8 Carta do IBRE Julho 2011 É preciso tirar do BC o fardo de objetivos contraditórios O Banco Central (BC) tem hoje diante de si um cenário que, em alguns aspectos, lembra o que ocorreu no ano passado. Como deve acontecer agora, houve em meados de 2010 uma trégua da inflação corrente, com o IPCA de junho, julho e agosto de 2010 ficando em 0,0%, 0,01% e 0,04%, respectivamente. Já os núcleos de inflação rodaram na faixa bem-comportada de 0,2% por alguns meses. Reforçando o paralelo, a calmaria inflacionária em 2010 veio num momento em que se concluía um ciclo de aperto monetário, entre abril e julho, que levou a Selic de 8,75% para 10,75%. Duas visões À época, duas correntes debatiam as prescrições para a política monetária. A primeira, cuja linha foi adotada pelo Banco Central (BC), considerava que a elevação da Selic em dois pontos percentuais era suficiente para estabilizar o crescimento da economia no seu potencial, em torno de 4,5% ao ano. Para o outro grupo de analistas, porém, era necessário prosseguir com a alta da taxa básica para que aquele objetivo fosse alcançado. A realidade, porém, caminhou numa direção incômoda para o BC. Depois da trégua de inverno, o IPCA subiu para níveis muito altos, e incompatíveis com sua manutenção perto do centro da meta de 4,5%. Em outubro, a inflação mensal bateu em 0,75%, e, em novembro, em 0,83%. De setembro de 2010 a maio de 2011, a inflação média mensal foi de 0,7%, o que, em termos anualizados, significa 8,7%. A alta da inflação foi puxada pelo crescimento do crédito e pela nova rodada de elevação dos preços das commodities e dos serviços. Em especial, a decisão do Banco Central e do Ministério da Fazenda de resistir à pressão de valorização do real, ligada aos ganhos de termos de troca, entre outros fatores, neutralizou o tradicional freio cambial ao efeito inflacionário da alta das commodities. Assim, exacerbou-se o impacto sobre os preços domésticos da subida internacional das matérias-primas. Fica claro, portanto, que a recidiva da inflação em 2010 pode ser parcialmente debitada a um evento de difícil previsão e combate: a alta das commodities (não neutralizada pela valorização cambial). Mas ela também é explicada por fatores domésticos, que foram antevistos de forma mais clara pela corrente crítica do Banco Central, quando este interrompeu o ciclo de alta da Selic em julho passado. Agora, diante de cenário parecido, novamente se nota que os analistas estão divididos entre os favoráveis à estratégia do Banco Central, que provavelmente está perto de terminar o atual ciclo de alta da Selic (bem mais gradativo que o de 2010), e aqueles que vêm recomendando uma ação mais drástica desde o início do ano. Estará o BC em vias de repetir, em 2011, o erro de 2010? Em outras palavras, será preciso uma abordagem mais dura de política monetária, que idealmente já deveria ter sido implantada? À primeira vista pode parecer que sim, mas a atual conjuntura é particularmente complexa, e nela entrecruzam-se tendências conjunturais e estruturais de difícil mensuração, o que torna a decisão do Banco Central outra vez muito difícil. Uma questão particularmente espinhosa é a da Carta do IBRE 9 Julho 2011 indústria, que vem apresentando um desempenho bem menos exuberante do que o dos serviços. O desempenho da indústria De abril de 2010 ao mesmo mês de 2011, a produção industrial, medida pelo IBGE, praticamente não cresceu. Quando o olhar se desloca para o comércio de varejo, naquele período, também segundo o IBGE, houve avanço de 10%. Em uma avaliação mais abrangente, observa-se um quadro parecido. Enquanto a taxa acumulada de crescimento do emprego na indústria, desde 2005, foi de 7,5%, o mesmo indicador vai a 22,4% no setor de serviços. Esses dados de mais longo prazo parecem indicar um caráter estrutural nessas tendências, ou pelo menos uma evolução cíclica mais longa dissociada dos altos e baixos dos juros domésticos, e que pode estar ligado a um ajuste em função dos ganhos nos termos de troca e da apreciação do real nesse período. Como se sabe, esses ganhos estão relacionados à alta dos preços e da produção de commodities exportáveis, o que leva a uma taxa de câmbio de equilíbrio que inviabiliza alguns segmentos da indústria. Em 2000, os manufaturados eram responsáveis por 59% da pauta de exportações brasileira e os produtos primários por 22,8%. Hoje, os primários já avançaram para 44,6%, superando os manufaturados, que caíram para 39,4%. Domesticamente, esse processo se reflete na alta dos preços e da atratividade do setor de serviços, junto com a perda de competitividade e produção na indústria. Uma dificuldade com a qual o Banco Central tem de lidar, portanto, é a de diferenciar o que, no desempenho mais recente da produção industrial, se deve ao aperto cíclico das condições monetárias, e o que está ligado a uma transição estrutural na economia, em direção à maior participação dos serviços, ou a um ciclo longo, não causado pela política monetária. Nesse contexto, o desempenho da indústria, que sempre foi um dos principais termômetros da atividade econômica, torna-se uma variável de avaliação complexa. Assim, há perguntas difíceis de responder. Especificamente em relação ao momento atual, a parada do crescimento industrial desde abril do ano passado é um sinal de que a política de con- trole da demanda agregada tem dado resultado? Ou é parte de uma mudança mais profunda da economia brasileira? Não resta dúvida, porém, que a significativa apreciação real do câmbio refletida na alta inflação dos serviços é um sinal de que o componente estrutural não deve ser negligenciado. Mas há um problema adicional trazido pelo desempenho industrial à gestão da política monetária. Apesar de ainda manter o nível de atividade elevado, o setor manufatureiro viu cair sua rentabilidade, afetado pela competição internacional, o que provoca a redução dos investimentos. Nesse cenário, pressionado A atual conjuntura tanto pela capacidade da econômica é indústria de vocalizar suas particularmente demandas quanto pela ideia (defendida por uma complexa. Nela, corrente de economistas) entrecruzam-se de que o setor é crucial tendências para avanços da produtividade ligados à tecnologia, conjunturais e o Banco Central alinha-se estruturais de difícil à Fazenda numa tentativa de minimizar o estrago mensuração, o que provocado pela valorizatorna o trabalho ção cambial. do Banco Central Com a aceleração das compras de reservas e o muito difícil aperto do IOF no carry trade (arbitragem em que se capta no exterior, a juros perto de zero, e se aplica no Brasil, com taxas acima de 12%) de um e dois anos, a equipe econômica conseguiu, de fato, impedir que o câmbio se valorizasse para compensar os ganhos de termos de troca. Mas, em consequência, houve um choque inflacionário advindo da internalização da alta das commodities, com aumento de preços em reais. É importante notar que, até 2010, a política foi a de permitir a valorização cambial, o que significa que esse canal de importação de inflação externa é um elemento novo no cenário econômico. Ambiguidades Numa segunda camada de complicação do cenário, as questões internas relativas à indústria 10 Carta do IBRE misturam-se com um quadro internacional em que também há ambiguidades sobre o que é estrutural e o que é conjuntural. Por um lado, a emergência das potências asiáticas, como China e Índia, está na origem de um longo ciclo de alta das commodities, que por sua duração pode ser percebido como uma mudança estrutural. Por outro, na esteira da crise global, os países ricos — e principalmente os Estados Unidos, com seu programa de recompra de títulos públicos de longo prazo — praticam uma política monetária ultrafrouxa, com juros básicos em níveis mínimos, o que provoca uma expansão sem precedentes da liquidez global. Este segundo movimento, embora ainda possa durar alguns anos, tem um caráter bem mais conjuntural do que a decolagem asiática. Ao se combinar com a melhoria fundamental das condições macroeconômicas e financeiras do Brasil desde 2004 — acúmulo de reservas, dívida pública proporcionalmente menor e melhor estruturada, e boom de commodities —, torna-se uma causa importante da apreciação cambial. Em outras palavras, a alta das commodities e o excesso de liquidez contribuíram para a valorização do Julho 2011 ênfase ao efeito passageiro do excesso de liquidez, a criação de mecanismos para evitar um encolhimento profundo da indústria nacional faz todo o sentido. A lógica é a de que, no momento em que a política monetária do mundo avançado for revertida em direção a condições menos frouxas, é provável que o câmbio de equilíbrio migre para um nível mais desvalorizado. Caso esse cenário se verifique, a indústria exportadora teria sido preservada. Assim, não é recomendável permitir um recuo excessivo da indústria no curto prazo. Pressão inflacionária O impacto da inflação das commodities em uma economia com mercado de trabalho já muito aquecido, e com inflação de serviços elevada, colocou lenha na fogueira das pressões inflacionárias, e exigiu ação do BC. No final de 2010, e provavelmente subsistindo até o início do governo da presidente Dilma Rousseff, prevaleceu uma atitude de buscar combinar o instrumento tradicional da Selic com medidas macroprudenciais e controles de câmbio, em linha com novas ideias sobre gestão econômica e monetária surgidas na esteira da grande crise global e adotadas em vários países. Essa abordagem esteve ligada à No baixo desempenho da produção industrial, dificuldade trazida pela decisão de tem-se que avaliar o que é função do aperto cíclico brecar a valorização do câmbio, como anteriormente mencionado. Buscou-se das condições monetárias, e o que está ligado a uma contornar o bloqueio de um canal de transição estrutural na economia, em direção à maior controle inflacionário (a valorização) com tributação do crédito, aumento de participação do setor de serviços compulsórios e exigências específicas de capitalização para determinadas real e para o rebalanceamento setorial da economia carteiras de empréstimos. brasileira, em direção a uma menor participação da O arsenal macroprudencial, no entanto, criou indústria. Mas enquanto a primeira, mesmo levando seus próprios problemas. Com a possível exceção em conta oscilações conjunturais, afigura-se como dos compulsórios, não há histórico de utilização tendência de longo prazo, à qual seria saudável a dessas medidas, o que torna incerta a quantificaeconomia adaptar-se, a abundância de liquidez deve ção do impacto sobre a demanda agregada. Essa ser uma tendência de fôlego mais curto. dúvida, por sua vez, reduz o efeito na formação Por outro lado, não se pode esquecer que uma de expectativas, que reagem de forma mais forte pauta exportadora diversificada dá ao Brasil maior ao instrumento tradicional da Selic. solidez no comércio mundial, uma vez que o país Um transtorno adicional é que a ação macronão fica exposto ao comportamento dos preços de prudencial atua mais intensamente nos setores mopoucos produtos. Nesse contexto, uma indústria vidos a crédito, como é o caso dos bens duráveis, atuante desempenha papel importante na manu- e que são justamente aqueles nos quais a inflação tenção da diversificação da pauta. Assim, ao dar hoje é mais baixa. Aquelas medidas não têm um Julho 2011 Carta do IBRE 11 efeito direto sobre a inflação de serviços, a mais nos anos seguintes. Além dos pesados investimentos para os grandes eventos esportivos problemática na atual conjuntura. Os sinais emitidos mais recentemente pela au- que o país irá sediar, são projetados, pela atual toridade monetária indicam que o próprio Banco regra, aumentos de R$ 55 bilhões em gastos Central deu-se conta dos limites da atuação ma- com o salário mínimo no triênio de 2012 a croprudencial, e também da dificuldade de com- 2014. Em suma, o bolo não crescerá o sufibinar controle da inflação com proteção cambial ciente para comportar as diversas demandas à indústria, num cenário de ganho de termos de apresentadas. Mesmo soluções paliativas, como aumentar troca pela via da alta das commodities. Assim, de forma discreta, mas clara, a ênfase voltou ao a participação do setor privado nos necessários instrumento tradicional da Selic, e permitiu-se investimentos em infraestrutura, enfrentam obstáculos, ao se confrontarem com a postura antiprialguma valorização adicional do câmbio. Um ponto quase consensual no atual cenário vatização que se tem apresentado. Dessa forma, macroeconômico é a importância de se controlar esboça-se timidamente um programa de concessão o crescimento dos gastos públicos para acomo- de aeroportos e portos, mas a sensação geral é de dar melhor a demanda privada e evitar dar mais que o ritmo de envolvimento do setor privado é combustível ao desequilíbrio fundamental que tem muito mais lento do que o necessário. Como se vê, as dificuldades da política ecoproduzido inflação e valorização (neste segundo caso, desequilíbrio do ponto de vista do câmbio nômica transcendem a esfera do Banco Cenfavorável à indústria). Se o mercado acertou em tral. E, por outro lado, as cobranças e críticas termos da piora da inflação em 2011, ele se equi- acabam se fixando na autoridade monetária vocou no ceticismo quanto à determinação fiscal apenas porque sobra para ela a ingrata tarefa do novo governo. O superávit primário está em de gestora de última instância de uma estratégia forte recuperação, e as indicações são de que a com objetivos contraditórios. meta de 2,9% do PIB será cumprida sem artifícios contábeis. De qualquer forma, mesmo com as É importante que, mesmo sintonizado com a intenção boas notícias na área fiscal, os dilemas da Fazenda e do governo em preservar a indústria, o BC fundamentais permanecem em cima da consiga convencer as demais autoridades econômicas mesa de decisões do Banco Central e do Ministério da Fazenda. Ainda que a que uma atuação demasiadamente forte no câmbio é inflação em 12 meses inicie um procesincompatível com a vigilância inflacionária so de estabilização e queda a partir do quarto trimestre de 2011, há chances Nessa situação, o Banco Central deveria se de se renovar o excesso de demanda em 2012, com o significativo aumento do salário mínimo agarrar ao seu papel central, e para o qual está mais bem aparelhado para lidar, que é o cumjá acertado com o Poder Legislativo. Assim, o caminho a se trilhar na política primento da meta de inflação. É importante econômica é estreito e apresenta riscos. Os que, mesmo sintonizado com a intenção da legítimos interesses da indústria limitam a al- Fazenda e do governo de preservar a indústria, ternativa de deixar o câmbio apreciar. Novas o BC consiga convencer as demais autoridades rodadas de elevação da Selic para combater a econômicas que uma atuação demasiadamente inflação de demanda, no cenário de liquidez forte no câmbio é incompatível com a vigilância internacional abundante, intensificarão a valo- inflacionária. Lidar com as ambiguidades da rização cambial. Repensar a política de salário conjuntura doméstica e internacional, separando o conjuntural do estrutural, já é trabalho difícil mínimo é inviável politicamente. Para completar, o nível do superávit fiscal o suficiente para que se joguem novos e inatingíprimário de 2011 dificilmente será replicado veis objetivos nas costas do Banco Central.