Cérebro Eletrônico - Projeto Andar de Novo

Propaganda
Usar o poder da mente
para interagir com
objetos deixou de ser
privilégio dos Jedis
da série Star Wars.
Escrever no Twitter
sem as mãos,
controlar robôs à
distância e jogar
videogames sem usar
joysticks já é possível.
agora, a ciência
mergulha na busca da
conexão entre corpo e
máquina para fazer
pessoas paralisadas
voltarem a andar
TcPablo Nogueira
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iccardoso
Cérebro
Eletrônico
PLUGADO: as novas
descobertas da
ciência não sugerem
exatamente conectar
um dispositivo USB
no cérebro, como na
ilustração ao lado,
mas é quase isso
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era capaz de controlar os passos de um robô acoplado a uma
esteira no Japão.
Brinquedos e Jedis Apesar do alvoroço causado por
Após ser esfaqueado no pescoço, Matthew Nagle caiu inconsciente. Ele tentava ajudar amigos que haviam se envolvido em
uma briga quando deixavam uma exibição de fogos de artifício
perto da praia de Wessagusset, no Estado americano de Massachusetts. Socorrido por paramédicos, “morreu e foi trazido
de volta”, nas palavras de seu pai, Patrick.
Ao recobrar a consciência, encontrou-se num corpo diferente
daquele que havia lhe transformado numa das estrelas do time
de futebol americano do colégio. Do ombro para baixo, seus
músculos não obedeciam. Até para poder respirar, o rapaz de 21
anos precisaria da ajuda de aparelhos. Pelo resto da vida.
Passados três anos do ataque, que aconteceu em 2001, o jovem ficou sabendo que pesquisadores da Universidade Brown
buscavam um voluntário para um experimento. O grupo pretendia implantar um sensor, batizado de Braingate, na região
motora do córtex cerebral. A meta era monitorar a atividade
elétrica do órgão. Com base nessas informações, propunhamse a desenvolver ferramentas que permitissem a vítimas de
paralisia corporal voltar a interagir com o mundo.
Nagle candidatou-se e foi aprovado. Passou por uma cirurgia
chamada de craniotomia, feita com uma furadeira especial, na
qual teve extraído da calota do crânio um disco do tamanho de
uma moeda de um centavo. Através da abertura, os neurologistas passaram um sensor de 4 por 4 milímetros, da espessura
de uma folha de papel e recheado com 100 eletrodos.
A seguir, tamparam a cavidade. Colocaram um plug na cabeça
do jovem, que permitia conectar o aparelho aos computadores
do laboratório. No ano seguinte, seu rosto apareceu em reportagens de veículos do mundo todo. Ele surgiu operando uma TV
e checando e-mail sem usar nada além do próprio cérebro.
Poder da mente Nesses poucos anos que se passaram
desde que Nagle escreveu seu nome entre os pioneiros da chamada interface cérebro-máquina (ICM), a tecnologia da área
saiu definitivamente da ficção científica para se incorporar à
ciência de ponta. Hoje, o setor avança no ritmo dos estudos
feitos por uma dúzia de laboratórios da Europa e dos EUA.
Na América do Norte, pelo menos cinco companhias desenvolvem tratamentos e produtos que se baseiam na leitura da atividade
cerebral por sensores. E, regularmente, a imprensa exibe exemplos de ações feitas exclusivamente pelo “poder da mente”.
As manchetes mais recentes foram geradas pelo trabalho de
Adam Wilson, estudante de pós-graduação em eletrônica na
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Nos EUA, Um
estudante
escreveu
mensagem
no Twitter
apenas
com o seu
pensamento
Universidade de Wisconsin. Ele criou um tipo de teclado virtual cujas teclas são ativadas a partir da concentração mental.
Utilizando o BCL2000, uma espécie de capacete que traduz a
atividade cerebral em impulsos, Wilson atualizou seu Twitter
em março com a frase “enviado do BCL2000”.
Exatamente na mesma semana, a Honda fez uma demonstração da tecnologia de ICM inventada por sua subsidiária de
pesquisas. Usando um dispositivo colocado na cabeça, um dos
técnicos da empresa comandou um robô, fazendo com que ele
acenasse com as mãos.
Em maio do ano passado, pesquisadores das universidades
de Pittsburgh e Carnegie Mellon mostraram um experimento
em que um macaco, com os membros imobilizados, manuseava
um braço eletrônico para se servir de uvas e marshmallows.
E, alguns meses antes, o brasileiro Miguel Nicolelis, um dos
principais pesquisadores da área, surpreendeu o planeta ao
mostrar como a macaca Idoya, na Carolina do Norte, EUA,
foto:
Rick Fr iedman /Cor bis; Ima ge For um; Divulgação
experimentos surpreendentes, as tecnologias de ICM vão chegar
ao nosso cotidiano sob uma forma bem mais prosaica: brinquedos. A companhia NeuroSky, da Califórnia, é uma das que estão
apostando em jogos e games que dispensam mãos e joysticks.
O primeiro produto da NeuroSky deve chegar às lojas dos EUA
ainda neste semestre. Tem o nome de “Star Wars Force Trainer”,
numa referência à capacidade exibida pelos heróis da série, os
Jedis, de fazer objetos levitarem pelo poder da concentração, ou
“a força”. O jogo consiste em um tubo acoplado a uma hélice na
base. Uma bola corre solta no cilindro. Utilizando um headset
batizado de “Thinkgear”, capaz de ler ondas cerebrais, o jogador
deve se concentrar e fazer a hélice girar para que a bola plane.
Tansy Brook, a gerente de comunicações da NeuroSky, afirma que o headset se baseia na tecnologia de eletroencefalografia, a mesma que há décadas permite monitorar a atividade do
cérebro sob a forma de cinco padrões de ondas: alfa, beta, teta,
gama e delta. Um estado mental mais concentrado pode ser
detectado por meio das ondas beta, enquanto o relaxamento
se relaciona às alfa. “O programa que o aparelho utiliza interpreta as informações sobre as combinações dos diferentes
tipos de onda que são registradas por meio de dois algoritmos,
chamados de ‘atenção’ e ‘meditação’”, diz Tansy.
Se a pessoa se concentra em alguma imagem — que não
precisa, necessariamente, ser o tubo que está à frente —, o
programa registra um aumento nos valores do algoritmo de
“concentração” e, automaticamente, aumenta a velocidade de
rotação da hélice. Ou seja: usando o headset e um pouco de
imaginação, o candidato a Jedi consegue fazer a bolinha pairar
dentro do tubo. O custo do jogo será entre R$ 180 e R$ 200.
Um segundo brinquedo, também baseado na tecnologia desenvolvida pela companhia, requer o uso da concentração para
mover uma bolinha através de um percurso cheio de obstáculos.
Batizado de “Mindflex”, tem a chegada às lojas americanas
prevista ainda para este ano. O preço deve girar em torno de
R$ 160. A empresa também está desenvolvendo games que
usam o Thinkgear em parceria com a Square Enix — criadora
do megassucesso Final Fantasy.
Matthew Nagle:
o americano foi
voluntário para os
testes com o Braingate,
um sensor implantado
na região motora do
cérebro que permite
controlar computadores
com a mente
Game mental
robô da honda
Star wars force trainer
Demonstração em feira de videogames
A empresa fez uma exibição
O brinquedo, desenvolvido pela
revela os primeiros títulos em que o
em março da tecnologia de ICM,
NeuroSky, permite ao jogador usar a
usuário poderá interagir com objetos e
em que um técnico transmitiu
concentração para fazer uma esfera
cenários virtuais utilizando apenas
mentalmente uma ordem para que
flutuar dentro de um cilindro. O
ondas cerebrais
o robô Asimo acenasse
produto será lançado neste ano
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Games e macacos Numa demonstração feita em
fevereiro numa conferência de desenvolvedores de games em São
Francisco, os participantes puderam jogar um título no qual, de
acordo com o grau de relaxamento e de concentração, conseguiam
atear fogo, empurrar e suspender objetos virtuais, incluindo um
legítimo caça Asa X idêntico aos que aparecem no filme Star Wars
— O Império Contra-Ataca.
Por trás do apelo comercial dos brinquedos estão inovações
importantes. O aparelho de encefalograma de um médico possui
mais de uma centena de sensores e requer que se aplique um gel
condutor sobre a superfície da pele da pessoa. “Nosso sistema é
capaz de produzir as leituras captando a atividade de uma única
região do cérebro, o lobo central esquerdo. Não precisamos de
muitos sensores”, afirma a gerente da NeuroSky.
Já a produção de um sensor que pudesse dispensar o gel consumiu anos de desenvolvimento de materiais. Para que o Thinkgear
funcione, ele deve ser posicionado numa região da cabeça que
não esteja coberta por cabelos — a testa, por exemplo. “Isso é
suficiente para que o sensor capte um sinal de atividade cerebral
tão bom quanto dos sensores comuns”, diz Tansy.
John Donoghue, diretor do Laboratório de Neurociência da Universidade Brown e diretor da pesquisa que resultou na instalação
do sensor no cérebro de Nagle, conta que o caminho que levou ao
desenvolvimento do Braingate começou décadas antes. “Criamos
um sensor para monitorar a atividade de muitos neurônios ao
mesmo tempo, em vez de um só, como se fazia até então.” Com
essa visão global, os cientistas dedicaram-se a interpretar o sentido por trás dos disparos aparentemente caóticos dos grupos de
neurônios. “Vimos que determinados padrões estão associados
a certos movimentos. Por meio dessas associações, podemos
estabelecer, por exemplo, que dez disparos num certo neurônio
devem significar ir para a direita, e cinco, para a esquerda.”
O passo seguinte foi desenvolver um sistema de ICM que traduzisse o código, transformando impulsos cerebrais em ações. Essa
parte da pesquisa foi feita com macacos e se revelou muito bemsucedida. Em 2002, os pesquisadores da Brown mostraram um
macaco-rhesus equipado com uma versão pioneira do Braingate
que lhe permitia operar um computador com a mente. A pesquisa
ganhou a capa da revista científica Nature.
Pessoas vitimadas por alguma forma de paralisia são as que
mais podem se beneficiar com a técnica. Mas havia um problema
entre os testes com animais e o uso em humanos. Os macacos
estudados eram saudáveis. Já as pessoas analisadas seriam portadoras de lesões sérias. “Não sabíamos se as áreas cerebrais
ligadas ao movimento ainda estariam minimamente ativas. Ou
se poderiam ser reativadas pelo simples ato de pensarem em se
mover.” Foi nessa época que Matthew Nagle se juntou ao time.
Os primeiros estudos mostraram que a área do córtex motor
continuava a funcionar mesmo depois das
lesões causadas pelas facadas. “Descobrir
isso foi um marco importante”, diz Donaghue. Depois que o implante do Braingate
mostrou-se bem-sucedido em Nagle — que
acabou falecendo em 2007 por conta de
problemas decorrentes do esfaqueamento
que nada tinham a ver com as experiências
realizadas no seu cérebro —, mais quatro
Assista a vídeos com
experimentos utilizando a
força da mente para mover
pacientes foram recrutados: dois com lesões
objetos em galileu.globo.com
ou fotografe com o celular
de medula, um com derrame e outro com a
(conectado à rede)
o código acima
degenerativa esclerose lateral amiotrófica.
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testes dão
esperanças
reais de
que pessoas
paralíticas
consigam
voltar a
andar
Eles também operaram um computador. A seta do mouse se
movia quando pensavam em mexer o braço e podiam clicar sobre um ícone quando se concentravam em fechar a mão. “Além
disso, uma paciente conseguiu controlar uma cadeira de rodas
sem treino prévio.”
Por enquanto, esses recursos só estão disponíveis em laboratório. Donaghue conta que está desenvolvendo uma versão do
Braingate que não requer a colocação do plug no crânio. O sensor
interno se comunicará com os computadores por tecnologia sem
fio. Experimentos bem-sucedidos já foram feitos com animais e
devem passar aos humanos nos próximos anos.
Nicolelis: o
cientista brasileiro
questiona a
noção de que
regiões do cérebro
sejam altamente
especializadas
Tal como Donoghue, o brasileiro interessou-se pela possibilidade de estudar as atividades de conjuntos de neurônios. Isso tornouse possível graças ao desenvolvimento da tecnologia de sensores
ao longo dos anos 1990. Nicolelis foi um dos principais artífices
dessa evolução. Graças a ela, o cientista conseguiu registrar a atividade de até 700 neurônios ao mesmo tempo. Isso lhe deu uma
perspectiva nova. Quando analisou a mente da macaca Idoya ao
caminhar, ele percebeu que, por mais semelhantes que sejam os
passos que dá, eles nunca correspondem à atividade de um único
grupo de neurônios. Ao contrário: toda vez que ela completava
uma passada, o córtex recorria a um conjunto diferente de células
para realizar o movimento. “Deve haver infinitas combinações de
neurônios que produzem o mesmo efeito, no caso, o passo.”
Ele afirma que essa característica age como “um maravilhoso
sistema de defesa”: mesmo quando nós perdemos milhões de
neurônios, continuamos sendo capazes de realizar tarefas, uma
vez que elas não são condicionadas por grupos específicos de
células cerebrais. De fato, a medicina registra casos de pessoas
que sofreram derrames mas passaram anos sem sofrer por isso,
pois não tiveram o funcionamento cerebral comprometido.
Com bases nessas observações, Nicolelis está escrevendo um
livro para apresentar suas ideias. Elas podem virar de cabeça
para baixo muitas das noções tradicionais da área. O brasileiro
questiona a tese de que o cérebro seja uma estrutura altamente
especializada, na qual uma área é responsável exclusivamente
pela fala, outra pelo movimento etc. “É lógico que algum grau
de especialização há. Mas não é absoluto. Quando se apresenta o
córtex como uma série de módulosdiscretos, isso é balela.”
Nicolelis diz que o processamento da atividade cerebral é distribuído por várias regiões simultaneamente e que um mesmo
neurônio pode ajudar a processar diferentes atividades. “São circuitos distribuídos e que constituem um sistema que está o tempo
inteiro em fluxo.” Agora ele está trabalhando em um novo sensor
com o objetivo de registrar as atividades de 2 mil neurônios. Ao
mesmo tempo, o cientista organiza uma rede internacional de
laboratórios para usar a tecnologia de ICM a fim de restaurar
a capacidade motora de indivíduos com lesões. “Experimentos
como o que fizemos com Idoya nos dão tanto a fundamentação
teórica quanto a esperança de que vamos realmente fazer com que
pessoas paralisadas voltem a caminhar um dia.”
g
A experiência de nicolelis com a macaca idoya
Nova versão do teste permitiu que, dos EUA, o animal usasse a mente para fazer um robô andar no Japão
1 fonte
A macaca Idoya
caminhou numa esteira
enquanto sensores nas
regiões do córtex motor,
pré-motor e somestésico
monitoravam seu cérebro
4 controle
Um aumento na acurácia do
sistema permitiu que o robô
andasse sem apoio enquanto
Idoya monitorava seus passos
por um telão. Após parar de
andar, ela seguiu controlando o
robô, só pensando em movê-lo
A mente controla um robô Outra esperança está
na pesquisa tocada pelo brasileiro Miguel Nicolelis, diretor do
Laboratório de Neuroengenharia da Universidade Duke, EUA.
No início deste ano, ele refez um experimento que ganhou fama
em 2008, mas com uma ligeira diferença: desta vez o autômato,
cujos movimentos estavam associados à atividade cerebral no
cérebro de um macaco, foi capaz de caminhar sem a ajuda de
uma esteira. “Avançamos de um robô que não ficava em pé
para outro capaz de se mover autonomamente em apenas dez
meses”, diz Nicolelis.
foto: A p
Photo/Jim Wallace;
i l u s t r a ç ã o : Daniel
da s Neves
2 informação
Os sensores monitoraram o funcionamento de 300
neurônios a intervalos de 250 microssegundos.
Embora a atividade entre eles se alternasse, a cada
instante se registravam informações de cerca de 80
3 transmissão
Um software traduzia a atividade dos neurônios sob
a forma de padrões de movimento. As informações
foram transmitidas a um robô no Japão, cujos
movimentos foram 90% semelhantes aos do animal
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