios colidentes. As regras que expressam os pressupostos da argumentação jurídica, que se relacionam nitidamente às questões da legalidade e da eficiência, e que devem pautar a produção das normas das agências reguladoras, podem ser desta forma expressas: (1.) Deve ser saturada toda forma de argumento que houver entre os cânones da interpretação. (2.) Os argumentos que expressam uma vinculação ao teor literal da lei ou à vontade do legislador histórico prevalecem sobre outros argumentos, a não ser que se possam apresentar motivos racionais que dêem prioridade a outros argumentos. (3.) A determinação do peso de argumentos de diferentes formas deve ocorrer segundo regras de ponderação. (4.) Devem-se levar em consideração todos os argumentos possíveis que possam ser incluídos por sua forma entre os cânones da interpretação. (5.) Todo enunciado dogmático, se é posto em dúvida, deve ser fundamentado mediante o emprego, pelo menos, de um argumento prático de tipo geral. 1145 Neste sentido, a tese do Caso Especial de Alexy, apresentada no capítulo III desta tese. (6.) Todo enunciado dogmático deve enfrentar uma comprovação sistemática, tanto em sentido estrito como em sentido amplo. (7.) Se são possíveis argumentos dogmáticos, devem ser usados. (8.) Quando se puder citar um precedente a favor ou contra uma decisão deve-se fazê-lo. (9.) Quem quiser afastar-se de um precedente, assume a carga da argumentação. (10.) As formas de argumentos jurídicos especiais devem ser saturadas. Especificamente acerca da aplicação de diretrizes/objetivos/princípios, podem-se apresentar as seguintes regras, extraídas da proporcionalidade, às quais se somam a lei de colisão e as regras de ponderação: (11.) Diretrizes/objetivos/princípios devem ser aplicados segundo a regra da proporcionalidade. (12.) Diretrizes/objetivos/princípios devem ser tomados como mandamentos de otimização, aplicados em atenção à busca da eficiência. (13.) As medidas adotadas em normas produzidas pelas agências reguladoras devem ser adequadas à promoção do fim estabelecido na lei de instituição e atribuição de competências das agências. (14.) As medidas adotadas em normas produzidas pelas agências reguladoras devem ser necessárias à realização da finalidade perseguida, sendo válidas desde que a finalidade não possa ser promovida, com mesma intensidade, por meio menos gravoso. (15.) As medidas adotadas em normas produzidas pelas agências reguladoras devem ser proporcionais, resultantes de um sopesamento entre a intensidade da restrição a diretrizes/objetivos/princípios atingidos e a importância da realização de diretrizes/objetivos/princípios que com eles colidem e que fundamentam a adoção da medida restritiva. (16.) As condições sob as quais diretrizes/objetivos/princípios precedem a outros constituem pressupostos fáticos de uma regra que expressa a conseqüência jurídica de diretrizes/objetivos/princípios precedentes. (Lei de colisão) (17.) Quanto maior é o grau de não satisfação ou de não cumprimento de diretrizes/objetivos/princípios, tanto maior deve ser a importância diretrizes/objetivos/princípios do cumprimento colidentes. (Primeira de lei de ponderação) (18.) Quanto mais intensa seja a intervenção em diretrizes/objetivos/princípios, tanto maior deve ser a certeza das premissas que sustentam a intervenção. (Segunda lei de ponderação) Estas regras, embora não ofereçam um procedimento definitivo de decisão, tampouco apresentem a única resposta correta à solução do caso, estabelecem o que há de ser justificado nos discursos - argumentações levadas a cabo em processos de consulta e audiência pública. Estabelecem, portanto, o campo e a carga da argumentação – enunciados acerca da compatibilidade do ato administrativo com as fontes do direito, da adequação e necessidade da medida, e dos graus de importância, afetação, peso e segurança empírica. A regra da proporcionalidade, ao pautar a atuação da Administração, promove concomitantemente legalidade e eficiência. Se a medida adotada pela Administração não for proporcional e eficiente, será ilegal. O princípio da legalidade, reinterpretado pela eficiência, implica o enlace da legalidade com a eficiência no âmbito da Administração Pública através da regra da proporcionalidade.1146 1146 Em sentido semelhante do que se conclui nesta tese, acerca do entrelaçamento da legalidade com a eficiência, mas se utilizando de terminologia diferenciada, a lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, para quem o princípio da legalidade, reinterpretado como “legalidade em sentido de legitimação”, é acatado quando se vê na lei um instrumento da atividade administrativa: “Seu princípio hermenêutico está na solidariedade entre meios e fins, donde a razoabilidade da atividade administrativa, submetida, então, a uma avaliação de sua eficiência”, não se limitando a discricionariedade a um juízo de oportunidade, mas de realidade, alcançando a avaliação de políticas de implementação de objetivos, de adequação dos meios escolhidos em face dos fins propostos. Legalidade por legitimação “trata-se de uma liberdade delegada por lei no sentido de solidariedade de meios e fins”. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Agência As regras da argumentação prática geral, sabidas intuitivamente e decorrentes de uma prática discursiva privilegiada, tornam claras as intuições dos participantes da argumentação, moldados numa cultura da Modernidade. Na proposta de Alexy, a tese do Caso Especial, as questões práticas gerais, com argumentos relativos e suas regras, serão chamadas à solução sempre que os argumentos jurídicos não obtiverem êxito no alcance da solução correta, que não conseguirem ser validamente fundamentadas apenas com argumentos jurídicos. Este aspecto permite afirmar que a argumentação de aplicação e de fundamentação do direito oferece espaço para que as pretensões de validade sejam dirigidas a questões técnicas, relacionados diretamente com a busca da eficiência. As “regras de transição” prestam-se a este papel, estabelecendo que para qualquer falante seja possível, em qualquer momento, passar a um discurso empírico.1147 A tarefa conferida às regras da argumentação prática geral, subsidiária na teoria de Alexy, é preponderante na tese que se apresenta. As regras do discurso, por operacionalizarem o Princípio do Discurso, servirão à transição da teoria de Alexy - que se serve de discursos hipotéticos na produção de decisões - para a teoria democrática deliberativa, com lastro em Habermas. Assumindo que as regras do discurso prático geral estarão sempre ao lado - e não por trás - das regras do discurso jurídico, pode-se compatibilizar eficiência, legalidade e controle que a teoria de Alexy confere às normas produzidas por seu método, com a legitimidade garantida pelo Princípio do Discurso, instrumentalizado pelas regras do Discurso prático geral. Este, ao ser institucionalizado, converte-se no Princípio Democrático - Princípio do Discurso Democrático. Nesta linha, merecem destaque as seguintes regras do discurso prático geral, seguindo-se a numeração de Habermas:1148 (1.1) A nenhum falante é lícito contradizer-se. reguladora: legalidade e constitucionalidade. In: Revista tributária e de finanças públicas, n.º 35, ano 8, novembro-dezembro de 2000, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, pp. 154-155. A proporcionalidade que pauta a relação entre meios e fins, como já explicitado, reinterpreta a legalidade por critérios de eficiência. Haverá legalidade se a medida administrativa for proporcional: é legalidade no sentido de eficiência. 1147 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 229. 1148 Neste passo, cabe a transcrição das regras pinçadas por Habermas dentre as regras do discurso prático geral de Alexy. Habermas, embora adote as regras de transição, não as renumera. Por questão de clareza, estas regras (6.1 a 6.3) serão renumeradas (4.1 a 4.3) nesta tese. (1.2) Todo falante que aplicar um predicado F a um objeto a tem que estar disposto a aplicar F a qualquer outro objeto que se assemelhe a a sob todos os aspectos relevantes. (1.3) Não é lícito aos diferentes falantes usar a mesma expressão em sentidos diferentes. (2.1) A todo falante só é lícito afirmar aquilo em que ele próprio acredita. (2.2) Quem atacar um enunciado ou norma que não for objeto da discussão tem que indicar uma razão para isso. (3.1) É lícito a todo sujeito capaz de falar e agir participar de Discursos. (3.2) a. É lícito a qualquer um problematizar qualquer asserção. b. É lícito a qualquer um introduzir qualquer asserção no Discurso. c. É lícito a qualquer um manifestar suas atitudes, desejos e necessidades. (3.3) Não é lícito impedir falante algum, por coerção exercida dentro ou fora do discurso, de valer-se de seus direitos estabelecidos em (3.1) e (3.2). (4.1) Para qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso teórico (empírico). (4.2) Para qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso de análise da linguagem. (4.3) Para qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso de teoria do discurso. Nos discursos promovidos no âmbito das agências reguladoras em que a eficiência, entendida como promoção ótima das finalidades estabelecidas em lei, é exortada, as questões empíricas - questões técnicas e complexas relacionadas ao setor regulado - ocuparão um posto central dentre as questões práticas gerais. Os problemas “são cada vez menos de natureza jurídica”, mas tal fato “não significa que a correspondente prática de Administração se subtraia, cada vez mais às regulações jurídicas.”1149 Não se deve esquecer que os discursos - argumentações institucionalizadas e promovidas por agências reguladoras - são de aplicação e de fundamentação do direito, devendo pautar-se pela constitucionalidade e pela legalidade, bem como por critérios democráticos. São nulos “estatutos, ordens, prescrições e medidas que contradizem uma lei”.1150 As regras do Discurso – pressuposições argumentativas ideais - não se confundem com as normas institucionalizadas para a produção de normas - as convenções.1151 Os pressupostos da argumentação, expressos em regras do discurso, devem servir à institucionalização de um processo de produção de normas - destacandose neste papel as regras (3.1) a (3.3) - que imunizam o processo contra a repressão e a desigualdade, num modelo de comunicação suficientemente aproximado das condições ideais.1152 5.3 Legitimidade e participação na elaboração das normas das agências reguladoras As leis de criação e de fixação de competências das agências reguladoras estabelecem parâmetros de atuação na persecução de fins coletivos (políticas públicas), balizando a atividade administrativa por critérios de racionalidade teleológica. As agências reguladoras deverão escolher tecnologias e estratégias de ação eficientes, com 1149 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 179. 1150 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 216. 1151 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 115. 1152 “Mediante a busca de uma resposta a uma questão prática sob condições de tempo ilimitado, participação ilimitada e falta de coerção total para gerar uma clareza lingüístico-conceitual completa, informação empírica completa, capacidade e disposição completa para a troca de papéis e completa ausência de prejuízos [mais precisamente, preconceitos].” ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 298 – Posfácio da obra. Habermas adverte que “são falíveis nossa reconstrução desse saber pré-teórico e a pretensão de universalidade que a ele associamos.” HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 120. No mesmo sentido, Alexy, ao tratar dos processo judiciais, vislumbra a necessidade de institucionalização da forma mais racional possível do processo judicial. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 314 – posfácio à obra. a ressalva de que não sigam interesses ou preferências próprias - apenas finalidades coletivas estabelecidas em lei devem ser perseguidas. Na medida em que a implantação dos programas teleológicos sobrecarrega a Administração regulatória com tarefas relacionadas ao aprimoramento do direito através de exercício de competência normativa,1153 a base de legitimação das estruturas administrativas tradicionais não é mais suficiente para justificar seus atos. O Legislativo, ao introduzir normas de direito vago - regras com atribuição de discricionariedade ou diretrizes/objetivos/princípios - tem que compensar a insuficiente força de imposição (legitimidade) deste direito, atribuindo à Administração poderes de legitimamente aplicá-los. Necessária a introdução de formas de comunicação e de participação correspondente, através do estabelecimento de processos administrativos com estrutura semelhante aos que ocorrem no âmbito do Poder Legislativo para a formação de uma norma geral legítima, com a participação de todos os possíveis atingidos pela norma, num modelo de Democracia Deliberativa. Em discursos ético-políticos, de autoentendimento ético e de escolha de políticas públicas, “todos os membros têm que poder tomar parte no discurso, mesmo que os modos sejam diferentes.”1154 As argumentações devem ser reguladas como forma de reflexão do agir orientado para o entendimento em atos de fala reguladores (ou regulativos), um agir comunicativo forte, selado por razões comuns, configurando uma modalidade forte de entendimento, um acordo no sentido estrito. A exigência do atendimento das pretensões de verdade, sinceridade e correção normativa, referidas a algo no mundo objetivo, subjetivo e social, respectivamente, devem ser institucionalizadas juridicamente, sem qualquer estranhamento. Assim ocorreu com o dever moral da probidade e da boa-fé, no 1153 Como já mencionado, a adoção da Teoria Discursiva do Direito não impede o reconhecimento do escalonamento de normas, com a interposição da norma geral administrativa entre a lei e o ato administrativo individual. 1154 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 227. O modo que os Diretores das agências reguladoras participam do discurso é diferente do modo como o cidadão participa, ou mesmo do modo de como a esfera pública deve influenciar as decisões. âmbito do direito civil,1155 e do dever de verdade, lealdade e boa-fé processual, no campo do direito processual civil.1156 O Princípio do Discurso proposto por Habermas, que expressa sua Ética do Discurso e fundamenta toda a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa, possui o seguinte enunciado: “D: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.”1157 A adoção deste princípio implica no reconhecimento da possibilidade de participação de todos os cidadãos num processo racional de elaboração de atos regulatórios normativos. Para se assegurar a qualidade de “participantes de discursos racionais”, necessária a ficção de uma situação ideal de fala, minudenciada através das regras do discurso prático geral, que estabelecem objetivos inalcançáveis de um modelo de socialização comunicativa pura - pressupostos comunicativos pretensiosos de discursos racionais que só podem ser preenchidos aproximativamente. 1158 Tal modelo de “socialização comunicativa” tem o sentido de uma “ficção metódica” com o objetivo de aclarar os pressupostos do agir comunicativo. A distribuição desigual de oportunidades para usar os atos de fala pode ser neutralizada mediante redistribuições institucionais. O Princípio do Discurso deve assumir, pela via da institucionalização jurídica, a figura de um princípio da democracia, que passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. Este princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o Princípio do Discurso e a forma jurídica. As normas emitidas por agências reguladoras serão legalmente e constitucionalmente válidas se pautarem sua produção pela regra da proporcionalidade, na aplicação discricionária de regras ou na otimização dos mandamentos trazidos em diretrizes/objetivos/princípios, num modelo de Democracia Deliberativa, em que as 1155 Em dois artigos a boa-fé é referida expressamente no Novo Código Civil: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes do lugar de sua celebração; e art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e de boa-fé. 1156 É expresso o Código de Processo Civil na previsão dos deveres das partes e de seus advogados: art. 14. Compete às partes e aos seus procuradores: I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II proceder com lealdade e boa-fé. 1157 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 142. 1158 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 292 regras do discurso, institucionalizadas, balizem a atuação de todos os participantes do discurso - atingidos e dirigentes das agências reguladoras. A “formação política da opinião e da vontade” e a “implantação eficiente” devem ser tomadas como possibilidades complementares de atuação na estrutura social, e não excludentes.1159 As regras do discurso - jurídico e prático geral - utilizadas num modelo deliberativo, instrumentalizam a um só tempo a legalidade, a eficiência e a legitimidade. Não há, contudo, a obrigatoriedade de que os participantes de discursos argumentações em processos, consultas e audiências públicas - pautem-se pelo agir comunicativo forte. O que se faz necessário é institucionalizar um processo de elaboração de norma que possibilite esta modalidade de entendimento. O respeito aos direitos subjetivos impede que se obrigue ou que se exclua do processo o participante atingido - que se paute pelo agir estratégico. Cabe, entretanto, a advertência de que seu agir pautado exclusivamente pela racionalidade teleológica, identificado pelos demais participantes, o colocará na difícil situação de influenciar quem já identificou em sua conduta egoística. A atuação, ainda que estratégica, tende a ser camuflada, servindo-se de argumentos que levem a crer que a postura defendida pelo ator é verdadeira, sincera e normativamente correta.1160 A produção de um direito legítimo, num modelo de Democracia Deliberativa, configura um processo destinado a solucionar problemas a fim de regular conflitos e perseguir fins coletivos, tapando buracos de outros mecanismos de integração social através do medium do direito.1161 Onde os outros meios de integração social falharam, entram a política e o direito, filtrados discursivamente. O processo democrático condiciona a criação do direito legítimo a um tratamento presuntivamente racional de problemas. No âmbito específico do direito regulatório, a Democracia Deliberativa servirá como um método de participação não-agregativo de produção do direito, privilegiando o bem comum e tendente ao consenso racionalmente motivado, lastrado na satisfação das condições de validade resgatadas ou resgatáveis. 1159 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 172. 1160 Exemplificando: em processos judiciais nenhuma parte fundamenta um pedido na necessidade de aumentar seus lucros ou ganhos, ou mesmo, alegando a própria torpeza. Para se conseguir um resultado favorável, ainda que se haja estrategicamente - ou mesmo de má-fé-, a parte refere-se a noções de justiça e de correção. Ninguém recorre de uma decisão desfavorável argumentando que seu recurso é meramente protelatório, ainda que a postura do Tribunal ad quem seja pacificamente contrária à sua pretensão. Daí o fecho freqüente em petições: “por ser da mais lídima Justiça!” 1161 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 45. No processo de produção de normas das agências reguladoras, pautado pela deliberação nos moldes procedimentais da Teoria Discursiva do Direito, a relação entre os processos institucionalizados e as esferas públicas, deve ocorrer em moldes semelhantes ao proposto por Habermas para a criação de normas do Legislativo. Adaptando-o para o âmbito das agências reguladoras: instaurado processo administrativos para a discussão e tomada de decisão acerca de determinado tema, consubstanciado numa proposta ou minuta de resolução, constituem-se os pontos de referência para a formação de esferas públicas, delimitadas social e temporalmente, e para a organização de negociações relativas ao tema. As esferas públicas organizam-se tendo em vista a solução cooperativa de questões práticas consistentes na justificação da escolha dos problemas e na decisão entre propostas de solução concorrentes. As agências reguladoras, em seus processos de deliberação, estruturam-se como um conjunto de justificação que depende do trabalho institucionalizado em razão de sua competência, e do “contexto de descoberta” de uma esfera pública, não regulada através de processos, da qual é titular o público dos cidadãos em geral - a opinião pública.1162 A opinião pública, difusa por sua essência, deverá poder influenciar o resultado dos processos decisórios, sendo levada em conta nas deliberações promovidas pelos participantes do discurso. Para tanto, necessária a institucionalização de procedimentos que promovam, ao menos aproximativamente, um modo de atuação pautado pelo agir comunicativo no sentido forte. 5.4 Processo de criação das normas das agências reguladoras O processo de elaboração de normas por agências reguladoras deve seguir o modelo de produção legislativa, com a participação de interessados e não de partes como ocorre no processo judicial. Quatro fases distintas podem ser identificadas: 1) iniciativa normativa, 2) consulta pública, 3) deliberação, e 4) decisão.1163 1162 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 32. 1163 É usual da identificação de três fases: proposta, consulta e decisão. Nos Estados Unidos: AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T., Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001, p. 39; no Brasil: BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras: poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 205. No processo legislativo, é também comum a identificação de três fases: a) fase introdutória, de iniciativa de lei, que trata da O processo deve ser a) participativo, com a inclusão de representantes dos grupos de interesse e individualmente de cada cidadão atingido; b) substancialmente amplo, incluindo-se todos os fatos, detalhes e problemas necessários à discussão, bem como o direito que delimita o campo da regulação; e c) chegar a resultados demonstráveis racionalmente,1164 tomando por objetivo a realização de um consenso, com auxílio das regras do discurso. Observam Alfred C. Aman Junior e William T. Mayton, ao analisarem o processo de elaboração de normas de agências americanas, que a racionalidade das escolhas estabelecidas pelas normas deve ser demonstrada com o auxílio dos dados que fundamentam a norma, do modo como chegaram a determinada norma a partir destes dados, bem ainda de como as normas (rules) relacionam-se aos objetivos das leis das agências.1165 A primeira fase - iniciativa ou proposta normativa -, contemplada tanto no modelo de rulemaking do Administrative Procedure Act, norte-americano, como também no Projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras, efetiva-se com a publicação de uma minuta ou proposta de atos normativos que comunica aos atingidos a intenção de edição de normas acerca de um ponto específico da competência da agência reguladora. Importante observar que a iniciativa deve ser conferida a cada um dos Diretores isoladamente, fortalecendo eventual minoria ou posição discordante dentro do Conselho, permitindo a exposição de seu ponto de vista aos interessados do setor regulado, consultados que serão acerca de sua proposta. Tal medida protela eventual consenso para a fase de deliberação do processo, quando os interessados e a opinião pública já terão tomado conhecimento e se manifestado acerca da proposta. Estabelece o Projeto de Lei Geral, acerca da iniciativa de consulta e de audiência pública: faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo; b) fase constitutiva, em que há ampla discussão e votação sobre matéria nas duas casas do Congresso e participação do chefe do executivo por meio de sanção ou veto; c) fase complementar, quando ocorre a promulgação e publicação da lei. 1164 A constatação de Aman e Mayton aplica-se ao processo de elaboração de normas por agências brasileiras. AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T., Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001, p. 39. 1165 AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T., Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001, p. 41. Art. 4.º Serão objeto de consulta pública, previamente à tomada de decisão, as minutas e propostas de alterações de normas legais, atos normativos e decisões da Diretoria Colegiada e Conselhos Diretores de interesse geral dos agentes econômicos, de consumidores ou usuários dos serviços prestados. § 1.º O período de consulta pública iniciar-se-á sete dias após a publicação de despacho motivado no Diário Oficial da União e terá a duração mínima de trinta dias. § 2. As Agências Reguladoras deverão disponibilizar, em local especificado e em seu sítio na Rede Mundial de Computadores - Internet, em até sete dias antes de seu início, os estudos, dados e material técnico que foram utilizados como embasamento para as propostas colocadas em consulta pública. .................... Art. 5.º As Agências Reguladoras, por decisão colegiada, poderão realizar audiência pública para formação de juízo e tomada de decisão sobre matéria considerada relevante. § 1.º A abertura do período de audiências públicas será precedida de despacho motivado publicado no Diário Oficial da União e outros meios de comunicação, até quinze dias antes de sua realização. § 2.º As Agências Reguladoras deverão disponibilizar, em local especificado e em seu sítio na Internet, em até quinze dias antes de seu início, os estudos, dados e material técnico que foram utilizados como embasamento para as propostas colocadas em audiência pública.1166 Em sentido semelhante, mas trazendo os requisitos da publicação, estabelece o § 553 do Administrative Procedure Act: (b) General notice of proposed rule making shall be published in the Federal Register, unless persons subject thereto are named and either personally served or otherwise have actual notice thereof in accordance with law. The notice shall include: (1) a statement of the time, place, and nature of public rule making proceedings; (2) reference to the legal authority under which the rule is proposed; and (3) either the terms or substance of the proposed rule or a description of the subjects and issues involved.1167 Advertem Alfred C. Aman Junior e William T. Mayton que a proposta normativa deve permitir aos atingidos (grupos de interesses) identificarem os problemas e temas envolvidos no processo de consulta. O propósito da exigência da publicação no Federal Register (equivalente ao brasileiro Diário Oficial da União) é estabelecer uma efetiva oportunidade para que as partes interessadas participem do processo de elaboração da norma através de informações e argumentos responsáveis sobre a mesma. Para tanto, necessário que os interessados sejam informados sobre a base legal, o objeto e os dados que subjazem à norma proposta.1168 A inexistência de tais atos pode gerar a nulidade de todo o processo de elaboração de norma. Ressaltam, entretanto, a adoção do 1166 Projeto de Lei n.º 3.337/2004. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/proposicoes, pesquisado em 17/05/2007. 1167 Disponível em: http://www.law.cornell.edu/uscode/html/uscode05/usc_sec_05_00000553----000-.html, com acesso em 09/06/2007. 1168 AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T., Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001, p. 49. princípio da decorrência lógica (principle of logical outgrowth), que relativiza a exigência da informação precisa sobre o objeto da norma, desde que se reconheça que a matéria normatizada decorre logicamente da proposta originalmente formulada.1169 O Projeto de Lei Geral das Agências contempla satisfatoriamente esta primeira fase do processo de elaboração da norma, estabelecendo a exigência de um despacho motivado da proposta, ao qual se somarão estudos, dados e material técnico que foram utilizados como embasamento para as propostas colocadas em consulta pública obrigatória, ou em audiência pública facultativa, realizada a critério do órgão colegiado máximo da agência reguladora.1170 A segunda fase, de consulta pública, é desta forma prevista no texto do Projeto: Art. 4.º [...] § 3.º As Agências Reguladoras deverão estabelecer nos regimentos próprios os critérios a serem observados nas consultas públicas. § 4.º É assegurado às associações constituídas há pelo menos três anos, nos termos da lei civil, e que incluam, entre suas finalidades, a proteção ao consumidor, à ordem econômica ou à livre concorrência, o direito de indicar à Agência Reguladora até três representantes com notória especialização na matéria objeto da consulta pública, para acompanhar o processo e dar assessoramento qualificado às entidades e seus associados, cabendo à Agência Reguladora arcar com as despesas decorrentes, observadas as disponibilidades orçamentárias, os critérios, limites e requisitos fixados em regulamento e o disposto nos art. 25, inciso II, e 26 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993. § 5.º O acompanhamento previsto no § 4.º será proporcionado ao representante nas fases do processo entre a publicação de sua abertura até elaboração de relatório final a ser submetido à decisão da Diretoria Colegiada ou Conselho Diretor, ressalvado o acesso a dados e informações que sejam classificados como sigilosos na forma do art. 23 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Art. 5.º [...] § 3.º As Agências Reguladoras deverão estabelecer nos regimentos próprios os critérios a serem observados nas audiências públicas. Art. 6.º As Agências Reguladoras poderão estabelecer outros meios de participação de interessados em suas decisões, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas. Não há no Projeto previsão acerca do processo de consulta em si, mas a atribuição para que cada agência estabeleça, em suas normas internas, os critérios a serem seguidos em consultas públicas, onde prevalecerá a participação escrita, e em audiências públicas, onde há espaço para apresentações orais. 1169 AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T., Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001, p. 52. 1170 Art. 4,º e 5.º do Projeto de Lei n.º 3.337/2004. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/proposicoes, pesquisado em 17/05/2007. Estabelece o dispositivo acima transcrito, implicitamente, quem possui capacidade de participar do processo de elaboração das normas das agências: representantes de associações constituídas há pelo menos três anos, que incluam entre suas finalidades a proteção ao consumidor, à ordem econômica ou à livre concorrência. Tais representantes, em número máximo de três por associação, devem possuir notória especialização na matéria objeto da consulta pública. Faculta, ainda, o estabelecimento por norma interna das agências (normas de organização ou regimentos) de “outros meios de participação de interessados em suas decisões,” incluindo-se a salutar participação direta dos interessados, ou mesmo de “organizações e associações legalmente reconhecidas”, mas que não atendam aos critérios do § 4.º do art. 4.º “constituídas há pelo menos três anos”. A previsão acerca do custeio das despesas decorrentes do acompanhamento do processo é exagerada: onera os cofres públicos e aproxima perigosamente consulente e consultado, aumentando o risco de captura. Ademais, o processo deverá ser disponibilizado integralmente no site da agência reguladora. No direito americano, estabelece § 553 do Administrative Procedure Act: (c) After notice required by this section, the agency shall give interested persons an opportunity to participate in the rule making through submission of written data, views, or arguments with or without opportunity for oral presentation. After consideration of the relevant matter presented, the agency shall incorporate in the rules adopted a concise general statement of their basis and purpose. When rules are required by statute to be made on the record after opportunity for an agency hearing, sections 556 and 557 of this title apply instead of this subsection. Esclarecem Alfred C. Aman Junior e William T. Mayton a razão das parcas previsões processuais acerca da consulta popular nas agências norte-americanas, em oposição ao excesso de normas presentes nos processos de decisão de controvérsias entre partes - adjudication: In the multi-interest and multi-party context of rulemaking, the decision costs associated with adversarial processes may stunt the development of a rule without necessarily improving the data base. Also, adversarial processes tend to transfer control of the rulemaking to those who are competent in such processes (lawyers) and way from those competent with respect to the substance of a rule (agency personnel and interested parties from the private sector).1171 A preocupação dos autores americanos procede ao identificarem o risco de que o estabelecimento de regras processuais rígidas se imponha como obstáculos à 1171 AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T., Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001, p. 54. regulação em si, privilegiando a forma em detrimento da substância, supervalorizando o aspecto jurídico em prejuízo do técnico. Nada obsta, entretanto, que se imponham regras pontuais acerca desta fase do processo. Tais regras devem dirigir-se à realização dos objetivos da consulta ou da audiência: recolher subsídios e informações para o processo decisório; propiciar aos agentes e consumidores a possibilidade de encaminhamento de seus pleitos, opiniões e sugestões; e identificar, da forma mais ampla possível, todos os aspectos relevantes à matéria objeto de consulta ou audiência pública.1172 Conforme já explicitado nesta tese, os discursos de direito regulatório configuram-se num modelo misto de aplicação e de fundamentação. Por vezes, a face mais visível será a aplicação, outras vezes, será a fundamentação. Se nos discursos de aplicação, as partes apresentam os aspectos litigiosos a um juiz imparcial, nos discursos de fundamentação “há apenas participantes.”1173 Os processos que expressam estes discursos, institucionalizando-os, também trarão esta marca de ambivalência. O reconhecimento de tal fato pode ser facilmente percebido pela dificuldade no tratamento legal da questão: o processo de elaboração de normas das agências reguladoras é usualmente denominado, em leis das agências, de processo decisório, e tratado juntamente com as deliberações para decisões de processos do litigioso administrativo. Tal ambivalência não justifica a lacuna ou a má técnica legislativa. O processo de elaboração do direito regulatório, ao estabelecer como requisito de validade (no sentido de legalidade) a consulta pública, bem como ao estabelecer os objetivos desta consulta - obter de subsídios e informações para o processo decisório; possibilitar o encaminhamento de seus pleitos, opiniões e sugestões; e identificar todos os aspectos relevantes à matéria - obriga a Agência Reguladora a otimizar tal comando. O modo de promover tal comando se dará, cumulativamente, pela a) ampliação da base de consulta popular, bem como pela b) abertura de uma fase de deliberação entre os consultados. 1172 Art. 21 do Regulamento da ANEEL, aprovado pelo Decreto º 2.335/1997. A norma positivou o que o entendimento da doutrina americana contemporânea. AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T., Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001, p. 41; BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras: poder normativo, consulta pública e revisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 207. 1173 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 216. A primeira medida, facultada às agências no Projeto, mas tomada como obrigatória nesta tese, em razão da adoção da Teoria do Agir Comunicativo e da Ética do Discurso, com suas repercussões no direito e na democracia deliberativa, deve permitir e promover a inclusão de todos os cidadãos atingidos, a par dos representantes de grupos de interesses, na qualidade de consultados. Estes poderão se manifestar, em processos de consulta, por escrito, utilizando-se, inclusive, de meios eletrônicos para tanto. O processo de consulta é mais indicado que o da audiência pública à configuração de uma ampla participação por relativizar barreiras de tempo, de espaço e de custos. Estipulando-se um período de consulta razoável - um período mínimo de trinta dias, como estabelece o Projeto -, e permitindo-se o encaminhamento das contribuições por meio eletrônico1174 - como já estabelece a legislação da ANEEL, por exemplo -, possibilita-se uma ampla participação popular, desincumbindo o interessado de se locomover à sede de uma Agência, no Distrito Federal, ou a uma Diretoria Regional, em algumas capitais de estados-membros, para se manifestarem, numa data marcada, sobre tema de seu interesse. A segunda medida pode ser efetivada dando-se conhecimento de todas as contribuições dos consultados entre si, facultando-se a contestação de cada uma das argumentações apresentadas por todos, estipulando-se prazo razoável para tanto. No âmbito do direito regulatório, as argumentações são em regra carregadas de dados e de propostas técnicas, bem ainda de cálculos financeiros, sendo necessário viabilizar o conhecimento de todas estas informações aos demais participantes com condições de contestarem as informações prestadas. A adoção de tal procedimento não deve causar estranheza, e resulta da natureza mista dos discursos regulatórios - de aplicação e de fundamentação. Em razão da abertura à possibilidade de contestação de contribuições dos consultados, estes deverão oferecer bons motivos para a adoção de suas propostas. A possibilidade de contestação das contribuições de participantes do processo de consulta serve de freio à proposição de medidas ilegais e ineficientes desproporcionais. Em suma, deverão os participantes pautar suas argumentações pela Teoria do Agir Comunicativo, sustentando suas opiniões e vontades através de condições de validade expressas por pretensões de verdade, de sinceridade e de correção normativa, resgatáveis discursivamente. As regras do discurso deverão balizar, ainda que intuitivamente, a argumentação. Nesta, merecerão destaque especial as questões 1174 Não custa lembra a existência de processos judiciais virtuais no âmbito da Justiça Federal e de Tribunais Estaduais. A tecnologia já está disponível para a utilização em processos administrativos. teleológicas, relacionadas ao alcance das finalidades estabelecidas em lei, pautando-se pela regra da proporcionalidade. Reitere-se que os consultados não estão obrigados, protegidos pelos direitos fundamentais (direitos subjetivos) a agirem comunicativamente. Sua atuação está liberada das condições do agir comunicativo. A possibilidade de contestação delimita, entretanto, a atuação estratégica de grupos de interesses contrários. Não se exige, nesta fase, a elaboração, pelo consultados, de extensas fundamentações acerca de suas opiniões e manifestações de vontade. Apresentando-as, entretanto, não poderão estas ser desconsideradas nas fases seguintes do processo de elaboração do direito regulatório. Especificamente acerca da consensualidade que uma consulta pública bem sucedida proporciona, lecionam Alfred C. Aman Junior e William T. Mayton que a presença de experts - especialistas integrantes do quadro da agência ou indicados pos associações - é importante, mas que a validade de uma norma depende de como ela acomoda os interesses de uma variedade de indivíduos e de entidades; de como, visto por estes, a norma os afeta.1175 Apenas mediante a inserção de uma argumentação na fase consulta pública tal desiderato pode ser alcançado. O aparente tumulto que tal reforço na participação popular sugere poderá ser controlado pela adoção de súmulas, em moldes semelhantes ao que prevê a Norma de Organização ANEEL n.º 001/98, art. 21.1176 Mutatis mutandi, as principais contribuições devem ser consolidadas em súmula específica, configurada num modelo de um relatório detalhado, mais robusto que o empregado em discursos de aplicação (processos judiciais de aplicação). Tal relatório servirá de base para a próxima fase - deliberação da Diretoria da Agência. Em atenção à almejada transparência1177 da Administração Pública, todos os cidadãos, participantes ou participantes ou não da consulta, deverão ter acesso às propostas e às contestações dos participantes, fazendo-se constar as informações e 1175 AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T., Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001, pp. 39-40. 1176 Art. 21. As consultas públicas deverão ter suas principais contribuições consolidadas em súmula específica, que será divulgada após aprovação pela Diretoria. 1177 Transparência no sentido de publicidade. Como já esclarecido a participação democrática num modelo de cidadania ativa tem alcance maior que a publicidade ou a transparência, por estar a serviço de um novo paradigma de direito, e não apenas garantir a atuação satisfatória do paradigma liberal de cidadania. contribuições dos consultados em site da respectiva Agência. Neste sentido, a previsão constante do Projeto: Art. 7.º Os resultados da consulta e audiência pública e de outros meios de participação dos interessados nas decisões a que se referem os art. 4.º e 5.º deverão ser disponibilizados em local especificado e no sítio da Agência Reguladora na Internet, com a indicação do procedimento adotado, sendo que a participação na consulta pública confere o direito de obter da Agência Reguladora resposta fundamentada, que poderá ser comum a todas as alegações substancialmente iguais. A terceira fase, a deliberação propriamente dita, ocorre entre os diretores da Agência Reguladora. Estabelece o Projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras:1178 Art. 3.º O processo de decisão das Agências Reguladoras, atinente à regulação setorial, terá caráter colegiado. § 1.º As Diretorias Colegiadas ou Conselhos Diretores das Agências Reguladoras deliberarão por maioria absoluta dos votos de seus membros, dentre eles o Diretor-Presidente, Diretor-Geral ou Presidente que, na sua ausência, deverá ser representado por seu substituto, definido em regimento próprio. Para a correta compreensão do modelo de deliberação que pautará a atuação dos Diretores das Agências Reguladoras, necessário a compreensão dos requisitos de sua investidura. Estabelece a Lei n.º 9.986/2000: Art. 5º. O Presidente ou o Diretor Geral ou Diretor-Presidente (CD I) e os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria (CD II) serão brasileiros, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados, devendo ser escolhidos pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso III do art. 52 da Constituição Federal. Reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade da agência, configuram, todos, critérios republicanos de nomeação. Espera-se dos Diretores das Agências Reguladoras, nomeados pelo Presidente e sujeitos a aprovação pelo Senado Federal, que decidam seguindo padrões morais de conduta, que ajam com probidade e decoro; graduados e conceituados que o são, que ajam com competência técnica e científica, conferindo eficiência ao setor regulado. O interesse público, unicamente, deve pautar a atuação dos integrantes da Diretoria. Por todos possuírem, ao menos hipoteticamente, idênticas condições de discutir e argumentar acerca de medidas no âmbito do setor regulado pela agência, todos têm o dever de contribuir, argumentando, para a formação da norma - direito regulatório. 1178 As leis das agências silenciam acerca do processo de elaboração do direito regulatório. Tais normas são tratadas por normas internas das agências, em meio ao processo contencioso administrativo. A conduta destes servidores públicos de alto escalão deve ser pautada pelo agir comunicativo. A atuação destes é vinculada ao atingimento do interesse público, não lhes sendo permitido, por sua vinculação funcional, agir por interesse próprio ou privado de quem quer que seja. Para tanto, deverá pautar sua atuação, obrigatoriamente, por um agir comunicativo no sentido forte, através do atendimento de condições de validade - inteligibilidade, pretensão de verdade, de sinceridade e de correção normativa - demonstradas, e não apenas demonstráveis, em razão de seu dever legal de motivar suas posições.1179 Para tanto, os Diretores da Agência devem ter como objetivo alcançar um consenso, convencendo-se mutuamente pela força das melhores razões discursivas, resultante do entrelaçamento da racionalidade epistêmica, teleológica e comunicativa. Como já se mencionou no corpo desta tese, “de um lado, a validez exigida para a as proposições e normas transcende espaços e tempos. De outro, porém, a pretensão é levantada sempre aqui e agora, em determinados contextos, sendo aceita ou rejeitada”.1180 No modelo de participação democrática que se propõe - Democracia Deliberativa -, é essencial a abertura dos Diretores a influências da esfera pública não organizada. A mídia, em especial, exerce um importante papel de fiscalização e, em regra, secunda a compreensão que a sociedade possui acerca dos assuntos de interesse público. Em questões puramente técnicas, tal influenciação será pequena, mas em questões ético-normativas, ou que diretamente atinjam uma razoável parcela da população, tal influenciação será digna de nota. A posição da sociedade, externada em canais de comunicação sérios, deve ser levada em conta nesta fase de deliberação, somando-se às posições externadas pelos cidadãos individualmente e por representantes da sociedade civil organizada, percebidas no processo de consulta popular. Na fundamentação de sua argumentação, a par da demonstração das condições de validade em seu agir comunicativo, deverá fundamentar sua opinião e vontade em termos de legalidade: deve demonstrar que a medida que entende ser a correta para a solução da questão proposta está compreendida na legislação finalística que atribui competência normativa à agência. Deverá demonstrar, ainda, que a medida proposta é proporcional, atendendo, em razão desta característica, simultaneamente critérios de legalidade e de eficiência. 1179 Neste sentido, a previsão geral da Lei n.º 9.784/99. HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 176. 1180 Deverá cada um dos Diretores da Agência fundamentar, nos termos do disposto nas regras do discurso elencadas neste capítulo, que a medida que entende ser a melhor - não necessariamente a única correta -, foi obtida tomando em consideração a) as regras da argumentação jurídica acerca da aplicação das regras do direito; b) as regras específicas para a aplicação de diretrizes/objetivos/princípios, consubstanciadas na regra da proporcionalidade, c) englobadas nesta as sub-regras da adequação, d) da necessidade e e) da proporcionalidade em sentido estrito, abrangendo esta última subregra a lei de colisão e as denominadas primeira segunda regras da ponderação. Para satisfação da sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito, deverá ponderar fundamentadamente todos os elementos que repercutem na decisão administrativa, em especial f) o peso concreto, g) o peso abstrato e o h) grau de certeza empírica acerca da realização de diretrizes/objetivos/princípios colidentes. A quarta fase, de decisão, resulta diretamente do procedimento de deliberação. Quanto mais bem realizada a deliberação, melhor será a qualidade da norma produzida. O Projeto não disciplina a questão, tampouco as atuais leis de instituição das agências reguladoras. A matéria é relegada a normas de organização ou regimentos internos. Exemplificando esta fase, colaciona-se o disposto na Norma de Organização ANEEL n.º 001/98, art. 24: Art. 24. A Diretoria reunir-se-á com a presença de, pelo menos, três Diretores, entre eles o Diretor-Geral, ou seu substituto legal, e deliberará com, no mínimo, três votos favoráveis. § 1º A votação será a descoberto, devendo cada Diretor apresentar seu voto fundamentado, oralmente ou por escrito, que constará da ata. § 2º O Diretor relator será o primeiro a proferir o voto. O ato regulatório normativo resultante deverá oferecer, com força impositiva, a solução para a questão posta em deliberação. Resultante que é do somatório dos estudos dos técnicos das agências reguladoras, da opinião e da vontade dos indivíduos, dos representantes da sociedade civil organizada, da esfera pública, e dos Diretores das agências reguladoras, apenas com a fundamentação devida poderá almejar sua necessária validade. Numa espécie de “exposição de motivos”, já tradicional no direito brasileiro, as decisões das agências devem ser amplamente fundamentadas, com base na ética do discurso, pautadas pela teoria do agir comunicativo no sentido forte, fundamentando cada uma das condições de validade da norma (ato de fala regulativo), devendo fundamentar, a compatibilidade dos atos aos objetivos das agências, pautados nas leis finalísticas, bem ainda, o atendimento da regra da proporcionalidade, em cada um de seus elementos, atendendo ao modelo das regras do discurso estabelecidas neste capítulo. Tal fundamentação possibilita o controle dos afetados, da opinião pública, e, em última instância, do Poder Judiciário. 5.5 Processo de criação do Direito Regulatório Deliberativo Pautado por critérios de legalidade, legitimidade e de eficiência, buscandose a institucionalização aproximativa das regras do discurso expostas acima, um modelo de produção de atos normativos regulatórios pode ser sugerido. A minuta de lei proposta objetiva aclarar a questões de legalidade e de eficiência, e reforçar a legitimidade na produção do direito regulatório, tornando-o deliberativo: Art. 1.º O processo de elaboração dos atos normativos regulatórios das Agências Reguladoras federais, destinados à produção de efeitos externos, será regido pelo disposto neste Capítulo, e observará, dentre outros princípios regedores da Administração Pública, os princípios da legalidade, da eficiência, da proporcionalidade, da impessoalidade, da publicidade, da boa-fé e da democracia. § 1.º Os participantes deverão proceder com verdade em relação aos fatos alegados; sinceridade em relação às vontades e opiniões expressas; e correção normativa tendente à promoção do bem comum de todos os envolvidos no processo. §2.º O poder de emissão de atos regulatórios normativos gerais e abstratos, previsto nas leis das Agências Reguladoras, será exercido para a implementação das políticas públicas e diretrizes estabelecidas nas leis de instituição e de atribuição de competência setorial. §3.º Os atos normativos regulatórios produzidos através deste processo serão denominados “Resolução Normativa”, seguidos de seu número de ordem e da referência à Agência Reguladora no âmbito da qual foi produzido. Art. 2.º O processo de elaboração de normas das Agências Reguladoras será integrado por quatro fases distintas, denominadas de iniciativa, de consulta, de deliberação e de decisão, e será, integralmente disponibilizado no sítio na Rede Mundial de Computadores, diariamente atualizado. Art. 3.º A iniciativa de processo de elaboração de ato normativo regulatório competirá a cada um dos Diretores da Agência Reguladora, que deverá promover a publicação da proposta de Resolução Normativa no Diário Oficial da União. §1.º A proposta de Resolução Normativa deverá conter, sob pena de nulidade, o embasamento legal, a matéria a ser normatizada e os dados que fundamentam a proposta. §2.º. As Agências Reguladoras deverão disponibilizar, em local especificado por normas de organização internas, e em seu sítio na Rede Mundial de Computadores, em até quarenta e oito horas após a publicação da proposta normativa no Diário Oficial da União, os estudos, os dados e todo o material técnico que foram utilizados como seu embasamento. Art. 4.º Serão objeto de consulta pública as propostas de resoluções normativas e de alterações de normas legais, apresentadas por Diretores de Agências Reguladoras de interesse geral dos agentes econômicos, dos consumidores ou dos usuários dos serviços prestados. §1. São objetivos da consulta pública: I - recolher subsídios e informações para o processo decisório da agência; II - propiciar aos agentes, aos consumidores ou usuários de serviços públicos, e aos cidadãos a possibilidade encaminhamento de seus pleitos, opiniões e sugestões; de III - identificar, da forma mais ampla possível, todos os aspectos relevantes à matéria objeto da consulta pública; IV - dar publicidade à ação regulatória da agência. §2.º O período de consulta pública iniciar-se-á sete dias após a publicação da proposta de resolução normativa, acompanhada da devida fundamentação, no Diário Oficial da União e terá a duração mínima de trinta dias. §3.º As respostas à consulta pública deverão ser encaminhas por escrito, através de documento ou por correio eletrônico, à Agência Reguladora, fazendo referência a que proposta de resolução normativa se dirigem. §.4º Todas as respostas à consulta pública deverão ser disponibilizadas pela Agência Reguladora em seu sítio na Rede Mundial de Computadores, em até sete dias após o encerramento do período de consulta, facultando-se aos consultados manifestarem-se acerca das respostas uns dos outros, abrindo-se um prazo de trinta dias para tanto. §5.º Os documentos enviados pelos consultados deverão ser digitalizados e disponibilizados na Rede Mundial de Computadores. § 6.º O direito de participação em consultas públicas é assegurado: I - Aos agentes econômicos do setor regulado; II - A associações e fundações que personalizem a sociedade civil e que incluam entre suas finalidades a proteção ao consumidor, à ordem econômica ou à livre concorrência. III - a cidadãos brasileiros. §6.º É assegurado às associações constituídas há pelo menos três anos, nos termos da lei civil, e que incluam, entre suas finalidades, a proteção ao consumidor, à ordem econômica ou à livre concorrência, o direito de indicar à Agência Reguladora até três representantes com notória especialização na matéria objeto da consulta pública, para acompanhar o processo e dar assessoramento qualificado às entidades e seus associados. a) O acompanhamento será proporcionado ao representante nas fases do processo entre a publicação de sua abertura até elaboração de relatório final a ser submetido à decisão da Diretoria Colegiada ou Conselho Diretor, ressalvado o acesso a dados e informações que sejam classificados como sigilosos na forma do art. 23 da Lei n.º 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Art. 5.º As Agências Reguladoras, por decisão colegiada, poderão realizar audiência pública para formação de juízo e tomada de decisão sobre matéria considerada relevante. § 1.º A abertura do período de audiências públicas será precedida de despacho motivado publicado no Diário Oficial da União e outros meios de comunicação, até quinze dias antes de sua realização. § 2.º As Agências Reguladoras deverão disponibilizar, em local especificado e em seu sítio na Internet, em até quinze dias antes de seu início, os estudos, dados e material técnico que foram utilizados como embasamento para as propostas colocadas em audiência pública. § 3.º As Agências Reguladoras deverão estabelecer nos regimentos próprios os critérios a serem observados nas audiências públicas. Art. 6.º As Agências Reguladoras poderão estabelecer outros meios de participação de interessados em suas decisões, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas. Art. 7.º As respostas e as manifestações acerca das respostas dos consultados deverão ser consolidadas em relatório detalhado, servindo tal consolidação de base para a deliberação dos Diretores da Agência reguladora. Art. 8.º Os resultados da consulta e audiência pública e de outros meios de participação dos interessados nas decisões a que se referem os arts. 4.º e 5.º deverão ser disponibilizados em local especificado e no sítio da Agência Reguladora na Internet, com a indicação do procedimento adotado, sendo que a participação na consulta pública confere o direito de obter da Agência Reguladora resposta fundamentada, que poderá ser comum a todas as alegações substancialmente iguais. Art. 9.º O processo de decisão das Agências Reguladoras, atinente à regulação setorial, terá caráter colegiado, e objetivará a formação de um consenso racionalmente motivado. §1.º As manifestações dos membros das Diretorias Colegiadas ou dos Conselhos Diretores das Agências Reguladoras deverão ser amplamente fundamentadas, pautadas por critérios de legalidade, proporcionalidade e eficiência, especialmente no que se refere às seguintes exigências: I - respeito às regras do ordenamento jurídico em atenção à sua aplicação; II - compatibilidade da medida com princípios, diretrizes e políticas públicas estabelecidos na lei de instituição da agência reguladoras; III - adequação ou idoneidade da medida à promoção do fim estabelecido na lei de instituição e de atribuição de competências das agências reguladoras. IV - necessidade da medida à realização da finalidade perseguida, que não poderá ser promovida, com mesma intensidade, por meio menos gravoso; V - ponderação entre a intensidade da restrição e a importância da realização de direitos protegidos por princípios, diretrizes ou políticas públicas colidentes, e que fundamentam a adoção da medida restritiva. VI - ponderação de questões como o peso concreto, o peso abstrato e o grau de certeza empírica dos direitos protegidos por princípios, diretrizes ou políticas públicas colidentes. §2.º Não sendo alcançado o consenso dentre todos os representantes presentes à sessão, as Diretorias Colegiadas ou Conselhos Diretores das Agências Reguladoras deliberarão por maioria absoluta dos votos de seus membros, dentre eles o Diretor-Presidente, Diretor-Geral ou Presidente que, na sua ausência, deverá ser representado por seu substituto, definido em regimento próprio. Art. 10. As Resoluções Normativas das Agências Reguladoras deverão ser publicadas no Diário Oficial da União, acompanhadas de exposição dos motivos de sua adoção, pautada pelos critérios do artigo antecedente. A Teoria Discursiva do Direito e a Democracia Deliberativa oferecem respostas contundentes para institucionalização em bons termos da legalidade, da eficiência e da legitimidade na produção de um direito regulatório deliberativo, viabilizando o controle jurídico e democrático da atuação administrativa. Conclusões Ao longo desta tese, em relação a cada um dos itens tratados analiticamente, foram expostas as posições doutrinárias mais relevantes, colacionando, sempre que possível, opiniões discordantes. Procurou-se, no decorrer da exposição, demonstrar o entendimento adotado, como requisito à consecução da produção de uma norma de Direito Regulatório legal, eficiente e legítima. Conclui-se objetivamente a tese apresentada, no seguinte conjunto de possíveis aspectos demonstrados em cada um de seus capítulos, a saber: Identifica a busca da eficiência administrativa como justificação para a atribuição às agências de competências originárias da Administração Direta, afastando-se a técnica da política, com a suposição de que as decisões tomadas pelas agências, no âmbito de sua discricionariedade, estarão imunes a forças políticas sazonais. Sustenta que as agências reguladoras não se subtraem a nenhum dos controles exercidos pelo Executivo e demais poderes sobre as autarquias comuns e demais entes da Administração Pública indireta. Não são independentes em relação ao Executivo, sujeitas à supervisão ministerial e à tutela administrativa, competindo ao Presidente da República a direção superior da Administração Pública. Compreende que a redução gradual do poder concedente das agências reguladoras coloca a função normativa como sua mais importante e exclusiva atribuição. Sem o contrato de concessão, a regulação será exercida basicamente pela edição de normas gerais aplicadas a todos os que integram o setor - concessionários e usuários/consumidores. Esta função, somada à fiscalização, delimitará o âmbito de atuação das agências reguladoras. Identifica a discricionariedade administrativa como o poder-dever de agir da Administração em busca do atendimento do interesse público, editando, por critérios de conveniência e de oportunidade, atos administrativos individuais e concretos ou gerais e abstratos, mas sempre balizados por lei. Afirma que discricionariedade não se confunde com conceitos jurídicos indeterminados. A discricionariedade relaciona-se ao momento de aplicação do direito, ao passo que o conceito jurídico indeterminado relaciona-se à questão da interpretação da lei que veicula os conceitos, enfrentada num momento que antecede a aplicação. Ambos se inserem no tradicional modelo de direito liberal positivista, conferindo, entretanto, maior elastério ao direito legislado e, especialmente, ao princípio da legalidade. Assevera que a discricionariedade administrativa estabelecida em regras não se confunde com a aplicação de diretrizes/objetivos/princípios estabelecidos em legislação finalística. As regras são mandatos definitivos, que podem ser realizados ou não. Na hipótese de conflito de regras, apenas uma delas será aplicada, sendo resolvido o conflito aparente pelos critérios da anterioridade, especialidade e hierarquia de normas. Os princípios (e também diretrizes, objetivos e políticas públicas) são mandatos de otimização que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível. Na hipótese de colisão de princípios, a sub-regra da ponderação (proporcionalidade em sentido estrito) definirá a solução ao caso concreto, com a redução proporcional dos princípios. Entende que as diferenças entre a discricionariedade estabelecida em regras e aplicação de diretrizes/objetivos/princípios estabelecidos em legislação finalística - origem, modelo de estatuição, solução de antinomias, amplitude de poderes - não deverão repercutir, entretanto, na utilização do método de aplicação das normas de direito vago a proporcionalidade. Compreende que além do regulamento, privativo do Chefe do Executivo, é atribuída a competência de emissão de normas por outras autoridades administrativas, integrantes da Administração direta ou indireta. Tal atribuição é correntemente denominada de poder normativo da Administração Pública. Possui como fundamento constitucional o art. 87, parágrafo único, II, da Constituição Federal, aplicável por extensão às demais autoridades da Administração. Sustenta que a delegação de poderes normativos ao Executivo, é expressamente vedada pela norma veiculada no art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Apenas as delegações legislativas já existentes à época da promulgação da Constituição Federal de 1988, e desde que tenha havido prorrogação da delegação, são aceitas pela ordem constitucional. Compreende que na aplicação de um direito vago - diretrizes/objetivos/princípios -, através de contratos administrativos, atos administrativos individuais e concretos, ou atos normativos gerais e abstratos, há ampla liberdade de escolha de meios a atingir os fins estabelecidos em políticas públicas traçadas preponderantemente em leis. Em razão de dificuldade de se identificar onde termina o regular e começa o legislar - onde terminam os discursos de aplicação e onde começam os discursos de fundamentação -, torna-se necessário um aprimoramento do aspecto de legitimidade da produção destas normas. Esclarece que dois são os modelos de exercício do poder normativo: a) Aplicação de regras de direito: quando a regra definir precisamente a atuação da agência reguladora, configurando-se hipótese de vinculação; na hipótese da regra de direito atribuir poderes discricionários à agência reguladora, as normas deverão dar executoriedade aos comandos legais, exercitando as escolhas de conveniência e de oportunidade dos atos regulatórios, sempre pautados pelo interesse público; b) Aplicação de diretrizes/objetivos/princípios: uma vez que a densidade normativa desta forma de legislação é menor, a atribuição de poderes normativos é mais ampla, conferindo-se maior liberdade de escolhas de meios, igualmente pautados pela regra (ou princípio) da proporcionalidade. A legalidade porosa se contenta em estabelecer os fins, liberando em larga medida a Administração em sua execução. Sustenta que os atos normativos das agências reguladoras vão além das resoluções, configurando uma nova espécie de ato administrativo normativo: atos regulatórios normativos. Na prática das agências reguladoras, entretanto, utiliza-se a denominação “resolução” ou “resolução normativa”, sempre que destinada à produção de efeitos externos à Administração e aos seus servidores. Afirma que os atos normativos das agências reguladoras poderão, dando executoriedade às políticas públicas escolhidas expressas em leis finalísticas, especificar direitos e obrigações aos particulares. A estatuição primária, autônoma, continua sendo da lei que dita diretrizes/objetivos/princípios. Para a concretização destas normas, constantes em leis de instituição das agências reguladoras no Brasil, necessário o reconhecimento deste poder. Compreende que, no exercício deste poder normativo, no campo da discricionariedade administrativa, discricionariedade será prioritariamente técnica, mas ainda assim, compreendida como político-administrativa. Querer ver as agências unicamente como exercentes de atividade administrativa balizada pela discricionariedade técnica é menosprezar sua atuação. É torná-la menor que os demais entes ou órgãos que exercem atividade administrativa normativa. Entende que a discricionariedade, referida quando da edição de atos individuais e concretos, instrumentaliza a edição de atos administrativos normativos gerais e abstratos, aliando-se ao princípio da igualdade, estabelecendo, de antemão, a solução a ser dada pela Administração a todos os particulares ou servidores que se encontrem em situação semelhante. Define as normas gerais e abstratas das agências reguladoras como atos regulatórios normativos gerais e abstratos emitidos com fundamento no poder normativo previsto nas leis de instituição das agências reguladoras para o exercício da discricionariedade administrativa na aplicação de regras, bem como para a escolha dos meios eficientes para a implementação de diretrizes/objetivos/princípios expressos em legislação finalística, que, pautados pela regra da proporcionalidade, especificam direitos e impõem obrigações a todos os atingidos do setor regulado. Sustenta que o regulamento pode regrar a atuação das agências em relação a sua atividade-meio. Não poderá, entretanto, regular um determinado setor cuja competência regulatória tenha sido atribuída a uma determinada agência reguladora. O poder regulamentar, no âmbito finalístico das agências, é menor do que a atividade regulatória normativa das agências. Tampouco as normas gerais e abstratas, editadas por Ministros de Estado, poderão exercer a regulação de setores reservados às Agências, sob pena de reconhecimento de invasão de competência. As normas constitucionais que conferem poder normativo às agências são os arts. 21, XI, 174, e 177, § 2.º, III, e as leis que instituíram cada uma das dez agências existentes no âmbito Federal. Compreende que, no espaço de competência finalística das agências reguladoras, suas decisões não podem ser desafiadas por recursos hierárquicos impróprios; mas, em sua atividade meio, admitem-se os recursos ao Ministério supervisor. Excepcionalmente, caberá o recurso de decisões finalísticas na hipótese de violação das políticas públicas definidas para o setor, ou que exorbitem o poder de regular por violação à lei ou ao regulamento editado pelo chefe do Executivo. Tratando-se de atos de direito regulatório nitidamente relacionado à atividade fim da agência, incabível a supervisão ministerial e o correlato recurso hierárquico impróprio. Inconcebível o recurso administrativo e a supervisão ministerial acerca dos atos regulatórios normativos. Sustenta que as agências reguladoras servem à compatibilização da representação indireta com os anseios de participação direta da sociedade. Seus atos devem atender aos requisitos de legalidade, legitimidade e eficiência. Afirma que o direito, numa concepção pós-positivista, não pode ficar imune às transformações ocorridas nas últimas três décadas, negando-se a sofrer os influxos das demais ciências humanas que com ele intimamente se relacionam. A Teoria Discursiva do Direito, com seu correlato conceito de Democracia Deliberativa, se distancia a um só tempo de concepções positivistas e de pós-positivistas conflitantes. Constata que o positivismo jurídico, relacionado ao projeto de Modernidade oitocentista fundador do Estado Moderno, não atingiu a plenitude de seus objetivos: racionalizar e ordenar o mundo. O modelo puro de regras nunca conseguiu superar o problema das lacunas do direito. De igual modo, não fundamenta legal e democraticamente os amplos poderes de emissão de normas conferidos ao Poder Executivo. Não oferece uma solução para a promoção da eficiência administrativa. Sustenta que as ciências não podem ser pensadas sem o exame do ambiente social, econômico, político e cultural em que são produzidas. O tipo de reflexão jurídica até agora prevalente na formação profissional dos operadores do direito - a dogmática jurídica -, mostra-se incapaz de interpretar, em termos unicamente jurídicos, fatos inéditos, bem ainda de projetar, em sua própria linguagem, teorias críticas do direito. Identifica, nas últimas duas ou três décadas, uma radicalização dos processos de modernização, que implicam no reconhecimento de um dinamismo de sociedade de risco. É permanente a necessidade de tomar decisões que tocam a questão da sobrevivência. Tais perigos da sociedade de riscos ultrapassam as capacidades analíticas e de prognose dos especialistas e a capacidade de elaboração, ação e reação da Administração Pública encarregada de prevenir os riscos. O Estado Subsidiário Regulador, Prevencionista ou Securitário - é o Estado da sociedade de risco. Aponta a globalização como característica central da sociedade da Segunda Modernidade. No aspecto econômico a economia adquiriu um poder de abandonar o território nacional, representando o oposto do poder territorial do Estado, passando a outra dimensão, à frente do Estado e da sociedade, ainda presos à territorialidade. A não-intervenção intencional da economia num Estado é a base do poder econômico. Pior do que ser explorado pelas multinacionais é não ser explorado por elas, o que obriga os Estados a adotarem as máximas do regime neoliberal de mercado mundial. Com base nas construções teóricas de Mireille Delmas-Marty, identifica, no aspecto econômico, o “mercado da lei”, efetivado através da pressão à adoção de convenções internacionais contra a corrupção dos agentes públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais, bem ainda pela sugestão de adaptação da regra do direito às exigências das próprias empresas multinacionais, com a imposição de uma legislação favorável aos seus interesses, num movimento de exportação do modelo jurídico anglosaxão. Neste processo a regra do direito sofre a concorrência entre as praças financeiras. As normas relacionadas à economia e ao direito econômico configuram-se normas de direito suave (soft law), sendo sua flexibilidade um facilitador de sua proliferação. Ocorre a passagem à regulação, um novo tipo de direito mais flexível, protagonizado por agências reguladoras. Delineia o surgimento de uma nova dinâmica institucional endereçada ao indivíduo, com o surgimento de novas instâncias de decisões políticas, com a participação dos indivíduos, sendo cada vez mais difícil se imporem decisões à sociedade. A deliberação e a busca de um consenso passam a ser a pedra de toque da sociedade. A autoorganização da sociedade, reunindo as forças livres da atividade econômica, comunitária e política, significa a subpolitização da sociedade. A democracia, em seu contexto original da Primeira Modernidade, deve ser redefinida. Afirma que o campo mais fecundo para a aplicação da teoria dos riscos é o dos fluxos financeiros globais, em que transações financeiras digitais, em tempo real, podem erguer países ou levá-los à lona de forma incontrolável. Sustenta que a aplicação cognitivista do direito abstrato a um caso concreto, subsuntivamente, não atende aos anseios de eficiência e de agilidade impostos pelo mundo globalizado. Para tanto, necessária a construção de um novo paradigma do direito, pós-positivista, composto por princípios, regras e procedimentos, mais ágil às necessidades da sociedade de risco global, inclusive econômico, e ainda mais democrático, com a participação direta dos atingidos em procedimento administrativo institucionalizado, defendendo a serventia da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia Deliberativa, construídas com base na Teoria do Agir Comunicativo e na Ética do Discurso, como forma de assegurar a racionalidade da argumentação e de seus resultados. Identifica Alexy como o primeiro filósofo do direito a propor e a construir uma teoria da argumentação jurídica lastrada na Ética do Discurso de Habermas: a Tese do Caso Especial. Alexy constrói sua teoria discursiva com enfoque na fundamentação da decisão judicial, com fito de lhe conferir legitimidade, relacionando-a à questão do controle desta decisão, buscando fornecer um método, ou mais precisamente, um procedimento para tanto. Aponta que, na teoria de Alexy, o discurso jurídico é um caso especial por ocorrer sob uma série de condições limitadoras, o que não deve impedir que um enunciado jurídico seja racionalmente fundamentável. A liberdade dos argumentos é limitada externamente pelo ordenamento jurídico. As afirmações jurídicas e as decisões judiciais devem ser corretas de acordo com a ordem jurídica vigente, devendo ser fundamentadas racionalmente levando em conta a lei, o precedente e a dogmática. Apresenta regras de justificação externa e formas lógicas de argumentos, agrupando-as em seis espécies diferentes. Com base nestas regras, sustenta Alexy que se deve proceder a uma discussão real ou imaginária. Identifica a serventia das 10 regras de argumentação jurídica de Alexy. São elas: 1. Deve ser saturada toda forma de argumento que houver entre os Cânones da interpretação; 2. Os argumentos que expressam uma vinculação ao teor literal da lei ou à vontade do legislador histórico prevalecem sobre outros argumentos, a não ser que se possam apresentar motivos racionais que dêem prioridade a outros argumentos; 3. A determinação do peso de argumentos de diferentes formas deve ocorrer segundo regras de ponderação. 4. Devem-se levar em consideração todos os argumentos possíveis que possam ser incluídos por sua forma entre os cânones da interpretação. 5. Todo enunciado dogmático, se é posto em dúvida, deve ser fundamentado mediante o emprego, pelo menos, de um argumento prático de tipo geral; 6. Todo enunciado dogmático deve enfrentar uma comprovação sistemática, tanto em sentido estrito como em sentido amplo; 7. Se são possíveis argumentos dogmáticos, devem ser usados. 8. Quando se puder citar um precedente a favor ou contra uma decisão deve-se fazê-lo; 9. Quem quiser afastar-se de um precedente, assume a carga da argumentação. 10. As formas de argumentos jurídicos especiais devem ser saturadas. Defende o acerto da Teoria dos Princípios de Alexy, ao distinguir regras de princípios. A diferença não é gradual, mas sim qualitativa: consiste em que os princípios são mandados de otimização; ordenam que algo seja realizado na maior medida possível fáticas e jurídicas. As regras são mandados definitivos. Desta distinção seguem todas as outras: os princípios, enquanto mandados de otimização, são realizados em diferentes graus, enquanto que as regras, mandatos definitivos, sempre podem ser realizadas ou não. Em caso de conflito de regras o aplicador se valerá das clássicas regras de solução do conflito aparente de normas – critérios hierárquico, cronológico; em hipótese de colisão de princípios, a regra da proporcionalidade, mais especificamente, a sub-regra da ponderação dará solução à questão. Sustenta que a regra da proporcionalidade não se confunde com a proibição do excesso, a proibição da insuficiência ou com o princípio da razoabilidade. A proporcionalidade aplica-se a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos discerníveis: um meio e um fim, devendo-se proceder a três exames a cerca da medida proposta: a) adequação (o meio é idôneo à promoção do fim?); b) necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, há outro meio menos restritivo do direito fundamental atingido?); proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas na observância de um direito fundamental e que fundamentam a promoção do fim, correspondem às desvantagens a outro direito fundamental colidente, provocadas pela adoção do meio?). Adequação e necessidade relacionam-se às possibilidade fáticas, e a proporcionalidade em sentido estrito à possibilidade jurídica. Com base nas construções teóricas de Alexy, compreende que a proporcionalidade em sentido estrito, terceira sub-regra da proporcionalidade, consiste no sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva. Ponderar princípios - e também diretrizes e objetivos públicos - que colidem implica em reconhecer que a regra da proporcionalidade em sentido estrito é dedutível do caráter principiológico das normas de direito fundamental. Procedimental que é, o princípio da proporcionalidade não necessita de qualquer fundamentação específica na Constituição, derivando da estrutura das normas de direitos fundamentais, bem como das normas que estabelecem políticas públicas. Identifica, com base em lições de Alexy, duas regras de ponderação, construídas tomando por base a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, que devem balizar a atuação do aplicador do direito: a) Primeira regra de ponderação - lei da ponderação material: quanto maior é o grau da não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem que ser a importância da satisfação do outro. Para o atendimento desta regra, deverá o julgador fundamentar enunciados acerca dos graus de afetação e de importância, acerca do peso das razões que justificam ou não a intervenção. b) Segunda regra de ponderação - lei de ponderação epistêmica: quanto mais intensa seja uma intervenção em um direito fundamental, tanto maior deve ser a certeza das premissas que sustentam a intervenção. Dirigem-se à qualidade epistêmica das premissas, especialmente, as empíricas. As regras de ponderação estabelecem o campo e a carga da argumentação – os enunciados acerca dos graus de importância, afetação, peso e segurança empírica. Identifica em Habermas o desenvolvimento de sua teoria ética da moral para o campo do direito, com a apresentação de sua Teoria Discursiva do Direito. Habermas ocupa-se prioritariamente de uma outra faceta do direito: sua produção legítima. Não especificamente da decisão concreta, relacionada a um caso específico delimitado num processo judicial, mas da produção de normas gerais, servindo-se para tanto - a par de discursos de aplicação - de discursos de fundamentação. Entende acertada a teoria de Habermas ao afirmar que só se consegue garantir força integradora ao direito se a totalidade dos destinatários singulares da norma jurídica puder considerar-se autora racional dessas normas. O direito moderno nutre-se de uma solidariedade concentrada no papel do cidadão que surge do agir comunicativo. Além do direito, outros dois meios de integração são identificado: o dinheiro (poder econômico) e o poder administrativo (Administração Pública). Ambos coordenam as ações de forma objetiva, não necessariamente através da consciência intencional ou comunicativa. Assevera, com lastro em lições de Habermas, que a positivação do direito moderno, que resulta da racionalização de suas bases de validade, somente conseguirá estabilizar expectativas de comportamento numa sociedade pluralista e complexa se mantiver a pretensão de solidariedade herdada, na forma de uma pretensão de legitimidade confiável, sendo necessário, pra tanto, necessário o gozo real de um status de cidadão ativo, através do qual o indivíduo singular pode influir na transformação democrática. O direito moderno alivia o indivíduo do peso das normas morais. Afirma, com base nas construções teóricas de Habermas, que o nexo interno entre soberania do povo e direitos humanos reside no conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, que é assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade. Neste modelo, a autonomia privada não pode ser sobreposta nem subordinada à autonomia política. Identifica a oposição de Habermas à Tese do Caso Especial de Alexy. Para Habermas, a moral e o direito encontram-se numa relação de complementação recíproca e que quanto mais o direito é tomado como meio de regulação política e de estruturação social, tanto maior é o peso de legitimação a ser carregado pela gênese democrática do direito. As normas de ação, que se ramificam em regras morais e jurídicas, podem ser analisadas com o auxílio do Princípio do Discurso. Compreende o princípio democrático do Discurso – ou simplesmente princípio da democracia – como uma especificação das normas de ação que surgem na forma do direito e que podem ser justificadas com o auxílio de argumentos pragmáticos, éticopolíticos e morais – e não apenas com o auxílio de argumentos morais. O princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. O direito legitimamente produzido é o medium através do qual o poder comunicativo se transforma em poder administrativo. Propõe a distinção entre discursos de fundamentação e discursos de aplicação, pressuposta na lógica da argumentação. Os discursos de fundamentação partem da assunção da perspectiva de um “nós” que assume as perspectivas da compreensão do mundo e da autocompreensão de todos os participantes. Discursos de fundamentação devem generalizar uma norma adequada proposta em consonância com o estágio do nosso conhecimento. Os discursos de aplicação procuram alcançar a segurança de expectativas sob condições de exigüidade de tempo e de conhecimento incompleto. Buscam a adequação de uma norma a uma circunstância, em consideração a todos os sinais característicos da situação de aplicação. A passagem dos discursos de fundamentação aos discursos de aplicação é representada através de um juiz imparcial. Compreende, com lastro na teoria de Habermas, que a Administração Pública contemporânea, pautada pelo intervencionismo - planejadora, executora, configuradora, em suma: reguladora - não pode mais restringir-se à implementação técnica de normas gerais e suficientemente determinadas sem levar em conta questões normativas. À medida que as leis deixam de ser vistas como programas condicionais, assumindo a forma de programas finalísticos, - cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados ou concretos, finalidades que servem de medida, que abrem à Administração um amplo espaço de opinião -, passa a ser necessário um modelo de legitimação da Administração Pública. Os atingidos passam a ter novos direitos procedimentais frente à burocracia, como a participação em processos de escuta - audiência pública e consulta popular. Sustenta que o Parlamento, ao introduzir direito vago - diretrizes/objetivos/princípios -, tem que tomar cuidados para compensar, de forma legítima, a insuficiente força de imposição de que dispõe tal direito na justiça e na Administração: os discursos de aplicação do direito têm que ser complementados por elementos dos discursos de fundamentação. Essencial a formação discursiva da vontade através de um procedimento democrático - Democracia Deliberativa. Entende que o modelo deliberativo de democracia privilegia a qualidade das decisões tomadas num Estado Democrático, dando especial ênfase à deliberação. Demonstra o acerto da teoria do direito de Habermas, concentrada na gênese e na legitimação do direito, como decorrentes de uma política legislativa que envolve negociações e formas de argumentação, sob condições exigentes, derivadas de processos e pressupostos da comunicação, onde a razão, que instaura e examina, assume figura procedimental. Assimila elementos da teoria liberal - Estado como protetor de uma sociedade econômica - e da teoria republicana - comunidade ética institucionalizada na forma de Estado -, integrando-os no conceito de um procedimento ideal para a deliberação e a tomada de decisão. É a expectativa de uma qualidade racional de seus resultados que confere à política deliberativa sua força legitimadora. Demonstra que a Teoria Discursiva do Direito é fundamental à compreensão das novas tarefas da Administração Pública regulatória, quer seja por reconhecer a necessária agilidade para a prevenção de riscos, ou por identificar a redução das atribuições de prestação de serviços públicos, com a proeminência do papel regulador exercido por meio de seu poder de emissão de normas. Propõe um reforço de legitimação do Estado de direito contemporâneo, cuja legalidade não mais está atrelada à legitimidade, por culpa quase sempre do legislador, muitas vezes constituinte, que atribui à Administração poderes normativos cada vez maiores - isto sem falar na oposição de interesses entre o cidadão e seus representantes eleitos. Depreende que a produção do direito das agências reguladoras - atos administrativos regulatórios gerais e abstratos - é pautada pela liberdade de escolha de meios dentro do marco das leis de criação e atribuição de competências das agências reguladoras, em moldes semelhantes à atuação do legislador numa ordem constitucional marco, mas com a especificação de perseguirem as finalidades determinadas pela lei de criação e fixação de competência das agências reguladoras - processadas, em regra, por iniciativa do Presidente da República. Defende que as regras do discurso compreendem regras da argumentação jurídica acerca da aplicação das regras do direito, somadas às regras para a aplicação de diretrizes/objetivos/princípios, consubstanciadas na regra da proporcionalidade, englobadas nesta as sub-regras da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, abrangendo esta última sub-regra a lei de colisão e as denominadas regras da ponderação. Para a satisfação da proporcionalidade em sentido estrito, deverão ser ponderados todos os elementos que repercutem na decisão administrativa, em especial o peso concreto, o peso abstrato e o grau de certeza empírica acerca da realização de diretrizes/objetivos/princípios colidentes. Estas regras estabelecem o que há de ser justificado nos discursos - argumentações levadas a cabo em processos de consulta e audiência pública Compreende que a regra da proporcionalidade, ao pautar a atuação da Administração, promove concomitantemente legalidade e eficiência. Se a medida adotada pela Administração não for proporcional e eficiente, será ilegal. Propõe que o princípio da legalidade, reinterpretado pela eficiência, implica o enlace da legalidade com a eficiência no âmbito da Administração Pública através da regra da proporcionalidade. Estabelece um diálogo entre as teorias de Alexy e de Habermas ao sustentar que as regras do discurso prático geral servirão à transição da teoria de Alexy - que se serve de discursos hipotéticos na produção de decisões - para a teoria democrática deliberativa, com lastro em Habermas. Assumindo que as regras do discurso prático geral estarão sempre ao lado - e não por trás - das regras do discurso jurídico, pode-se compatibilizar eficiência, legalidade e controle que a teoria de Alexy confere às normas produzidas por seu método, com a legitimidade garantida pelo Princípio do Discurso, instrumentalizado pelas regras do Discurso prático geral. Este, ao ser institucionalizado, converte-se no Princípio Democrático - Princípio do Discurso Democrático. Os pressupostos da argumentação, expressos em regras do discurso, devem servir à institucionalização de um processo de produção de normas. Afirma que nos discursos promovidos no âmbito das agências reguladoras, em que a eficiência, entendida como promoção ótima das finalidades estabelecidas em lei, é exortada, as questões empíricas - questões técnicas e complexas relacionadas ao setor regulado - ocuparão um posto central dentre as questões práticas gerais. Os discursos argumentações institucionalizadas e promovidas por agências reguladoras - são de aplicação e de fundamentação do direito, devendo pautar-se pela constitucionalidade e pela legalidade, bem como por critérios democráticos. Defende que as argumentações devem ser reguladas como forma de reflexão do agir orientado para o entendimento em atos de fala reguladores (ou regulativos), selado por razões comuns, configurando uma modalidade forte de entendimento, um acordo no sentido estrito. A exigência do atendimento das pretensões de verdade, sinceridade e correção normativa, referidas a algo no mundo objetivo, subjetivo e social, respectivamente, devem ser institucionalizadas juridicamente, sem qualquer estranhamento. Assim ocorreu com o dever moral da probidade e da boa-fé, no âmbito do direito civil, e do dever de verdade, lealdade e boa-fé processual, no campo do direito processual civil. Sustenta que “formação política da opinião e da vontade” e “implantação eficiente” devem ser tomadas como possibilidades complementares de atuação na estrutura social, e não excludentes. As regras do discurso - jurídico e prático geral - utilizadas num modelo deliberativo, instrumentalizam a um só tempo a legalidade, a eficiência e a legitimidade. Defende que a Democracia Deliberativa servirá como um método de participação nãoagregativo de produção do direito, privilegiando o bem comum e tendente ao consenso racionalmente motivado, lastrado na satisfação das condições de validade resgatadas ou resgatáveis. Afirma que no processo de produção de normas das agências reguladoras, pautado pela deliberação nos moldes procedimentais da Teoria Discursiva do Direito, os processos institucionalizados deverão absorver a opinião e a vontade das esferas públicas. A opinião pública deverá influenciar o resultado dos processos decisórios, sendo levada em conta nas deliberações promovidas pelos participantes do discurso. Propõe que o processo de elaboração de normas por agências reguladoras deve seguir o modelo de produção legislativa, com a participação de interessados e não de partes como ocorre no processo judicial. Quatro fases distintas podem ser identificadas: 1) iniciativa normativa, 2) consulta pública, 3) deliberação, e 4) decisão. Sustenta que o processo deve ser a) participativo, com a inclusão de representantes dos grupos de interesse e individualmente de cada cidadão atingido; b) substancialmente amplo, incluindo-se todos os fatos, detalhes e problemas necessários à discussão, bem como o direito que delimita o campo da regulação; e c) chegar a resultados demonstráveis racionalmente, tomando por objetivo a realização de um consenso, com auxílio das regras do discurso. Explicita que a primeira fase - iniciativa ou proposta normativa - efetiva-se com a publicação de uma minuta ou proposta de atos normativos que comunica aos atingidos a intenção de edição de normas acerca de um ponto específico da competência da agência reguladora. A iniciativa deve ser conferida a cada um dos Diretores isoladamente. A proposta normativa deve permitir aos atingidos identificarem os problemas e temas envolvidos no processo de consulta. Esclarece que a segunda fase, de consulta pública, tem por objetivos obter de subsídios e informações para o processo decisório; possibilitar o encaminhamento de seus pleitos, opiniões e sugestões; e identificar todos os aspectos relevantes à matéria. A Agência Reguladora como modo de promover tais comandos, deverá a) ampliar da base de consulta e b) estabelecer uma fase de deliberação entre os consultados. Deve permitir e promover a inclusão de todos os cidadãos atingidos, a par dos representantes de grupos de interesses, na qualidade de consultados. O processo de consulta é mais indicado que o da audiência pública à configuração de uma ampla participação por relativizar barreiras de tempo, de espaço e de custos. Afirma que para a instauração de uma fase de deliberação entre os consultados, deverá se franquear o conhecimento de todas as contribuições dos consultados entre si, facultando-se a contestação de cada uma das argumentações apresentadas por todos, estipulando-se prazo razoável para tanto. A possibilidade de contestação das contribuições de participantes do processo de consulta serve de freio à proposição de medidas ilegais e ineficientes - desproporcionais. A possibilidade de contestação delimita, ademais, a atuação estratégica de grupos de interesses contrários. Sustenta que as regras do discurso deverão balizar a argumentação. Nesta, merecerão destaque especial as questões teleológicas, relacionadas ao alcance das finalidades estabelecidas em lei, pautando-se pela regra da proporcionalidade. Os consultados não estão obrigados, protegidos pelos direitos fundamentais (direitos subjetivos) a agirem comunicativamente. Sua atuação está liberada das condições do agir comunicativo. As principais contribuições devem ser consolidadas em súmula específica, configurada num modelo de um relatório detalhado. Compreende que a terceira fase, a deliberação propriamente dita, ocorre entre os diretores da Agência Reguladora. Nomeados por critérios republicanos, devem buscar a promoção do interesse público, não lhes sendo permitido, por sua vinculação funcional, agir por interesse próprio ou privado de quem quer que seja. Deverão pautar sua atuação por um agir comunicativo no sentido forte, através do atendimento de condições de validade - inteligibilidade, pretensão de verdade, de sinceridade e de correção normativa - demonstradas, e não apenas demonstráveis, em razão de seu dever legal de motivar suas posições. Devem ter como objetivo alcançar um consenso, convencendo-se mutuamente pela força das melhores razões discursivas, resultante do entrelaçamento da racionalidade epistêmica, teleológica e comunicativa. Afirma que a mídia exerce um importante papel de fiscalização e, em regra, secunda a compreensão que a sociedade possui acerca dos assuntos de interesse público. A posição da sociedade, externada em canais de comunicação, deve ser levada em conta nesta fase de deliberação, somando-se às posições externadas pelos cidadãos individualmente e por representantes da sociedade civil organizada, percebidas no processo de consulta popular. Propõe que cada um dos Diretores da Agência deverá fundamentar que a medida que entende ser a melhor foi obtida levando em consideração a) as regras da argumentação jurídica acerca da aplicação das regras do direito; b) as regras específicas para a aplicação de diretrizes/objetivos/princípios, consubstanciadas na regra da proporcionalidade, c) englobadas nesta as sub-regras da adequação, d) da necessidade e e) da proporcionalidade em sentido estrito, abrangendo esta última sub-regra a lei de colisão e as denominadas primeira segunda regras da ponderação. Identifica que a quarta fase, de decisão, resulta diretamente do procedimento de deliberação. O ato regulatório normativo resultante deverá oferecer, com força impositiva, a solução para a questão posta em deliberação. Deverá o ato ser acompanhado de uma “exposição de motivos” amplamente fundamentada, com base na ética do discurso, pautadas pela teoria do agir comunicativo no sentido forte, especificando cada uma das condições de validade da norma (ato de fala regulativo), devendo fundamentar, a compatibilidade dos atos aos objetivos das agências, pautados nas leis finalísticas, bem ainda, o atendimento da regra da proporcionalidade, em cada um de seus elementos, atendendo ao modelo das regras do discurso estabelecidas neste capítulo. Tal fundamentação possibilitará o controle dos afetados, da opinião pública, e, em última instância, do Poder Judiciário. Propõe a institucionalização um procedimento-modelo de produção de atos normativos regulatórios, que torne patente o atendimento da legalidade e da eficiência, e reforce a legitimidade na produção do direito regulatório, tornando-o deliberativo. Conclui, por fim, considerando a problematização formulada na parte introdutória dessa Tese, que, dentro de um parâmetro doutrinário e prático, a Teoria Discursiva do Direito e a Democracia Deliberativa oferecem respostas contundentes para institucionalização em termos da legalidade, da eficiência e da legitimidade na produção de um direito regulatório deliberativo, possibilitando o controle jurídico da legitimidade da atividade regulatória normativa. ANEXO I - Quadros de correntes do pensamento político Quadro 01. Liberalismo e Republicanismo Liberalismo Republicanismo Surge no final do século XVIII e se estende nos séculos XIX e XX Surge na Roma Clássica, reaparecendo na Itália da Renascença, na Inglaterra de Cromwell, na Revolução Francesa e na Revolução Americana. Possui uma teoria econômica correlata Não possui uma teoria econômica correspondente Valorização da burguesia urbana – indústria e comércio. Organização urbana Valorização da agricultura e das virtudes do cavaleiro do campo. República agrária Hobbes, Bodin (pré-liberais), Locke, Montesquieu Smith, Kant, Humboldt, Constant, Mill, Rawls, Dworkin, Alexy... Cícero, Maquiavel, Neville, Nedham, Harrington, Sieyès, Pettit, Skinner... Neutralidade valorativa – só a defesa do indivíduo Estímulo às virtudes cívicas (somente na política) como dever do Estado Liberdade negativa como ausência de interferência à ação individual Liberdade positiva: cidadão não sujeito à ingerência – não há qualquer dominação pública ou privada Legalidade Legalidade e enfoque na legitimidade Lei como segurança jurídica contra o arbítrio: oposição à monarquia absoluta Lei como positivação da common law: oposição à monarquia absoluta, mas não à monarquia limitada Lei como razão – limitada ao bem público da sociedade Lei considerada fonte de liberdade Consentimento relacionado às origens de um governo legítimo Consentimento relacionado à aprovação, pelos que estarão sujeitos, de cada uma das leis Liberdade efetiva Segurança jurídica ou risco potencial Democracia representativa Democracia participativa em sua vertente deliberativa Direito de resistência Direito de resistência Autonomia individual e livre comércio Autonomia individual e livre comércio (EUA e Inglaterra) Direito fundamentais assegurados: expressão, pensamento, intimidade, liberdade, associação... Direito fundamentais limitáveis: Liberdade com enfoque individual Liberdade com enfoque coletivo Liberdade com enfoque na proteção contra a tirania das maiorias Liberdade com enfoque na proteção contra minorias opressoras Homem livre em face do Estado Homem livre e impossibilidade de ser explorado por outro Participação política como direito de todos, em proteção dos seus interesses (restrições censitárias) Participação política como dever de todos no exercício da virtude cívica Representação-mandato Representação no sentido eminente Voto concebido como preferência – posição utilitarista, de consumidor de uma política pública Voto concebido como julgamento – busca do interesse público, da melhor opção para a sociedade: eleitor exerce o controle de qualidade política Peso eleitoral dos grupos de pressão Qualidade dos argumentos Comportamento ideal do homem público como negociador entre grupos de pressão e congressistas, com concessões mínimas: ideal de negociação Comportamento ideal do homem público como integrante de um fórum de conversação e argumentação: ideal de deliberação Apenas o indivíduo – atomismo Indivíduo membro da sociedade. Cidadão constrói sua identidade individual As discussões políticas passadas de geração a geração formam o cidadão Primazia da vontade individual, sendo desnecessária a participação política Primazia da vontade coletiva, com a participação política Não-intervenção do Estado nos direitos do indivíduo Intervenção do Estado no núcleo dos direitos individuais Direitos subjetivos absolutos, decorrentes do direito natural Direitos subjetivos flexibilizados em favor da sociedade, pois decorrem da vontade política Dicotomias: público x privado; e político x individual Dicotomias (público x privado e político x individual) relativizadas pelo interesse coletivo Proteção absoluta da propriedade privada Flexibilização do direito de propriedade, não mais absoluto vontade política coletiva Fonte: Pesquisa bibliográfica 2006.1181 1181 As fontes bibliográficas para os quadros 01 e 02 constam da bibliografia desta tese, com destaque para: AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005; BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. V. II. 5.ª Quadro 02. Paradigmas liberal e procedimental de Estado Variáveis Paradigma liberal Paradigma procedimental Sociedade de direito privado Sociedade de direito público Direito Civil Direito Constitucional Garantia da liberdade Direitos subjetivos Direitos subjetivos e legitimação democrática Tipologia de liberdade Liberdade negativa Liberdade negativa e positiva Garantia da liberdade Direitos fundamentais Direitos fundamentais e processo de legislação política Legalidade Legalidade e legitimidade Positivismo jurídico Pós-positivismo jurídico Positivistas – Bentham, Austin, Savigny, Kelsen, Hart... Teoria Discursiva do Direito - Habermas Público x privado Público (+) esfera pública Poder neutro – acima do social Poder estatal somado ao social Autonomia privada Autonomia privada e autonomia pública Regência da sociedade Direito reitor Dominação política Representação do direto Corrente filosófico-jurídica Poder social e Estatal Poder estatal Direitos como garantia ed. Brasília: Editora UNB, 2004; CANTO-SPERBER, Monique (Org). Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo - RS: Editora Unisinos, 2003; LEYDET, Dominique. “Crise da representação: o modelo republicano em questão.” In: CARDOSO, Sérgio (Org). Retorno ao Republicanismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004; GARGARELLA, Roberto. “El Republicanismo y la filosofia política moderna”. Disponível em http://168.96.200.17/ar/libros/teoria1/gargare.rtf, com acesso em 21/06/2005; HOLMES, Stephen. Passions and constraint. Chicago: The University of Chicago Press, 1995; e SKINNER, Quentin. Liberdade antes do Liberalismo. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1998. Segurança jurídica Legalidade e previsibilidade Correção e justiça Leis (regras) Leis (regras), princípios e objetivos (policies) Bom para cada um Bom para todos, o bem comum Base da concepção de Estado Direitos fundamentais liberais Direitos fundamentais liberais + autoentendimento ético político + procedimento ideal de deliberação e decisão Racionalidade das escolhas Concepção de vida boa Neutralidade: questões de justiça Grupos de interesse Atingidos: mais amplo possível Razão teleológica Uso público da razão discursiva Fontes do direito Validade Produção do direito Racionalidade Fonte: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I e II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003; HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação. Trad. Milton Camargo Mota. Rio de Janeiro: edições Loyola, 2004, pp. 107-126. Quadro 03. Público e privado nos paradigmas liberal e procedimental Paradigma liberal Paradigma procedimental Catálogo de direitos definindo o que é privado Os participantes decidem o que é ou não do interesse comum Autonomia privada Autonomia cidadã Estado x sociedade Estado e esfera pública (incluída a sociedade civil) Liberdade individual Ninguém é livre quando sua liberdade implicar a opressão do outro (não dominação) Autonomia privada de sujeitos privados Autonomia privada de sujeitos privados em harmonia com autonomia enquanto cidadãos Fonte: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol. I e II. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. ANEXO II - Quadros de modalidades de atos de fala Quadro 01 – Tipos de uso lingüístico e de ação em Habermas Proferimentos modo de utilização atitude do agente tipo de ação proposições enunciativas e intencionais in mente não-comunicativo objetivante: intervenção dirigida a um objetivo ação não-social Expressões de vontade não incrustadas em contexto normativo orientado ao entendimento mútuo performativa: ação comunicativa no sentido fraco interações sociais atos ilocucionários completos: constatativos, expressivos e normativos orientado ao acordo performativa: ação comunicativa no sentido forte interações sociais Perlocuções orientado às conseqüências (entendimento mútuo indireto) objetivante: interações estratégicas interações sociais Fonte: Adaptação de dois quadros em HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação. Tradução: Milton Camargo Mota. Rio de Janeiro: edições Loyola, 2004, pp. 125-126. Quadro 02 – Quadro comparativo das modalidades de coordenação de ação comunicativa na Teoria do Agir Comunicativo Variáveis agir estratégico agir comunicativo no sentido fraco agir comunicativo no sentido forte coordenação da interação influenciação consecução de planos individuais coordenação da ação – entendimento coordenação da ação -acordo papel dos agentes Antagonistas, num diálogo aparente – terceira pessoa cooperação – primeira e segunda pessoas cooperação – primeira e segunda pessoas bases da coordenação convencimento de fato ou da seriedade da intenção compreensão do sentido ilocucionário e das condições de validade compreensão do sentido ilocucionário e das condições de validade coordenação busca de efeitos perlocucionários forças de ligação ilocucionárias forças de ligação ilocucionárias Alcance intervenção no mundo objetivo referência a algo no mundo objetivo, subjetivo e social referência a algo no mundo objetivo, subjetivo e social papéis dos participantes diálogo aparente falantes e ouvintes, alternadamente falantes e ouvintes, alternadamente força motivadora significado e razão teleológica significado, condições de validade, razão discursiva significado, condições de validade, razão discursiva espécie de racionalidade teleológica discursiva: epistêmica + teleológica + comunicativa discursiva: epistêmica + teleológica + comunicativa preponderância da racionalidade teleológica comunicativa sobrepõese à teleológica comunicativa razões de convencimento Teleológicas – sem condições de validade razões diferentes razões idênticas razões do ator sempre relativas à obtenção de seu sucesso boas razões à luz de suas preferências – também visa à obtenção do sucesso boas razões independentes do ator modalidades de ato de fala pertinentes constatativos, expressivos e regulativos – sempre viciados constatativos e expressivos constatativos, expressivos e regulativos Intencionalidade do agir sucesso, sem qualquer dever de verdade, sinceridade, ou correção sucesso, orientando-se por fatos verdadeiros e expressando-se com sinceridade entendimento mútuo, orientando-se por fatos verdadeiros, expressando-se com sinceridade, nos limites de normas e valores vigentes sucesso do entendimento lingüístico deficitário intermediário – não aplicável a atos regulativos completo manifestação da linguagem indireta – dar a entender direta direta atitude do agente objetivante performativa performativa modos de utilização Orientado às conseqüências entendimento mútuo indireto orientado ao entendimento mútuo orientado ao acordo em sentido estrito proferimentos perlocuções expressões de vontade fora de contextos normativos – constatativos e expressivos atos ilocucionários completos constatativos, expressivos e regulativos Metas perlocucionárias - metas ilocucionárias para o alcance das metas perlocucionárias perlocucionárias e ilocucionárias, com predomínio da última ilocucionárias condições de validade exigidas apenas inteligibilidade – não necessita verdade, sinceridade ou correção inteligibilidade, pretensão de verdade e de sinceridade inteligibilidade, pretensão de verdade, de sinceridade e de correção normativa em toda modalidade de ato de fala pretensões de verdade não exigidas – opiniões postas como valores de verdade exigidas exigidas pretensões de sinceridade não exigidas exigidas exigidas pretensões de correção normativa – consenso axiológico não exigidas não exigidas exigidas condições de sucesso ilocucionário ou perlocucionário ilocucionário e perlocucionário – compreensão e crença do destinatário na seriedade e exeqüibilidade de atos de fala com base em razões do autor ilocucionário e perlocucionário - posse do destinatário de conhecimento de razões próprias do falante ilocucionário - posse do destinatário do conhecimento de razões independentes do falante Fonte: HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação. Tradução: Milton Camargo Mota. Rio de Janeiro: edições Loyola, 2004, pp. 99-132; Id. Pensamento pós-metafísico. 2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 105-134. ANEXO III - Regras do discurso prático de Robert Alexy 1) Regras fundamentais: 1.1) Nenhum falante pode contradizer-se. 1.2) Todo falante só pode afirmar aquilo em que ele mesmo acredita. 1.3) Todo falante que aplique um predicado F a um objeto A deve estar disposto a aplicar F também a qualquer objeto igual a A em todos os aspectos relevantes. 1.3’) Todo falante só pode afirmar os juízos de valor e de dever que afirmaria dessa mesma forma em todas as situações em que são iguais em todos os aspectos relevantes. 1.4) Diferentes falantes não podem usar a mesma expressão com diferentes significados. 2) Regras da razão: 2) Todo falante deve, se lhe é pedido, fundamentar o que afirma, a não ser que possa dar razões que justifiquem negar uma fundamentação. 2.1) Quem pode falar, pode tomar parte no discurso. 2.2) a) Todos podem problematizar qualquer asserção. b) Todos podem introduzir qualquer asserção no discurso. c) Todos podem expressar suas opiniões, desejos e necessidades. 2.3) A nenhum falante se pode impedir de exercer seus direitos fixados em 2.1 e 2.2, mediante coerção interna e externa ao discurso. 3) Regras sobre a carga da argumentação: 3.1) Quem pretende tratar uma pessoa A de maneira diferente de uma pessoa B está obrigado a fundamentá-lo. 3.2) Quem ataca uma proposição ou uma norma que não é objeto da discussão, deve dar uma razão para isso. 3.3) Quem aduziu um argumento, está obrigado a dar mais argumentos em caso de contra-argumentos. 3.4) Quem introduz no discurso uma afirmação ou manifestação sobre suas opiniões, desejos ou necessidades que não se apresentam como argumento a uma manifestação anterior, tem, se lhes for pedido, de fundamentar por que essa manifestação foi introduzida na afirmação. 5) Regras de fundamentação: 5.1) Regras de generalizabilidade. 5.1.1) Quem afirma uma proposição normativa que pressupõe uma regra para a satisfação dos interesses de outras pessoas, deve poder aceitar as conseqüências de dita regra também no caso hipotético de ele se encontrar na situação daquelas pessoas. 5.1.2) As conseqüências de cada regra para a satisfação dos interesses de cada um devem ser aceitas por todos. 5.1.3) Toda regra deve ser ensinada de forma aberta e geral. 5.2) Argumento genético. 5.2.1) As regras morais que servem de base às concepções morais do falante devem resistir à comprovação de sua gênese histórico-crítica. Uma regra moral não resiste a tal comprovação: a) Se originariamente se pudesse justificar racionalmente, mas perdeu depois sua justificação, ou; b) Se originariamente não se pôde justificar racionalmente e não se podem apresentar também novas razões suficientes. 5.2.2) As regras morais que servem de base às concepções morais do falante devem resistir à comprovação de sua formação histórica individual. Uma regra moral não resiste a tal comprovação se se estabeleceu com base apenas em condições de socialização não justificáveis. 5.3) Devem ser respeitados os limites de realizabilidade faticamente dados. 6) Regras de transição: 6.1) Para qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso teórico (empírico). 6.2) Para qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso de análise da linguagem. 6.3) Para qualquer falante e em qualquer momento é possível passar a um discurso de teoria do discurso.1182 Bibliografia 1182 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, pp. 283-285. As regras de n.º 4 referem-se às formas lógicas internas da argumentação, não enfrentadas no âmbito das tese. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução: Alfredo Bossi. 4. ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003. ABRUCIO, Fernando Luiz. Os avanços e os dilemas do modelo pós-burocrático: a reforma da Administração Pública à luz da experiência internacional recente. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter Kevin (Orgs.) et alli. Reforma do Estado e Administração Pública gerencial. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abril, 2002. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. ______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005. ALLAN, Keith. Meaning and speech acts. Disponível http://arts.monash.edu/ling/staff/allan/docs/speech-acts.html, com acesso 18/05/2006. em em ALMEIDA, Aires. Lógica informal. Disponível http://www.criticanarede.com/filos_loginformal.html, com acesso em 21/06/2006. em: ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. ______. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, mimeo, p. 12. Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10/12/1998. ______. El concepto y validez del derecho. Tradução: Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 2004. ______. Epílogo à la teoría de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Berna Pulido. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2004. ______. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução: Zilda Hutschinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. ______. Teoría del discurso y derechos constitucionales. Cátedra Ernesto Garzón Valdés – 2004. Tradução: Pablo Larrañaga; René González de la Vega. Cidade do México: Distribuciones Fontamara, 2005. ______. Ponderación, control de constitucionalidad y representación. In: ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos constitucionales. Cátedra Ernesto Garzón Valdés – 2004. Tradução: René González de la Vega. Cidade do México: Distribuciones Fontamara, 2005. ______. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. AMAN Jr., Alfred C.; MAYTON, William T. Administrative Law. 2 ed. Saint Paul, Minnesota: West Group, 2001. ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985. ANDRADE, Rogério Emílio. O preço na ordem ético-jurídica. Campinas: Edicamp, 2003. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. ______. Princípio da legalidade e poder regulamentar no Estado contemporâneo. In: Revista de direito da procuradoria geral do estado do Rio de Janeiro, v. 53, Rio de Janeiro, 2000. ______. (Org.) et alli. Agência reguladora: atividade normativa. Revista de direito da associação dos procuradores do novo estado do Rio de Janeiro. Direito da regulação. v. 11. XI. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2002. ARAÚJO, Edmir Netto de. A aparente autonomia das agências reguladoras. In: MORAES, Alexandre de, (Coord) et alli. Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Tradução: Sérgio Bath. São Paulo. Editora Martins Fontes 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: Informação e documentação – referências – elaboração. Rio de Janeiro, 2002. ______. NBR 10550: informação e documentação – citações em documentos – apresentação. Rio de Janeiro, 2002. ATALIBA, Geraldo. Poder regulamentar do Executivo. In: Revista de Direito