UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, IMAGEM E INFORMAÇÃO ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM RAFAEL DE LUNA FREIRE ATALHOS E QUEBRADAS: Plínio Marcos e o cinema brasileiro NITERÓI 2006 2 RAFAEL DE LUNA FREIRE ATALHOS E QUEBRADAS: Plínio Marcos e o cinema brasileiro Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Linha de Pesquisa: Análise da Imagem e do Som. Orientador: Prof. Dr. JOÃO LUIZ VIEIRA Niterói 2006 3 A Plínio Marcos (in memorian) 4 AGRADECIMENTOS Agradeço sinceramente a todos aqueles que ajudaram na longa pesquisa realizada para este trabalho: os cineastas Emílio Fontana, Carlos Cortez e Antônio Carlos Fontoura, que, gentilmente, me cederam seu tempo e atenção; os funcionários dos arquivos pesquisados, especialmente do Centro de Documentação e Informação da Fundação Nacional de Arte, da Biblioteca Nacional, da biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil e da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, no Rio de Janeiro, além do Arquivo Multimeios do Centro Cultural São Paulo. Gostaria de agradecer nominalmente a Carlos Roberto de Souza, Olga Futemma, Fernanda Coelho e José Francisco Oliveira Mattos (Chico), da Cinemateca Brasileira; à professora Maria Cristina Castilho Costa, coordenadora do projeto A censura em cena – O arquivo Miroel Silveira, da Escola de Arte e Comunicação da Universidade de São Paulo; à professora Leonor Souza Pinto, responsável pelo projeto Memória da censura no cinema brasileiro; e a Rosângela Sodré, do Setor de Documentação do Centro Técnico do Audiovisual. Por fim, um agradecimento especial aos amigos Carlos Eduardo Pereira e Gilberto Santeiro, da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), e ao apoio fundamental de Rosana de Freitas, coordenadora do Centro de Memórias MAM, e os funcionários Cláudio Barbosa, Mário Marques e Maurício Salles. Muito obrigado ainda a todos aqueles que ajudaram de algum modo nesta pesquisa, como Rodrigo Bouillet, Fabián Nuñez, Daniela Pinto Senador, Ruth Albuquerque e André Saddy (Canal Brasil), além dos alunos do curso de Cinema, Audiovisual e Literatura I, que ministrei no Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, no segundo semestre de 2005, como estágio docente. A realização deste trabalho teria sido muito mais difícil – e muito mais chata – se não fosse pela amizade e pelo estimulante convívio com os amigos do programa de PósGraduação em Comunicação, Imagem e Informação, especialmente meus companheiros de linha de pesquisa Luis Alberto Rocha Melo, Cyntia Nogueira, Ana Rosa Teixeira e Simplício Neto, além dos futuros doutores e colegas de um especial grupo de estudos, Fernando Morais, Leonardo Macário e Mariana Baltar. 5 Não poderia ainda deixar de agradecer à inestimável ajuda dos professores Tunico Amâncio e Dênis Moraes, membros da minha banca de qualificação, e da coordenadora do Programa de Pós-Graduação à época de meu ingresso, Marialva Barbosa. Ainda em tempo, muito obrigado também ao CNPq e à FAPERJ pelas bolsas que permitiram a realização deste trabalho. Um agradecimento obviamente fundamental ao professor, conservador da Cinemateca do MAM e amigo Hernani Heffner, não apenas pela enorme generosidade (em dimensão só comparável ao seu conhecimento), como pelo exemplo de dedicação e comprometimento desinteressado. Outro agradecimento igualmente indispensável se destina ao professor João Luiz Vieira, pela honestidade, paciência, interesse e, principalmente, pela amizade que marcou este trabalho de orientação. Por último, obrigado a todos os meus amigos e familiares que me apoiaram ou simplesmente compreenderam minha ausência, especialmente a Paula, que já me conheceu nesse “estado”, e a minha mãe, Martha, que me aturou nos piores momentos e sempre foi o exemplo mais próximo de dedicação acadêmica. 6 “Tonho: Vida desgraçada! Tem que ser sempre assim. Cada um por si e se dane o resto. Ninguém ajuda ninguém. Se um sujeito está na merda, não encontra um camarada para lhe dar uma colher de chá. E ainda aparecem uns miseráveis pra pisar na cabeça da gente. Depois, quando um cara desses se torna um sujeito estrepado, todo mundo acha ruim. Desgraça de vida!” Plínio Marcos, Dois perdidos numa noite suja. “Vado: Só estou falando a verdade. Você está velha. Outra noite cheguei aqui, você estava dormindo aí, de boca aberta, roncava como velha. Puta troço asqueroso. Mas, o pior foi quando cheguei perto para te fechar a boca. Queria ver se você parava com aquele ronco miserável. Daí, te vi bem de perto. Quase vomitei. Porra, nunca vi coisa mais nojenta em toda desgraçada da minha vida. Essa pintura, que você usa aí pra esconder a velhice, estava saindo e ficava entre as rugas, que apareciam bem. Juro! Juro por Deus que nunca tinha visto nada mais desgraçado” Plínio Marcos, Navalha na carne. “Preciso dos famintos e dos enfermos. Preciso dos meus fantasmas de sempre. Porque eu não quero nada sem estar com eles”. Plínio Marcos “Se existe cousa mal comprehendid a mesmo, é o cinema brasileiro”. Cinearte, Rio de Janeiro, n.346, 12 out. 1932. 7 RESUMO Esta dissertação aborda a trajetória dos textos literários e dramáticos de Plínio Marcos no cinema brasileiro através dos longas-metragens adaptados de sua obra. O dramaturgo, que alcançou reconhecimento nacional entre 1966 e 1968 com peças como Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, teve seus textos adaptadas para o cinema em oito filmes realizados por sete diretores diferentes ao longo de mais de três décadas. O estudo segue uma ordem cronológica ao investigar as adaptações e seu contexto de produção, apontando diferenças, acréscimos, cortes e atualizações, com ênfase especial no papel desempenhado pela censura do regime militar, a saber: A navalha na carne (dir. Braz Chediak, 1970), Dois perdidos numa noite suja (dir. Braz Chediak, 1971), Nenê Bandalho (dir. Emilio Fontana, 1971), A rainha diaba (dir. Antônio Carlos Fontoura, 1974), Barra pesada (dir. Reginaldo Farias, 1977). A parte final reflete sobre uma "retomada" de Plínio Marcos pelo cinema brasileiro a partir da década de 1990 através dos longas Barrela: escola de crimes (dir. Marco Antônio Cury, 1994), Navalha na carne (dir. Neville D'Almeida, 1997) e Dois perdidos numa noite suja (dir. José Joffily, 2003). A aná lise das abordagens do “universo pliniano” por esses filmes se revela muito significativa dos “atalhos e quebradas” do próprio cinema brasileiro nos últimos quarenta anos e resgata a permanência e atualidade de Plínio Marcos para a cultura brasileira contemporânea. Palavra-chave: Plínio Marcos, cinema brasileiro, teatro brasileiro. 8 ABSTRACT The dissertation deals with the literary and dramatic texts by Plínio Marcos as adapted for Brazilian cinema. The playwrite who achieved unprecedented national recognition between 1966-68 thanks to Dois perdidos numa noite suja and Navalha na carne had eight of his works adapted for film, directed by seven different filmmakers throughout more than three decades. The text employs a chronological analysis to investigate the adaptations and the contexts of their production, pointing to transformations, additions, cuts and updatings. Special emphasis is placed on the role of censorship during Brazil’s military dictatorship. The films are: A navalha na carne (dir. Braz Chediak, 1970), Dois perdidos numa noite suja (dir. Braz Chediak, 1971), Nenê Bandalho (dir. Emilio Fontana, 1971), A rainha diaba (dir. Antônio Carlos Fontoura, 1974), Barra pesada (dir. Reginaldo Farias, 1977). The final part reflects upon the revisiting of Plínio Marcos’s work in Brazilian cinema during the nineties through the feature films Barrela: escola de crimes (dir. Marco Antônio Cury, 1994), Navalha na carne (dir. Neville D'Almeida, 1997) and Dois perdidos numa noite suja (dir. José Joffily, 2003). The analysis of Plínio Marcos’ universe through the adaptation of his works might be of significance when seeking to understand some of the impasses faced by Brazilian cinema in the last forty years. It also points to the permanence and actuality of Plínio Marcos in contemporary Brazilian culture. 9 LISTA DE ANEXOS 1. Capa do programa da montagem da peça Navalha na carne em São Paulo, em 1968. 2. Página do livro Navalha na carne (1968), primeira peça de Plínio Marcos publicada em livro. 3. Crítica de Vicent Canby, do The New York Times, sobre o filme A navalha na carne. 4. Certificado de censura emitido para o relançamento de Nenê Bandalho depois de quase três anos proibido pela censura. 5. Carta de Emílio Fontana à Embrafilme 6. Página do argumento de A rainha diaba escrito e rasurado por Plínio Marcos 7. Material de divulgação do filme Barra pesada com a aparência de uma folha do caderno policial do jornal popular Última Hora. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 1. PLÍNIO MARCOS .............................................................................................................. 24 2. PALCOS E TELAS ............................................................................................................ 96 3. NAVALHA NA TELA ..................................................................................................... 150 4. UM FILME PERDIDO NUMA NOITE ESCURA .......................................................... 191 5. O MALDITO, O MARGINAL E O BANDIDO .............................................................. 221 6. PLÍNIO-POP-GAY-BLACK ............................................................................................ 278 7. A BARRA PESOU PARA VALER ................................................................................. 311 8. A RETOMADA ................................................................................................................ 356 9. CONCLUSÃO .................................................................................................................. 370 10. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 376 11. FILMOGRAFIA ............................................................................................................. 398 11. ANEXOS ........................................................................................................................ 408 11 INTRODUÇÃO Plínio e o cinema: uma trajetória no submundo. Este é um trabalho sobre Plínio Marcos (1935-1999) e sobre o cinema brasileiro, tendo como objeto principal as adaptações cinematográficas em forma de longa- metragem das obras do conhecido escritor e dramaturgo. A partir do final da década de 60, quando Plínio Marcos se tornou um nome consagrado, as obras plinianas – peças, contos e argumentos – foram levadas às telas em oito longas- metragens realizados ao longo de mais de três décadas. Trata-se dos filmes A navalha na carne (dir. Braz Chediak, 1970), Dois perdidos numa noite suja (dir. Braz Chediak, 1971), Nenê Bandalho (dir. Emílio Fontana, 1971), A rainha diaba (dir. Antonio Carlos Fontoura, 1974), Barra pesada (dir. Reginaldo Faria, 1977), Barrela: escola de crimes (dir. Marco Antonio Cury, 1994), Navalha na carne (dir. Neville D’Almeida, 1997) e Dois perdidos numa noite suja (dir. José Joffily, 2003). O objetivo principal deste trabalho foi refletir sobre o percurso das obras do autor na história do cinema brasileiro, tentando perceber como os traços principais do “universo pliniano” – o conjunto de personagens, ambientes e características narrativas e dramáticas particulares de um conjunto de obras de Plínio Marcos – receberam diferentes abordagens em diferentes filmes, dirigidos por diferentes cineastas em diferentes épocas. Ou seja, a meta foi identificar como foram tratados (ou retratados) nas adaptações alguns elementos formais e temáticos fundamentais do texto de Plínio Marcos; perceber ao longo do tempo um circuito cambiável de significados a partir de um elenco de características como a abordagem de ambientes e tipos marginais, a ambivalente relação de poder e violência entre os personagens, os sucessivos e ininterruptos conflitos expressos num ritmo intenso e crescente, além do uso de uma linguagem crua e direta. Empreendeu-se uma análise detalhada dos filmes, atentando para os aspectos estéticos, econômicos e políticos de cada obra, mas tendo como eixo principal de análise o horizonte comparativo com o texto adaptado. Uma reflexão aprofundada foi buscada, mas deixando 12 claro tratar-se apenas de uma das possíveis leituras dos filmes abordados, e que muitas ainda podem e devem ser feitas. Neste estudo, um interesse especial recaiu sobre os motivos que levaram à realização de cada filme em diferentes momentos. O objetivo não se restringiu a identificar apenas as “intenções pessoais” de cada cineasta – como seria o caso de uma análise de viés puramente “autorista” –, mas atentar também, por exemplo, para o papel, em geral negligenciado, dos produtores de cada adaptação, tentando perceber as justificativas comerciais e sociais que estiveram por trás da realização dos filmes. Enfim, procurando perceber os “atalhos e quebradas” de uma trajetória no submundo do cinema brasileiro, surgiu a hipótese de que a obra de Plínio Marcos atenderia a determinadas demandas dos realizadores dos filmes pelo tema e pelo universo característico abordado pelo autor, em diferentes momentos e sob diferentes pontos de vista. Ou seja, o olhar sobre as relações entre as obras literárias – dramáticas ou em prosa – de Plínio Marcos e suas adaptações cinematográficas se constituiu “mais como um esforço para tornar mais claras as escolhas de quem leu o texto e o assume como ponto de partida, não de chegada” (XAVIER, In: PELLEGRINI et al., 1993, p.62). Buscando iluminar os meandros da trajetória das adaptações plinianas, os capítulos que se seguem foram orga nizados numa ordem cronológica em função da data em que os filmes foram lançados comercialmente nas salas de cinema no país. 1 O capítulo 1 (Plínio Marcos) apresenta dados biográficos de Plínio Marcos e uma breve análise de sua obra. O capítulo 2 (Palcos e telas) discute o contexto do cinema e do teatro brasileiros que marcaram os primeiros anos da carreira do autor. Partindo do ano de 1958 – quando Plínio Marcos escreveu sua primeira peça, Barrela, montada apenas uma vez e depois censurada por mais de duas décadas – até o ano de 1968, quando o dramaturgo já era conhecido nacionalmente, estabeleceu-se um ponto de partida para análise dos filmes nos capítulos subseqüentes. O capítulo 3 (Navalha na tela) e o capítulo 4 (Um filme perdido numa noite escura) tratam, respectivamente, dos filmes A navalha na carne (1970) e Dois perdidos numa noite suja (1971), ambos dirigidos por Braz Chediak e adaptados das peças homônimas de Plínio Marcos. 1 Trata-se de uma opção metodológica tomada com o princípio de se pensar a recepção do filme pelo público e as relações entre uma adaptação e as realizadas anteriormente através da “memória do público”. Se a ordenação dos filmes seguisse um critério como o do ano de realização dos filmes, a seqüência das adaptações não seria a mesma. 13 O capítulo 5 (O maldito, o marginal e o bandido) aborda o filme Nenê Bandalho, de Emílio Fontana, também lançado em 1971 e cujo roteiro teve origem num conto homônimo do autor. O filme A rainha diaba (1974), realizado a partir de um argumento escrito sob encomenda por Plínio Marcos para o cineasta Antonio Carlos Fontoura, é o tema do capítulo 6 (Plínio-pop-gay-black). Por último, o capítulo 7 (A barra pesou pra valer) analisa o filme Barra pesada (1977), dirigido por Reginaldo Faria e baseado no conto Nas quebradas da vida. No capítulo 8 (Retomada), são discutidos de forma mais breve os filmes que marcam uma retomada das adaptações plinianas nos anos 90: Barrela: escola de crimes (dir. Marco Antonio Cury, 1994), Navalha na carne (dir. Neville D’Almeida, 1997) e Dois perdidos numa noite suja (dir. José Joffily, 2003). Devido aos limites deste trabalho e à proximidade com uma tendência que considero ainda em curso (para o segundo semestre de 2006 está programado o lançamento de mais uma adaptação: Querô, de Carlos Cortez), estes três últimos filmes não receberam neste trabalho o mesmo aprofundamento dispensado para as cinco adaptações analisadas separadamente. Por outro lado, no estudo da trajetória pliniana no cinema brasileiro, alguns temas específicos surgiram e tiveram que ser aprofundados de alguma maneira. Como um dos autores mais perseguidos pela ditadura militar – e não apenas por ela –, foi impossível não discutir o papel da censura na carreira de Plínio Marcos, assim como na realização e exibição dos filmes que tinham seu nome nos créditos. Se a atuação da censura pode ser dividida simplificadamente em três frentes –censura política, religiosa e moral – no caso das obras de Plínio Marcos, a perseguição partiu sobretudo de um conservadorismo moralista e atingiu com muito mais rigor suas peças do que suas obras literárias ou as adaptações cinematográficas. Apesar de um filme como A navalha na carne ter permanecido interditado durante seis meses pela Censura Federal entre 1969 e 1970, outro filme do mesmo diretor, como, por exemplo, a “pornochanchada” Banana mecânica (dir. Braz Chediak, 1974), foi muito mais “retalhado” pelos censores, sem que isso provocasse maior repercussão. Como relatou a atriz Nicole Puzzi, estrela de muitos filmes nos anos 70, “a censura não permitia, por exemplo, que os dois seios aparecessem na tela. O bumbum, só na lateral. Então, se mostrasse um seio, não podia mostrar a lateral do bumbum”. Como a própria atriz 14 definiu de forma irônica, mas não sem alguma razão: “Era uma censura anatômica” (PUZZI; SOLNIK, 1994, p.7). Desse modo, embora estivesse incisivamente presente nas obras de Plínio Marcos a denúncia da miséria, da desigualdade social e da violência na sociedade brasileira – e estes aspectos também sofressem ação da censura –, o teor considerado “atentatório à moral e aos bons costumes”, especialmente os palavrões e expressões de baixo calão, é que eram os alvos preferidos das tesouras dos censores. Por outro lado, o aspecto moral não pode ser desvinculado do aspecto político, como bem ilustra uma história contada pelo próprio Plínio Marcos (1996): De repente, todas as minhas peças foram proibidas. Por quê? Ninguém dizia coisa com coisa. Um filhoda-puta de um censor, num dia em que eu perguntei por que todas as minhas peças estavam proibidas, ficou nervoso: – Porque suas peças são pornográficas e subversivas. – Mas por que são pornográficas e subversivas? – São pornográficas porque têm palavrão. E são subversivas porque você sabe que não pode es crever com palavrão e escreve. Outra questão não muito distante e que também surge ao se refletir sobre o percurso das adaptações plinianas diz respeito à representação da violência e da criminalidade urbana pelo cinema brasileiro e sua relação com a percepção do aumento da violência na sociedade brasileira, especialmente na década de 70. Desse modo, ao mesmo tempo em que se tornou necessário atentar para o que o sociólogo Michel Misse (1999) chamou de “acumulação social da violência” – a respeito da percepção social de uma generalização da criminalidade violenta –, foi importante um investimento na teoria de gêneros, buscando identificar as características do filme policial brasileiro que se desenvolveu com vigor nesse período. Entendendo o gênero como “a cristalização de um encontro negociado entre cineasta e audiência”, seguimos o caminho sugerido por Robert Stam (2003, p.148-151) de compreender o filme policial brasileiro como “um conjunto de recursos discursivos que podem ser utilizados ou reestruturados das mais diferentes maneiras ou intenções”. Por último, é obviamente importante ressaltar que este trabalho se localiza no campo comparativo dos estudos de literatura e cinema, com foco na questão das adaptações cinematográficas de obras literárias. 15 Cinema, literatura e teatro. De maneira alguma recorremos ao conceito de fidelidade (tanto à “letra” quanto ao “espírito”) na abordagem das transposições do texto literário de Plínio Marcos para o texto fílmico. Conforme Randal Johnson (1982, p.1-2), a noção de fidelidade é ahistórica, subjetiva e, sobretudo, impraticável. Ou seja, apesar de equivocada persistência e indiscutível persuasão, a exigência ou a busca por fidelidade entre obras realizadas em meios diferentes, além de problemática e talvez utópica, é carregada de inúmeros preconceitos envolvendo as relações entre cinema e literatura, e, especialmente, o cinema e o teatro. Além de tornar o foco de um estudo muito mais restrito, a noção de fidelidade inevitavelmente se encaminha para definições essencialistas dos meios, tanto do cinema, quanto da literatura ou do teatro, os limitando e, por conseguinte, os subestimando. Uma abordagem preocupada em determinar especificidades, invariavelmente assume que as expressões artísticas têm “vocações”, sendo inerentemente “boas” para certas coisas e “ruins” para outras. O pioneiro livro Novels into film, de George Bluestone, publicado em 1957, apresentou como principal contribuição ao debate sobre o tema a afirmação enfática de que na transposição de uma obra literária para o cinema as mudanças decorrentes eram inevitáveis, pois o filme e o romance representavam gêneros estéticos distintos, tão diferentes quanto o balé da arquitetura. Entretanto, além de uma visão essencialista, a análise de Bluestone também apresentava outros problemas, como a estreiteza em abrangência e a valorização de um cânone artístico, reafirmando uma superioridade formal da literatura sobre os filmes analisados ao conferir um nível de valor relativo ao sucesso ou fracasso da adaptação. A posição “hierarquizante” de Bluestone seria logo questionada pelos jovens críticos da Cahiers du Cinéma e futuros cineastas da Nouvelle Vague. Partindo do conceito de “câmera-caneta” (caméra-stylo) esboçado por Alexandre Astruc (1948) em sua valorização do cineasta (ou autor) que “e screve com a câmera como um escritor escreve com a sua caneta”, os “jovens turcos” passaram a colocar em relevo o diretor (metteur-en-scéne) – que seria o principal grande responsável pelos méritos da obra –, no que ficou conhecida como politique des auteurs. 2 2 In: NOUVELLE VAGUE, Lisboa. Catálogo... Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 1999. 16 Essa concepção foi exemplarmente expressa por François Truffaut no artigo L’Adaptation Littéraire au Cinéma: Opor fidelidade à letra e ao espírito me parece falsear os principais problemas da adaptação, se é que eles existem. [...] a traição à letra ou ao espírito é tolerável se o cineasta não se interessar nem por uma nem por outra e se ele for bem sucedido em fazer: a) a mesma coisa b) a mesma coisa, ainda melhor c) outra coisa melhor. 3 Truffaut acreditava ser o problema da adaptação um falso problema, uma vez que não existiria receita ou fórmula mágica. Só o êxito do filme importaria e isso seria de competência exclusiva da personalidade do diretor. Entretanto, apesar dessa posição libertária, mesmo a Nouvelle Vague não escapou da exigência de fidelidade, ainda que ela só viesse à tona na relação com uma obra de cânone literário, o que foi estrategicamente evitado. André Bazin (2000, p.23), guru intelectual da Nouvelle Vague, abordou com precisão a questão da “intocabilidade da obra de arte” no respeito pelo romance, especialmente aqueles considerados “clássicos”, muitas vezes vistos como “uma síntese única cujo equilíbrio molecular é automaticamente afetado quando sua forma é modificada”. Bazin atentava para o fato da exigência de fidelidade se basear num recente conceito individualista de “autor” e “obra”, que longe de ser eticamente rigoroso, por exemplo, no século XVII, só começou a se tornar legalmente definido no final do século XVIII. No cinema, o próprio conceito de autor se popularizou justamente pela geração de críticos e cineastas que tinham o mesmo André Bazin como mentor. Randal Johnson (2003, p.40) resumiu satisfatoriamente a questão: O problema – o estabelecimento de uma hierarquia normativa entre literatura e cinema, entre uma obra original e uma versão derivada, entre autenticidade e o simulacro e, por extensão, entre a cultura de elite e a cultura de massa – baseia-se numa concepção, derivada da estética kantiana, da inviolabilidade da obra literária e da especificidade estética. Conforme Robert Stam (2000, p.58), após a minimização dos preconceitos com o tratamento de todas as práticas significantes como produtoras de “textos” e merecedores da mesma atenção, além do desmantelamento da hierarquia entre original e cópia, atualmente a adaptação cinematográfica não deve mais ser encarada necessariamente como inferior ao 3 TRUFFAUT, François. L’Adaptation Littéraire au Cinéma. La Revue des lettres modernes, v. 5, n.36-38, verão 1958 (Tradução do autor). 17 romance ou peça no qual se baseia. Indo mais longe, a adaptação cinematográfica, não considerada mais como uma imitação apagada de uma original autêntico e superior, deve ser encarada como uma citação transplantada em um novo contexto e inevitavelmente com uma nova função (RAY, 2000, p.45). Atentos à impossibilidade de sustentação do conceito de fidelidade como um princípio metodológico exclusivo e à “diferença automática” decorrente da mudança do meio – de palavras escritas para uma combinação de sons e imagens –, diversos autores buscaram definir outras estratégias de análise. André Bazin sugeriu o estudo das adaptações como “seleções” ou “condensações”. 4 A cine-semiótica de Christian Metz empreendeu uma busca de equivalentes entre planos ou seqüências visuais e palavras ou frases escritas, assim como entre a montagem cinematográfica e a gramática verbal. 5 Dudley Andrew (2000, p.33) sugeriu o uso do conceito desenvolvido por E.H. Gombrich entre outros, da “combinação” (matching), segundo a qual podemos fazer permanentemente ligações entre diferentes sistemas de signos, assim como da estratégia de Nelson Goodman de buscar equivalência não dos elementos, mas das posições que esses elementos ocupariam em seus diferentes domínios. Autores como Thaïs Diniz (1999, p.32) fazem uso do termo tradução intersemiótica (ou ainda tradução cultural), afirmando que “a equivalência não é a questão da busca da igualdade – que não pode ser encontrada nem mesmo dentro da língua – mas de processo”. Nesse sentido, Andrew (op. cit., p.34) afirma ainda que as análises de adaptações devem se direcionar para a busca por efetivações de unidades narrativas equivalentes em sistemas semióticos absolutamente diferentes (como o filme e o romance), encaminhando-se para o estudo dos diferentes estilos e períodos do cinema em relação aos diferentes estilos e períodos da literatura. Segundo o autor, isso levaria da eterna generalização ao solo irregular, mas sólido, da História, da prática e do discurso artístico. Para Ismail Xavier (2003, p.63-64), a idéia da adaptação como tradução intersemiótica e a identificação de equivalências bem-sucedidas entre o cinema e a literatura – “entre as palavras e as imagens, ou entre ritmo musical e o de um texto escrito, entre a tonalidade de um enunciado verbal e a de uma fotografia” – estão localizadas no terreno do estilo. Para o autor, trata-se de uma procura ainda apoiada na velha idéia de que há “um modo de fazer 4 Essa intenção já era sugerida em seu artigo publicado em 1948 pelo próprio título: L’Adaptation, ou le cinéma comme digeste (In: NAREMORE, 2000). 5 Uma revisão dos conceitos de Metz em relação à adaptação se encontra em JOHNSON (1982, p.10-28). 18 certas coisas, próprias ao cinema, que é análogo ao modo como se obtêm certos efeitos no livro”. Entretanto, essa busca por analogias de estilo, entre o que seria específica à literatura e o que seria específico ao cinema, uma definição de “modos de fazer” equivalentes, se revelaria um caminho complicado por se apoiar na percepção pessoal, que embora possa ser trabalhada por instrumentos conceituais, não deve conduzir as análises. Ray (op. cit., p.48-49) também contesta em parte a estratégia sugerida por Andrew assinalando-a como relevante apenas para “nutrir investigações mais rigorosas sobre as transações entre literatura clássica e filmes sérios”. Ressaltando como a mídia comercial atualmente mistura as mais diferentes formas e estruturas de linguagem possíveis, numa época de uso sem precedente dos recursos de comunicação e de total interação entre as mídias, e vivendo hoje o que Bazin antecipava, na década de 1950, como o “reino da adaptação”, o autor aponta que a missão dos estudos das adaptações é repensar as combinações possíveis entre imagens e palavras, assim como seus propósitos. Se Andrews (op.cit., p.30-31) tentou definir três diferentes relações possíveis nas adaptações – empréstimo, interseção e fidelidade da transformação 6 –, é mais interessante questionarmos se qualquer adaptação não estabelece inevitavelmente um “diálogo dialético” com sua fonte. Robert Stam pensa a adaptação como uma forma de dialogismo intertextual, inserido numa rede de infinitas possibilidades de interseção de superfícies textuais – reconhecíveis ou não – e no qual o conceito de intertextualidade ajuda a transcender a noção de fidelidade. Mesmo não se considerando um “bakhtiniano”, Robert Stam (1992,passim) sugere o uso de conceitos do amplo arsenal teórico da obra do russo Mikhail Bakthin como carnavalização, dialogismo (traduzido por Julia Kristeva como “intertextualidade”), heteroglossia, tato e polifonia, que poderiam se revelar proveitosos no estudo das adaptações com seu investimento na valorização da diferença e das relações anti-hierarquizantes. Se a adaptação pode ser pensada como um “resumo” (como apontou Bazin), ela também preenche lacunas, amplia, critica e modifica a fonte “original”. Desse modo, tão 6 Empréstimo – o modo mais comum no qual o “artista emprega, em maio ou menor grau, o material, a idéia, ou forma de um texto anterior e, em geral, bem sucedido [...] Aqui a principal questão é a popularidade do original, seu potencial para um grande e variado apelo, e sua existência com uma forma ou arquétipo contínuo na cultura”. Interseção – quando a proposta da adaptação não é ser uma refração do original, mas “apresentar a singularidade do texto original, iniciando um diálogo dialético entre formas estéticas de uma época e a forma cinematográfica de nossa própria época”. Fidelidade da transformação – quando a adaptação assume a tarefa de reproduzir no cinema o essencial de um texto original. Trata-se de um caso claro em que o filme se esforça para se equivaler à obra literária ou à expectativa do público em fazer tal comparação. Entretanto, as adaptações que se apresentam como “transposições” ou “transformações fiéis”, seriam “inquestionavelmente a mais freqüente e desinteressante discussão sobre adaptação”. 19 interessante quanto perceber o que na fonte literária é eliminado, é atentar para porque certos materiais são ignorados, além do que é também acrescentado. Na verdade, existe uma constelação de expressões que podem ser usadas para substituir a palavra “adaptação”, como tradução, leitura, recriação, dialogização, canibalização, transmutação, transfiguração, significação, entre outras. Robert Stam (2000, p.62) sugere, por exemplo, o uso de tradução, que já apontaria para os inevitáveis ganhos e perdas típicas de qualquer tradução, ou mesmo de leitura, opção interessante por indicar que a transformação de uma obra literária num filme, como qualquer leitura, seria um processo inevitavelmente parcial, pessoal e conjetural. Ou seja, um texto pode gerar uma infinidade de traduções, assim como de leituras, da mesma maneira que uma infinidade de adaptações cinematográficas. Entretanto, acredito que mais importante que o termo utilizado, é a ênfase numa visão menos estreita nos processos de adaptação cinematográfica, atentando também às inúmeras limitações determinadas pelas mais diversas contingências, sejam financeiras, políticas, sociais ou tecnológicas. Da mesma maneira, devemos estar menos preocupados com hierarquias ou fidelidade, e sim com as diferenças (e o que elas significam), sempre apoiados por uma história contextual e intertextual. Como apontou Johnson (1982, p.34-35), no estudo das adaptações é necessário o conhecimento das diferenças entre os meios, assim como das circunstâncias sócio-históricas concretas de produção e de consumo, e da ideologia que se atribui ao escritor ou cineasta. Além do mais, a relação do cinema com o teatro é ainda mais complexa e bem menos estudada, não devendo deixar de ser abordada neste trabalho que inclui análises de filmes baseados em peças teatrais. A par das grandes diferenças, existem semelhanças fundamentais: ambos são meios de expressões considerados “presentacionais” (ocorrem num espaço e tempo determinado) e não “representacionais” (como a literatura ou a pintura), e os dois possuem a capacidade de fazer uso tanto do som (música, ruídos ou diálogos) quanto de imagens ou textos. 7 Enquanto a literatura, a despeito da possível existência de diferentes versões (e traduções) do mesmo texto, tem uma fonte supostamente determinada, o teatro já representa a possibilidade de diversas versões de si próprio. Na verdade, quando falamos em teatro 7 Entretanto, o teatro é talvez ainda mais “presentacional” do que o cinema. Conforme C. Bernd Sucher (2003, p.24), o teatro é o prazer do momento no qual o que tem que ser mostrado e dito ganha existência, sendo o único meio que celebra e se esforça para não ser nada além do presente. 20 devemos estar atentos à diferenciação entre a literatura dramática (drama) e o espetáculo teatral (theatre). Cada encenação de uma peça será sempre diferente da outra, ainda mais quando pensamos em montagens realizadas em épocas, países ou por companhias diferentes. Toda vez que um texto dramático é levado aos palcos, isso já se constitui numa “adaptação” por si só da peça – no sentido já apontado anteriormente da adaptação como uma leitura ou tradução da fonte “original”. 8 Isso nos leva a questionar se o cinema, quando leva às telas determinada peça, adapta exclusivamente o drama, ou é inevitável a influência das incontáveis montagens teatrais desse mesmo texto – justamente a maneira através da qual uma peça geralmente se torna conhecida do público. Ou seja, esses processos estão muito ligados aos diferentes momentos não só da história do cinema, como da história do teatro, em que o prestígio e a importância do texto – e do próprio autor – foram inúmeras vezes contrabalançadas pelo papel do diretor ou do ator. Ao contrário do texto que a princípio pode ser facilmente resgatado, uma montagem só é possível de ser remotamente recuperada pela memória, através de fotos, relatos ou registros audiovisuais. A atenção a esses aspectos nos leva a problematizar ainda mais enfaticamente a questão da fidelidade nas adaptações cinematográficas de peças. Dessa maneira, um aprofundamento na reflexão sobre o teatro brasileiro e, especialmente, do cinema brasileiro é igualmente fundamental e indispensável. Na medida das possibilidades de extensão deste trabalho, as adaptações cinematográficas de Plínio Marcos são discutidas sempre tendo em vista o contexto em que os filmes foram realizados, colocando permanentemente em análise outras produções que mantiveram relações com a obra analisada, assim como diferentes manifestações culturais no campo da música, da literatura, do teatro ou da televisão. Foi necessária uma ampla pesquisa – incluindo entrevistas, consultas a fontes primárias e busca de documentos inéditos – primeiramente por se tratar de filmes completamente ignorados ou desprezados por uma historiografia clássica do cinema brasileiro. 8 9 Ao discutir a costumeira diferenciação feita entre o cinema mais “visual” e o teatro mais “verbal”, Robert Knopf (2005, p.6) afirma que enquanto o filme “é o produto”, o “texto teatral” não deve ser confundido com o “espetáculo teatral”, lembrando ainda que, com poucas exceções, as grandes platéias se lembram com mais freqüência de momentos de uma encenação do que de diálogos da peça. 9 Os oito filmes analisados nessa dissertação inexistem nas principais histórias panorâmicas (SOUZA, C.; GALVÃO, 1984, RAMOS, F., 1987a, SOUZA, C., 1998, HEFFNER, 1995, NICOLAS, 2004), inevitavelmente sujeitas a lacunas e omissões. Nos textos de Le cinéma brésilien (PARANAGUÁ, 1987) três dos filmes são pelo menos citados, ainda que superficialmente. A mesma ausência também pode ser notada tanto em outras publicações menos ambiciosas ou sem pretensões totalizantes que abrangem o cinema brasileiro produzido a 21 Em segundo lugar, ao traçar uma trajetória das adaptações plinianas, esse percurso freqüentemente se chocou com as periodizações consagradas pela historiografia clássica do cinema brasileiro, sendo fundamental o questionamento das próprias definições dessas categorias estanques. Trata-se de tentar encarar o dilema e enfrentar o desafio apontados por Bernardet (op. cit., p.59), crítico dessa mesma historiografia: “É possível elencar, numa linha de continuidade cronológica, todos os elementos julgados necessários para constituir quer a periodização quer a ‘história do cinema brasileiro’, e seccionar essa linha em fatias temporais que tenham uma significação dominante intrínseca bem como uma significação para os diversos elementos que a compõem? Ou ao contrário, não deveríamos rechaçar o corte cronológico vertical, e trabalhar horizontalmente com filões que apresentariam ritmos diferenciados e tentar estabelecer entre eles relações, sem querer encaixá-los em unidades temporais consideradas válidas para todos os filões?”. Uma reflexão sobre o cinema brasileiro a partir do estudo das adaptações cinematográficas de determinado escritor ou dramaturgo é um caminho que pode se revelar proveitoso, mas não é, de maneira alguma, uma estratégia inédita. Muitos trabalhos foram produzidos recentemente, por exemplo, sobre as adaptações cinematográficas da obra de Nelson Rodrigues, o autor teatral mais adaptado pelo cinema brasileiro. 10 Mas da mesma maneira que a filmografia pliniana vem despertando muito menos interesse que as adaptações rodriguianas, a vida e obra de Plínio Marcos – considerado um dos maiores dramaturgos brasileiros, possivelmente atrás apenas do próprio Nelson Rodrigues – não recebeu até hoje a atenção que mereceria. Se o “anjo pornográfico” tem sido objeto de estudos, teses, compilações, dissertações e biografias ao longo dos anos, Plínio Marcos só foi objeto de estudo acadêmico no Brasil pela primeira vez em 1993, com a tese de doutoramento de Paulo Roberto Vieira de Mello na Universidade de São Paulo (USP), posteriormente tranformada em livro (VIEIRA, 1994). Outro estudo importante foi realizado por Fred Maia, Javier Contreras e Vinícius Pinheiro, como trabalho de conclusão do curso de jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação (FaCA), da Universidade Santa Cecília, em 1999, também sendo publicado mais tarde (2002). partir do final dos anos 60 (AVELLAR, BERNARDET, MONTEIRO, 1979; XAVIER, 2001;), assim como a presença superficial e rasteira nas obras de caráter enciclopédico (PAIVA, 1989, MIRANDA; RAMOS, F., 2000). Surpreendentemente, o mesmo processo de apagamento também ocorre com os filmes mais recentes realizados a partir de 1990, nem sequer citados na crescente bibliografia de abordagem panorâmica sobre a chamada “retomada do cinema brasileiro” (ORICCHIO, 2003, CAETANO, 2005, BUTCHER, 2005). 10 Entretanto, mesmo em relação aos filmes baseados em obras de Nelson Rodrigues, conforme Stephanie Dennison (2000, p.142), os pesquisadores tem se concentrado com maior afinco somente nos dois filmes de Arnaldo Jabor, justamente aqueles com respaldo de clássicos do cinema brasileiros dos anos 70. 22 Entretanto, se a principal fonte de pesquisa sobre a vida e a obra de Plínio Marcos sempre foi ele próprio, esse interesse tardio acarretou perdas irreparáveis, conforme apontou reportagem do jornal O Estado de São Paulo, publicada em 2000: “Com a morte de Plínio Marcos há exatamente um ano, perde-se grande parte da história da dramaturgia brasileira. E não é chavão. É ínfima a documentação que se tem de todo o tempo em que Plínio Marcos escreveu: a história da sua obra estava viva apenas em sua memória. Resgatar sua obra completa é uma missão quase impossível”. 11 Se foram enormes as dificuldades encontradas na pesquisa sobre as adaptações cinematográficas de obras plinianas – algo jamais abordado com profundidade 12 –, investigar a biografia e a carreira de Plínio Marcos se revelou um desafio igual ou até maior. Mesmo em 2004, quando iniciei este trabalho, as lacunas permaneciam, os equívocos se perpetuavam e a ignorância sobre a vida e a obra de um dos maiores nomes da cultura brasileira contemporânea continuava reinando. Autor maldito e esquecido Reconhecido como um dos principais autores do teatro brasileiro moderno, Plínio Marcos foi, verdadeiramente, um artista completo. Dramaturgo e diretor teatral, Plínio atuou também como palhaço, humorista e apresentador de shows, além de ator em pavilhões, teatros, programas de rádio, telenovelas e filmes. Escreveu não apenas peças teatrais, como poesias, contos, livros infantis e romances, e desenvolveu uma longa carreira como jornalista, assinando colunas, crônicas, reportagens, entrevistas e até críticas e editoriais. Plínio Marcos, alé m de artista, foi, sobretudo, uma personalidade. Por sua intensa militância política e cultural e sua postura combativa, polêmica e afirmativa, mais que um dramaturgo consagrado, Plínio se tornou também uma importante figura pública. 11 VIEIRA, Gustavo. Plínio Marcos, "clássico", continua marginal. Estado de São Paulo, São Paulo, 17 nov. 2000. Disponível em: <http://www.copa.esp.br/divirtase/noticias/2000/nov/17/340.htm>. Acesso em: 22 jul. 2005. 12 Apesar de já ter sido tema de mostras esporádicas em cineclubes, além de uma programação especial no Canal Brasil (que incluiu um episódio da série Retratos Brasileiros sobre Plínio Marcos, exibido pela primeira vez em 2003), a filmografia pliniana nunca tinha sido abordada com a devida profundidade, sendo mencionada apenas em textos meramente informativos como Plínio Marcos e o Cinema, de Luiz Câmara (In: PLÍNIO MARCOS: UM GRITO DE LIBERDADE, 2000) ou o verbete Plínio Marcos, de Luiz Felipe Miranda (In: MIRANDA; RAMOS, F., 2000). 23 Além disso, a revolução que o “autor maldito” causou no panorama do teatro brasileiro na segunda metade da década de 1960 foi ainda mais intensa pelo fato daquele “gênio” ter vivido e conhecido de perto o ambiente sórdido que retratava nos palcos e chocava as platéias e as sensibilidades burguesas. Assim como suas peças eram diferentes de tudo que já tinha sido feito anteriormente nos palcos nacionais – seja por sua linguagem, ritmo ou violência –, Plínio também se destacava totalmente da quase totalidade dos demais artistas e intelectuais por sua própria origem social e status intelectual. Afinal de contas, como sempre era lembrado por todos, e ele – em uma atitude até política – fazia questão de reforçar, tratava-se de um ex-palhaço de circo semi-analfabeto. Como contou a primeira esposa de Plínio, Walderez de Barros, que o conheceu quando era ligada ao Centro Popular de Cultura (CPC) da Faculdade de Filosofia da USP, onde estudava, “Plínio podia ser definido por palavra muito em moda na época: autêntico, que era o jeito que nós, intelectuais metidos a besta, descobrimos para definir alguém que era um pouco selvagem assim como o Plínio” (MENEZES, 2004, p. 149). Tanto na cidade de Santos – após o sucesso local de Barrela em 1959 –, quanto em dimensão nacional – com a consagração de Navalha na carne em 1967 e 1968 –, Plínio foi considerado um autêntico gênio (ou um gênio autêntico), um talento nato, um diamante bruto. O jornalista Mino Carta, no prefácio de Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos, conferiu uma definição brilhante ao papel que Plínio assumiu, muito maior que simplesmente a voz por trás de seus textos: “Algo, porém, o torna realmente díspar da maioria, único numa multidão, um dos poucos de contorno definido. Uma silhueta nítida na paisagem empastada. O Plínio tem a incrível força dos símbolos, queiram ou não seus amigos ou inimigos” (MARCOS, 1977) (grifo meu). Mas como um ator em sua origem, Plínio também foi, ao mesmo tempo, um “personagem de si mesmo”, incorporando sua imagem pública e transformando-a em objeto de contestação. Chamado de “ex-palhaço de circo”, de “analfabeto”, de “maldito”, de “camelô” ou de “quase mendigo”, o dramaturgo assumia ostensivamente essas qualificações, fossem ou não realmente condizentes com o homem, junto à família e aos amigos. Como personagem chave ou verdadeiro símbolo – seja da luta contra a censura, da voz dos excluídos, da defesa da cultura popular ou da recusa do politicamente tão correto quanto acrítico – é importante não deixar de abordar a história de vida de Plínio Marcos ao tratar de sua obra. Ele próprio, proclamando-se porta voz dessa gente, repórter do “povão que berra da 24 geral sem nunca influir no resultado”, colaborou para tornar cada vez mais difícil separar sua trajetória pessoal da profissional. 25 1. PLÍNIO MARCOS Nos atalhos esquisitos, estreitos e escamosos do roçado do Bom Deus. Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos, dia 29 de setembro de 1935, e faleceu em São Paulo, em 19 de novembro de 1999, aos 64 anos. De origem “mais ou menos humilde”, Plínio e seus quatro irmãos e uma irmã eram filhos de um bancário (Armando) e de uma dona de casa (Hermínia). Tratava-se de uma família de “classe média muito baixa, porque bancário naquele tempo tinha um padrão de vida muito baixo”. 13 Na infância tranqüila passada no que era chamada de “vila de bancários” na Ponta da Praia – que hoje denominaríamos de conjunto habitacional –, sua maior dificuldade foi no colégio, o Grupo Escolar Dona Lourdes Ortiz. Para o amigo e jornalista Quartim de Moraes, “ele não conseguia se interessar pelas bobagens que ensinavam na escola. O fato é que a família dele não tinha a formação necessária para perceber que estava lidando com um superdotado. E acabaram imaginando que o Plínio fosse um deficiente, uma confusão muito comum, aliás”. 14 A jornalista Vera Artaxo, sua última companheira, apostou em outra hipótese: Plínio nasceu canhoto, mas acabou escrevendo com a mão direita por imposição das instituições educacionais da época. Acho que esse fato pode ter sido uma espinha dorsal para toda a sua história porque a partir desse fato ele passou a ser excluído, primeiramente nas relações escolares [...]. O Plínio não conseguia escrever um ditado na mesma velocidade que os outros meninos, por exemplo, e acabava tirando zero. Então, essa característica o deixou um pouco de lado. O que os outros meninos faziam em quinze minutos ele levava muito mais tempo para escrever. Ele então passou a se afastar desse meio até que parou de estudar na 4ª série primária e começou a jogar futebol, onde a canhota dele era poderosa e aceita (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO 2002, p. 48-49). 15 13 MARCOS, Plínio. Entrevista com Plínio Marcos. Centro de documentação e informação sobre arte brasileira contemporânea, São Paulo, 23 fev. 1978. Entrevista concedida a Cláudia de Alencar e Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Trabalho não publicado. Mimeografado. 14 BARROS, Carlos Juliano. Repórter de um tempo mau. Repórter Brasil. Arquivo. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.com.br/reportagens/plinio/iframe.php>. Acesso em: 5 mar. 2006. 15 Entretanto, Plínio sempre realizou todas as atividades com a mão direita, inclusive escrever. E toda a sua obra foi manuscrita (MARCOS, Plínio. Sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos. Dados biográficos. Origens. Disponível em: < http://www.pliniomarcos.com/dados/origens.htm >. Acesso em: 18 jun. 2005). 26 Repetindo o ano diversas vezes, Plínio Marcos acabou saindo da escola antes mesmo de completar o curso primário. Superdotado, débil mental, canhoto ou simplesmente uma criança que preferia jogar bola a estudar, ele foi ser gauche na vida. Como parou de estudar, Plínio foi obrigado a aprender desde cedo uma profissão. Logo se tornou aprendiz de encanador e aos quinze anos já era funileiro. Aos dezesseis estava em São Paulo como montador de fogões. Retornou à cidade natal seis meses depois para treinar no time juvenil da Portuguesa Santista, já que seu sonho era ser jogador de futebol. Trabalhou ainda como office-boy de um banco, “xepeiro” do cais do porto de Santos, ajudante de caminhão e vendedor em banca de livros espíritas numa praça da cidade. 16 A carreira artística de Plínio Marcos começou no circo, como o palhaço Frajola – “um contador de piadas picantes”. 17 Esta origem, como todas as histórias de vida de Plínio, é romanceada em seus próprios relatos: “Eu queria namorar uma moça do circo, que conheci quando o cantor do nosso bairro foi cantar no circo. O pai dela só deixava ela namorar gente do circo. Então eu entrei para o circo. Achei que era mais engraçado do que o palhaço e que eu devia ser palhaço”. 18 Trabalhando nos picadeiros desde os dezesseis anos, após servir por dez meses à Aeronáutica, em 1954, essa opção tornou-se mais definida, embora tenha continuado a alternar a inconstante vida artística com biscates no cais do porto. Como palhaço e humorista, Plínio Marcos percorreu o interior paulista com a Companhia Santista de Teatro de Variedades, chegando, inclusive, a dirigir shows e a atuar em programas de rádio e na TV-5, de Santos. Nos diversos palcos e lonas em que trabalhou, como as do Circo Toledo, Circo Teatro Tupi, Circo São Jorge, Circo dos Ciganos, Circo do Pingolô e da Ricardina, no Pavilhão Zênite, Pavilhão Teatro Liberdade e Pavilhão Teatro Rubi e Sina, convivendo com uma 16 MARCOS, Plínio. Sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos. Dados biográficos. Origens. Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/dados/dados_circo.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. PLÍNIO Marcos: currículo. Centro de documentação e informação da arte, Fundação Nacional de Arte, Rio de Janeiro, [197?]. Mimeografado. MARCOS, Plínio. Entrevista com Plínio Marcos. Centro de documentação e informação sobre arte brasileira contemporânea, São Paulo, 23 fev. 1978. Entrevista concedida a Cláudia de Alencar e Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Mimeografado. 17 Frajola era o apelido de infância que Plínio ganhou ao ser pego roubando um passarinho de uma gaiola, emprestado do gato Frajola (Sylvester, no original) da revista em quadrinhos Mindinho, sempre atrás do passarinho Piu-Piu (Tweetie Pie). Criados nos estúdios da Warner Bros. em 1945 e 1946, esses personagens também se tornaram conhecidos através dos desenhos animados da série Looney tunes e Merrie melodies. 18 MARCOS, Plínio. Sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos. Dados biográficos. Origens. Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/dados/dados_circo.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 27 variedade de artistas mambembes e saltimbancos, fossem ilusionistas, ciganos, cantores, palhaços ou malabaristas, Plínio deu seus primeiros passos também como ator: “O circo era um pavilhão-teatro. Tinha a parte dos shows e tinha a parte do teatro. Na primeira parte, a gente fazia os shows: entrava o palhaço, essas coisas todas, os números de circo; e, na segunda, tinha sempre uma peça. Eu fazia vários pequenos papéis. Nunca cheguei a fazer um grande papel, mas sempre com falas, papelzinho de destaque”. 19 De volta a Santos após um longo período na estrada, Plínio integrou-se ao efervescente clima cultural da cidade. A partir de 1956 começou a participar ativamente do teatro amador santista, tradicionalmente de boa qualidade, integrando o Grupo de Arte, e atuando em diversos palcos como os do Centro dos Estudantes de Santos, Clube de Arte e Centro Português. Nessa época, era também me mbro do Clube de Poesia do jornal O Diário, de Santos, tendo várias poesias publicadas. Mas a grande reviravolta aconteceu em 1958, quando um encontro mudou sua vida. Estavam precisando de uma pessoa para fazer uma ponta numa peça infantil (Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado) que seria encenada no dia seguinte e decidiram convidá-lo. Plínio decorou o texto de um dia para o outro e fez o papel na peça dirigida por Vasco Oscar Nunes para o Grêmio da Calderaria das Docas. Foi lá que ele conheceu Patrícia Galvão, a célebre Pagu, “que amava o teatro e incentivava o movimento amador” (MARCOS, 1976a, p.6). 20 Plínio virou “amigo de infância” de uma das principais intelectuais brasileiras e passou a conviver com aquele círculo de artistas e pensadores, cursando uma verdadeira “universidade erudita”, como diria posteriormente. 21 O ex-palhaço de circo começou, então, a participar intensamente do grupo de teatro amador e das atividades promovidas por Pagu e seu marido, o escritor Geraldo Ferraz, trabalhando como ator e/ou diretor em várias peças 19 Ibid Patrícia Galvão (1910-1962), nascida em São João da Boa Vista (SP), foi poeta, desenhista, jornalista, romancista, cronista, militante feminista e musa inspiradora da terceira geração do Modernismo, participando do ala dissidente do movimento da Antropofagia. Filiou-se ao partido comunista, assim como seu marido Osvald de Andrade, com quem permaneceu casada de 1930 a 1934. Escreveu o primeiro romance proletário publicado no Brasil, Parque Industrial (1932), viajou o mundo e foi presa pela ditadura do Estado Novo. Mais tarde, casou-se com o escritor Geraldo Ferraz, desligou-se do partido comunista em 1940 e foi candidata a deputada estadual em São Paulo pelo Partido Socialista Brasileiro, em 1950. Depois de freqüentar a Escola de Artes Dramáticas (EAD) na capital paulista, passou a viver em Santos, onde fomentou a vanguarda teatral e literária local e tornou-se a grande incentivadora dos grupos de jovens amadores, sendo eleita presidente da “União dos Teatros Amadores de Santos”. 21 Plínio afirmou ter recebido uma forte influência de uma cultura erudita nesse convívio com Pagu e outros artistas e intelectuais, como o escritor Geraldo Ferraz, o músico Gilberto Mendes e os poetas Rodão Mendes Rosa e Narcísio de Andrade (KHÉDE, 1981, p. 201). 20 28 como Verinha e o lobo, Menina sem nome, A longa viagem de volta, Escurial, O rapto das cebolinhas, Jerry no pomar e Triângulo escaleno. Entretanto, ainda em 1958, inspirado num caso verdadeiro ocorrido em Santos e publicado nos jornais, Plínio, aos 23 anos, já havia escrito sua primeira peça, Barrela. Ele mostrou o texto para Pagu, que se entusiasmou com seus diálogos e o levou para Paschoal Carlos Magno, que organizava em Santos o II Festival Nacional de Teatro de Estudante, do qual ela era membro do júr i. Igualmente admirado com o texto, Paschoal, ao final do festival, anunciou aos jornais que fazia questão que os estudantes montassem a peça. Os ensaios começaram no início de 1959 e em fins de setembro estavam prontos para estrear. Enviada para apreciação, Barrela foi proibida pela censura antes de sua estréia. Somente através de um telegrama despachado diretamente do gabinete de Juscelino Kubitschek, graças à intervenção pessoal do próprio Paschoal – na época assessor cultural do Presidente da República –, a situação foi resolvida com a liberação do texto para uma única apresentação. Após dois meses de luta e negociações, no dia 1º de novembro de 1959, o espetáculo pôde ser encenado no palco do Centro Português de Santos. Depois dessa noite, porém, a peça continuaria proibida pela Censura Federal por mais vinte e um anos. Dirigida pelo próprio Plínio (que também fez o papel do “Louco”), aquela apresentação única de Barrela marcou sua vida: “No final todos aplaudiam de pé, gente chorava e o nosso elenco chorava junto. Jamais em minha vida se repetirá uma noite como aquela, jamais saberei o que é o sucesso novamente. Mas, naquela noite estava selada minha sina” (MARCOS, op. cit., p. 7). Com a enorme repercussão de Barrela em Santos, Plínio foi alçado a condição de gênio e, segundo o próprio, passou a se “dedicar a comer as menininhas, beber tudo, ir em festa de rico. Gênio tem direitos”. 22 Walderez de Barros, futura esposa de Plínio, comentou aquela situação: Veja, de uma hora para outra, ele foi alçado a uma condição de grande talento, um gênio, e passou a viver com toda essa intelectualidade sem possuir estrutura para isso. Então é claro que ele tinha de provar seu valor, ou seja, fazer uma segunda peça. Só que ele ainda tinha idéia, não tinha o know-how da cois a (MENEZES, op. cit., p. 54). Plínio jamais deixou de admitir a importância daquela convivência, que serviu como a formação acadêmica que não tinha tido: “Todos os domingos a Pagu fazia o Geraldo Ferraz 22 MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 37, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista. 29 ler uma peça pra nós. [...] Peças como Esperando Godot. [...] A gente ficava ouvindo a Pagu falar e aquilo nos despertava para ler, para estudar”. 23 Por outro lado, aquele mesmo período foi descrito de maneira mais irreverente por Plínio em outra ocasião: Então veio a Patrícia [Galvão] com uma peça do Arrabal que se chamava Fando e Lis... Uma peça bonita, ninguém entendia, mas era bonita. E a Patrícia fala assim: ‘Você vai fazer o Fando’. ‘Porra, como vou fazer o Fando, porra, ninguém vai entender essa peça’. ‘Mas é bonita’. [...] Eu falei: ‘Porra, ninguém vai querer ver essa merda. Não, não vou fazer’. ‘Então você tem que escrever uma peça’. ‘Porra, mas eu não quero escrever, porra, que sacanagem...’. ‘Não, tem que escrever, tem que escrever, tem que escrever,’ [...] Aí ela obrigou o Geraldo [Ferraz], olha que puta manha, a ler Esperando Godot pra mim. Quando acabou aquela merda toda, eu: ‘Que merda, essa coisa aí eu escrevo três por dia’. ‘Então tem que escrever! Tem que escrever! Tem que escrever! 24 Os acontecimentos posteriores explicam a ironia na segunda ve rsão do episódio, afinal, conforme Walderez de Barros, “a melhor coisa das histórias do Plínio é ficar com a sua versão dos fatos. Pode não ser a mais verdadeira, mas com certeza é a mais engraçada e original” (MENEZES, op. cit., p. 54). Esse alerta, aliás, vale também para os demais relatos do dramaturgo presentes neste trabalho. No final das contas, segundo as palavras do próprio Plínio, “de tanto me encherem, escrevi outra peça sem ter absolutamente nada pra dizer”. O novo texto chamava-se Os fantoches. A segunda peça de Plínio Marcos estreou em 1960 num programa duplo com Jerry no pomar, de Charles Thomas, e com Plínio no elenco, sendo ambas dirigidas por ele próprio. Segundo o dramaturgo diria ironicamente anos depois, seu mal foi ter escrito Os fantoches em dois atos, pois no intervalo toda platéia se levantou e não voltou mais. No dia seguinte à estréia, Pagu assinou uma crítica devastadora no jornal A Tribuna de Santos, intitulada Esse analfabeto esperava outro milagre de circo. O texto, ilustrado com um retrato enorme de Plínio com gravata borboleta e topete, dizia: [Os fantoches caracteriza] a tentativa do autor de passar do plano da reportagem, que era o principal defeito da sua peça anterior, ‘A Barrela’, para um plano de criação, invadindo terreno difícil para sua experiência e seus conhecimentos, desde que há a intenção de nos proporcionar um texto de tonalidades filosóficas. E o nível mental e intelectual do autor, infelizmente, se desencontra, como possibilidade, para palmilhar o terreno ambicionado. [...] Da reportagem, o autor saltou para o teatro das idéias e foi o que se viu. Um texto medíocre. Do texto medíocre saiu um espetáculo também medíocre. [...] 23 MARCOS, Plínio. Sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos. Dados biográficos. Circo e teatro amador. Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/dados/dados_circo.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 24 MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 37, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista. 30 Isso não invalida a opinião que temos a respeito das qualidades do autor como autor e como o diretor. Como autor falta-lhe trabalhar uma aquisição de uma base informativa, capaz de lhe proporcionar meios de expressão, para os seus dotes de imaginação. 25 De gênio, o dramaturgo passou a analfabeto de circo, do sucesso ao escárnio: “me vaiavam na rua, minha mãe chorava, meu pai me convocou para uma reunião [...] muita sacanagem”. O fracasso fez com que Plínio não fosse convidado mais nem para enterro. 26 Depois da publicação do artigo, quando se encontraram novamente, Plínio e Pagu, discutiram muito, tomaram um porre e continuaram amigos. Posteriormente o dramaturgo reconheceria a importância dessa “porrada”, que fez com que ele aprendesse, logo no início da carreira, como o sucesso podia ser efêmero. Mesmo com o fracasso, Plínio permaneceu atuante no teatro amador. Ainda em 1960 participou do III Festival de Teatro Amador em Porto Alegre, com o grupo da faculdade de Direito de Santos, mesmo sem ser estudante. No ano seguinte, esteve presente no Festival Universitário de Campinas, indo de bicão principalmente para “comer de graça”. No baile de encerramento do Festival conheceu a estudante de filosofia e então atriz amadora Walderez de Barros. Um rapaz tentou “agarrá- la” à força, no que ela retrucou: “se meu irmão estivesse aqui, bateria em vocês todos”. Plínio, que estava ao seu lado, tomou as dores e partiu para briga. Pegou um quadro com a foto do presidente Jânio Quadros na parede e o quebrou na cabeça do “cafajeste”. Pouco tempo depois começaram a namorar. 27 Plínio ainda permaneceu um tempo em Santos fazendo peças para diversos sindicatos de trabalhadores do cais do porto – “fazia essa peça Os fantoches, que os caras achavam engraçada. Não tinha muito que ver com o intelectualismo, então era engraçada pra caraco. Eu tinha sido bom palhaço e continuava bom palhaço”. 28 Segundo Plínio, depois da aclamação de Barrela os “invejosos” teriam espalhado que seu sucesso tinha sido “fabricado pelo Partido Comunista, que queria inventar um autor do povo”. Com o fracasso de Os fantoches, “espalharam que o Partido Comunista não havia podido fabricar outro sucesso”. De qualquer maneira, marcado em sua cidade natal pelo 25 MARCOS, Plínio. Sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos. Dados biográficos. Barrela. Disponível em: < http://www.pliniomarcos.com/dados/barrela.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 26 MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 37, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista. 27 FREIRE, Roberto. Sou o analfabeto mais premiado do país. [São Paulo: s.n.], [1970]. 28 MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 37, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista. 31 malogro de sua segunda peça e pela “fama de comunista”, por volta de 1962 resolveu se mudar definitivamente para São Paulo. 29 Na capital paulista, passou por um começo difícil, trabalhando como camelô e vendendor de cigarros americanos, rádio de pilha, canetas de mulher nua, álbuns de figurinhas e até maconha, repassada pelos conhecidos do cais do porto de Santos. Os mais importantes artistas de sua cidade natal foram para a Escola de Arte Dramática naquela época, mas Plínio, segundo o próprio, não pôde entrar por ser “analfabeto”. De acordo com o ator e amigo Júlio Bittencourt, nos primeiros tempos em São Paulo Plínio chegou a dormir na rua e na rodoviária: “Ele estava morrendo de fome quando decidiu procurar a Cacilda Becker. Ela já tinha ouvido falar dele então pegou seu texto e leu. Enquanto isso, Plínio apagou no sofá. Quando acordou tinha um bilhete na sua frente escrito: ‘Tem leite e bolo pra você aí na mesa, sirva-se à vontade e aguarde que eu quero falar com você’. Quando a Cacilda retornou, conversaram e, a partir daí, ela passou a dar uma força para o Plínio, que sempre foi muito grato a ela e a considerava sua madrinha no teatro em São Paulo” (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p. 55-56) Ainda naqueles primeiros tempos em São Paulo, Plínio disse ter entrado na Companhia da Jane Hegenberg, no lugar do Milton Baccarelli, montando um espetáculo, O Fim da humanidade, “que foi um desastre”. 30 Disposto a trabalhar em “qualquer coisa” no teatro e freqüentando o Bar Redondo, na mesma época Plínio também conheceu “o pessoal do Teatro de Arena”. Entre 1962 e 1963 coordenou, junto com Fauzi Arap, o grupo amador Teatro Universitário do Teatro de Arena, com o objetivo de agregar o elenco de várias faculdades, ensaiando e montando peças com estudantes universitários aos sábados à tarde. O programa duplo levado aos palcos foi constituído por duas peças de Plínio Marcos, conforme o programa, “um autor novo, cujas atividades teatrais estiveram sempre ligadas ao movimento teatral universitário”. Tratava-se da antiga Os fantoches e da nova Enquanto os navios atracam (que seria, mais tarde, refeita 29 Plínio jamais foi filiado ao Partido Comunista, mas sua fama pode ter origem de sua ligação com Pagu e seu grupo de amigos. Segundo o amigo Iberê Bandeira de Mello, o dramaturgo nunca foi comunista, “mas era um sujeito de visão socialista e a favor da liberdade”. Entretanto, realmente existia na época uma paranóia anticomunista que pode ser ilustrada por um trecho de um artigo publicado na revista Teatro Ilustrado, em 1960, intitulado Influência do cinema e do teatro na vida moderna: “Os comunistas, de há muito que perceberam o enorme valor do teatro como ‘cabeça da ponta’ no meio intelectual, e procuram sempre dominar esse meio de cultura, de divertimento e de persuasão, quer infiltrando autores, quer atores, ou seja, quer introduzindo numa cunha direta ou indireta no modo de pensar, de ser, de agir, dos espectadores”. 30 MARCOS, Plínio. Sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos. Dados biográficos. Começo em São Paulo. Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/dados/comecosp.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 32 como Quando as máquinas param), no qual Plínio, também diretor, e sua namorada, Walderez, interpretavam o casal de protagonistas. 31 Plínio Marcos dirigia os estudantes sem receber nada e em troca pediu apenas que o deixassem dormir na sede da UEE (União Estadual dos Estudantes), na Rua Santo Amaro, perto do próprio Teatro de Arena. Durante um bom tempo Plínio compartilhou um quarto improvisado com mais dois desempregados e amigos dos estudantes. 32 No início de 1963, Plínio conseguiu entrar para o elenco de O noviço, atualização do clássico de Martins Pena encenado pelo Teatro de Arena, que estreou em março daquele ano. Na mesma época o jovem ator também fez teste na Companhia Cacilda Becker para a peça César e Cleópatra , de Bernard Shaw, com direção do consagrado Ziembinski: “Fui lá, fui aprovado. Fazia várias pontas: carregador de tapete, guarda egípcio, umas dez coisas. E foi um dos maiores fracassos da Cacilda”. 33 Ou seja, Plínio trabalhava profissionalmente em duas peças ao mesmo tempo – “fazia o primeiro ato de César e Cleópatra, na Companhia da Cacilda, e entrava em O noviço, no Teatro de Arena, no último ato”. Com o fracasso de público e crítica, a peça dirigida por Ziembinski não ficou muito tempo em cartaz. Logo estreou O santo milagroso , de Lauro César Muniz, com direção de Walmor Chagas, e Plínio novamente no elenco, no papel de Juca Afogado. No final de 1963, a Companhia Cacilda Becker levou aos palcos a última montagem daquela temporada, Onde canta o sabiá, de Gastão Tojeiro, com direção de Hermílio Borba Filho, e mais uma vez com Plínio como coadjuvante. Em 1963 Plínio e Walderez já tinham trabalhado juntos – ela como atriz e ele como diretor – na peça infantil A árvore que andava, do autor santista Oscar Von Pfuhl, encenada na parte da manhã no Teatro Cacilda Becker. Naquele mesmo ano, o casal dividiu novamente o palco em Onde canta o sabiá e ainda se casou durante a temporada da peça. O espetáculo foi a estréia profissional de Walderez como atriz, mas um verdadeiro fracasso para Plínio como ator. Décio de Almeida Prado criticou severamente a montagem e o elenco que, em sua opinião, com poucas exceções, tinha atores fracos, mas alguns “bem ruins”, como Plínio Marcos, “que nunca sabe se é Carlitos (de quem toma o bigodinho e a posição dos pés), Oscarito ou o mais pateta de Os 3 patetas” (PRADO, 2002, p.269). Como Plínio contou 31 Plínio Marcos diria mais tarde que escreveu Enquanto os navios atracam, que tinha um casal de jovens recémcasados como protagonistas, especialmente para Walderez. 32 FREIRE, Roberto. Sou o analfabeto mais premiado do país. [São Paulo: s.n.], [1970]. 33 Na ficha técnica do elenco da peça, o nome de Plínio Marcos é citado nos papéis de “1º guarda egípcio” e “carregador”. 33 depois em depoimento, naquele momento sua carreira de ator foi “para o vinagre”: “A crítica me malhou bem. Peguei meu boné e fui cantar em outra freguesia”. 34 Com o fim da temporada de Onde canta o sabiá e sem um papel na peça seguinte da companhia de Cacilda Becker, Plínio procurou Benjamin Cattan na TV Tupi de São Paulo, em busca de um emprego. O amigo não tinha nada para oferecer além do trabalho de chefe de estúdio. O nome parecia bonito, mas sua função era apenas “apertar botões” e fiscalizar o ambiente. Além disso, o salário também era uma “ninharia”. Por outro lado, logo começou a escrever para os teleteatros da TV Vanguarda, da TV Tupi, programa dirigido e idealizado por Benjamin Cattan. Foram levadas ao ar textos de sua autoria como Réquiem de tamborim e Macabô – esta uma adaptação de Macbeth, de Shakespeare, feita por Plínio Marcos e Benjamin Cattan. 35 Assim mesmo a vida continuava dura e Plínio seguia numa luta diária: “De manhã vendia álbum de figurinha na feira, de tarde trabalhava na técnica da Tupi e à noite fazia uns bicos na administração do teatro [de Arena]. Quando chegava em casa, eu tomava muito café, fumava muito e escrevia muito”. Com muita perseverança, perseguia seu desejo de se tornar um dramaturgo: “Escrevia em péssimas condições. À noite, depois de um dia de muito trabalho, ou à tarde, na frente de seis monitores da sessão de cortes dos programas da Tupi. Mas escrevia” (MARCOS, 1996, p.99-100). Em 1964, já com o Brasil sob a égide da ditadura militar, escreveu um texto para um espetáculo de música popular brasileira, Nossa Gente, Nossa Música, que seria realizado pelo Grupo Quilombo com direção de Dalmo Ferreira. A estréia era prevista para 14 de julho no Teatro de Arena e o parecer da censura liberava a peça com censura livre, mas com cortes de três folhas do texto. Nossa Gente, Nossa Música nunca saiu do papel. No Teatro de Arena, depois de atuar em O noviço, Plínio só conseguiu trabalhar como administrador da companhia, “bico” que lhe rendia um extra para complementar o salário da Tupi. Em 1965, após o fim da temporada de Arena contra Bahia, foi trabalhar na mesma função na Companhia Nídia Lycia. Enquanto isso, organizou “com um belo time que estava começando a carreira” a peça Reportagem de um tempo mau, para tentar estrear mais uma vez 34 MARCOS, Plínio. Sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos. Dados biográficos. Começo em São Paulo. Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/dados/comecosp.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 35 Em 1964, Benjamin Cattan também organizou para a TV Vanguarda o primeiro concurso de peças nacionais, vencido por O matador, de Oduvaldo Viana Filho, com A ilha no espaço, de Osmar Lins, em segundo lugar, e História de subúrbio, de Plínio Marcos, em terceiro. 34 no Teatro de Arena. Na verdade, tratava-se uma colagem de cenas e citações costuradas pelo texto de Plínio Marcos. Segundo Walderez, “A gente meio que sabia que esse espetáculo seria proibido, porque a gente tinha mandado o texto para censura e não tinha chegado resposta. Marcamos a estréia e convidamos os críticos, para fazer uma apresentação fechada, quando chegou o certificado proibindo” (MENEZES, op. cit., p. 152). A atriz contou que nos primeiros anos da ditadura militar existia a estratégia de tentar estrear mesmo com a eminência de proibição da censura, para depois buscar assinaturas e apoio para tentar a liberação do texto. Segundo Plínio Marcos, a peça teria uma apresentação para críticos e convidados na segunda à noite e na terça seria a sessão para a censura. Após os aplausos da estréia, Plínio soube que a peça seria proibida quando no dia seguinte apareceu no teatro um censor com que tivera um “rolo” alguns meses antes. 36 Emitido no dia da estréia, 11 de outubro de 1965, o parecer dos censores Nestorio Lips e José Américo Cezar Cabral sentenciava: “Após cuidadosa leitura do texto da peça aludida, bem assim como assistir seu ensaio, somos de opinião que a sua exibição deve ser impugnada, pois se trata de obra implicitamente de caráter subversivo, contrariando os preceitos legais do país. Por essa razão e, ainda, baseados no artigo 188, do decreto 4.405-A, de 17 de abril de 1928, que impede por intermédio da censura de diversões públicas, representações teatrais, quando nas peças ‘propaguem idéias subversivas da ordem e da organização atual da sociedade’, é que propomos a proibição, s.m.j., da peça Reportagem de um tempo mau, de Plínio Marcos, de cuja inteligência esperamos que futuramente apresente outros trabalhos que venham enaltecer cada vez mais a literatura teatral brasileira”. 37 Cerca de quatro meses após a proibição de Reportagem de um tempo mau, Plínio tentou montar Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar, que se tratava, na verdade, de uma nova versão de Os fantoches: “Fomos à luta. Ensaiamos muito, mas – porra! – veio a 36 Certa noite em que estava sendo apresentada Arena conta Bahia no Teatro Brasileiro de Comédia, Plínio – então administrador da Companhia – estava na porta do teatro quando apareceu o tal censor com uma lista de cortes para a peça. Plínio “desacatou” o sujeito com tamanha cara-de-pau que teve início uma enorme confusão, quando o censor voltou com policiais que o perseguiram teatro adentro. O espetáculo teve que ser interrompido, a rua foi tomada por curiosos e o tumulto só terminou com Plínio dentro do camburão. Chamada ao local de um teatro próximo, Cacilda Becker, com sua autoridade de grande dama do teatro brasileiro, o salvou, mandando que o tirassem do carro e falando que iriam à DPP no dia seguinte. Na delegacia, um velho censor, Nestório Lips, ainda alertou o ainda desconhecido dramaturgo: “Abre o olho, Plínio. Eles estão putos da vida com você. O maneta e o pierrô querem vingança. Todo mundo lá na casa só chama eles de Maneta e Pierrô”. O apelido que Plínio dera aos dois censores na noite anterior tinha pego, mas a brincadeira ainda renderia problemas: “Eles vão ficar na sua captura. Toma cuidado, é gente má. Gente que não fode. Não bobeia, vão querer te destruir. E sabe, na hora do vamos ver, eles vão ficar todos unidos contra você” (MARCOS, op. cit., p.92). De acordo com Plínio, o tal “Pierrô” foi um dos censores que apareceu na sessão fechada de Reportagem de um Tempo mau. 37 BRASIL, Divisão de Diversões Públicas, Segunda Divisão Policial, Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Parecer relativo à apreciação da peça Reportagem de um tempo mau. Parecer de censura, São Paulo, 11 out. 1965. Censor: Nestorio Lips; José Américo C. Cabral. 35 censura. Mais uma vez uma peça minha era proibida. Depois de tanto trabalho, tanto esforço. Mas, era preciso continuar a luta” (MARCOS, op. cit., p.100). Ao contrário das peças anteriores, Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar foi enviada para avaliação pela censura sem local ou data determinada para apresentação. Por trechos do parecer se percebe o esforço de Plínio para escapar da interdição, evidente até mesmo pela contra-argumentação espontânea do censor afirmando que sua peça não era anticapitalista e nem comunista. Anos mais tarde o dramaturgo afirmaria que naquele tempo ele não tinha “força” nem “prestígio” para brigar com os órgãos repressores: “Brigava sozinho, não adiantava. Não conseguia nem o apoio da classe teatral”. 38 Apesar disso, no parecer sobre Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar, o censor Geraldino Russomano se defendia: “Do tratamento censório expedido a esta peça não se cogitou, como de fato nunca se fez, levar em conta se o autor é fa moso ou não, ou se é principiante ou veterano. Levamos somente em conta o tema a ser censurado, venha a ter ou não público assistente”. 39 Apesar da proclamada idoneidade, uma das estratégias da censura para prejudicar os artistas era a demora em elaborar os pareceres. Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar foi enviado para avaliação da censura em 25 de fevereiro, recebendo o parecer do censor mais de dois meses depois, em 29 de abril, e a decisão final, pela proibição, somente no dia 2 de maio de 1966. A proibição sistemática das peças agravava também a situação financeira do não mais tão jovem dramaturgo, que já passava dos trinta anos. Desde o casamento, Plínio e Walderez haviam morado juntos num quarto na casa do irmão dela e depois na casa da mãe da atriz, que desenvolvera um câncer. Após sua morte – tragicamente no dia da estréia (e única apresentação) de Reportagem de um Tempo mau –, o casal se mudou para um apartamento alugado, já acompanhados do primeiro filho, Leonardo. A vida continuava dura – o salário ia todo para o aluguel e Plínio muitas vezes tinha que pedir dinheiro emprestado. Na sala, caixotes de madeira substituíam os móveis. As dificuldades eram tamanhas a ponto de o 38 MARCOS, Plínio. Entrevista com Plínio Marcos. Centro de documentação e informação sobre arte brasileira contemporânea, São Paulo, 23 fev. 1978. Entrevista concedida a Cláudia de Alencar e Carlos Eugênio Marcondes de Moura. 39 BRASIL, Divisão de Diversões Públicas, Segunda Divisão Policial, Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Parecer relativo à apreciação da peça Chapéu (sobre) em cima de paralelepípedo para alguém chutar. Parecer de censura, São Paulo, 29 abr. 1966. Censor: Geraldino Russomano. 36 dramaturgo contar que quando Ricardo, seu segundo filho, estava para nascer, ele teve que ir de ônibus para o hospital com sua mulher, pois não tinham sequer dinheiro para o táxi. 40 Nos últimos meses de 1966, Plínio Marcos escreveu mais uma peça e sua carreira começou a tomar outro rumo. Adaptando um conto do escritor italiano Alberto Moravia, o dramaturgo disse ter escrito Dois perdidos numa noite suja para apenas dois atores e com somente um único cenário por razões de economia e com o intuito inicial de sair “mambembeando” pelo interior. Plínio convidou vários artistas para os dois únicos papéis da peça, mas ninguém topava participar da montagem de um texto tão ousado e de um autor completamente desconhecido, mas já bastante censurado. O papel de Tonho acabou cabendo a Ademir Rocha, ator de teatro e colega de Plínio da TV Tupi, onde já tinha feito algumas novelas, mas que estava desempregado. 41 O personagem Paco teve que ser interpretado pelo próprio Plínio Marcos, pois, segundo ele, esse papel ninguém aceitou de jeito nenhum. O espetáculo teve a direção do velho amigo Benjamin Cattan e o apoio de muitos outros colegas: A Nídia Lycia foi quem me emprestou um dinheiro. O Bucão, um amigo, outro dinheirinho. O Pelégio, iluminador da Tupi, ajudou a gente a afanar refletores do Sumaré. O pessoal maquinista descolou pra nós os praticáveis. Os contra-regras pegaram as camas e tudo o que precisávamos pro cenário. O transporte foi com o pessoal da garagem. [...] O Toninho Matos e o Paulinho Ubiratan [...] operavam luz e som (MARCOS, op. cit., p.101). Dois perdidos numa noite suja estreou no dia 16 de dezembro de 1966, no teatro improvisado do boteco da Galeria Metrópole, no centro de São Paulo, chamado Ponto de Encontro – point da classe artística, jornalística e intelectual da cidade. Naquela noite, apenas cinco pessoas estavam presentes: além de Walderez, três amigos que entraram de graça (Roberto Freire, Carlos Murtinho e Cidinha, esposa de Ademir Rocha) “e mais um bêbado que pagou o ingresso e não quis sair do lugar” (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.57) Apesar das dificuldades, Plínio, dessa vez, tinha tido mais sorte com a censura: Dois perdidos foi liberada porque naqueles dias a Censura passou da Polícia Estadual para Federal. E mudaram os censores. Mandaram o [João Ernesto] Coelho Neto assistir ao ensaio. Homem de teatro, diretor de peças. Foi da comissão julgadora do Festival de Santos, quando a Barrela se consagrou. [...] Numa tarde de sábado, chuvosa e fria, num estúdio abandonado da Tupi, sem cenário, eu e o Ademir, sentados em bancos velhos, falamos o texto pra ele. Quando acabamos, o Coelho Neto afirmou: ‘Tá 40 41 KUPFER, José Paulo; NUNES, Henrique. Um jovem sob censura. Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 2 set. 1967. Pouco depois da estréia, Ademir Rocha foi substituído por Berilo Faccio. 37 liberada. Sem cortes. Passe segunda-feira na Polícia Federal e pega o alvará. Estão prontos para estréia (MARCOS, 1996, p.102). 42 A peça, liberada apenas com classificação de imprópria para menores de 18 anos, obteve boa repercussão e críticas positivas: O Roberto Freire começou a fazer uma onda em torno, dizendo que a peça era muito boa, e outra vez voltei a ser notícia como autor teatral. O Alberto D´Aversa escreveu cinco artigos sobre a peça. Fiquei na moda. A Cacilda Becker, quando viu a peça, comentou: Incrível! Você conhece dez palavras e dez palavrões, e escreveu uma peça genial (Ibid). Dois perdidos numa noite suja mudou-se para o Teatro de Arena, mas o público era pequeno e as dificuldades financeiras continuavam, pois num acordo abusivo imposto pela companhia, setenta por cento da renda pertencia ao teatro. As coisas começaram a mudar quando a deputada Maria da Conceição da Costa Neves começou a criticar impiedosamente a peça no programa de entrevistas Pinga-fogo, da TV Tupi. 43 Plínio, que assistia ao programa pela televisão em casa, correu para a estação de TV – onde trabalhava – e invadiu o estúdio em que ele estava sendo gravado. Como o próprio contou, já entrou no palco (e ao vivo) gritando: Escuta aqui, ó vagabunda, por que tu não vai assistir antes de falar?’ ‘Quem é você? ‘Sou o autor da peça que você está descascando.’ E os caras: ‘Sai daqui, Plínio, não sei o que...’, aqueles velhos lá da Tupi, o caralho. Aí foi uma discussão. ‘Sai.’ Eles tinham capanga. Vieram uns capangas, o pessoal da televisão veio de porrete para me defender. Foi aquele tumulto. Aí acalmaram e marcamos uma mesaredonda. 44 42 João Ernesto Coelho Neto também tinha sido o censor que aprovara os text os de Os fantoches e Enquanto os navios atracam para as montagens amadoras no Teatro Universitário do Teatro de Arena quatro anos antes. 43 Maria da Conceição da Costa Neves tinha sido atriz e com o nome de Regina Maura fora estrela da companhia de Procópio Ferreira na década de 30 (PRADO, 1984). Após abandonar sua breve carreira no teatro, tornou-se monitora da Escola da Cruz Vermelha Brasileira e diretora dessa mesma entidade assistencial no período da Segunda Guerra. Em seguida, entrou para a política e foi a única mulher eleita nas eleições de 1947 (e a primeira desde 1945), sendo reconduzida cinco vezes até 1969, quando teve seus direitos políticos cassados pelo AI-5 decretado pela ditadura militar que ela ajudou a colocar no poder. A combativa deputada estadual era conhecida por sua excelente oratória, que pôs em uso, por exemplo, na famosa “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade”, que reuniu cerca de meio milhão de pessoas em São Paulo em 19 de março de 1964. Em resposta ao comício da Central do Brasil (realizado no Rio de Janeiro seis dias antes, no qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base), essa passeata foi a início de um movimento que congregou setores do clero, entidades femininas e segmentos da classe média temerosos do “perigo comunista” e favoráveis à deposição do Presidente da República. A deputada Conceição da Costa Neves discursou na célebre marcha: “Aqui, mercê de Deus, se encontra o Brasil unido contra a escravatura vermelha. De São Paulo partirá a bandeira que percorrerá todo o país, para dizer a todos os partidos que a hora é de união, para dizer basta ao senhor Presidente da Republica” (SÃO Paulo parou ontem para defender o regime. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 mar. 1964). 44 MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 38, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista. 38 Foi programado então um debate – também ao vivo, na TV Tupi – para o qual a deputada foi acompanhada dos parlamentares Aurélio Campos e Carvalhaes, enquanto Plínio levou o diretor Augusto Boal (“hábil debatedor”) e o ator Fernando Torres (“homem digno, tinha fama de direita, mas é digno. Então era o suficiente para não acusarem que era o Partido Comunista em marcha...”). 45 A mesa-redonda foi novamente tumultuada, com confusões e bate-bocas entre os deputados, os artistas e até com os policiais que estavam presentes. A polêmica ajudou Plínio: “Porra, deu 90 por cento de audiência. E na reprise, que foi no domingo, mais 90 por cento. Aí o teatro nosso lotou, o Dois perdidos virou uma coisa de sucesso”. 46 A vida de Plínio começou a mudar, embora ele ainda não pudesse abandonar o trabalho de camelô: “Com os álbuns conseguia pagar o aluguel. Na Tupi nem ia mais. A comida vinha do Dois perdidos” (MARCOS, op. cit., p.103). A peça ficou seis meses em cartaz em São Paulo, sendo encenada depois no Rio de Janeiro em bem sucedida montagem dirigida por Fauzi Arap e protagonizada por ele mesmo e Nelson Xavier. A partir daí, o dramaturgo começou uma trajetória repleta, igualmente, de sucesso, polêmica e problemas com a censura, todos os elementos acentuados em seguida com sua nova peça, Navalha na carne. Escrita, segundo Walderez de Barros, em “no máximo três noites”, Navalha na carne era, talvez, o texto mais poderoso que Plínio Marcos já tinha produzido. A peça seria encenada pelo Grupo União, formado durante a temporada de Dois perdidos numa noite suja , e que passou a ser composto por todos os integrantes da montagem do novo espetáculo: o cenógrafo Clóvis Bueno, o superintendente Odavlas Petti, Walderez de Barros como produtora, os atores Edgard Gurgel Aranha, Paulo Villaça, Ruthinéa de Moraes e Tereza de Almeida, o diretor Jairo Arco e Flexa e o próprio Plínio Marcos. Entretanto, antes da estréia da peça, através da portaria publicada dia 19 de junho de 1967 no Diário Oficial, a apresentação total ou parcial de Navalha na carne foi proibida pela Censura Federal em todo o país. 47 A longa batalha pela liberação de Navalha na carne começou com o apoio de Cacilda Becker que promoveu sessões fechadas para convidados no teatrinho de 60 lugares – chamado Núcleo de Estudos Teatrais – localizado no segundo andar do apartamento duplex seu e de 45 Ibid Ibid 47 MAGALDI, Sábato. Documento dramático. O Estado de São Paulo, São Paulo, 15 jul 1967 (In: MARCOS, 1968). 46 39 seu marido, o ator Walmor Chagas. Foi o início de um movimento nacional pela liberação da peça com a coleta de depoimentos de pessoas importantes do meio artístico e cultural que haviam sido convidadas para assistirem às apresentações. Diversos artigos dos principais críticos teatrais do país foram publicados nos jornais pedindo o fim da proibição, mas isso só aconteceu depois de outros incidentes. Enquanto a luta pela liberação da peça ocorria em São Paulo, foi marcada no Rio de Janeiro uma apresentação fechada de Navalha na carne, no Teatro Opinião. Em cima da hora o General Luis Carlos Reis de Freitas proibiu a apresentação e o Exército cercou o teatro. Segundo Plínio: A Tônia Carrero [...] levou a leitura pra uma casa que ela tinha no morro de Santa Teresa. Pra despistar, fiquei dando entrevista aos jornalistas, enquanto o povo [que recebia senhas com o endereço da casa da atriz] ia saindo sem alarde. A casa ficou lotadinha e tinha público para outro espetáculo (MARCOS, 1996, p.107). A atriz Tônia Carrero, grande estrela do teatro brasileiro, comprou a briga de tentar a liberação da peça com a condição de que ela fizesse o papel de Neusa Sueli numa montagem carioca. Plínio concordou, exigindo somente que Fauzi Arap fosse o diretor. E Tônia liberou a peça. “Foi preciso muita coragem. Precisou jogar na mesa todo seu prestígio. Precisou encarar uma briga feia com seus irmãos (sic) generais. Mas, ela ganhou e estreou” (Ibid). A atriz relatou anos mais tarde o diálogo que manteve com o então todo poderoso Ministro da Justiça, Gama e Silva: Ministro – Está proibida a peça. Nossa censura não pode liberar texto tão vil. Atriz – o teatro precisa justamente da liberdade do pensamento sem a censura. Pela décima vez venho aqui para lhe assegurar que se trata de obra de arte de denúncia de grave problema social e grande alcance político. Ministro – Por isso mesmo, não! Além do mais, não encontro nenhum valor neste texto. É imoral. Atriz – Sr. Ministro, não desistirei. Voltarei aqui quantas vezes for preciso. Ministro – Pois bem, minha Sra. Não fosse seu prestígio junto ao público eu não hesitaria, ouviu bem. Agora, a responsabilidade será sua. Quer ver o que acontece à sua carreira quando o ‘seu público’ ouvila pronunciando estas palavras de baixo calão. Uma prostituta. A Sra. vai se arrepender. Não diga que não avisei. 48 No documento de liberação da peça pela censura, finalmente emitido no dia 6 de setembro de 1967, nota-se de fato a observação: “Aprovado nos termos do despacho de 17/08/67 pelo Sr. Ministro da Justiça”. Mesmo com as ordens superiores, Navalha na carne só foi liberada para maiores de 21 anos e com o corte das seguintes frases e palavras: “fez ele pegar 48 DEPOIMENTO de Tonia a Mme. Danielle Mitterand, Rio de Janeiro, 19 maio de 1986. Mimeografado. 40 o esquentamento da outra” (p.3); “Porra” (p.4, 6, 7, 23, 31); “Mineteiro” (p.10); “Só abrir as pernas e faturar” (p.24); “Ficou em cima de mim mais de duas horas”. Navalha na carne estreou 49 ainda em setembro em São Paulo, no Teatro Maria Della Costa, com a formação original do Grupo União, e teve sua primeira apresentação no Rio de Janeiro em outubro, no Teatro Maison de France, com Tônia Carrero, Nélson Xavier e Emiliano Queiroz e direção de Fauzi Arap. A peça de Plínio Marcos transformou-se num enorme sucesso de público e crítica, arrebatando diversos prêmios em 1967. A montagem paulista recebeu os prêmios Yazigi de melhor peça nacional, revelação de cenógrafo (Clóvis Bueno) e revelação de diretor (Jairo Arco e Flexa), além do prêmio Molière (São Paulo) de melhor atriz para Ruthinéa de Moraes. 50 A montagem carioca representou um ponto alto na carreira de Tônia Carrero, que conquistou também os prêmios Molière (Rio de Janeiro) e da Associação de Críticos Cariocas. A atriz afirmaria que o papel desglamourizado da prostituta fez com que ela alcançasse um “reconhecimento geral de interpretação pela primeira vez”. 51 O melhor deve ter sido o fato de que “depois da consagração, ‘o ministro desmemoriado’ ainda enviou um telegrama congratulando-a por ‘êxito em texto brasileiro tão profundo e real”. 52 Já Plínio Marcos ganhou praticamente todos os principais prêmios do teatro brasileiro como melhor autor teatral de 1967: o Prêmio Governador do Estado de São Paulo, os dois prêmios Molière (pela montagem carioca e paulista), o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Teatro (APCT) e o Prêmio de Destaque do ano em Teatro da TV Excelsior. Plínio recebeu ainda o tradicional prêmio Golfinho de Ouro, acompanhado de um cheque substancial, como destaque em teatro, oferecido pelo Governo do Estado da Guanabara. Pode se perceber a importância que o autor alcançou no então efervescente panorama cultural brasileiro daquele ano pelos nomes dos demais premiados com o Golfinho de Ouro nas outras áreas: Glauber Rocha (cinema), Oscar Niemeyer (arquitetura), Chico Buarque (mús ica) e Pelé (futebol). No parecer da premiação, o crítico Yan Michalski afirmou: 49 BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Polícia Federal. Certificado de censura da peça Navalha na carne. São Paulo, 6 set. 1967. 50 Ocorreram algumas modificações na montagem paulista: pouco depois da estréia, o ator Sérgio Mamberti substituiu Edgar Gurgel Aranha no papel de Veludo. E no programa da temporada de 1968, ao contrário no da temporada do ano anterior, Jairo Arco e Flexa, Plínio Marcos e Tereza de Almeida não seriam mais citados como integrantes do Grupo União, apesar de continuarem a fazer parte do espetáculo. 51 PLÍNIO MARCOS: UM GRITO DE LIBERDADE, 2000, São Paulo. Catálogo... São Paulo: Secretaria de Estado de Cultura, 2000. 52 DEPOIMENTO de Tonia a Mme. Danielle Mitterand, Rio de Janeiro, 19 maio de 1986. Mimeografado. 41 O teatro brasileiro foi enriquecido durante a temporada de 1967 pela descoberta daquilo que mais lhe fazia falta nos últimos anos: um autor novo, dotado de bastante força de personalidade e ímpeto inovador para sacudir o estático ambiente da nossa dramaturgia, cujo panorama não vinha apresentando novidades verdadeiramente importantes havia muito tempo. 53 O sucesso de Navalha na carne não ficou restrito apenas ao teatro e, posteriormente, ao cinema, como será visto no capítulo 3. Durante os meses de luta pela liberação da peça, o jornalista Pedro Bandeira, amigo e conterrâneo de Plínio, teve a idéia de fotografar a montagem e publicá- la sob o formato de livro. Já que a literatura era menos visada pela censura do que o teatro, essa era uma maneira para a peça, de alguma maneira, atingir o público. As imagens do fotógrafo publicitário Yoshida e o extraordinário trabalho gráfico do designer uruguaio Walter Hüne resultaram numa espécie de mistura de teatro, fotonovela e poema concreto. Segundo Bandeira: A gente fotografou os três [atores], cena por cena, para que pelo menos desse modo alguém pudesse ‘ver’ a montagem. Ah, ah! Nenhuma gráfica aceitava imprimir o livro, alegando que as operárias na certa corariam com os palavrões! A solução foi conseguir uma gráfica que aceitasse imprimir o livro à noite, só com homens trabalhando... (In: MARCOS, 2004, p. 175). Em 1968 a Navalha na carne foi publicada pela Editora Senzala, de propriedade de “um filósofo marxista da USP”, conquistando o Prêmio Jabuti de melhor livro de teatro. Com o sucesso da peça, então liberada, a primeira edição do livro com 5.000 exemplares – uma tiragem enorme para a época – se esgotou em apenas duas semanas, contando com uma distribuição precária que atingia somente São Paulo, Rio e uma ou outra capital (BANDEIRA. In: MARCOS, 2005). 54 Mas 1967 não foi somente o ano de Navalha na carne, cujo estrondoso sucesso alavancou definitivamente a carreira de Plínio Marcos. Logo após a liberação da peça, também estreou em São Paulo, no Teatro de Arte, sala pequena do Teatro Brasileiro de Comédia, a versão definitiva de Quando as máquinas param, com Míriam Mehler e Luiz Gustavo no elenco e direção do próprio Plínio Marcos. No campo do teatro amador, também 53 O GOLFINHO em poucas e boas mãos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21-22 jan. 1968. O sucesso de Navalha na carne foi tamanho que mesmo após o recrudescimento da censura, ainda houve várias tentativas de tentar explorar a obra em outros meios nos anos seguintes. A adaptação para o cinema foi realizada em 1969, mas só depois de seis meses aguardando liberação pôde ser lançada em todo o país. Em 1970, a gravadora Continental afirmou o interesse de gravar um disco com as peças Navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, mas um jornal comentava que o projeto – jamais concretizado – ainda dependia da aprovação da censura. Em 1975, Navalha na carne foi também adaptada para um espetáculo de dança do Balé Stagium, companhia de dança criada por Márika Gidali e Décio Otero em 1971. O espetáculo tinha a direção de Ademar Guerra, coreografia de Décio Otero, música original de Aylton Escobar, e os bailarinos Márika Gidalli (Neusa Sueli), Décio Otero (Vado) e Milton Carneiro (Veludo). Como a peça estava proibida, o espetáculo foi intitulado Quebradas do mundaréu, estreando no dia 12 de novembro de 1975, no Teatro Municipal de São Paulo. 54 42 em setembro daquele ano foi levada à cena a peça O dia virá, escrita sob encomenda pelo grupo de teatro do Des Oiseaux, colégio das cônegas regulares de Santo Agostinho, em São Paulo. Curiosamente, tratava-se da escola feminina mais fechada da cidade, sendo a peça dirigida por Odavlas Peti e tendo as alunas no elenco – das quais, algumas futuras freiras –, além de seminaristas convidados para fazerem os papeis masculinos. 55 O ano de 1968 não podia começar melhor para Plínio. Navalha na carne ficaria mais de um ano em cartaz, arrastando o público ao teatro em São Paulo, no Rio e em “ma is de trinta cidades do interior”, sendo vista por “mais de 50.000 pessoas, de diferentes níveis culturais e sociais”. 56 O dramaturgo cruzou o país acompanhando as excursões das peças Dois perdidos numa noite suja, no qual também atuava e que seguiu estrada depois do sucesso nas principais capitais, além de Quando as máquinas param, da qual era diretor. Nessas viagens do sul ao nordeste do Brasil, Plínio levava não somente suas histórias, mas também sua s opiniões contundentes, tornando-se uma figura cada vez mais conhecida nacionalmente. Numa crônica escrita naquele fatídico ano de 1968, Nelson Rodrigues (1993, p.113) comentou “sucesso ultrajante” de seu colega dramaturgo, Plínio Marcos: “No momento, não há teatro que não o esteja representando. É um nome obsessivo, já irrespirável. Com uma fecundidade de Dumas pai acabará milionário, se os colegas não o liquidarem”. O auge da carreira de Plínio coincidiria, exata e tragicamente, com os meses anteriores ao recrudescimento da ditadura militar, naquele que Zuenir Ventura chamou do “ano que não terminou”. O dramaturgo já não vivia na dureza dos primeiros tempos em São Paulo e naquele momento, como novo “gênio” do teatro brasileiro, Plínio contou que todo mundo passou a querer montar um texto seu – fosse ele novo ou não. Aproveitando o sucesso, Plínio Marcos produziu sem parar e escreveu as peças Balbina de Iansã, que permaneceu inédita durante dois anos, e Homens de papel, que estreou em outubro de 1968 no Teatro Popular de Arte, com um “êxito razoável, entre público e crítica especializada, sem maiores destaques, positivos ou negativos” (MARX, 2004, p. 182). Mais uma vez com direção de Jairo Arco Flexa e cenários de Clóvis Bueno, além de música de Gilberto Mendes, em Homens de papel a belíssima atriz e ex- manequim Maria Della Costa era a protagonista da história de um grupo de catadores de papel. No papel de uma mendiga, 55 Em 1967, uma reportagem já se referia à peça como A vida de Jesus ou Jesus-homem, quando ela ainda estava para ser enviada à censura. (KUPFER, José Paulo; NUNES, Henrique. Um jovem sob censura. Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 2 set. 1967). 56 NAVALHA NA CARNE, 1968, São Paulo. Programa da peça. 43 era mais uma grande dama do teatro brasileiro que se rendia às fortes e miseráveis personagens femininas de Plínio. Em 1968, o autor maldito foi montado também pelo Grupo União, a principal voz de contestação do teatro brasileiro entre 1965 e 1966, mas que atravessava uma crise artística e financeira desde o ano anterior, resultando na saída de Paulo Pontes, Vianinha e Armando Costa. Também apelando para o autor mais discutido do momento, o grupo encenou uma nova versão de Os fantoches, renomeada dessa vez como Jornada de um imbecil até o entendimento, sob a direção de João das Neves e com músicas de Denoy de Oliveira com letras de Ferreira Gullar. Sobre Plínio Marcos era dito no programa da temporada de 1968 de Navalha na carne: “Sua produção é muito rica, mas só agora foi descoberto”. Obviamente, a primeira peça do autor da moda, proibida havia quase dez anos, não podia ficar esquecida. Barrela, então reescrita por Plínio, começou a ser ensaiada pelo Teatro Jovem do Rio de Janeiro, com direção de Luís Carlos Maciel e grande elenco. Entretanto, o caminho de Barrela para os palcos mais uma vez foi atravessado pela Censura: Depois de um mês de ensaio, a Censura proibiu a peça. Foi convocada a classe teatral, os críticos do Rio e de São Paulo escreveram pedindo a liberação da peça, depois de assisti-las em sessões clandestinas (Fizemos três, com o teatro cercado de policiais) [...] De nada adiantaram os argumentos. Era março de 1968 e o Senhor Gama e Silva proibiu a peça. Doeu em mim essa proibição mais do que todas as das outras peças. Sei lá porquê. Talvez porque ‘Barrela’ seja minha primeira peça. Doeu. Mas não me desanimou. (MARCOS, 1976, p.9). Em meio às tensões que cresciam vertiginosamente no ambiente político brasileiro, o teatro de Plínio Marcos passou a ser sistematicamente censurado – “No dia 3 de Agosto de 1968, o jornal Folha de São Paulo publica: A situação de Plínio Marcos é a seguinte: trabalho dele que chega em Brasília, antes mesmo de ser lido, os censores dizem: Plínio Marcos? proibido”. 57 Mas Plínio não se acanhava, pelo contrário. Presente em todas as manchetes, a imprensa afirmava que nunca tinha se falado tanto em um dramaturgo e que poucos autores tinham sido tão bem recebidos pela crítica como ele. Sua posição de destaque naquele momento pode ser ilustrada por artigo de jornal publicado quando Barrela foi novamente proibida: 57 MARCOS, Plínio. Sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos. Dados biográficos. Censura. Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/dados/censura.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 44 Apesar dos freqüentes contratempos causados pela Censura, Plínio vive intensamente os seus dias de sucessos. É o autor brasileiro mais disputado, discutido e assistido do momento: suas peças lotam qualquer teatro, da Capital ou do Interior e, em sua defesa, áj saíram algumas das figuras mais expressivas da intelectualidade brasileira. 58 Entretanto, o ambiente começava a ficar cada vez mais irrespirável, inclusive no meio teatral. O elenco de Roda viva tinha sido brutalmente agredido e ameaçado em São Paulo e em Porto Alegre; Norma Bengell, atriz de Cordélia Brasil, fora seqüestrada e levada de São Paulo para o Rio de janeiro para ser interrogada; e uma bomba explodira no Teatro Opinião em Copacabana. O teatro de Plínio Marcos, obviamente, não era poupado do terrorismo de direita que se instalava no país, como afirmava nota extraordinária no programa de uma peça: “São Paulo, 4 de agosto de 1968, intérpretes das peças de Plínio Marcos, Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne foram ameaçados de morte por cartas anônimas deixadas à porta dos respectivos teatros”. 59 Mas não importassem quais fossem as ameaças, Plínio não deixava de expressar suas opiniões, como na Feira Paulista de Opinião, organizada pelo Teatro de Arena, com o tema “O que você pensa do Brasil de hoje?”. O espetáculo realizado no Teatro Ruth Escobar reunia “os seis mais importantes dramaturgos de São Paulo” – Augusto Boal, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Lauro Cezar Muniz e Plínio Marcos – com o objetivo de apresentar pequenos textos que retratassem a realidade brasileira reunidos em um único espetáculo. Obviamente, não foram poucos os problemas com a censura. 60 Para a Feira Paulista de Opinião, Plínio Marcos escreveu uma pequena peça irreverente e provocadora, Verde que te quero verde, no qual ridicularizava a censura e os militares. O título da peça, roubado do verso inicial do poema Romance sonâmbulo, do espanhol Frederico Garcia Lorca, lembrava a moda das peças de colagens e citações, cujo maior sucesso foi Liberdade, liberdade, de Flávio Rangel e Millor Fernandes, encenado pelo Grupo Opinião em 1965 – praticamente uma “antologia ocidental de textos libertários, de IV 58 PLÍNIO Marcos: escrevo para incomodar. Folha de São Paulo, São Paulo, Ilustrada, 19 mar. 1968. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/ilustrada_19mar1968.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 59 PRIMEIRA FEIRA PAULISTA DE OPINIÃO, 1968, São Paulo. Programa da peça. 60 Os textos do espetáculo foram submetidos à Censura, mas até o dia da estréia os responsáveis não tinham recebido qualquer resposta. Augusto Boal e a equipe resolveram encenar a peça na íntegra e foram notificados após a apresentação de que o espetáculo fora liberado mediante 84 cortes. Ainda assim o espetáculo continuou sendo levado à cena sem os cortes como deliberado protesto de “desobediência civil”, até ser suspenso pelo Departamento de Polícia Federal. A classe teatral foi até o Ministério da Justiça reivindicando uma posição coerente do governo e o ministro Gama e Silva se comprometeu a estudar a questão. O juiz da Sétima Vara da Justiça Federal, através de uma liminar, liberou a apresentação do espetáculo, e Boal tentou manter o acordo com o ministro buscando respeitar a maioria dos cortes. Primeira Feira Paulista de Opinião. 45 A.C. a XX D.C.” Em 1965, com Reportagem de um tempo mau, Plínio já tinha investido seriamente nesse “gênero”, mas no caso de Verde que te quero verde, como era de seu feitio, o dramaturgo afirmava ter sido “mais influenciado pelos militares do que por Garcia Lorca”, cujos versos, aliás, estavam também presentes em Liberdade, Liberdade. Mas no esquete de Plínio, o verde referia-se mais à farda militar do que à natureza. 61 Plínio contou que o elenco da peça invadia teatros e festivais amadores, encenava o texto, com duração de quinze minutos, e fugia antes da polícia chegar: Aí tinha um juíz louco, um tal de Tinoco Barreto. Ele falou assim: ‘Esta é a obra-prima do teatro anarquista, não pode ser proibido’. E bumba, liberou. [...] Aí nós fomos pra Feira Paulista de Opinião, lá com as peças do Boal, do Guarnieri, do Bráulio, o caraco, e fizemos, aquilo tudo era um espetáculo de merda, só que todo mundo ficava esperando a nossa, que também era uma merda, mas uma merda engraçada. 62 Após a Feira Paulista de Opinião, já era planejada uma Feira Carioca de Opinião, uma Feira Latino-americana de Opinião e até uma Feira Mundial de Opinião. Entretanto, após os acontecimentos do dia 13 de dezembro de 1968, planos foram desfeitos, sonhos abortados, e o Brasil entrou num dos períodos mais negros de sua História. Com a promulgação do Ato Institucional nº. 5, a situação que se tornava quase insustentável, tornou-se inimaginavelmente pior. A censura estadual foi encampada pela Polícia Federal, tornando-se ainda mais rigorosa. Mesmo peças como Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, que já haviam sido apresentadas em diversas regiões do país, foram interditadas em todo o território nacional. Plínio Marcos, como diversos artistas, políticos e intelectuais, foi preso pelos militares naquele momento. Entretanto, desde novembro de 1968, o autor-ator interpretava com enorme sucesso o personagem que ele mesmo tinha criado na telenovela Beto Rockfeller. O mecânico Vitório era o melhor amigo do personagem-título (interpretado por Luis Gustavo) na novela levada ao ar pela TV Tupi de São Paulo que se transformava num verdadeiro fenômeno de audiência. Por esse motivo, Plínio foi liberado do DOI-CODI dias depois de preso (e após ser interrogado, mas não torturado), por interferência de Cassiano Gabus Mendes, então diretor da poderosa TV Tupi. Até mesmo esse episódio ele narrou com bom humor: Fiquei lá uma semana, e a Tupi fazia muita força pra eu sair, porque eu estava no auge, na novela Beto Rockfeller, onde eu fazia um sucesso terrível. E eu não era otário. [...] E só gravava um capítulo por dia. 61 “Verde que te quiero verde / verde viento. Verdes ramas. / El barco sobre la mar / Y el caballo em la montana. / Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas” (RANGEL; FERNANDES, 1977, p.77). 62 MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 39, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista. 46 Se eu não fosse, não tinha gravação. Então eles propunham: ‘Então você vai lá, grava e volta’. Eu disse: ‘Não, se eu vou, eu fujo’, essas coisas. Me pediam autógrafo. ‘Vem cá, eu não gosto dessas coisas, dessa palhaçada, assina aí pra minha mulher.’ ‘Pra bela mulher do meu tenente, um abraço do Vitório. 63 Posteriormente, o dramaturgo afirmaria só ter aceitado o papel na telenovela – vista, então, com preconceito por grande parte dos artistas e intelectuais – para evitar ficar “orfão”, ou seja, cair nas garras da polícia, já prevendo a possibilidade da repressão se acirrar. O nome de Plínio para o papel da dupla do protagonista também foi exigência do próprio Luis Gustavo, ator de Quando as máquinas param e idealizador de Beto Rockfeller junto com Cassiano Gabus Mendes. O dramaturgo, aliás, teria sido indicado para escrevê-la, mas recusou e sugeriu, ele próprio, o nome de Bráulio Pedroso. 64 Alguns meses depois, Plínio Marcos foi preso novamente, dessa vez em Santos, no Teatro Coliseu, por se recusar a acatar a interdição do espetáculo Dois perdidos numa noite suja , em que trabalhava também como ator. Segundo Carlos Augusto Corte Real, advogado que o livrou da cadeia, “o Plínio se indignou com alguns cortes realizados pela censura, falou o texto na íntegra e começou a discursar contra o regime. A polícia de Santos, que já estava de sobreaviso [...] surgiu direto da platéia e o prendeu” (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p. 117). Plínio foi transferido depois, do presídio de Santos, para o DOPS em São Paulo, de onde saiu, três dias depois, por interferência de vários artistas e sob a tutela de Maria Della Costa, estrela de Homens de papel. A atriz contou como ocorreu esse episódio: Então a classe teatral começou a lutar pra tirar o Plínio dalí. Conversa, conversa, o general o que fez? ‘Muito bem, então que venham uns atores representando, pra ver o que é que a gente faz’. Fui eu e mais uns atores, sentamos na sala, o secretário abriu e disse: ‘Uma só! Ela!’ – que era eu. Entrei e enfrentei o cara: ‘Porque vocês querem tirar o Plínio daqui?’ ‘Porque é um grande autor.’ [...] Depois de um papo muito grande ele disse: ‘Muito bem, Maria, eu vou fazer o seguinte: eu vou tirar, vou mandar tirar ele da cela, eu não quero nem ver ele; olha, eu vou virar as costas (e ele fez isso!), eu vou virar as costas e ele vai passar por aí. Olha, eu tenho nojo dele! Agora, se acontecer alguma coisa com ele, se ele der alguma declaração, não é 63 Ibid Segundo Plínio Marcos, por encomenda de Cassiano Gabus Mendes ele escrevera uma novela nos moldes de Dois perdidos numa noite suja, chamada Por dentro da noite, que foi censurada. Numa ida à Brasília para tentar liberar a novela, os diretores da Tupi descobriram que Plínio era uma das figuras mais visadas para ser preso pelo regime militar. Por esse motivo ele foi imediatamente convidado para participar de Beto Rockfeller, que entraria no ar. De qualquer maneira, Beto Rockfeller terminou por representar uma revolução nas telenovelas brasileiras, com diálogos ágeis, câmeras e posturas mais livres dos atores e abandono do maniqueísmo exagerado, além da introdução do anti-herói. O sucesso foi tamanho que a novela foi mantida no ar por mais de um ano. Por sua interpretação do Vitório, Plínio Marcos recebeu o Troféu Imprensa (revelação masculina, ator) e o Prêmio Gato de Ouro, da TV Globo (melhor ator revelação), ambos em 1968. 64 47 ele que vai preso; nós vamos buscar você, aí você vai no lugar dele. Então você será fiadora dele... não é?’ ‘Plínio saiu e eu dizia assim: ‘Plínio, pelo amor de Deus, olha me respeita; porque eu vou lá, pra aquela cela onde você foi; porque o cara lá, o general, disse que ia me prender mes mo (MARX, op.cit., p. 202). Após esses episódios, Plínio Marcos foi ameaçado de prisão e detido para interrogatório em várias outras ocasiões. As nuvens negras que nublaram o horizonte do país no crepúsculo do ano anterior não se moveriam tão cedo. Nos dias de hoje é bom que se proteja Ofereça a face pra quem quer que seja Nos dias de hoje esteja tranqüilo Haja o que houver pense nos seus filhos Não ande nos bares, esqueça os amigos Não pare nas praças, não corra perigo Não fale do medo que temos da vida Não ponha o dedo na nossa ferida 65 Um tempo mau. Em 1969, Plínio Marcos escreveu duas novas peças. Em Oração para um pé-dechinelo, através da história do bandido perseguido pela polícia que passa suas últimas horas escondido num barraco, o autor denunciava os grupos de extermínio de policiais antes de suas ações ganharem as manchetes dos principais jornais do país. Já O abajur lilás era possivelmente sua crítica mais contundente ao regime ditatorial, numa verdadeira resposta aos militares após o AI-5. No drama de três prostitutas ameaçadas pelo dono da pensão e seu capanga, cada um das personagens femininas assume uma posição diferente frente à truculência do “dono do poder”. Uma é acomodada, por receio de represálias, outra quer negociar e chega à delação, e a terceira é a “porra- louca” que não mede conseqüências. Conforme Sábato Magaldi (2003, p.95), “o microcosmo retratado remete, metaforicamente, ao doloroso macrocosmo político vivido durante a ditadura, em aguda pintura dos vários comportamentos assumidos pela nossa sociedade”. Entretanto, nenhuma das duas novas peças de Plínio Marcos conseguiria chegar aos palcos ainda nos anos setenta. No mesmo ano em que O abajur lilás foi escrit a, o ator Paulo Goulart começou a produção do espetáculo, que ele mesmo dirigiria, com Nicete Bruno (sua esposa) e Walderez 65 Cartomante, música de Ivan Lins e letra de Vítor Martins. 48 de Barros no elenco. Após uma consulta informal à Censura, veio a resposta negativa e os ensaios foram interrompidos. Em 1970, o texto foi proibido por cinco anos para todo o território nacional. Em 1975, com suposta liberação da peça, Américo Marques da Costa, apresentado a Plínio por Samuel Wainer, se interessou em produzi- la, com direção de Antônio Abujamra e Lima Duarte, Walderez de Barros, Cacilda Lanuza e Ariclê Perez no elenco. Plínio contou o novo drama: E veio afinal o dia do ensaio para a censura. Eles nos obrigaram a fazer o espetáculo como ia ser na estréia para público. Cenário, figurino, iluminação. [...] Desconfiávamos que era armação das piranhas da censura pra atingirem economicamente a produção. E era. Esse espetáculo pra censura eu assisti. E era belo. Belíssimo. Mas aqueles senhores incapazes até de fazer um “o” com o cú proibiram (MARCOS, 1996, p.114). A classe teatral organizou várias manifestações de protesto contra a censura da peça e grande parte das companhias teatrais não trabalhou na quinta-feira, dia 15 de maio de 1975, data da proibição da peça. Durante as semanas seguintes, em todos os teatros, antes do início dos espetáculos, era lido um manifesto contra a censura. Uma verdadeira batalha jurídica foi empreendida, mas que não resultou favorável à liberação. Situação semelhante já tinha ocorrido com Barrela. Um ano após a proibição em 1968, Plínio obteve a informação que a interdição poderia ser revista e novamente tentou montar a peça, dessa vez com direção de Alberto D’Aversa. Mas novamente se decepcionou: Em junho de 1969, com a peça prontinha, procuramos o figurão da Censura Federal para assistir ao ensaio. E o homem simplesmente se negou. Recusou o diálogo e negou que tivesse se prontificado algum dia a assistir ao ensaio, negou ter prometido alguma coisa a mim. Os meus amigos [José Roberto Fanganiello] Mehlen e [Pedro] Bandeira pagaram o elenco, conforme é do feitio deles, e todos nós sofremos (MARCOS, 1976, p. 9). Nos anos mais trágicos da ditadura militar, Plínio sofreu não somente com a censura policial, mas também com o cerceamento profissional. No início da década de setenta, diante do absurdo de chegar a ter absolutamente todas as suas peças proibidas – tornando-se um dos autores teatrais mais censurados pela ditadura militar no Brasil – Plínio chegou a se autointitular um “ex-dramaturgo” ou um “dramaturgo aposentado”, anunciando a decisão de não mais escrever para o teatro. Mesmo em 1979, num simpósio sobre a censura, ele comentava a situação que continuava a viver: “Hoje, a gente não sabe que peça pode montar ou não montar, porque às vezes a decisão é dada na última hora, na hora de abrir o pano. E isso pode significar um prejuízo econômico muito grande para quem produz” (KHÉDE, op. cit., p. 190). 49 O sucesso extraordinário de Plínio Marcos em 1967 / 1968, atravessado pelo AI-5, foi assumindo posteriormente um caráter de modismo passageiro, que Nelson Rodrigues descreveu com ironia: “foi ele, dentro de nosso teatro, um surto epidêmico. Alastrou-se por todos os palcos, elencos e platéias. Apanhava-se Plínio Marcos, como outrora, a febre amarela, a peste bubônica, a bexiga e a escarlatina”. (RODRIGUES, 1996, p. 126). A partir de 1969, muitos já acusavam Plínio de se repetir ou de ter esgotado sua fórmula. A diminuição do interesse por suas obras, após ter sido superado seu caráter de “novidade”, possivelmente tornou mais difícil resistir ao endurecimento da perseguição da censura. Mas Plínio também já não vivia a dureza dos primeiros anos em São Paulo. Em 1970 estava morando com os dois filhos pequenos num apartamento próprio, Walderez tinha um carro (ele não dirigia), e o casal comprara um sítio em Ribeirão Pires. O dramaturgo tinha se tornado uma verdadeira “celebridade”, tanto no meio teatral por suas peças, quanto, principalmente, aos olhos do grande público da televisão, pelo seu personagem na telenovela Beto Rockfeller. Plínio jamais se considerou um grande ator – dizia trabalhar apenas em peças dos outros para não estragar as dele –, mas foi o sucesso do personagem Vitório que deu um fôlego renovado para sua carreira e que sustentou seus principais trabalhos na televisão e no cinema naqueles primeiros anos da década de 70. Na televisão, após Beto Rockfeller Plínio atuou em outras novelas explorando a persona que o tinha consagrado. Foi logo em seguida o pro tagonista da novela João Juca Júnior (TV Tupi, 1969, de Sylvan Paezzo e direção de Walter Avancini). Também interpretou e criou o personagem do jornalista meio “cascateiro” Bem-te- vi na novela Bandeira 2 (TV Globo, 1971, de Dias Gomes, direção de Walter Campos e Daniel Filho), e viveu novamente o mecânico Vitório em A volta do Beto Rockfeller (TV Tupi, 1973, de Bráulio Pedroso, direção de Oswaldo Loureiro). Participou ainda da novela Tchan, a grande sacada, (TV Tupi, 1976, de Marcos Rey, direção de Antônio Moura Mattos). Já em relação a suas participações como ator em filmes brasileiros, Plínio atuou no segundo episódio (A honestidade de mentir) da comédia A arte de amar... bem (dir. Fernando de Barros, 1969), baseado nas peças de Silveira Sampaio. Plínio fazia uma ponta como o chofer de táxi que fala demais e revela a vida boa do marido (Otelo Zeloni) a sua esposa desconfiada (Consuelo Leandro). Em 1970, além do protagonista Luis Gustavo, o Vitório de Plínio Marcos foi o único personagem de Beto Rockfeller que também participou da versão cinematográfica da telenovela da TV Tupi. Dirigida por Olivier Perroy, diretor e fotógrafo de publicidade, a adaptação a cores de Beto Rockefeller foi uma verdadeira super-produção de 50 Aníbal Massaini, tentando lucrar com o sucesso da novela que tinha ido ao ar até o ano anterior. Também na esteira de sua fama momentânea no final da década de 60, Plínio fez uma participação especial (assim como outros convidados, como Leila Diniz, Grande Otelo, José Lewgoy, Marília Pêra e outros), na comédia O donzelo (dir. Stefan Wohl, 1971), sucesso de público estrelado por Flávio Migliaccio. 66 Depois disso, Plínio só participaria novamente de A santa donzela, filme dirigido pelo ator Flavio Porto, que depois se ligaria aos produtores da Boca do Lixo, participando de mais de vinte longas- metragens. Flávio Porto se recordaria mais tarde: “O primeiro filme que dirigi, A santa donzela, foi uma loucura. Meu galã no filme era o Plínio Marcos. Ele não tinha um dente na frente e isso deu uma comicidade legal para o filme. Um galã cheio de glamour e sem dente!”. 67 Essa precária produção em que Plínio era o mocinho e o bonitão John Herbert era o vilão – segundo o dramaturgo, Herbert falava durante as filmagens: “é por isso que o cinema brasileiro não vai pra frente” –, levaria três anos para ser feita (1972-1975), sendo depois censurada e lançada somente em 1978. 68 O mesmo Flávio Porto tentou em 1979 produzir e dirigir uma adaptação do romance de Plínio Marcos Barra do Catimbó, renomeada como Amor e glória futebol clube. O projeto, entretanto, jamais foi concretizado. 69 Além do trabalho de ator, dada a brutal perseguição a sua obra teatral, na passagem para a década de 70 suas atividades também se voltaram com mais vigor para o jornalismo. A partir de 1968, convidado por Samuel Wainer, manteve durante um ano uma coluna (semanal e, mais tarde, diária) intitulada Navalha na carne no jornal Última Hora, de São Paulo. Posteriormente, passou a fazer entrevistas (com o titulo de Plínio Marcos escracha) e crônicas. 66 O filme se sustentava sobre a verve humorística de Flávio Migliaccio, que também colaborou no argumento, roteiro e diálogos, e interpretava um personagem semelhante a um dos muitos tipos que incorporara em Como vai, vai bem? (dir. Grupo Câmara, 1968) – tour de force dele e de Paulo José. 67 CORDEIRO, Jorge Henrique. A Boca do Lixo passada a limpo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 jun. 2001. 68 Plínio Marcos interpretava o ex-sacristão e ex-virgem, Jordão Magalhães, jovem escultor de uma cidade do interior, que está esculpindo a estátua da virgem padroeira do lugar usando como modelo sua namorada Verinha (Wanda Stefânia), cuja tia quer que ela case com o jovem político Armando (John Herbert). Diante dessa situação, Jordão Magalhães muda-se para a capital, onde alcança o sucesso. Mas a glória não dura muito e ele se vê abandonado pelos mesmos que o ajudaram, esquecido pelos críticos e sem dinheiro, logo voltando para sua cidade e virando motivo de chacota. Desesperado, o artista mata-se na esperança de que suas obras sejam vendidas. O filme era baseado na peça A Morte do Imortal, de Lauro Cézar Muniz, também autor do roteiro (GUIA DE FILMES. Rio de Janeiro: Embrafilme, n.73-74, 1978, p.79) 69 O roteiro encaminhado para a Embrafilme em 1979 está depositado na Cinemateca Brasileira. 51 Plínio passou ainda pelo jornal Diário da noite, depois retornando a Última Hora, intercalando pequenos contos e crônicas variadas, onde permaneceu até julho de 1973, com um breve intervalo, no segundo semestre de 1972, quando assinou uma coluna semanal no jornal Guaru News (de Guarulhos, São Paulo) com o título de Nas quebradas do mundaréu. No segundo semestre de 1973, sua coluna no jornal Última Hora passou a se chamar Plínio Marcos conta e, em 1974, Jornal do Plínio Marcos. Permaneceu no jornal Última Hora até julho de 1975, quando foi demitido. Em outubro de 1975, foi contratado pelo jornalista Mino Carta para escrever uma coluna sobre futebol na revista Veja. Plínio Marcos acabou sendo o estopim para a saída do próprio Mino Carta, então editor-chefe da revista semanal de maior circulação do país. 70 Plínio foi demitido da Veja em janeiro de 1976 e ficou praticamente um ano sem escrever em jornais, assinando apenas colaborações esparsas, por exemplo, para a revista Extra Realidade Brasileira, para a qual contribuiu com contos-reportagens. Em fevereiro de 1977, voltou para um grande jornal, escrevendo durante alguns meses para a Folha de São Paulo. Em sua coluna de estréia, intitulada A Volta de Plínio Marcos, o autor começava o texto da seguinte maneira: Eis -me de novo escancarando as minhas mal-traçadas linhas na imprensa nacional. Estou de volta sem mágoas e sem rancores. Não voltei pra cobrar agravos e menos ainda pra afrontar alguém. Estou aqui apenas com as mesmas finalidades de sempre: defender o feijão com tranqueira e defender pontos de vista. Se conseguir inquietar meus leitores, melhor ainda. Voltei depois de longo tempo afastado do jornalismo por motivo de força maior, aliás, de força muito maior. 71 Plínio ainda incomodava. Em 1977, devido a sua coluna, ele recebia cartas e ligações anônimas com ameaças. Logo seria demitido também da Folha de São Paulo. Em relação ao teatro, ao longo da década de 70, o sucesso de Plínio Marcos no final dos anos 60 foi ficando cada vez mais distante. Em 1970, em meio ao amplo movimento de 70 Em 1975, devido a um pedido de empréstimo à Caixa Econômica Federal, a revista Veja ficou ainda mais sensível à pressão do governo, vinda especialmente do ministro da Justiça, Armando Falcão. Como os militares pressionavam pela demissão de Mino Carta, que dirigia a revista desde 1969, o jornalista se propôs a tirar férias até que a situação fosse resolvida. Diante da recusa de Victor Civita, Mino continuou a não ceder à censura e, entre outras medidas, contratou Plínio Marcos para fazer uma coluna de esportes, no qual o autor maldito, através do futebol, lançava ataques a todas as atrocidades do governo. Civita finalmente concordou com as férias de Mino, que exigiu que nada fosse alterado na linha editorial em sua ausência. No seu retorno em janeiro de 1976, Civita disse ao jornalista que ele devia mandar Plínio Marcos embora. “Eu respondi: ‘Não mando. Se tiver de mandar embora o Plínio Marcos, você me manda embora junto com o Plínio’. E ficou aquele ‘mando’, ‘não mando’ até que eu saí” (CARTA, Mino. A mídia implorava pela intervenção militar. América On Line, abr. 2004. Entrevista concedida a Adriana Souza Silva. Disponível em: <http://www.piratininga.org.br/entrevistas/minocarta-abril2004.html>. Acesso em: 20 dez. 2005. 71 MARCOS, Plínio. A volta de Plínio Marcos. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 fev. 1977. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/plinio_marcos_a_volta.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 52 valorização da cultura popular, que teve reflexos também no cinema brasileiro, Plínio estreou o musical Balbina de Iansã. A peça partia, segundo Sábato Magaldi, do “esquema shakespeariano de Romeu e Julieta [...] para construir uma trama de amor que rompe as estruturas” 72 , tratando da história de amor entre dois jovens pertencentes a terreiros de candomblé rivais. O espetáculo estreou em novembro de 1970 no Teatro São Pedro, em São Paulo, com direção geral de Plínio Marcos, seguindo depois em temporada na sede da Escola de Samba Camisa Verde e Branco. No Rio de janeiro a peça foi montada em 1971, sob a direção de Carlos Alberto e com ele e a estrela Yoná Magalhães no elenco, atores casados na vida real e que formavam um dos casais mais populares da televisão brasileira. Segundo crítica da época, Balbina de Iansã sinalizava um novo rumo na carreira de Plínio: Sem usar uma única só vez um palavrão contundente, motivo de tantas discussões a respeito de suas peças, criou uma estória brasileira e popular e a transportou para o palco em um espetáculo belo e vigoroso embora com defeitos. [...] Os diálogos geralmente cedem vez às cenas coletivas de canto, lutas (capoeira) e evocações religiosas. O final é densamente reservado como se o autor pretendesse apenas mostrar seu povo rindo e chorando, sem comprar brigas maiores. Um espetáculo simples e bonito de coisas brasileiras que agradará. 73 Apesar do relativo sucesso de público, Plínio Marcos, que também produziu a peça, não obteve grande lucro. Não apenas pelo alto custo do aluguel do teatro e do pagamento da numerosa equipe e elenco (atores, dançarinos e músicos), como também por ter baixado o preço do ingresso para possibilitar o acesso de um maior número de pessoas. De uma “tentativa de realizar um teatro popular brasileiro”, Plínio partiu para uma proposta mais radical de popularização do teatro, encenando Quando as máquinas param, no Sindicato dos Têxteis, em São Paulo, em 1971. Sobre essa montagem, com Walderez de Barros e Tony Ramos no elenco, Plínio falou: Impossibilitado de pegar e apresentar peças novas, que provavelmente iriam inquietar a juventude universitária, eu peguei ‘Quando as máquinas param’ [...] e fui montar no Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Têxteis, na rua Oiapoque, 80, em São Paulo, a preços reduzidos pro pessoal do curso do Mobral e cursos supletivos a um conto. Isso teve um grande êxito, porque nós conseguimos em três meses levar 15 mil pessoas ao teatro. 74 72 MAGALDI, Sábato. Balbina de Iansã. O Estado de São Paulo, 13 jan. 1971. Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/criticas/balbina-sabato.htm>. Acesso em: 9 mar. 2006. 73 DEL RIOS, Jefferson. Balbina de Iansã. Folha de São Paulo, 14 jan 1971 Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/criticas/balbina-jeffersondelrios.htm>. Acesso em: 9 mar. 2006. 74 KUSANO, Kazumi. Um teatro na gaveta: a arte inquieta de Plínio Marcos. O Jornal, Rio de janeiro, 11 jan. 1972. 53 Mas era cada vez mais difícil a sobrevivência do dramaturgo Plínio Marcos dentro do que era considerada uma crise mais ampla do teatro brasileiro. Diversas razões eram apontadas para esse quadro, desde o chamado “afugentamento do público” pelo teatro de vanguarda, até a “concorrência desleal” da TV, passando pela intensa repressão da censura aos dramaturgos que seria responsável por uma sensível queda de qualidade geral. “Resultado: entre mortos e feridos, salvou-se, como seria de se esperar, o velho teatro digestivo e assumidamente comercial, sempre pronto a responder camaleonescamente às arremetidas do sistema” (PACHECO, 1979, p.89). O próprio Plínio Marcos refletia sobre esse processo, iniciado nos anos 60: O teatro ficou realmente agressivo, violento, de impacto, e afastou o público tradicional do teatro – aquele público que ia fazer a digestão e arrotar no teatro – e veio em substituição um público inquieto – a juventude, os estudantes. Depois veio o arrocho e o estudante não voltou ao teatro para ver. A gente não tinha nada a dizer mesmo, não podia dizer nada, então ele também se afastou. E os empresários desonestos partiram pros grandes espetáculos digestivos [...] e outros partiram pra esse pretenso vanguardismo aí. 75 Ou seja, além da censura e do excessivo hermetismo (em parte resultado da tentativa de se escapar de sua ação), os dramaturgos passaram a ser pressionados também por outra intimidação: “a dos empresários, que começaram a temer enviar textos ‘problemáticos’ para a Censura alegando ‘não poder correr o risco de ficarem marcados” Não à toa, o número de textos proibidos pela censura iria diminuir a partir do final de 1971. (Ibid, p.95) Mas Plínio foi um dos que menos se acomodou ou se desviou de suas convicções. Após diversos anos com grande parte de suas peças censuradas, o autor maldito podia afirmar: “A auto censura nunca fez parte da minha criação e eu prometi e jurei que para cada peça minha que fosse proibida eu produziria três”. 76 Plínio enxergava com clareza esquemática o encadeamento das coisas, com a auto-censura implicando em fazer “peças bem comportadas”. “E peças bem comportadas não atraem público. Então caímos na subvenção governamental. E essa subvenção é realmente corruptora, porque impede que o teatro seja crítico da sociedade. Impede que o teatro lute pela sua liberdade” (KHÉDE, op. cit., p.189). Plínio declarava 75 KUSANO, Kazumi. Um teatro na gaveta: a arte inquieta de Plínio Marcos. O Jornal, Rio de janeiro, 11 jan. 1972. Em relação ao teatro experimental, numa deliciosa crônica de 1975, Plínio fazia piada ao anunciar que sua nova peça seria toda “na base da vanguarda”. Ao declarar ironicamente que passaria a fazer peças herméticas, dizia também que nunca mais teria problemas com a censura: “Em compensação, também não terei público. O que não tem importância porque ganharei subvenção do governo, que prestigia a cultura” (MARCOS, Plínio. Jornal do Plínio Marcos, Última Hora, São Paulo, 29 mai. 1975). 76 MARCOS, Plínio. Atenção: Plínio Marcos vai falar de sua arqui-inimiga: a censura. Vale Paraibano, São José dos Campos, 9 mai. 1979. 54 corajosamente: “A saída é a liberdade total de expressão, [...] por que eu não preciso de subvenção do governo, eu preciso de liberdade”. 77 Radical em suas crenças, Plínio assumiu de frente a luta contra a censura, se vendo muitas vezes sozinho no front de batalha: “Na verdade, o teatro nunca lutou contra a censura. O teatro lutou pela liberalização de algumas peças. Mas para o fim da censura eles não lutam, porque um teatro que é comprometido com o governo não vai correr o risco de lutar contra um órgão do governo” (Ibid). Desse modo, a decisão de Plínio Marcos de abandonar o teatro não foi motivada apenas pela censura, mas também pelo “abandono” de seus colegas. Referindo-se a si próprio em terceira pessoa, o dramaturgo escreveu com mal disfarçado rancor sobre sua situação em 1974, comparando-a com os anos anteriores, quando tinha proporcionado grandes papéis e estrondosos sucessos para atrizes como Tônia Carrero, Miriam Mehler e Maria Della Costa: Todos pediam peça de Plínio Marcos. Hoje, dramaturgo morto, Plínio Marcos é um pecado em cada carreira. Tônia vai de ‘Casa de Bonecas’, Maria, de ‘Bodas de Sangue’, Miriam Mehler, com o permitido Nelson Rodrigues que Deus o guarde e proteja. Ninguém se lembra de pedir peça de Plínio Marcos e ainda dizem que saíram da linha ao montarem o maldito autor. 78 Plínio se tornava um nome indesejado, desagradável, maldito. Maria Della Costa contou um episódio que ocorreu quando foi convidada pela Secretaria de Cultura de São Paulo, junto com outros intelectuais, para fazer um festival popular de teatro no Municipal, com ingressos a preços mínimos. Segundo a atriz, Eles disseram: ‘Olha, nós queremos trazer todas as companhias para o Municipal, menos uma, que é o Plínio Marcos. Com essa condição’. Aí, nós esbarramos todos ali [...] nós olhamos um pro outro e perguntamos: ‘E aí, o que é que a gente faz?’ Tentamos o diálogo: ‘Mas um homem que...’ e ele: ‘Não, não, não... Com essa condição. Porque a polícia não quer saber, é um cara que não tem diálogo, é só palavrão, um em cima do outro, não! Pro festival de teatro, sério, que é pro povo, nós vamos abrir as portas do Teatro Municipal para o povo...’ [...] É isso: ou a gente renuncia a tudo, ou faz o festival de todas as outras companhias. Daí a maioria votou para prosseguir com o trabalho e foi um sucesso fantástico (MARX, op. cit., p.203). Se num panorama de um teatro brasileiro cada vez menos crítico, agressivo e solidário, Plínio ia sendo “esquecido”, ao contrário da maior parte de seus colegas o autor maldito também não foi incorporado pela televisão. Em 1975, fez uma participação especial – no papel de São Francisco de Assis – no Teatro 2, teleteatro da TV Cultura de São Paulo, 77 KUSANO, Kazumi. Um teatro na gaveta: a arte inquieta de Plínio Marcos. O Jornal, Rio de janeiro, Idéia nova, 11 jan. 1972, p.1. 78 MARCOS, Plínio. Um dia a velha garra vai voltar. Última Hora, São Paulo, 15 jan. 1974. 55 dirigido por Ademar Guerra, que acabou sendo proibido pela Censura Federal durante as gravações. Abordando esse episódio, Plínio comentou a situação em que vivia naqueles anos: Fui brincar de ser ator. Fui chamado pra fazer um papel de São Francisco de Assis, no Canal 2, Tevê Cultura. Gravei uma parte, me pagaram e me mandaram embora, alegando que eram ordens superiores. Aí, a barra pesou mesmo. Ninguém me dava emprego em televisão. Falavam que os homens não deixavam. Que havia ordens pra não me darem emprego. O Carlos Alberto de Nóbrega, essa santa criatura, escutou isso e, como toda pessoa justa, ficou indignado. Foi tirar satisfação com um general amigo dele. Era tudo mentira. Não havia ordem nenhuma. As pessoas não me davam emprego na televisão porque não queriam. Ele, Carlos Alberto, me deu um cachê. Ótimo cachê, só pra provar que podia. E daria outros, se não tivessem feito tudo pra ele se cansar e pedir demissão. O Sílvio Santos também toda hora me chamava pra participar do seu programa e faturar um cachê. E lá podia. Os outros, os bons meninos, é que não queriam que eu entrasse pra televisão. Paciência. Eles, os bons meninos, meus colegas de ofício, é que não queriam. 79 A televisão brasileira cresceu enormemente na década de setenta, marcada principalmente pela expansão e hegemonia da Rede Globo, maior rede nacional de emissoras desde 1971. A consolidação do padrão globo de qualidade, sobretudo a partir de 1973, com a chegada ao Brasil da televisão colorida, coincidiu ainda com o pico consumista da classe média (KEHL, 1979, passim). Nesse processo, a programação da TV Globo – as novelas, os casos especiais e, posteriormente, as séries – ganharam ao longo da década uma respeitabilidade cada vez maior por sua crescente qualidade, oferecendo canais esporádicos para as demandas esquerdistas e/ou inovadoras (ao nível da moral e dos costumes) de seu público. O ministro das comunicações Higino Corsetti chegou a declarar em 1972 que “o que há de melhor em nosso teatro passou para a televisão, que está num nível muito bom” (Ibid, p. 49). Conforme João Freire Filho, “com uma saúde financeira invejável, já se sedimentando como rede nacional, a TV Globo optou, no começo dos anos 70, por uma nova filosofia de programação que, além de evitar as constantes altercações com os militares, atingisse um público mais qualificado, mantendo o que já se tornara cativo (os 60% das classes C/D)”. 80 Nesse processo, a televisão brasileira incorporou gradativamente grande parte dos artistas de outras áreas. Poucos atores não foram seduzidos pela fama e pelos altos salários, e diversos cineastas e autores teatrais também trocaram os telas de cinema e os palcos pela telinha de TV, especialmente da emissora líder de audiência. 79 MARCOS, Plínio. A Volta de Plínio Marcos. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 fev. 1977. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/plinio_marcos_a_volta.htm> . Acesso em: 18 jun. 2005. 80 FREIRE, João Freire. A TV, os Intelectuais e as Massas no Brasil (1950-1980). Ciberlegenda, Niterói, n.11, 2003. Disponível em: <http://www.uff.br/mestcii/joao1.htm>. Acesso em: 9 mar. 2006. 56 Com o antigo projeto nacionalista sendo embarcado pela ditadura, o ideário nacionalpopular teve reflexos tanto, por exemplo, na atuação da estatal Embrafilme, quanto na da Rede Globo, organização privada amplamente favorecida pelo regime militar. Praticamente todos os dramaturgos de esquerda surgidos e consagrados nos anos 60 foram incorporados pela emissora de Roberto Marinho: nomes como Lauro Cezar Muniz, Dias Gomes, Jorge de Andrade e Bráulio Pedroso (como autores de telenovelas); Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa (no seriado A grande família, entre outros); Roberto Freire e Gianfrancesco Guarnieri (em séries como Obrigado doutor e Carga pesada). 81 Mas Plínio Marcos – um dos maiores dramaturgos de sua geração – nunca foi plenamente aceito ou incorporado ao meio, exatamente no momento de sua maior expansão. Sua personalidade inquieta, libertária, não conformista e polêmica, além de sua extrema coerência, provavelmente nunca permitiram que ele pudesse seguir o mesmo rumo de diversos de seus colegas, embora sua linguagem popular o credenciasse exemplarmente para o projeto nacional popular da Rede Globo. Apesar disso, Plínio escreveu, de fato, diversos textos e roteiros para novelas, casos especiais e programas de televisão. Alguns poucos foram levados ao ar, outros censurados, mas a maior parte desse material permanece inédita. 82 Dias Gomes, consagrado dramaturgo que se tornou novelista de sucesso, em entrevista concedida em 1977, confessou: “Em 68 o teatro estava muito cerceado; eu tinha duas opções, ou tinha que ser funcionário público ou ia para a TV. Mas não existe o que discutir: se você luta por um teatro de massa, como recusar um público de 20 milhões?”. 83 Plínio Marcos inicialmente adotava o mesmo discurso, mas não teve nenhuma das duas opções. Em 1971, o autor maldito afirmava a vontade de trabalhar na televisão pelo 81 Também na Rede Globo, sob a direção de Ferreira Gullar e Domingos de Oliveira, foi ao ar a série Aplauso, com adaptações de textos literários e dramáticos para a TV, de autores como Dias Gomes, Vianinha ou Nelson Rodrigues. Aliás, mesmo Nelson Rodrigues chegou a escrever novelas na década de 60, para a antiga TV Rio. Convidado por Walter Clark, “escreveu a primeira novela brasileira de todos os tempos” – A morta sem espelho – enfrentando problemas com a censura em 1963. No ano seguinte, sua novela Sonho de amor foi anunciada como uma adaptação de O tronco do ipê, de José Alencar, mesmo sem Nelson (e, provavelmente, também os censores) nunca ter lido o livro. Sua última novela foi O desconhecido, também em 1964. (CASTRO, 1992, p.341-342). 82 As histórias da Barra do Catimbó publicadas na imprensa alcançaram tanto sucesso que quase viraram novela de televisão. “Dercy Gonçalves chegou a gravar o primeiro capítulo no papel da fofoqueira Cotinha, na extinta TV Tupi, mas a censura do governo militar impediu, mas uma vez, Plínio Marcos de trabalhar” (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p. 37). Uma série infanto-juvenil de sua autoria, intitulada Os Últimos mambembeiros, adaptada de histórias publicadas na sua coluna diária Navalha na carne, também chegou a ter seu primeiro capítulo gravado na TV Record, como programa piloto, mas nunca foi exibida. Sua peça premiada pela TV Tupi em 1964, História do subúrbio, chegou a ser adaptada num programa da série Caso especial da Globo, mas na época Plínio disse ter sido “pessimamente dirigida e interpretada”, reclamando dos cortes e da artificialidade de um ator que andava de chuteiras como “se estivesse deslizando em cima de patins”. 83 GOMES, Dias. Entrevista. Veja, Rio de Janeiro, 29 jun. 1977. 57 desejo de atingir o povo para e sobre quem escrevia. 84 Afinal, trabalhando em televisão desde 1964, Plínio não tinha como ter preconceitos com o veículo como outros intelectuais de esquerda chegaram a manifestar, e afirmava em 1969: A televisão é ruim assim porque os intelectuais deixaram que ela ficasse assim. E ela está aí para ficar. Quem quiser mudar que entre na briga. [...] Tem muito intelectual metido a bacana, que pensa virar estátua, que se preocupa com o que a História vai dizer dele. Fica sonhando com a academia e acha televisão um negócio sujo. Estes vão ficar falando sozinhos. Pra mim, o negócio é entrar na briga. E partir pro pau!. 85 Além disso, ao longo da década de 70, junto à discussão sobre a televisão brasileira, o dramaturgo também ergueu a bandeira da defesa da cultura nacional: “Bendita novela. Sou a favor da novela e contra o filme americano. Defendo o meu mercado de trabalho, que está amesquinhado”. 86 Mesmo quando se iniciava o processo de incorporação de diversos profissionais do teatro e a exclusão do dramaturgo já começava a se delinear, ele ainda expressava interesse no meio televisivo: Sou uma espécie de autor maldito. Na televisão, por exemplo, já escrevi duas novelas para o canal 4 (TV Tupi), ambas foram censuradas. Acho importante fazer novelas. Janet Clair, Dias Gomes, Bráulio Pedroso estão se matando para tentar mudar uma linguagem. Lauro César Muniz, Walter Negrão, Lima Duarte e Sérgio Jockyman realizaram trabalhos de alto nível. E há muito outros que deveriam ser chamados para criar para TV, como Vianinha, Guarnieri, Paulo Pontes e Marcos Reis . 87 Mas sua marginalização da televisão que se acentuou ao longo dos anos, como aconteceu também na grande imprensa, foi, provavelmente, a razão de certo rancor (ou galhofa) manifestado nas décadas seguintes. 84 88 Ainda esperançoso, Plínio afirmava: “Evidentemente, eu acho que se pudesse escrever uma novela, eu preferiria, porque a televisão é um veículo de comunicação muito melhor. Com um grande sucesso no teatro, a gente pega em quinze dias umas 5.200 pessoas. [...] Mas isto, na televisão, é audiência de uma noite, para novela que não está dando ibope” (O SUCESSO começou com a briga na censura para liberar uma peça. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 set. 1971). 85 Telenovela é uma epidemia nacional. Veja, n.29, 07 mai. 1969. In: FREIRE, João Freire. A TV, os Intelectuais e as Massas no Brasil (1950-1980). Ciberlegenda, Niterói, n.11, 2003. Disponível em: <http://www.uff.br/mestcii/joao1.htm>. Acesso em: 9 mar. 2006. 86 CICLO DE DEBATES DA CULTURA CONTEMPORÂNEA, 1, 1975, Rio de Janeiro. Ciclo de debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro: Inúbia, 1976. Coleção opinião. p. 63 87 MOREIRA, Célia. Plínio Marcos, um ex-dramaturgo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 jul 1972. 88 Em 1984, Plínio já tinha praticamente desistido de trabalhar na televisão e numa entrevista afirmou não ver mais possibilidade de “trabalhar num veículo que está ali para vender porcarias, idéias deterioradas e descaracterizando um povo”. O autor comentou ainda: “Aí eu me afastei e já para mais de dez anos que eu não faço uma novela. Tento dar entrevistas na televisão e eles não deixam” (MARCOS, Plínio. Plínio Marcos: a lucidez e o discurso do palhaço. Estado de Minas, Belo Horizonte, 2 jun. 1984. Entrevista concedida ao repórter Jorge Fernando dos Santos.) Em 1994, ao responder à pergunta “Qual foi o 1º programa que você viu na TV?”, 58 Sem desfrutar dos altos salários da televisão, constantemente impedido de montar suas peças e repetidamente demitido dos grandes jornais do país, para sobreviver Plínio teve que “se virar”. Foi aí que começou a viajar para algumas cidades do país fazendo palestras, leituras e participando de debates. Nessa época também que virou “camelô da cultura”, como gostava de afirmar, vendendo seus livros, muitos deles editados à própria custa, através da gráfica do amigo Pedro Fanelli. (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p. 71). Conforme Plínio, a opção pela prosa e a publicação de livros foi também estratégica: “Considerando o caso dos romances: a verdade é que, se bem entendo o pensamento da censura, o teatro causa muito mais impacto do que a literatura [...] Então são mais brandos com a literatura” (KHÉDE, op. cit., p. 203). Sua produção de contos e crônicas para a imprensa possibilitou a publicação de livros como Histórias das quebradas do mundaréu (editora Nórdica, 1973), reunindo crônicas publicadas no jornal Última Hora; e Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos (Editora Lampião, 1977), também com contos publicados na imprensa. Plínio estreou ainda no romance com Uma reportagem maldita (Querô) (Símbolo, 1976), texto que ganhou uma versão para o teatro três anos depois. Mas pelo livro Plínio Marcos recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de melhor autor de romance em 1976. Com a maior parte de suas peças proibidas, poucas puderam ser publicadas, como Quando as máquinas param (editora Obelisco, 1971). Barrela, então interditada havia quase vinte anos, foi também lançada em livro em 1976 (editora Símbolo). No prólogo, Plínio escreveu melancolicamente: Ela está aí, em livro, já que não pôde nunca, devido à Censura, fazer carreira no palco. Eu dedico esse livro a todos os que deram seus talentos às personagens, a todos os que perderam dinheiro e tempo na vã esperança de vê-la encenada. De coração agradeço a todos e um dia, talvez, quando o palco brasileiro for livre, a gente a veja encenada (MARCOS, 1976, p. 9-10). Mas nem mesmo assim Plínio ficava totalmente livre da censura: o livro O abajur lilás, publicado em 1975 (editora Brasiliense), e cuja luta pela liberação transformou a peça num símbolo contra a ditadura, teve sua segunda edição proibida de ser lançada em 1978. Marginalizado da grande mídia, Plínio adotava diversas estratégias de sobrevivência, se revelando intimamente em suas crônicas: feita para uma enquete da Folha de São Paulo, Plínio Marcos disse simplesmente “Nada. Nunca vi TV”. Apesar da resposta rabugenta, o dramaturgo, em outras ocasiões, admitiria, obviamente, assistir muito à televisão (sobretudo jornais e futebol), embora dissesse preferir bater papo na esquina. 59 Eu editei um livrinho lá [...] e saí vendendo nos botecos desta cidade. A Walderez trabalhava e a gente levava. Os estudantes começaram a me chamar pra fazer conferências e shows e me davam uma grana, compravam meu livro [...] Andei muito pelas faculdades. Fui impedido de entrar em muitas delas, mas não corri, nem me apavorei. Acabei sendo escolhido paraninfo da turma de Comunicações de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Vendi livros nos bares, fiz shows em boates, joguei futebol no interior num time de jogadores profissionais, fiz das tripas coração pra não piorar o gordurante das crianças lá de casa. Deu pra prá aguentar o repuxo. Deu pra saber que dá pra encarar as bananosas. Aí, aliviou um pouco. 89 Ao longo da década de 70, como foi a bandeira de muitos, Plínio também se alinhou em defesa da cultura popular, criticando a importação estrangeira. Como afirmou em 1976, “Hoje, a preservação da cultura popular, da arte popular brasileira, é a tarefa que estou me propondo [...] denunciando toda essa importação de cultura”. 90 Em todos os debates e palestras que participou ao longo dos anos 70, dois discursos eram imprescindíveis. O primeiro era a enumeração de estatísticas da invasão da cultura estrangeira em nosso país: No cinema, são 9.600 filmes estrangeiros contra 100 brasileiros. Na televisão são 172 filmes estrangeiros por semana. No rádio, são 80% de músicas estrangeiras diuturnamente tocando e emprenhando nossas crianças e nossos jovens pela orelha. Agora, nos jornais, encontramos centenas de publicações estrangeiras de péssimo nível, nas bancas e nas livrarias, semanalmente. Toda essa massa de consumo importada, esse lixo cultural, é sem dúvida alguma alienante (KHÉDE, op. cit., p.187). A outra frase, que Plínio criou inicialmente para um desfile de escola de samba, é emblemática do ideário nacional-popular que continuou dominando grande parte do meio artístico brasileiro também na década de 70: “um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre”. Entretanto, Plínio Marcos mantinha seu interesse pelo universo marginal dos desfavorecidos e excluídos. Quando falava de samba, futebol ou religião, era para apontar como a comercialização das escolas de samba acabavam com os compositores do morro, como os campinhos de várzea sumiam do mapa devorados pela especulação imobiliária ou pelo déficit habitacional, ou para retratar na ficção pais e mães-de-santo picaretas, solidários, enganadores ou caridosos. O dramaturgo se interessava pelos sambistas desconhecidos e jamais gravados, pelos times de terceira divisão, pelos terreiros escondidos nas “quebradas do mundaréu”. 89 MARCOS, Plínio. A Volta de Plínio Marcos. Folha de São Paulo, 6 fev. 1977. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/plinio_marcos_a_volta.htm> Acesso em: 2 jul. 2005. 90 CICLO DE DEBATES DA CULTURA CONTEMPORÂNEA, 1, 1975, Rio de Janeiro. Ciclo de debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro: Inúbia, 1976. Coleção opinião. p.51. 60 Diante do crescimento da indústria cultural no país, Plínio lutava por uma “cultura nacional popular” que se marginalizava cada vez mais, sobre o qual ele falava: Eu não faço arte popular. A arte popular vem de baixo. Eu faço arte popularesca. Eu vejo assim: eu não moro em favela, nem vivo com o povão. Existem quatro tipos de cultura. A cultura erudita, que é esta que vocês aprendem na faculdade. A cultura de massa, que é esta bosta que destrói tudo: a televisão, o rádio, essas coisas todas. A cultura popularesca, que é essa que a gente faz. E a cultura popular, que é a do pessoal que não teve acesso à cultura. 91 Foi justamente através da sua ligação com a música popular, especialmente o samba, que Plínio conseguiu emplacar suas duas únicas peças novas montadas entre o AI-5 e a anistia – justamente dois musicais de sucesso de público. Balbina de Iansã foi sua primeira peça a contar com a participação ativa de grupos musicais como o Grupo Barra Funda e o Partido Mais Alto, que tinha músicos como Geraldo Filme, Talismã, Sílvio Modesto, Marco Aurélio “Jangada” e Toniquinho, que o acompanhariam em muitos outros espetáculos. As músicas dessa montagem foram gravadas em LP, em 1971. A montagem carioca de Balbina de Iansã contou com passistas e músicos de escolas de samba como a Mangueira, Portela, Império Serrano e Imperatriz Leopoldinense. 92 O musical Noel Rosa, O poeta da vila e seus amores, foi escrito em 1977, sob encomenda de Osmar Rodrigues Cruz, para inaugurar a casa de espetáculos do Teatro Popular do SESI, em São Paulo, que completava quinze anos. Com Ewerton de Castro no papel de sambista de Vila Isabel, a peça que o próprio Plínio chamou de “roteiro”, ficou em cartaz durante dois anos, com sucesso absoluto. Plínio Marcos foi um importante defensor e divulgador do trabalho de sambistas das escolas de samba de São Paulo e se tornou uma referência para o samba paulista. Sua paixão pelo ritmo foi uma influência do pai, que desfilava em diversos blocos carnavalescos de Santos. Como contou o amigo Carlão da Vila, “ele não tinha pedigree de compositor. Na verdade, era um folião, assim como eu”. Como verdadeiro folião, Plínio Marcos gravou discos, fez shows, comandou programas de TV e fundou até blocos carnavalescos. 91 93 GROTA, Rodrigo. Um dramaturgo no calçadão. Tipos.com.br, 18 jun. 2003. Disponível em: <http://grota.tipos.com.br/um-dramaturgo-no-calcadao>. Acesso em: 4 dez. 2005. 92 No documentário em curta-metragem Geraldo filme (dir. Carlos Cortez, 1998), sobre o músico paulista, Plínio dá um longo depoimento. 93 Em 1974, lançou outro LP – Plínio Marcos em prosa e samba, nas quebradas do mundaréu – com os sambistas Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro, disco considerado fundamental para quem quer estudar o samba da cidade de São Paulo. Esse disco foi resultado de um show que Plínio já vinha fazendo com esses e outros músicos e que, com algumas variações, recebeu diferentes nomes: Plínio Marcos e os pagodeiros, Humor grosso e maldito das quebradas do mundaréu (1973), Deixa pra mim que eu engrosso. 61 Que país é este? No final da década de 1970, os ventos da democracia começaram a soprar novamente. Vivia-se a chamada abertura, com o abrandamento do regime militar. Àquela altura Plínio Marcos ainda tinha diversas peças proibidas, enquanto outras estavam interditadas por falta de alvará, que deveria ser renovado de três em três meses. Em 1977, por exemplo, Oswaldo Loureiro já tinha conseguido autorização para montar Dois perdidos numa noite suja, com Juca de Oliveira e direção de João das Neves, no teatro Opinião. Além disso, a pressão do meio teatral aumentava com as novas proibições que continuavam sendo feitas. No primeiro semestre de 1978, o prêmio Mambembe de melhor autor do ano anterior foi oferecido a Aldo Leite, Chico Buarque, Paulo Pontes, Gianfrancesco Guarnieri, João das Neves e Plínio Marcos – todos os finalistas – “símbolos de uma dramaturgia de resistência”. Uma semana mais tarde, os críticos se recusaram a conferir o Molière de melhor autor de 1977 por se verem prejudicados de terem acesso à dramaturgia pela proibição de obras antigas e pelo confisco e interdição de novas (PACHECO, op. cit., p.104). Em 13 de outubro de 1978 o Congresso Nacional aprovou a emenda constitucional nº. 11, que revogava o AI-5, entrando em vigor dia 1º de janeiro de 1979. Naquele mesmo mês saiu uma primeira lista de liberações da censura que incluía, por exemplo, músicas de Chico Buarque, como Cálice e Apesar de Você, e filmes como O país de São Saruê, de Wladimir Carvalho. Conforme Sábato Magaldi (2003, p.95), a abertura consolidada em 1979, liberando peças anteriormente proibidas, propiciou um verdadeiro “Festival Plínio Marcos”. Estavam em cartaz O poeta da vila e seus amores, sucesso de público desde 1977, uma nova Além desses e de outros shows, nesse mesmo período Plínio tinha programas em rádios e na TV Tupi nos quais divulgava o trabalho dos sambistas paulistas. Durante vários anos, fez a cobertura do desfile das escolas de samba de São Paulo para jornal, rádio ou televisão. Em 1972, foi o fundador de uma das primeiras bandas carnavalesca de São Paulo, a Banda bandalha, que saía na quinta-feira da semana anterior ao carnaval e, também, no sábado de Aleluia. “O ponto de partida era o famoso Bar Redondo, reduto da intelectualidade na capital, em frente ao Teatro de Arena, na área central. O batuque percorria diversas ruas e avenidas da região até retornar ao local de início. A Bandalha acabou desfeita dois anos depois, devido a uma briga de Plínio Marcos com o secretário de cultura da cidade. Entretanto, Carlão da Vila mobilizou outros colegas e continua até hoje levando o ritmo pelas vias do entorno do Arena, só que agora com o nome de Banda Redonda – homenagem ao bar que tanto freqüentaram” (BARROS, Carlos Juliano. Repórter de um tempo mau. Repórter Brasil. Arquivo. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.com.br/reportagens/plinio/iframe.php>. Acesso em: 5 mar. 2006). 62 montagem de Jornada de um imbecil até o entendimento, além de três peças novas do dramaturgo. A auto- intitulada opereta Feira livre, escrita em 1976, só foi montada em 1979, no Teatro Opinião no Rio de Janeiro, com direção de Emiliano Queiroz e música de Cátia França. A peça Sbb o signo da discoteque, montada em 1979, pelo Grupo Viagem, apresentava pela primeira vez o conflito entre três personagens de classes sociais distintas: um pintor de paredes e um casal de jovens de classe média trancados num apartamento em obras. O espetáculo contou com a direção de Mario Masetti e os atores Herson Capri, Walter Marcos Breda e Malú Rocha no elenco. Mas muitos não queriam uma “distensão” tão lenta quanto a que o governo propunha. Em meados de outubro de 1979, alguns atores se juntaram e formaram o grupo O Bando, para, clandestinamente, montar Barrela, que completava 20 anos de proibição pela censura. A peça estreou em dezembro, no porão do TBC, gentilmente cedido por Antônio Abujamra, seu diretor na época. “Os ingressos eram vendidos pelo próprio elenco que, nas ruas, os ofereciam para as pessoas. Todas as sessões, que eram realizadas às sextas- feiras, à meia- noite, lotaram. Um êxito” (MARCOS, 1981, p.65). “Reduzindo o preço do ingresso, trabalhando diariamente na promoção dos espetáculos, o Bando teve uma média de 350 espectadores por sessão, pois somente ‘Barrela’ foi assistida por mais de 60.000 pessoas”. 94 As últimas barreiras iam sendo vencidas. Em abril de 1980 as peças O abajur lilás e Barrela também foram finalmente liberadas e Plínio Marcos recebeu ainda, por unanimidade, um voto de desagrado do governo, como forma de “desculpa” pelos prejuízos irreparáveis da censura. A ditadura militar finalmente reconhecia, muito tardiamente, a covarde perseguição que processara contra um dos mais talentosos dramaturgos de sua geração. Liberada pela censura depois de mais de dez anos proibida, O Abajur Lilás, pôde, finalmente e pela primeira vez, ser encenada ao público. Uma montagem em São Paulo foi produzida por Antonio Fagundes e Clarisse Abujamra, e por seu papel neste espetáculo, a atriz Walderez de Barros, sob a direção de Fauzi Arap, foi agraciada com os prêmios Molière e Mambembe. A Navalha na carne também voltou aos palcos, no Teatro Vanucci, no Rio de Janeiro, com direção de Odilon Wagner, e um elenco de peso: Gloria Menezes, Roberto Bonfim e Edgar Gurgel Aranha. 94 GARCIA, Clóvis. Teatro: um exemplo de como enfrentar a crise. Estado de São Paulo, São Paulo 13 fev. 1981. In: MARCOS, Plínio. Jesus-homem. São Paulo: Editora do Grêmio Politécnico, 1981. 63 O Bando, após o sucesso inicial, transferiu-se para o Teatro Taib, em São Paulo. Além da finalmente liberada e não mais clandestina Barrela, o grupo montou também Dois perdidos numa noite suja, Oração para um pé-de-chinelo (também encenada pela primeira vez desde que tinha sido escrita havia mais de dez anos) e Jesus-homem (em nova versão também inédita). Os atores de O Bando enfrentaram muitas dificuldades na distribuição de filipetas nas ruas, reprimida pelos fiscais da prefeitura que os acusavam de sujar a cidade. Mesmo assim, o grupo se manteve por mais de um ano, sempre com o princípio de dispensar qualquer verba governamental e trabalhando com ingressos a preços reduzidos graças ao trabalho de divulgação alternativa e ao sistema de cooperativa integralmente adotado pelos artistas. Esse pioneirismo valeu ao grupo o Prêmio Mambembe de 1980, na categoria grupo, movimento ou personalidade, pela eficiente forma de produção adotada. No final de 1980, depois dos difíceis anos, Plínio Marcos foi novamente aclamado pela crítica paulista, recebendo os prêmios da APCA (pelo conjunto de obras teatrais), o Molière (prêmio especial) e o Mambembe (melhor autor). Esse “festival Plínio Marcos” ocorrido no final da década de 70 com o abrandamento da censura, também teve reflexos no mercado editorial, sendo lançadas em livros as peças Dois perdidos numa noite suja (editora Global, 1978), Homens de papel (1978) e Navalha na carne e Quando as máquinas param (editora Global, 1979), rapidamente esgotadas. A partir da década de 80, Plínio intensificou uma atividade que já vinha exercendo, inclusive por motivo de sobrevivência: realizar debates e palestras em faculdades e universidades, teatros, clubes e, até, em praça pública, não só na cidade de São Paulo, mas em inúmeras cidades do interior do mesmo Estado e do Brasil todo. Somente em 1980 chegou a fazer 150 palestras. Em 1984, estreou um espetáculo-solo, uma espécie de palestra-show, no Teatro Eugênio Kusnet (ex-Arena), O Palhaço Repete seu Discurso, com o qual também se apresentaria em inúmeras cidades. Continuou por muitos anos fazendo palestras-shows para estudantes, diversas vezes acompanhado de seu filho, o também dramaturgo Léo Lama. Apesar do início esperançoso, a década de 1980 não foi uma década fácil para Plínio. Durante a ditadura, o dramaturgo assumiu a linha de frente. Mesmo chegando a sentir-se sozinho em sua posição de defesa da plena liberdade artística, sobretudo quando outros artistas passaram a aceitar negociar com a censura, existia um inimigo em comum. Segundo Vera Artaxo: Com a abertura, no teatro, por exemplo, foi cada um por si. Formava-se a lei de mercado. As pessoas começaram a conseguir patrocínios... Mas ele nunca teve essa facilidade. Sempre foi muito difícil 64 montar Plínio Marcos. Foram anos difíceis em que ele viveu exclusivamente da venda de seus livros e mergulhou fundo no esoterismo e no tarô que, ao lado da religiosidade, eram coisas muito presentes nele, mesmo porque seu pai já havia fundado a banca espírita em Santos e suas avós eram benzedeiras... Isso era algo forte em seu espírito, mas na época da ditadura, ele preferiu não abordar o assunto porque achava que seria puro escapismo e naquela época havia contra quem lutar (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p. 25). 95 Apesar de no final da vida Plínio passar a andar acompanhado permanentemente de um “bastão de proteção” com uma cruz na extremidade e a falar mais abertamente de espiritualidade e das atividades profissionais que passou a desenvolver nesse sentido (consultas de tarô e aulas num centro teosófico), a religiosidade em sua obra não começou, de fato, somente no que os críticos e estudiosos identificam como a segunda fase de sua carreira. Em 1970, quando escreveu Balbina de Iansã, já estava envolvido com candomblé e umbanda. Mesmo antes, já se interessava por esses temas, tendo escrito uma peça sobre a vida dos orixás para a TV de Vanguarda, da TV Tupi. A própria peça Jesus-homem, de 1978, era uma revisão de O dia virá, encenada pela primeira vez em 1967. 96 Mas foi na peça Madame Blavatsky que a espiritualidade apareceu com mais força em seu texto. Escrita em 1985, estreou no mesmo ano no Teatro Aliança Francesa, em São Paulo, com direção de Jorge Takla. Walderez de Barros, pelo papel principal, conquistou novamente os prêmio Molière e Mambembe. Em 1984, Walderez e Plínio se separaram após um casamento de 21 anos. Mãe de seus três filhos (Léo Lama, Kiko Barros e Aninha), cabe aqui ressaltar a importância da atriz para a vida e a carreira de Plínio, seja atuando em suas peças, datilografando seus textos (e, segundo Plínio, consertando seus erros de português), cuidadosamente guardando e arquivando a memória de sua obra, produzindo seus espetáculos ou, simplesmente, o apoiando nos momentos difíceis. Walderez chegou a comentar o peso de ser conhecida como esposa de Plínio Marcos: “Como fazia muita peça dele e tudo, então as pessoas tinham o preconceito de achar que eu não era atriz e estava lá trabalhando apenas porque era peça do Plínio Marcos e ele me botava lá” (MENEZES, op. cit., p. 181). Mas o próprio Plínio não deixou de agradecer essa dedicação e manifestar sua admiração pela “maior e mais injustiçada atriz desse país”, como em crônica intitulada Desabafo, escrita nos difíceis anos da década de 70: “A Dereca, atriz 95 Em 1972, Plínio afirmava que, com exceção dos grandes intelectuais, “o resto aí tá realmente escapando da realidade: A classe média toda e os intelectuais mais frágeis. Esses estão todos escapando da realidade através de tóxicos e através do espiritismo” (KUSANO, Kazumi. Um teatro na gaveta: a arte inquieta de Plínio Marcos. O Jornal, Rio de janeiro, 11 jan. 1972). 96 Mesmo o tarô, que começou a jogar profissionalmente nos anos 80, chegando a dar sessenta consultas mensais na década de 90, Plínio tinha aprendido em sua juventude com os ciganos do circo ainda nos tempos de palhaço. 65 cheia de poesia, sem forma, atriz de textos sem palco, toca seu violão só para mim e espera. Espera tranqüila, serena, os dias melhores que sabe que virão.” (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.133-135). Mesmo após a separação, Plínio sempre exigiu a presença de Walderez nas principais montagens e espetáculos de sua autoria ou que levassem sua assinatura. Comentando a força da “atriz mais impedida de estrear no Brasil”, Plínio afirmava que “ela é e sempre será um exemplo e um símbolo de fé na liberdade de expressão” (MARCOS, 1996, p.116). A partir de meados da década de oitenta, Walderez atuou novamente em outras peças de Plínio Marcos, mas alcançou definitivamente e “sem muito alarde, sem publicidade, sem badalação”, brilho próprio e o título de diva cult do teatro paulistano. Conquistou novamente os prêmios Molière e Mambembe pela peça Max, em 1990, e foi redescoberta pelo grande público se destacando em pequeno papel na novela O Rei do Gado, em 1996. Depois disso, foi convidada para diversos outros trabalhos na Rede Globo. 97 O fato é que a obra teatral de Plínio na segunda metade dos anos 80, independente da maior ou menor qualidade de seus textos, não alcançou a mesma repercussão que as peças produzidas nas décadas anteriores. Balada de um palhaço, que evocava o universo do circo de sua juventude e foi montada em 1986 no Teatro Zero Hora, em São Paulo, com Walderez de Barros e Antônio Petrin, assim como Madame Blavatsky – sua peça anterior – não se pagaram na bilheteria, apesar da boa recepção daqueles que as assistiram. Ainda assim, por elas Plínio Marcos recebeu o prêmio Molière de melhor autor em 1985 e 1986. No final da década de 80, com A mancha roxa, Plínio voltou ao universo marginal, acrescentando o tema da AIDS no cenário de um presídio feminino. A peça foi encenada no Teatro do Bixiga, em 1989, com muitas dificuldades. Conforme Sábato Magaldi, “se o texto se presta a polêmicas, elas acompanham o espetáculo. O diretor e dramaturgo Léo Lama, filho 97 Na década de 70, Walderez sofreu também conseqüências profissionais por ser esposa de Plínio, como ele afirmou: “Eu metia o pau no canal 4 que não pagava ninguém e eles se vingavam não botando a Walderez para trabalhar” (RODA VIVA. São Paulo: TV Cultura, [1988]). Mas em 1996, com a personagem Judite, empregada de Geremias Berdinazi (interpretado por Raul Cortez) na novela de Benedito Ruy Barbosa, Walderez de Barros ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte como melhor atriz coadjuvante da tevê do ano e sua carreira mudou. A participação de Walderez de Barros no cinema brasileiro, quase insignificante, também se intensificou nos anos noventa, atuando nos longas -metragens Os Três Zuretas (dir. Cecílio Neto, 1998), Outras Estórias (dir. Pedro Bial, 1999), Tônica Dominante (dir. Lina Chamie, 2000) e Copacabana (dir. Carla Camurati, 2001). Em 2005 e 2006 a atriz pode ser vista num papel de destaque também na telenovela da Rede Globo Alma Gêmeas, de Walcyr Carrasco. 66 de Plínio Marcos, a duras penas reuniu o elenco. Cerca de setenta atrizes não quiseram participar do desempenho”. 98 Em meio à profunda recessão econômica que o Brasil atravessava durante o governo do presidente José Sarney, Plínio Marcos admitia não ter como pagar a pensão da ex- mulher, e cedia, no lugar, o direito de algumas de suas peças. Numa longa entrevista no programa da TV Cultura, Roda Viva, em 1988, o dramaturgo desabafou sobre o momento que vivia. Diante da pergunta do apresentador Antonio Carlos Ferreira sobre o porquê de Plínio Marcos, figura de destaque na luta contra a censura, no momento de maior liberdade de expressão ter sumido do panorama cultural, o dramaturgo respondeu que enfrentava um inimigo que não era mais a polícia federal, mas a mídia. Plínio afirmava ser marginalizado pela imprensa, por não ser mais considerado “notícia”. Mesmo que Sábato Magaldi escrevesse um longo artigo no jornal sobre Dois perdidos numa noite suja, as últimas peças de Plínio eram esnobados pelos jornais que não publicavam críticas nem reportagens sobre ela: Eu não sou inimigo da imprensa. A imprensa é inimiga do povo. Pois o compromisso do jornalista devia ser com a notícia. Então, por exemplo, um autor que nem eu, que passa lutando contra a ditadura militar, e quando vem o período de abertura, faço uma peça como a Blavatsky, dou entrevista para jornal da Polônia, para jornal da Alemanha, mas não dou uma entrevista no Brasil. [...] Ninguém veio me perguntar o que aconteceu nesses sete anos e por que de repente eu tinha aparecido com uma peça mística. Isto o que é? No meu entendimento, é censura. [...] Quando você põe nos tijolinhos, no roteiro de espetáculos, um espetáculo e não põe o outro... Então, se você põe, por exemp lo, o meu show e não põe o do Ari Toledo. Evidentemente que estão censurando o Ari Toledo. Agora, se põe o dele e não põe o meu, estão me censurando. E, vira e mexe, o meu não sai. Eu ligo para o Boris Casoy, ele acha um absurdo e mandar pôr. Aí, dois dias depois, já não sai. [...]. Um cara que faz teatro alternativo como eu, não pode pôr anúncio. Tenho que viver daqueles serviços que a imprensa devia prestar ao público (RODA VIVA. São Paulo: TV Cultura, [1988]). Analisando a carreira de Plínio Marcos, é interessante notar também que a partir de meados dos anos 80, o dramaturgo foi sendo identificado cada vez mais como uma figura “paulistana”. Reduzido seu espaço de ação, outrora nacional, sua atuação passou a estar ligada essencialmente a sua presença física, fosse fazendo palestras, vendendo pessoalmente seus livros ou participando de eventos. 98 99 MAGALDI, Sábato. A Mancha Roxa. Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/teatro/mancharoxa ensaio-sabato.htm>. Acesso em: 9 mar. 2006. 99 Sobre a venda de livros editados às próprias custas, Plínio afirmava que enquanto suas obras lançadas pelas editoras tinham tiragens de 5 mil exemplares, com distribuição precária fora das capitais, sozinho ele conseguia vender em cada cidades que visitava para fazer palestras, de 30 até 100 exemplares por vez. Desse modo, dizia vender até 15 ou 20 mil exemplares por ano. Plínio brincava: “o escritor é ruim, mas o camelô é bom”. 67 Nesta espécie de guerrilha cultural, Plínio acabou se tornando uma figura folclórica das ruas de São Paulo. Conforme o cineasta Carlos Cortez, que conheceu o dramaturgo nessa época, “o Plínio era uma figura aqui de São Paulo que todo mundo conhecia. Se você sair na rua e falar do Plínio, todo mundo vai ter uma história para te contar. [...] O Plínio era muito acessível. Todo mundo em São Paulo já cruzou com o Plínio na rua. O Plínio já vendeu um livro, já cruzou com Plínio num restaurante, na porta do teatro, na porta do cinema”. 100 Do mesmo modo, nos anos noventa, o escritor Marcelo Rubens Paiva, ao entrevistar Plínio, foi encontrá- lo para jantar, obviamente, no Gigetto, e contou o episódio: “Na saída, uma mulher me pergunta se eu não sou o autor de... Respondo que sim e apresento a ela ‘o grande Plínio Marcos’. ‘Eu sei. Esse aí nós vemos sempre’, ela diz”. 101 Além disso, São Paulo conseguiu desenvolver desde os anos 70, paralelamente ao teatro mais assumidamente comercial, um teatro alternativo, de maior pesquisa formal e investigação. Foi a esse espaço que Plínio passou a ficar restrito a partir de meados da década de 80, enquanto o Rio de Janeiro, por exemplo, vivia o boom do chamado besteirol. Mas nos anos 90, Plínio Marcos seria, de uma maneira ou de outra, “redescoberto”, sobretudo por seus primeiros textos e a partir de 1992 voltou a ser bastante encenado em São Paulo. A peça Dois perdidos numa noite suja foi montada com sucesso por Emílio di Biasi, enquanto o grupo Tapa levou Querô aos palcos pela primeira vez desde que sua versão para o teatro foi escrita em 1979. Com direção de Eduardo Tolentino, a peça valeu a Plínio Marcos a primeira premiação depois de alguns anos: o Prêmio Shell de melhor autor de 1993. Segundo Walderez de Barros: Na década de 80, o Plínio manteve sua coerência enquanto grande parte das pessoas foi procurar sua turma, cuidar da vida achando que tudo já estava melhor e tal. Ninguém se interessava por alguém que continuava denunciando, lutando e falando. A década de 1980 foi a década dos yuppies e esse tipo de pessoa não está interessada em Plínio Marcos. Já na década de 1990 começaram a se interessar novamente porque viram que a coisa continuava de mal a pior (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p. 24-25). Nesse período, outras montagens também levaram a assinatura de Plínio Marcos. O homem do caminho, publicado como um dos contos do livro O truque dos espelhos, foi transformado em um monólogo levado aos palcos em 1996 com Cláudio Mamberti, dirigido pelo irmão Sérgio Mamberti. Em 1991 o ator Cacá Carvalho também já tinha transformado o 100 Entrevista realizada para este trabalho, em 22 jan. 2005. PAIVA, Marcelo Rubens. Fui um repórter dos temos que vivemos. Folha de São Paulo, São Paulo, p.4-5, 12 dez. 1996. 101 68 conto Inútil canto e inútil pranto para os anjos caídos em Osasco num espetáculo intitulado Vinte e cinco homens. Depois de anos editando seus próprios textos sob a forma de pequenos livros de bolso, Plínio viu novamente o interesse em suas obras ganhar corpo quando a Editora Maltese publicou em 1992 uma bela edição contendo três de suas mais famosas peças – Barrela, Dois perdidos numa noite suja e O abajur lilás – num volume intitulado Teatro Maldito. Diante dessa nova redescoberta, Plínio Marcos voltou a escrever para teatro, embora seus textos tenham mais uma vez enfrentado diversas dificuldades para chegar ao palco. A dança final, escrita em 1993, representou uma mudança temática em sua obra. Auto intitulando-se uma comédia, apesar de seus contornos dramáticos, abordava a vida de um casal de classe média alta refletindo sobre seu relacionamento após vinte e cinco anos de casamento. A dança final foi publicada como livro pela Editora Maltese em 1994, mas só debutou nos palcos em 2002, três anos após a morte de Plínio, em montagem dirigida por Kiko Jaess, no teatro Itália, em São Paulo. A peça O Assassinato do anão do caralho grande, inclusive pelo seu título, também enfrentou dificuldades para ser encenada. Assim como Querô, tratava-se de uma novela que ganhou versão teatral, narrando uma história em tons policiais passada no universo do circo. 102 A última peça escrita por Plínio, O bote da loba, de 1997, permanece inédita até hoje. Em relação a sua produção jornalística, Plínio também perdeu espaço em diversos veículos de comunicação. Mesmo escrevendo para grandes revistas como Veja ou Placar, também foi ativo na chamada “imprensa nanica”, colaborando para os jornais Opinião, Pasquim e Versus. Na década de 80 chegou a assinar a coluna “Berrando da Geral” na Folha de São Paulo, mas depois passou apenas a fazer colaborações esporádicas. O Jornal da orla, semanário de Santos, e Caros amigos, opções alternativas no mercado editorial, foram os últimos veículos em que Plínio colaborou como cronista. Curiosamente, os momentos de retorno de Plínio Marcos às manchetes ao longo dos anos 90 coincidiram, em geral, com o lançamento das novas adaptações cinematográficas de suas peças. O filme Barrela, finalizado em 1990, foi lançado comercialmente somente em 1994. Naquele ano era anunciada também a estréia da inédita A dança final (o que acabou não 102 O assassinato do anão do caralho grande, novela e peça, foram publicadas como livro pela Geração Editorial em 1996. Entretanto, na capa desta edição só se pode ler como título O assassinato do anão. A continuação – do caralho grande – só é visível aberta a contracapa. 69 ocorrendo), além de uma nova montagem de Navalha na carne, no Rio de Janeiro, com direção de Marcus Alvisi e os atores “globais” Diogo Vilela e Louise Cardoso no elenco. Os jornais estampavam novamente o rosto de Plínio Marcos nas páginas principais com manchetes como “Maldito em alta”. Mas Plínio era redescoberto pelo seu passado. No presente, como sempre, o autor maldito não era alguém tão fácil de ser transformado em unanimidade, apesar das tentativas. Ou seja, ao mesmo tempo em que suas peças então recentes eram consideradas como uma diluição de sua obra anterior – um jornalista afirmou: “O poeta dos miseráveis se transformou no bufão dos miseráveis” 103 – e mesmo assim ignoradas por serem incômodas, o teatro da primeira fase da carreira de Plínio Marcos, já considerado “clássico”, era redescoberto, sobretudo pela violência (com toda sua atualidade), mas principalmente pelos sentimentos universais de solidão, angústia e desamparo. Ao mesmo tempo, Plínio Marcos, avesso às badalações, não era um personagem nem um pouco glamouroso. Na verdade, o dramaturgo era descrito geralmente como uma figura “quase mendiga”, de bermuda velha e suja, sandálias havaianas, com alguns dentes faltando na boca e “o barrigão a saltar à frente de seus passos lerdos”. 104 No auge de sua fama ou em meio ao ostracismo, Plínio não exercitou uma vocação para estrela ou celebridade. Fiel aos seus princípios e postura, mantinha sua postura antielitista. Radical e consciente de suas ações, o dramaturgo calçava seus chinelos de dedos para ser entrevistado por Pedro Bial na Rede Globo, ou ia com uma camisa ostensivamente furada participar do programa Roda Viva. No reino das aparências, o dramaturgo também se destacava, embora sem se “corromper” – afirmando com orgulho jamais ter feito propaganda ou anúncio publicitário para qualquer produto – nem se iludir. Em 1994, disse ter sido convidado para trabalhar em duas minisséries da Rede Globo (A madona de cedro e Incidente em Antares), “mas recusei porque não gosto mesmo de trabalhar, pôr terno e gravata, calçar sapato, só se a grana for muito boa, e nos dois casos não era”. 105 Já reconhecido como um dos maiores autores do teatro brasileiro, no começo dos anos noventa Plínio morava numa minúscula quitinete no 22º andar do enorme edifício Copan, na Avenida Ipiranga, coração de São Paulo, e continuava com seu trabalho de camelô da cultura. “Vendo meus livros apenas às sextas-feiras, sábados e domingos, senão vira trabalho”, dizia. 103 LUIZ, Macksen. O bufão dos miseráveis. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 mai. 1994. INDIGNAÇÃO calada: Morre Plínio Marcos, a voz mais contundente do teatro brasileiro. Isto é, São Paulo, n.1572, 24 nov. 1999. 105 CÔMODO, Roberto. O afiado anarquista do ócio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 mai. 1994. 104 70 Além de sua peregrinação costumeira nas portas de teatros, cinemas e restaurantes, Plínio continuava sobrevivendo das consultas de tarô, além de cursos sobre “o uso mágico da palavra”. A questão financeira também é algo importante a ser abordado na vida e obra de Plínio Marcos. Em diversas entrevistas ele afirmou: “O teatro me deu muito dinheiro. Mas torrei” 106 . De fato, no final da década de 60, no auge de sua carreira, com suas peças sendo montadas no Brasil inteiro, o dramaturgo ganhava uma pequena fortuna por mês. Diante do dilema da possibilidade de enriquecer graças aos seus textos sobre os miseráveis, afirmava em 1968: “Continuo um revoltado. O dinheiro não me corrompeu. Faço questão absoluta de gastar tudo que ganho. Do jeito que der para gastar, eu gasto”. 107 Mas nos anos 90 ele lamentaria sua situação e acusaria os responsáveis: “Depois de escrever 40 peças de teatro queria poder viver só de direitos autorais [...] Em São Paulo, a SBAT ainda funciona, mas na sede carioca é muita bagunça e caso de polícia. Tenho peças encenadas no mundo todo e até hoje nunca chega nenhuma grana”. 108 Muitas pessoas que foram apresentadas ao dramaturgo tiveram a impressão de um Plínio Marcos grosseiro, rude, muitas vezes preocupado exclusivamente com dinheiro. De fato, os amigos mais próximos falam de um homem genioso, impulsivo, radical e apaixonado em suas opiniões. Mas o maldito também era conhecido por sua solidariedade, muitas vezes não retribuída, e por seu desapego material. Ainda no começo de carreira, o dramaturgo cedeu, no auge do sucesso, os direitos da peça Navalha na carne, em São Paulo, a um ator – Jesus Padilha, recém saído da EAD – que tinha sofrido um derrame cerebral em pleno palco e que precisava viajar para fazer um tratamento. Plínio, que sequer conhecia direito Padilha, se justificava dizendo que devia à mobilização da classe teatral a liberação da peça. 109 Na mesma época, a apresentação de Dois perdidos numa noite suja no teatro Coliseu, que resultou em sua prisão em 1969, tinha a renda destinada aos familiares de vítimas da ditadura. Ao final da vida, Plínio Marcos já tinha doado os direitos de grande parte de suas peças (seus bens mais preciosos) para os filhos, netos e para o enteado, Thiago Artaxo Netto. 106 PAIVA, Marcelo Rubens. Fui um repórter dos temos que vivemos. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 dez. 1996. 107 UM AUTOR revoltado mesmo com dinheiro. A Gazeta, São Paulo, 13 nov. 1968. 108 CÔMODO, Roberto. O afiado anarquista do ócio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 mai. 1994. Caderno B, p.1. 109 FREIRE, Roberto. Sou o analfabeto mais premiado do país. [São Paulo: s.n.], [1970]. 71 O dramaturgo costumava repetir o ensinamento que escutara nas trilhas dos saltimbancos e em quarenta anos de andanças: “jamais se prenda a nada”. Além disso, embora lamentasse seus prejuízos ou injustiças, Plínio, orgulhoso, não costumava incorporar o papel de vítima. Sobre a perseguição da censura, dizia: “Perseguido o caralho. Eu não sou nenhuma mosca- morta. Eu fiz por merecer. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. Eu apedrejei carro de governador, quebrei vidraça de banco. Foi uma farra. Não teve mau tempo”. 110 Em relação a questões financeiras, também era movida por questões práticas e imediatas. Nos momentos de dificuldade, não reclamava de trabalhar como nas ruas vendendo seus livros quando era necessário. Por outro lado, seu filho Kiko Barros, quando perguntado se o trabalho de camelô cultural de Plínio rendia algum dinheiro a ele, respondeu categoricamente: “ele pagou a minha faculdade dessa forma”. 111 Mas no fim de carreira, novamente em voga, Plínio Marcos exigia seus direitos com o renovado interesse por suas peças, o que levou a ser mal visto em algumas circunstâncias: “Só que todo mundo fica querendo montar "Dois Perdidos" sem pagar direitos autorais; me ligam insistindo, achando que fico lisonjeado de ser escolhido. Não deixo, não deixo mesmo. [...] Tive que dar um breque nessa folga teatral. Minhas peças são meu ganha-pão. Ademais, quando a censura me proibiu de trabalhar, proibiu a montagem de qualquer uma das minhas 20 peças, eu fiquei no ora-veja e ninguém me socorreu. Claro que considerei que são coisas da vida e não fiquei choramingando; fui vender meus livros na rua. E agora as pessoas vêm choramingando nas minhas orelhas, na base do somos amadores e tal e coisa, não vamos ter lucro, é só arte e coisas e loisas. Eu argumento que não vou ficar andando a pé pra eles se bandearem de carro pra lá e pra cá, montando "Dois Perdidos" de graça. Pergunto se me emprestam o carro deles por um tempo, já que eles me pedem a peça emprestada por um tempo...” 112 Talvez sua postura seja compreensível para quem viveu por mais de vinte anos uma situação dramática, isolado profissionalmente. Em 1975, chegou a justificar aos jornais sua opção pela realização de palestras pagas Brasil afora: “Eu estou desempregado. Fui despedido do jornal, minhas peças estão proibidas – todas – e não tenho acesso à televisão, porque contesto a forma mesquinha como eles vêm aniquilando a nossa cultura. Por isso sou obrigado a cobrar para falar aos jovens”. 110 113 SÁ, Nelson de. Saído do circo, autor encenou “lixo social”. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 nov. 1999. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/plinio_marcos_saido_do_circo.htm>. Acesso em: 30 jun. 2005. 111 BARROS, Carlos Juliano. Repórter de um tempo mau. Repórter Brasil, mar. 2003. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.com.br/reportagens/plinio/iframe.php#>. Acesso em: 18 jun. 2005. 112 MARCOS, Plínio. Encontraram Dois perdidos. [s.l. : s.n.], 11 jul. 1999. Disponível em: <http://www.bethynha.com.br/dois -perdidos.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 113 PLÍNIO na defesa da cultura popular. A Tribuna, Santos, 28 set. 1975. 72 Sobre a falta de solidariedade que Plínio Marcos sofreu muitas vezes em sua carreira, é exemplar o caso que ocorreu em uma das vezes que esteve preso. Uma comissão do Sindicato dos Jornalistas apareceu na Polícia Federal para visitar o cronista Lourenço Diaféria enquanto Plínio estava sendo interrogado. Os jornalistas perguntaram ao delegado se podiam visitar Lourenço e ignoraram Plínio, que, inclusive, pediu para ir junto à visita ao colega. A comissão foi embora e o dramaturgo voltou para o interrogatório: “Até o delegado se admirou pelo fato de a comissão não se interessar pelo meu caso. Eu expliquei com sinceridade: _ Sabe como é, ele são do Sindicato dos Jornalistas e eu não sou jornalista. O Ministério do trabalho não me reconhece como jornalista. E o sindicato cuida dos sindicalizados”. 114 Sem diploma de jornalista, Plínio jamais conseguiu tirar o registro profissional e desde a criação da lei de regulamentação da profissão, em 1969, a pressão dos sindicatos sobre as redações pela reserva de mercado para os jornalistas era muito forte. Mas Plínio Marcos também conheceu a falta de solidariedade e o corporativismo no próprio meio teatral desde muito cedo. Em 1965, logo após o golpe militar, o dramaturgo, ainda pouco conhecido em São Paulo, ensaiava Reportagem de um tempo mau quando quatorze peças foram proibidas, incluindo a sua. Segundo Plínio, a atriz Tônia Carrero teria falado com o então presidente Castelo Branco e “dobrado” o homem, que pediu um ofício solicitando a liberação das peças. “Teve uma reunião no teatro Oficina. Nossos coleguinhas – que infelizes! – fizeram a listagem de doze peças, excluindo a minha e a do César Vieira. Alegaram que eu o César éramos desconhecidos. Os censores, segundo os coleguinhas, iriam com certeza afirmar que eu o César só havíamos escrito para sermos proibidos e aparecermos. Pode? Pode. Todas as doze peças foram liberadas. As duas fora da lista, a minha e a do César, permaneceram proibidas” (MARCOS, 1996, p.98-99). Mas o “autor maldito”, quando precisou, também contou muitas vezes ao longo de sua vida com a ajuda de amigos, como de José Elias, um dos proprietários do restaurante Gigetto, no centro de São Paulo, onde Plínio Marcos jantou diariamente por cortesia da casa durante anos. Elias contou que Plínio, na fase mais difícil de sua carreira, ia de mesa em mesa vender seus livros e alguns clientes começaram a reclamar. Abordado pelo dono do restaurante, o dramaturgo teria respondido: “Elias, seu eu não vender meus livros eu não posso comer, não posso almoçar nem jantar.’ Foi aí que eu disse: ‘Olha, Plínio, se depender disso, você pode vir almoçar e jantar todos os dias aqui sem pagar 114 MARCOS, Plínio. Diário da Noite, 11 dez. 1978 (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.146-147). 73 nada.’ Isso eu fiz pela amizade, respeito e admiração que tinha por ele. E ele ficou comendo aqui por mais de vinte anos.” (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.71) No Gigetto, Plínio também foi homenageado, dando seu nome a um prato que tinha criado: “galinha à Plínio Marcos”. 115 Mesmo nos momentos de sucesso, Plínio não esquecia de agradecer à solidariedade dos outros, como fez no texto do programa de Balbina de Iansã, em 1971, ao amigo Bucka: “[Ele] me emprestou seu ordenado para eu pagar o aluguel da minha casa e montar ‘Dois Perdidos’ sossegado. Me lembro da frase dele: ‘Eu vou ficar duro e sei que tu não vai pagar nunca, mas vou te emprestar. Toma lá’. O dinheiro demorou mas eu devolvi, o favor é que eu não vou poder pagar jamais”. Mas se a redescoberta de Plínio e de sua obra nos anos 90 transformou o autor novamente numa figura folclórica – mas nem por isso mais palatável –, o “maldito”, assim como nas décadas anteriores, continuou tendo problemas para divulgar sua obra. Numa entrevista contou as dificuldades, por exemplo, de encontrar seus livros em livrarias. Numa ocasião decidiu discutir com a vendedora: “‘Não tem livro meu aqui? Ela chamou o Pedro Hertz, dono da livraria, ele disse: ‘Porra, os editores não dão seu livro aqui, você mesmo que quer vender’. Falei: ‘Não é que eu mesmo quero vender, eles falam que põem e você é que não pega”. 116 Seu teatro não deixou também de enfrentar problemas. Em 1997, a peça O assassinato do anão do caralho grande, mesmo com agendamento e pagamento adiantado, não pôde ser encenada no Teatro Municipal de Santos (sua cidade natal), por ser considerada inadequada para apresentação pela Secretaria de Cultura. O espetáculo, então, teve que ser transferido para o Teatro do SESC-Santos, onde foi apresentado com sucesso. Outras peças, como A dança final, não tiveram a mesma sorte: “Agora, eu, há muito tempo não monto uma peça, e pensa que eu não escrevo? Por exemplo, escrevi uma peça chamada A dança final. No mesmo dia em que acabei de ler pros meus amigos, vendi para um editor que não arranjou nenhuma livraria para pôr. Vendi pra um cineasta chamado Francarlo, que ficou um ano com a peça, não conseguiu montar, não conseguiu patrocínio, vendeu pro Johnny Herbert, que ficou mais um ano. Aí peguei a peça outra vez, veio tudo pra minha mão, vendi pro Juca de Oliveira, um artista do sistema, ficou mais um ano, não conseguiu vender pra ninguém, não conseguiu patrocínio pra encenar. Então eu não entro nessa cultura”. 117 115 O restaurante Mattos, na Praça Roosevelt, era outro lugar onde Plínio tinha crédito ilimitado. MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 40, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista. 117 MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 36-37, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista. 116 74 Mesmo no cinema o nome de Plínio ainda não era facilmente encarado. Recentemente Carlos Cortêz contou das dificuldades de captar recursos para o projeto de adaptação de Querô para o cinema, em exemplo da censura econômica que ainda cruzava o caminho do autor maldito. Durante a procura por investidores, o cineasta falou da reação das pessoas ao tomarem conhecimento de quem era o autor do romance no qual o filme seria baseado: “Um carinha honesto, um carinha [de uma empresa] falou: tudo bem, ‘tô a fim de botar uma graninha no cinema. Mas, pô? Plínio? Os caras vão querer me mandar embora. Os caras vão dizer: qual que é? Quer a marca da nossa empresa nessas coisas?”. Mas em 1997, novamente acompanhando sua presença no cinema brasileiro, Plínio voltou a ter destaque com o lançamento da super-produção Navalha na carne, de Neville D’Almeida, maior lançamento nacional daquele ano. Já contando com o “afeto generoso e a lucidez pragmática” da jornalista Vera Artaxo, sua última companheira, com ela mudou-se para uma ampla moradia de 200 metros quadrados, em Higienópolis (na mesma rua onde morava o então presidente Fernando Henrique Cardoso). Não faltou quem o acusasse de ter se vendido, mas Plínio mantinha sua coerência (e até sua teimosia), recusando-se, por exemplo, a abrir, pela primeira vez, uma conta num banco. Inadvertidamente, Plínio tornava-se uma unanimidade e passou a ser constantemente entrevistado pelos mesmos jornais e canais de televisão que, anos antes, o tinham demitido ou recusado seu trabalho. Em 1996, participou do CNT Jornal, da TV Manchete, respondendo a perguntas dos telespectadores e comentando fatos da semana. Tomando frente de um grande projeto, a Fundação Nacional de Arte (Funarte), orgão do governo federal, adquiriu os direitos para publicar suas obras completas no ano em que Plínio completaria 40 anos de dramaturgia. 118 118 Em 1997 a Funarte, através de seu presidente, o escritor Márcio Souza, aprovou o projeto de publicação das obras completas de Plínio Marcos, que incluía, além de vinte peças de teatro, três musicais e cinco mini-peças, um trabalho de pesquisa para contextualização de cada um dos textos escritos. Foi o maior adiantamento de direitos autorais já pago no Brasil: R$ 100 mil reais pelos direitos de publicação por dez anos. Outros R$ 30 mil seriam pagos posteriormente para o trabalho de reportagem que Vera Artaxo faria. O objetivo era lançar a obra em 1998, quando o dramaturgo completaria 40 anos de carreira. Foi com esse dinheiro – além do fundo de garantia de Vera –, que o casal comprou a casa em Higienópolis onde Plínio viveu seus últimos anos de vida. Pela lei, as obras completas deveriam começar a ser publicadas em no máximo três anos (até 2000). Souza deixou o cargo no final de 2002 sem ter publicado nada, com exceção da edição em francês de Dois perdidos numa noite suja. Antes de morrer, Plínio cobrava uma posição do órgão, mas suas ligações sequer eram atendidas pelo gabinete. Em 2002, a Funarte deu autorização e cedeu gratuitamente os direitos de cinco peças para a Editora Global que as publicou numa edição da coleção Melhor Teatro. Antonio Grassi, que assumiu a presidência da Funarte em 2003, prometeu investigar o caso e lutar na justiça para reaver os direitos e apurar o ocorrido. Até 2006 não foi dada nenhuma notícia dessa questão e as demais obras de Plínio, cujas edições anteriores estão todas esgotadas, ainda aguardam um relançamento. 75 O próprio órgão federal editou uma versão em francês de Dois perdidos numa noite suja , publicação lançada no 18º Salão do Livro em Paris, em 1998, para o qual o dramaturgo foi convidado. Para ir à França, tirou seu primeiro passaporte para, pela primeira vez na vida, sair do Brasil. Plínio Marcos jamais tinha viajado para fora do país. No auge da ditadura, quando quase todas suas peças estavam proibidas pela censura, o dramaturgo não partiu para o exílio, mesmo recebendo inúmeros pedidos para montar e traduzir suas peças fora do Brasil: “Eu, por essa luz que me ilumina, nem estou aí. Deixo pra lá. O que pesa na balança e o que eu sempre quis ser foi um autor brasileiro no Brasil. Era só isso que eu queria ser”, escreveu em 1974. Mesmo quando a perseguição do regime militar chegou às raias do absurdo – Augusto Boal sendo preso, torturado e partindo para o exílio em 1971, o mesmo acontecendo com Zé Celso três anos depois – Plínio Marcos continuava no Brasil. Afinal, mesmo antes do AI-5 o dramaturgo não tinha desfrutado das duas passagens para a Europa que ganhara a dupla premiação do Molière de 1967: “Me dizem sempre: se arranca. Cuida das tuas peças lá fora. Mas eu não me embalo. Nasci para ser quem eu sou, onde estou e não seria mais eu longe daqui. Gosto daqui”. 119 No final da vida, Plínio recebia reconhecimento nacional e internacional. Em 1997, o dramaturgo comentou numa crônica chamada Encontraram dois perdidos sua redescoberta e o consagração alcançada depois de anos de carreira: Fiquei a vida inteira sem poder sair do Brasil. De repente, descobriram ‘Dois perdidos numa noite suja’. É França, Portugal... Começaram a ler minha peça mexe e vira. Vira e mexe vem alguém querendo ler ou montar ‘Dois Perdidos’. Aliás, segundo dados da década passada, é a terceira peça mais montada no Brasil: a primeira é ‘As mãos de Eurídice’, um monólogo do Pedro Bloch que sempre deu muito dinheiro e foi o grande sucesso de Rodolfo Maier; a segunda, ‘Deus lhe Pague’, do Joracy Camargo, eterno sucesso com Procópio Ferreira e sua companhia. As duas são bem antigas e já não têm sido montadas, salvo a segunda, agora, pelas comemorações em torno do grande Procópio. Além de ser mais recente (da década de 60), ‘Dois Perdidos’ ficou proibida pela censura por 20 anos. Considerando tudo isso, é bem provável que a posição de "Dois Perdidos" no ranking seja ainda mais honrosa... 120 Àquela altura, Plínio, com mais de sessenta anos, já não ia mais para porta de teatros e restaurantes vender seus livros. “Agora não dá mais, o pé não ajuda. Foram mais de 20 anos trabalhando na noite. Claro que no início foi porque eu precisava e depois porque me acomodei, era muito mais fácil vender assim”. 119 121 MARCOS, Plínio. A freguesia internacional. Ultima Hora, São Paulo, 17 out. 74. MARCOS, Plínio. Encontraram Dois perdidos. [s.l. : s.n.], 11 jul. 1999. Disponível em: <http://www.bethynha.com.br/dois -perdidos.htm>. Acesso em: 18 jun. 2005. 121 CARDOSO, Ivani. Meu trabalho é atual, o país não evoluiu. A Ttribuna, Santos, 13 mar. 1997. 120 76 E o autor maldito continuou e continua sendo redescoberto, mesmo e até mais após sua morte. Em 2003, José Joffily lançou sua adaptação para o cinema de Dois perdidos numa noite suja. O cineasta Carlos Cortez já filmou Querô, com previsão de lançamento no segundo semestre de 2006. O diretor teatral Tanah Correia tenta captar recursos para adaptar O truque dos espelhos para o cinema. Nos últimos anos, mesmo continuando o impasse com a Funarte em relação à edição de suas obras completas, ainda assim foram relançadas em livro diversas obras de Plínio Marcos: uma edição da coleção melhor teatro com cinco peças suas (Global Editora, 2003), além de Nas quebradas do mundaréu (Editora de Cultura, 2004) e uma versão fac-símile da encenação fotográfica de Navalha na carne de 1968 (Azougue Editorial, 2005). Em relação ao teatro, sua presença é ainda maior. Segundo dados do SBAT, em 2004, atrás apenas de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos foi o autor mais encenado no país. 122 Além de novas montagens dos “clássicos” Barrela, Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, seus outros textos vêm sendo redescobertos. Em 2006 uma nova montagem de Oração para um pé-de-chinelo, dirigida por Alexandre Reinecke, conquistou o prêmio Shell de melhor ator (Norival Rizzo) e atriz (Denise Weinberg, também premiada pela APCA). Também em 2006 e também em São Paulo, a peça Sob o signo da discoteque recebeu sua segunda montagem depois de 27 anos de sua estréia nos palcos, agora intitulada Balada – tinta branca em parede suja, com direção do mesmo Mario Masetti da primeira montagem. A morte alcançou Plínio Marcos quando o Brasil parecia finalmente se render definitivamente ao seu talento. O grande dramaturgo já tinha sofrido um enfarto em 1985, aos 50 anos, sendo obrigado a implantar três pontes de safena no coração. Anos depois sofreu um acidente vascular que atingiu suas pernas. Em agosto de 1999, foi internado com problemas decorrentes da diabete, além de isquemia cerebral. Recebeu alta e em setembro ainda participou do lançamento do livro de contos O truque dos espelhos (Una Editoria). Mas em outubro deu entrada novamente no hospital, em decorrência de um acidente cardiovascular. Após 27 dias internado no Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, Plínio Marcos faleceu, em 19 de novembro de 1999, por falência múltipla dos órgãos. Seu corpo foi cremado e suas cinzas jogadas no mar de Santos, na Ponta da Praia, onde morou com sua família. Plínio, ao longo da vida, tratou a morte com a mesma irreverência que dedicava a todos os assuntos. Ao vender seus livros na rua prometia ao comprador morrer logo para 122 OLIVEIRA, Roberta. Olha Nelson e Plínio aí mais uma vez: Autores malditos não saem de cena e têm ‘Barrela’ e ‘Boca de ouro’ abrindo a temporada de 2004. O Globo, Rio de Janeiro, 4 mar. 2004. Caderno B, p.2. 77 valorizar o autógrafo, ou afirmava ainda: “Eu sou um escritor imortal, não da Academia Brasileira de Letras, mas porque não tenho onde cair morto.” Muitos dizeres de Plínio (que era também um grande frasista) revelaram-se proféticas após sua morte. O que provavelmente nunca imaginou é que algo que uma vez falou sobre Nelson Rodrigues – de quem desfrutou amizade e admiração mútua – acabaria se aplicando também a ele próprio. O autor maldito disse do anjo pornográfico: “Quando era vivo, o Nelson Rodrigues tinha que correr atrás do dinheiro. Agora, morto, tudo o que leva o seu nome vira ouro”. Plínio Marcos, hoje, dá seu nome a inúmeros teatros, centros culturais, bibliotecas e prêmios no Brasil inteiro, e suas peças continuam sendo montadas em todo o país. Quando Barrela foi finalmente liberada pela censura e pôde ganhar os palcos e as páginas, Plínio escreveu: “Vinte e um anos depois de ser escrita, a Barrela vai à cena como se tivesse sido escrita ontem. Ela ainda vale. Lamentavelmente, essa peça-reportagem que, se chega com alguma poesia ao público, é pelo que os atores emprestam a ela, ainda vale. Retratava a realidade dos presídios há vinte e um anos e ainda tem validade. Uma pena. Pena, porque os méritos não cabem à peça. É tudo culpa do país que não evoluiu nem um pouco esses anos todos. E, se continuarmos desse jeito, essa peça vira um clássico” (MARCOS, 1981, p.75). Em 2006, 25 anos depois de Plínio Marcos ter escrito essas linhas (e 48 anos depois de ter escrito a peça), podemos afirmar que ele foi profético. Barrela realmente virou um clássico. Trata-se, então, de um desafio tentar perceber quais são os elementos que tornam Barrela e outras peças de Plínio Marcos tão singulares e marcantes. Histórias das quebradas do mundaréu Ao falar da obra de Plínio Marcos, é difícil separar sua produção teatral – consagrada e mais conhecida – de todos os demais textos que escreveu, como crônicas, contos, poesias, romances, reportagens e argumentos para filmes, novelas e programas de TV. Essa separação é suspeita, antes de tudo, porque muitas de suas histórias migraram de um formato para outro, indo, por exemplo, da prosa literária ou da crônica jornalística para o texto dramático e viceversa. Conforme Edelcio Mostaço (In: CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, 2002, p.10), em autores de produção profícua e multiexpressiva como Plínio, são mesmo freqüentes as migrações de temas, situações ou personagens. 78 E são realmente inúmeros os casos de reinvenções de histórias na obra de Plínio. O romance Na Barra do Catimbó, por exemplo, teve origem em crônicas publicadas na imprensa, enquanto o drama do pivete Querô surgiu primeiro num conto, depois num romance e, mais tarde, ganhou versão teatral, assim como aconteceu também com a novela O assassinato do anão do caralho grande. Plínio Marcos foi dramaturgo, jornalista, escritor e muito mais. Mas era principalmente e como o próprio gostava de afirmar, um contador de histórias – fossem elas publicadas nos jornais, encenadas nos palcos, escritas em livros, gravadas em discos ou narradas pessoalmente. Intitulava-se um “repórter de um tempo mau”, fazendo “reportagens da realidade”, dando voz ao povão e relatando seus dramas e romances. Plínio Marcos se apresentou desta maneira no prólogo do livro Nas quebradas do mundaréu: Eu sou o repórter dessa gente simples. Conto seus amores, suas pequenas glórias e suas lutas cruentas pra escapar da miséria. O que não presenciei com meus olhos, que a terra há de comer um dia, escutei no bochicho das curriolas. E é assim que encaro os lances. Por essa luz que me ilumina, eu juro que conto os casos sem aumentar um ponto. Se algum talento porventura tenho, é o de ver e ouvir minha gente. Mas Plínio não assumia um papel de conhecedor íntimo dessa “gente simples” sobre o qual ele contava suas histórias, e muito menos se vangloriava dessa posição. Pelo contrário, afirmava seu distanciamento como artista e intelectual (mesmo com a origem que poderia credenciá- lo para aquele papel), não se identificando como um próprio membro desse povão lesado da sociedade para o qual ele dava voz. O autor reconhecia-se, simplesmente, como uma testemunha atenta, como nesse trecho da crônica Profeta enganador ou enganado: “Está certo que o meu puçá não vai além da superfície e que, por essas e outras, eu só pesco o que vem à tona. Mas aparece tanta bronga boiando nas águas barrentas em que navego contra a maré, que vivo assombrado com os lances que sou obrigado a encarar” (MARCOS, 2004, p.61). O amigo Roberto Bandeira também escreveu sobre o grande talento de Plínio como observador privilegiado e perspicaz, independente de sua discutida formação intelectual: Tu lia, sim, é claro que lia, mas, acima de tudo, tu tinha olhos de ver. Pra ti, bastava uns dias de enganação no circo pra entender o que é a vida dura daqueles artistas mambembes e famintos e chegar a nos oferecer Balada de um Palhaço. Pra ti, bastava um noite de papo com o bagrinhos desempregados do porto de Santos para escrever Quando as máquinas param. Pra ti, bastava ver uma pobre puta chorando encostada num poste da rua Vitória pra nos presentear com Navalha na carne (In: MARCOS, 2004, p.173-174). 79 Mas como excelente contador de histórias e verdadeiro artista, Plínio sabia reinventar seus casos para diferentes platéias em momentos distintos. E muitos de seus casos envolviam a ele próprio: sua vida, as pessoas que conheceu, os lugares por onde andou e os “pererecos” que enfrentou. Não é a toa que uma das peculiaridades de sua obra é o caráter memorialista da narrativa, com seus fragmentos e pinceladas biográficas, sem falar nos diversos livros de relatos e contos autobiográficos propriamente ditos. Criando a partir de sua própria vivência e experiência, Plínio inventou muitos personagens retirados diretamente da realidade. O próprio autor revelou isso em crônica: “fui criando personagens que, de início, eram baseados nos tipos que conheci na minha cidade querida, mas que, aos poucos, foram crescendo, ganhando características próprias e, acreditem ou não, se formavam quase sozinhos, indiferentes à minha influência” (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.36). Além do aspecto da evolução criativa, Plínio teve também que modificar deliberadamente suas criações, alterando seus nomes e criando, por exemplo, a imaginária Barra do Catimbó, onde suas figuras habitariam. Esse artifício deveu-se ao fato de que alguns dos personagens retratadas em seu texto, que foram retirados diretamente de seu cotidiano, começaram a “estrilar” pelo fato de serem utilizados seus nomes verdadeiros (Ibid). Mesmo consciente da organicidade do texto pliniano, independente de seu formato ou estilo literário, é difícil abordar sua produção artística como um todo. Por outro lado, é igualmente insuficiente discutir somente uma das facetas do texto de Plínio sem considerar toda a produção restante. Os estudos sobre Plínio Marcos geralmente se restringiram a suas peças (VIEIRA, P., op. cit., GUIDARINI, 1996), ou, em alguns poucos casos, a outra expressão particular de sua produção como, por exemplo, as crônicas jornalísticas (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit.). O objetivo aqui não é o de uma ambiciosa abordagem totalizante da produção artística de Plínio Marcos, mas uma tentativa de traçar as principais características de seu texto (suas peças, romances, crônicas etc.) como meio de proporcionar subsídios para a análise das diferentes adaptações cinematográficas de suas obras. Procurou-se não fazer recortes da obra pliniana pelo estilo ou gênero literário, uma vez que filmes foram baseados não só em suas obras teatrais do autor, com também em argumentos ou contos. Nos diversos estudos sobre a dramaturgia de Plínio Marcos convencionou-se separar sua produção artística em diferentes fases. Paulo Vieira sugeriu uma divisão em três fases, cuja primeira ele chamou de constatação, restringindo-se a sua produção teatral entre 1959- 80 1979, no qual Plínio Marcos, “com o olho clínico de um repórter”, constataria “a existência do mal na sociedade”. A segunda fase, que o autor identificou como epifanias, compreendendo os musicais escritos entre 1970 e 1976, se constituiria como uma etapa de lenta transição para a terceira fase. Já esta última fase, de 1978 a 1988, seria chamada de proposição, com peças em que Plínio “propõe a superação do mal na sociedade”. Os textos da terceira fase são denominados de obras místicas e, segundo Vie ira, “perdem qualidade de ação, de conflito e de personagem, e ganham um certo tom patético”. 123 Mário Guidarini (op. cit., p.85-86), por outro lado, identificou na obra de Plínio Marcos diversas categorias diferentes: o realismo contestatório (suas principais peças), esoterismo subversivo (as peças místicas da década de oitenta), heróis populares e inéditos (peças que abordam o universo da música popular e do circo), introspecção subversiva (apenas a peça A dança final) e, finalmente, reportagens e estórias marginais (outros romances, textos curtos e livros de contos e crônicas). Essas categorias, apesar de menos abrangentes e talvez mais específicas, são extremamente questionáveis, seja por utilizar como critérios desde a publicação em livros (os textos inéditos124 ), até o formato (concentrando todos os livros de contos, crônicas e romances na mesma categoria, reportagens e estórias marginais). Além disso, uma obra peculiar como A dança final é comodamente alinhada na indefinida categoria introspecção subversiva. Por outro lado, as divisões da obra de Plínio Marcos em fases são geralmente unânimes em afirmar a superioridade da primeira sobre a(s) seguinte(s). Vieira (op.cit., p.XV), por exemplo, escreveu sobre as mudanças sut is na passagem da primeira fase para a segunda, e a chegada, na terceira delas, ao “esgotamento do próprio modelo de dramaturgia criado pelo autor” que implicaria na perda de qualidade dramatúrgica. Foram apontadas também mudanças em aspectos temáticos no decorrer da obra. A solidão, por exemplo, motivo constante em sua obra, levaria, nas peças da primeira fase, à destruição, enquanto na fase mística, “a uma espécie de ressurreição, quando não, pela tentativa de superação” (Ibid, p.53). Entretanto, as princ ipais críticas às obras posteriores de Plínio são centradas, principalmente, nas próprias questões dramáticas: “Os problemas que eram expostos, rápida e Paulo Vieira revelou se inspirar em estudos de Antonio Mercado que observava também duas fases distintas na obra pliniana, de constatação e de contestação. 124 Aqui, Guidarini, inclui o texto Um crime no circo, que seria posteriormente publicado como O Assassinato do anão do caralho grande. 81 intensamente, pelo conflito, perdem o centro e, consequentemente, também a agilidade, tornando as peças lentas, discursivas” (Ibid). Mostaço (In: CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.14) também critica a produção teatral pliniana a partir dos anos oitenta, afirmando que a utilização de enredos preexistentes (por exemplo, a vida de Jesus Cristo ou de Madame Blavatsky) prenderia o autor ao exigir muitos personagens e mais de um ambiente cênico, forçando “um desmembramento das situações de conflito”. Para Mostaço, “nesse molde expositivo, Plínio admitia perder empuxo”. Mas como os mesmos estudiosos admitem, tanto os traços místicos já estavam presentes nas primeiras peças de Plínio, quanto os textos dramáticos posteriores de Plínio igualmente compartilhavam diversas características de sua obra inicial. Dessa maneira, como qualquer tentativa de categorização estrita, trata-se de uma tarefa ingrata e contestável separar rigidamente fases numa obra tão orgânica quanto à do autor maldito. Desse modo, parece ser ponto indiscutível a presença de características bastante marcantes e autorais nas obras de Plínio como um todo, facilmente identificáveis e reconhecíveis. Entretanto, nada é mais comum do que a pretensão de sintetizar toda a obra pliniana com dois ou três adjetivos totalizantes e simplistas, caindo na armadilha de ignorar as diversas especificidades e peculiaridades de cada uma das peças. Vieira (op. cit., p.XIV) ressaltou, por exemplo, como a crítica não percebeu nuances nos personagens das variadas peças escritas ao longo de trinta anos. Nesse sentido, por exemplo, “a maldade, pura e simplesmente, tornou-se a marca de cada personagem, como se todas obedecessem a um mesmo sistema de comportamento, no qual a crueldade fosse sempre o motor da ação que desenvolvem”. Mas mesmo apontando para todas essas ressalvas, é possível e trata-se do objetivo deste texto tentar apontar para características gerais que possam nos ajudar a compreender a obra de Plínio Marcos num espectro mais amplo. Entretanto, é necessária a ressalva de que o interesse principal desta dissertação reside nas três peças mais conhecidas de Plínio Marcos, justamente aquelas adaptadas para o cinema, além dos três contos / argumentos igualmente transformados em filmes, todos eles escritos ou reescritos entre 1966 e 1971. Ou seja, o foco aqui aponta para um interesse voltado para obras escritas num período específico e especialmente importante da carreira do dramaturgo, quando se tornou um nome consagrado nacionalmente. As peças são as célebres Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, de 1966 e 1967, respectivamente, e a “maldita” Barrela, de 1958, mas reescrita em 82 1968, quando assumiu a versão definitiva que seria publicada em 1976 e encenada a partir de 1979. Os outros textos são Nenê Bandalho, escrito em 1968 originalmente como um conto e/ou um argumento para um seriado de televisão, além de A rainha diaba e Nas quebradas da vida, feitos sob encomenda para os diretores Antonio Carlos da Fontoura e Roberto Farias entre 1970 e 1971. Curiosamente, um trecho da história e os personagens de A rainha diaba apresentam muitas semelhanças com o conto O Batismo, publicado no jornal Última Hora e depois na coletânea Nas Quebradas do Mundaréu, de 1973, enquanto a trama de Nas quebradas da vida seria expandida no romance Uma reportagem maldita (Querô), publicado em 1976, que três anos depois ganhou versão para o teatro. Dessa maneira, não iremos estender demasiadamente a análise sobre as modificações que são identificadas em sua obra a partir de meados dos anos 70, mas iremos nos concentrar primordialmente nas características mais marcantes de seus textos do final da segunda metade da década de 60 até o início da década seguinte. Justamente o período compreendido entre sua redescoberta em São Paulo a partir do sucesso de Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne e a brutal perseguição a suas peças pela censura após o AI-5, proibindo quase todas as suas obras. De um modo geral, acredito que podemos discutir as principais características da obra de Plínio Marcos – do universo pliniano – a partir dos três seguintes aspectos: a linguagem, o ritmo teatral, e os personagens e seu ambiente. Gírias, palavrões e provérbios. Os diálogos de Plínio Marcos são conhecidos por sua crueza e objetividade, além do encadeamento milimétrico e do uso de um linguajar peculiar. O dramaturgo repetia várias vezes que seu texto tinha “a sutileza de um arroto”. Provavelmente, a característica mais clara do texto pliniano é o intenso uso de gírias e expressões comuns na linguagem falada de determinado grupo social, mas que causaram um grande impacto ao serem escritas – em livros e jornais – e, sobretudo, ao serem proferidas nos palcos dos teatros brasileiros em determinada época. Em diversas oportunidades, Plínio afirmou não fazer pesquisa de linguagem para escrever suas peças. Dizia simplesmente que escrevia como se falava, que não tinha técnica 83 especial. Seu objetivo era simplesmente ser o mais claro possível e atingir a plena comunicação com o público, através de uma radical verossimilhança com o universo retratado. Ou seja, a questão, não era somente o que se escrevia, mas também como se escrevia. Nelson Rodrigues também causou um enorme impacto no teatro brasileiro, dentre diversos motivos, por levar a linguagem das ruas para os palcos, incluindo as gírias da época e os palavrões. Mas o universo de Nelson era o dos subúrbios do Rio de Janeiro, especialmente da pequena burguesia ou da baixa classe- média. Mesmo suas prostitutas eram geralmente moças de família, bem educadas, que, por um motivo ou outro, ingressavam numa vida “desviante”. Os palavrões, por mais comuns que fossem, eram usados com certo pudor, em momentos de explosão de raiva, causando o impacto nas platéias acostumadas a ouvi- los em casa, no trabalho ou nos bares, mas não nos teatros, na boca dos atores. Na peça Beijo no Asfalto, escrita para Fernando Torres e Fernanda Montenegro, Nelson Rodrigues teve de ser convencido “a tornar o texto um pouco mais ofensivo, salpicando-o com alguns palavrões”. Ou seja, foi em 1960 (depois de Barrela, portanto), que “muitos se deram conta de que, até então, nenhuma peça de Nelson contivera um único palavrão!” (CASTRO,1992, p.315). Em sua peça seguinte, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, o personagem Edgar, depois de ser seguidamente humilhado por Werneck, seu patrão e futuro sogro, finalmente rebate: EDGARD – Escuta aqui. E você também, Peixoto. (Para Werneck) Você não é doutor, não. E você. Olha! Eu não vou me casar com sua filha. Não vou, não! E saio do emprego. Você enfie os 11 anos, a estabilidade! E fique sabendo. Sou um ex-contínuo. E você um filho da puta! (Num berro maior) Seu filho da puta! (RODRIGUES, 1989, p.270) (grifo meu). Esta fala encerra – com um berro e um palavrão – o primeiro ato desta peça escrita e encenada pela primeira vez em 1962. É o único momento em que uma palavra de baixo calão é dita claramente por algum personagem em todo o texto. Na fala de Edgard, o “filho da puta” é a explosão final, o desabafo, o grito não mais contido. As frases interrompidas, inacabadas, muito características do texto de Nelson, revelam, por exemplo, o pudor dos personagens em falar certas palavras (“Você enfie os 11 anos, a estabilidade!”). No texto de Plínio Marcos, por outro lado, assim como os personagens são de um outro universo, o uso do palavrão também é distinto. Como no começo de sua primeira peça, Barrela, na versão de 1968: 84 Um xadrez onde são amontoados os presos que aguardam julgamento. (Ao abrir o pano, todos dormem. De repente, Portuga desperta com um pesadelo). PORTUGA – Não!Não!Não! (Todos acordam sobressaltados. Bereco pula de seu beliche para o meio da cela. Os outros, de pé, ficam em posição de defesa. Somente Portuga fica sentado, olhando assustado para os outros) BERECO – Que puta zorra foi essa? BAHIA – Foi o Portuga de merda de novo? TIRICA – Quando é que vai aprender a dormir sem fazer zoeira? PORTUGA – Foi pesadelo. BAHIA – E o que é que a gente tem com isso. PORTUGA – Desculpe. FUMAÇA – Agora não adianta pedir arreglo. Já acordou meio mundo. TIRICA – Disso a gente sabe. Se tu tivesse a cara-de-pau de cortar a onda de sono que a gente engatou, ia levar tanta pancada que quando a gente te largasse tu ia estar um mingau. BERECO – Por querer ou não, esse filho-da-puta me fez perder o sono. Desgraçado, vou te aprontar uma sacanagem que você vai parar na solitária. Lá não vai encher o saco de puto nenhum. PORTUGA – Poxa, Bereco, livra a minha cara. BERECO – Livra a sua cara, uma porra! Vou te aprontar. E se ciscar, já sabe: te arrebento de porrada. FUMAÇA – Tá certo assim. A moçada custa pra se apagar. Quando consegue, aí o sabido faz barulho e acorda a curriola. É o fim da picada. Tem que pegar uma gelada pra tomar um chá de semancol. TIRICA – Se eu fosse o xerife dessa merda, já viu. Dava o castigo agora mesmo. Não ia ser mole. LOUCO – Enraba ele! Enraba!. 125 Pode-se perceber que o palavrão é utilizado com enorme naturalidade e freqüência, não estando nem sequer nas frases de maior violência ou agressividade. As gírias, ao mesmo tempo, são peculiares daquele ambiente, e não de conhecimento mais amplo da sociedade como as utilizadas por Nelson Rodrigues. Para alguns estudiosos são justamente as gírias e os palavrões os principais responsáveis por uma possível característica de distanciamento presente na obra de Plínio Marcos. Segundo Antonio Mercado, citado por Paulo Vieira, isso se devia à distância entre a classe social dos personagens – o grupo humano representado no palco –, e a classe social do público na platéia. O próprio desconhecimento do significado de algumas das gírias (como “curriola” ou “barrela”, por exemplo) pelas pessoas que assistiam às peças, poderia ser responsável pelo sentimento de distanciamento apontado por Mercado. 126 Outro aspecto recorrente da linguagem das obras de Plínio Marcos é o uso de ditados populares. Segundo Guidarini (op. cit., p. 48) “o dramaturgo coloca na boca dos personagens, em média, oito provérbios por peça”. Diversas crônicas e contos de Plínio têm como títulos, máximas como Afobado come cru ou queima a boca (sobre um bandido inexperiente que, 125 A primeira versão de Barrela, escrita em 1958, embora com menos palavrões, era possivelmente até mais violenta, como quando Bahia diz ao Louco depois dele ser ameaçado de curra: “A tua sorte é ser feio que nem a peste”, sendo logo completado pela sugestão de Tirica: “A gente pode barrelar ele com o cabo da vassoura”. 126 É importante recordar que, com o reconhecimento de Plínio Marcos no final dos anos 60, suas peças foram apresentadas em salas como a do Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, ou do Teatro Maison, no Rio de Janeiro, locais freqüentados por membros das classes médias e altas. 85 nervoso, acaba matando o próprio parceiro), Se não tem tu, vai tu mesmo (a história de um ladrão de galinhas que começa a pintá- las de preto para atender as encomendas dos clientes de um pai de santo) ou Por gama também se mata (sobre namorada de um bandido que o mata por ciúmes). Esse uso reiterado de ditos populares confere aos textos, sobretudo os mais curtos, como os contos, um curioso caráter de fábulas morais, envolvendo nem tanto questões maniqueístas do bem e do mal, mas, sobretudo, saberes do senso comum, de experiência e vivência. Conforme será discutido a seguir, não se trata tanto de definir regras morais, mas sim, regras de sobrevivência. Um dos personagens mais recorrentes em diversas obras de Plínio é o Mestre Zagaia, “o velho cabo de esquadra”, sempre citado pelas dicas de sua Tabuada das Candongas – geralmente máximas como “trouxa não precisa de grana”, “nada como um dia atrás do outro” ou “quem vê cara não vê coração”. Assim como os temas, situações ou personagens, muitas frases ou expressões de Plínio também estão sujeitos à migração característica de sua obra, aparecendo várias vezes em diversos textos diferentes, assim como em entrevistas e depoimentos do próprio autor. Expressões como “Nas quebradas do mundaréu”, “juro por essa luz que me ilumina”, “roçados do Bom Deus” ou “onde as pragas botam os ovos” adquirem o status de jargões, recursos típicos de humoristas e palhaços, por exemplo. Por outro lado, essa repetição de expressões chegou, em determinado momento, a um nível poético quase concretista. No conto Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos em Osasco (MARCOS, 1977, p.22), a repetição formal e argumentativa do texto representa um momento de transição na obra de Plínio, localizada justamente na passagem de um texto realista para um mais poético. Nas celas-cubículos, nas celas onde mal caberiam oito, mas onde são espremidos vinte e cinco homens. Vinte e cinco homens. Vinte e cinco homens mais seus fedores, suas misérias, seus ócios, seus desesperos, seus vícios, suas ansiedades. Vinte e cinco homens e seus desesperos num cubículo onde mal caberiam oito. Ninho perfeito para as pragas colocarem seus ovos. Nessa mesma compilação salta aos olhos que o talento de Plínio não se restringia somente à linguagem crua, “sem técnica”. Em Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos nas voltas da bola e da boleta (Ibid, p.52), por exemplo, o texto é muito mais depurado, sofisticado e com versos de grande beleza: 86 Todos meninos vindos de tão longínquos recantos, nas precárias conduções movidas por parcas esperanças de escaparem da sina de conterrâneos, lavradores de almas áridas pela capina na terra mal adubada pelo sono sem o repouso do sonho. Também em sua trajetória pela imprensa, Plínio se distinguiu não somente nas crônicas, como também em entrevistas e reportagens que realizou, por utilizar características próprias de linguagem e manter suas incursões pelo universo da gíria, se diferenciando do jornalismo tradicional em vários aspectos (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.38). Ritmo teatral e o jogo do poder. Essa é talvez a característica mais ressaltada na dramaturgia de Plínio Marcos. O crítico e diretor de teatro Alberto D’Aversa (apud VIEIRA, op. cit., p. 80-81) afirmou sobre Navalha na carne o que, na verdade, pode talvez ser estendido para outras peças de Plínio. Segundo ele, apesar dos méritos, não se trata uma peça extraordinária: A temática desenvolve o óbvio; o diálogo, às vezes, não está isento de um certo moralismo patético e convencional, e a linguagem, não sendo depurada e filtrada pelo crivo de uma consciência filológica, é prolixa e fastidiosa. Mas o grande mérito é que tudo isso é visto, sentido e expressado com prodigioso instinto teatral, ou seja, através de situações e de personagens; os nós dramáticos sucedem-se com freqüência assombrosa e ininterrupta, determinando constantes variações nas relações das três personagens, num ritmo de precisão matemática. O mesmo D’Aversa reafirmou suas idéias sobre a obra de Plínio em outra ocasião: A revolução – em termos brasileiros – dramática de Plínio Marcos não se manifesta através dos temas (extraídos todos da mais banal e cotidiana crônica) nem através dos palavrões usados sem pudor filológico e moralista, mas através de uma estrutura dramática que coloca constantemente os atores numa série de conflitos de evolução elíptica onde os termos antiestéticos são renovados e repropostos com uma 127 generosidade que não tem comparação no moderno teatro brasileiro. E não somente brasileiro. Entretanto, acredito que esse aspecto está intrinsecamente ligado à questão da linguagem de Plínio, não podendo desvincular a crueza, a espontaneidade e a naturalidade dos seus diálogos (adequando-se perfeitamente ao vocabulário de gírias, palavrões e máximas), do preciso encadeamento dramático das ações dos personagens. O ator Sérgio Mamberti, que interpretou Veludo na primeira montagem de Navalha na carne, afirmou: 127 D’AVERSA, Alberto. Um autor testemunha: Plínio Marcos – II. Diário de São Paulo, São Paulo, 1967. 87 Na época da estréia da Navalha, Plínio inaugurou a modernidade do teatro brasileiro já pelo formato da peça. O timing dele era outro. As peças que eram encenadas naquela época duravam 2h30, em média, extremamente prolixas por todo um detalhamento. E o Plínio, em três ou quatro palavras, já dava seu recado, desenhava um personagem, um ambiente e fazia uma denúncia social. Ele tinha um poder de síntese muito forte e mostrava logo de cara o que tinha para mostrar. (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p. 60). As peças de Plínio Marcos, sobretudo as do período em questão, são caracterizadas por atos curtos e às vezes únicos, em que poucos personagens circulam num mesmo cenário claustrofóbico e asfixiante, desenvolvendo conflitos embalados num ritmo intenso e vertiginoso. Para Mostaço (In: CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.12), na obra pliniana, “o dramático é um ato espontâneo. Nasce da aguda naturalidade (e mesmo do naturalismo) com que desenha as frases, engendra a ação verbal, grava o pormenor que não poderia possuir outro talhe”. O conflito é colocado desde o primeiro instante, prendendo a atenção do espectador, sem, em nenhum momento, “enrolá- lo”. No trecho inicial de Barrela citado anteriormente, em pouco mais de uma página de texto, Plínio já delineia seus personagens (do Louco, com apenas uma fala, ao Bereco, xerife da cela, com cinco falas), sugere as relações entre eles (a rixa entre Tirica e Portuga, o poder de Bereco sobre todos e o enfrentamento do mesmo Bereco por Tirica), e, principalmente, apresenta o principal conflito da peça – quem vai currar quem. Como afirma Guidarini (op. cit., p.59), nas peças plinianas “o conflito gera o desfecho em cada peça”. E o desfecho é invariavelmente a concretização da violência anunciada anteriormente, seja a curra, o assassinato, o abandono, a traição ou a morte. Mas a violência em Plínio Marcos, segundo Vieira (op cit., p.44), mais do que à linguagem, à história ou ao tema, está associada, sobretudo, ao conceito teatral básico do conflito. Por outro lado, os violentos conflitos entre os personagens plinianos também estão irremediavelmente ligados a questões banais ou pueris. Seja o fato de Portuga ter acordado os outros presos em Barrela, pelo par de sapatos que Paco tem e Tonho inveja em Dois perdidos numa noite suja , ou pelo dinheiro diário que Neusa deixou para Vado e Veludo roubou em Navalha na carne, o ponto motivador dos embates sempre esconde a verdadeira questão por trás de tudo – o exercício do poder. Ou seja, os grandes conflitos das peças são gerados a partir de pequenos motivos, mas representando questões maiores. Os atos praticados aparentemente sem razão geram reações desproporcionais, como se as peças criassem um álibi para atingir a ação. Para Mostaço (In: CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.12): 88 Nem suas peças nem suas crônicas são marcados pela exuberância da geografia ou a descrição dos deslocamentos, pela engenhosidade do enredo ou a ardilosa teia de intrigas que, costumeiramente, enredam personagens no reino da ficção. Bem ao contrário é a psicologia milimétrica, o pormenor, o detalhe perturbador causado numa ordem que se acreditava estável – geralmente flagrada nas culminâncias de exacerbação ou de seu influxo tônico diante da situação –, que dão vida e alimentam suas criações. É justamente nessa dinâmica de violência aparentemente gratuita e exacerbada, que indiscutivelmente se esconde uma visão política. Conforme Vieira (op. cit., p.27-28), as peças de Plínio são uma alegoria do poder e, nesse sentido, são também uma metáfora do jogo político. Afinal de contas, a política pode também ser definida como a arte (ou técnica) de conquistar e exercer o poder. É o sociólogo Michel Misse (1999), em seu estudo sobre a acumulação social da violência, quem, de forma bastante apropriada para os interesses desta pesquisa, introduz alguns conceitos sobre essa questão. Em meio ao processo de constituição do Estado Moderno na Europa Ocidental, ocorreu também o processo de monopolização do emprego legítimo da violência pelo Estado. Surgiu aí a diferenciação entre a violência legítima, com o objetivo da manutenção de determinada ordem pública e administração legal, e a violência ilegítima, como recurso privado, condenada e reprimida social, legal e juridicamente, além de controlada pelo “assujeitamento” individual às normas e aos códigos ético-jurídicos e pelo processo de normalização. 128 Se a violência pode ser definida como o “emprego da força física ou suas extensões para impor sua vontade contra a vontade dos outros”, esta também é a definição clássica de poder. Entretanto, na modernidade, os significados de violência e poder – e a diferenciação de um e de outro – assumiram novos sentidos através dos atributos de legitimidade ou ilegitimidade (MISSE, 1999, p.26). Se de fato, violência é uma noção tão amorfa quanto a noção de poder, no teatro de Plínio Marcos seus sentidos estão completamente imbricadas. 128 129 Esse complexo processo histórico-social de “normalização” mobilizou os ‘indivíduos’ a auto-regularem sua premência e sua ganância (de necessidades, interesses e desejos), através da socialização do ‘valor de si’ como o valor próprio que deriva do desempenho do auto-controle (ou, em ultimo caso, estatalmente controlada). Conforme Misse (op. cit., p.48), “Não é uma aventura existencial, mas uma racionalidade por preferir seguir as regras do convencionalismo, das boas maneiras e da civilidade”. 129 “Não existe violência, mas violências, múltiplas, plurais, em diferentes graus de visibilidade, de abstração e de definição de suas alteridades. A violência é, em primeiro lugar, uma idéia, a tessitura de representações de uma idealidade negativa, que se define por contraposição a outra idealidade positiva, de paz civil, de paz social ou de consenso, de justiça, de direito, segurança, de integração e harmonia social” (MISSE, op. cit., p.38). 89 Uma das principais características do universo pliniano, e que lhe dá o acentuado teor político, assenta-se justamente na representação do emprego, por indivíduos marginalizados contra outros marginalizados, da violência e de poder ilegítimos – no sentido de “violação”, de “excesso” ou de “crueldade” –, traçando uma metáfora da estrutura de poder e da violência do Estado e da sociedade, que embora legítimas, não seriam menos cruéis. Dessa maneira, as peças de Plínio Marcos escrutinam as diversas maneiras através dais quais um indivíduo consegue exercer a sua vontade sobre a do outro com fins mesquinhos e egoístas. Seja o poder exercido por meio da força física (de Giro, através de Oswaldo, em O abajúr lilás), do porte de uma arma de fogo (daí a sedução que ela provoca, por exemplo, em Querô), do conhecimento (a descoberta do passado de Tirica no reformatório por Portuga, em Barrela), da segurança em cima do desespero alheio (Paco sobre Tonho em Dois perdidos numa noite suja ) ou da aparência e da atração física (a juventude de Vado versus a velhice de Neusa, em Navalha na carne). Mas Plínio examina o jogo de poder num universo particular, onde as regras são singulares. O drama de Tonho, por exemplo, se deve ao fato do seu estudo não valer nada dentre os carregadores do cais do porto. Naquele local, são outros os valores que garantem o poder, o que ele alcança, no final da peça, ao perder todas suas reservas e valores morais anteriores. Mostaço (In: CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.13) aponta a presença na obra de Plínio de traços simplificados de Lamarck ou Darwin, teóricos da evolução das espécies, ao perceber como seus personagens acabam sendo obrigados a se adaptarem ao ambiente no qual estão inseridos, num processo em que só os mais aptos sobrevivem. No mesmo viés da “lei da selva”, talvez uma das características dos textos de Plínio seja sua capacidade de, através do conflito entre os personagens, se aproximar aparentemente do que Thomas Hobbes, no século XVII, chamou de “estado natural do homem”. O “pessimismo” de parte da filosofia hobbesiana foi consagrado através das célebres expressões Homo homini lupus (o homem é o lobo do homem) e Bellum omnium contra omnes (é a guerra de todos contra todos). Para Hobbes, a sociedade não é uma totalidade natural, mas uma realidade artificial e frágil que depende do consentimento dos homens, o que não seria alcançado em situações de igualdade de força, onde, segundo o filósofo, somente a luta resolve os conflitos e dela ninguém sai vitorioso. O pensamento de Hobbes guarda ainda semelhança com a dramaturgia pliniana quando afirma: 90 A maldade é apenas resultado da desconfiança mútua que nunca deixa de aparecer quando os homens, entregues a seus desejos e argumentações vãs, opõem-se mutuamente para impor seus interesses sem levar em conta qualquer jurisdição instituída e qualquer poder capaz de fazer respeitar suas determinações (ZARKA. In: HUISMAN, 2000, p.502). Na obra de Plínio Marcos, apoiando-se na dor, todos os conflitos, o desenrolar das ações e as relações entre os personagens estão, conforme Mostaço (In: CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.13), centrados na alteração constante de posições entre os protagonistas, de algozes violentos para vítimas pisoteadas e vice- versa: O apogeu destes círculos de tensão é insuflado pelas alternâncias entre as personagens, em que algozes e vítimas intercambiam seus papéis, numa batalha que só terá fim num confronto armado entre as figuras e do qual sobreviverá o mais apto. A dramaticidade de Plínio não admite soluções de compromisso ou acomodamento de situações, apenas o rompimento dos vínculos, a morte ou a supressão de uma das partes geradoras de tensão. Obviamente, por trás disso também está presente a questão política referente ao contexto em que muitas de suas peças foram escritas, sobretudo a ditadura militar e todos os atentados contras as liberdades individuais. Porém, se pensarmos que Barrela foi escrita em 1958, essas características se desvinculam de uma possível associação imediatista entre obra e contexto. Por outro lado, uma peça como O abajúr lilás, de 1969, é uma metáfora clara (e cruelmente contundente) da situação política que o Brasil vivia no final da década de sessenta. Mas se assim como Plínio Marcos, Hobbes acredita que o homem não é mau por natureza, mas são as condições de existência que o tornam assim, por outro lado a maior parte do pensamento do filósofo inglês se distancia radicalmente das idéias do dramaturgo. Os argumentos de Hobbes são colocados como justificativa para a defesa do Estado e de um “poder absoluto, coercitivo e punitivo”, a maneira de garantir a passagem do homem de um estado natural para o estado civil. 130 Para Plínio Marcos – que chegou a se auto- intitular anarquista, apesar de sua recusa constante de rótulos –, toda forma de poder corrompe. Diametralmente oposto ao racionalista Hobbes, considerado o pai do conceito do Estado moderno, para o humanismo do dramaturgo a solução estaria na solidariedade, traço presente no mais cruel dos homens, e elemento que seria desenvolvido, sobretudo, nas peças ditas “místicas” do dramaturgo. Se tanto para Hobbes quanto para Plínio, a guerra de todos contra todos existe, em parte, devido à ausência 130 Por outro lado, algumas interpretações da obra de Hobbes também apontam para a relevância de diversos aspectos de seu pensamento, como, por exemplo, a afirmação que o Estado, diante do pacto social e da cessão de direitos, também está sujeito às regras do contrato (as leis) que regem tanto o soberano quanto os cidadãos (LIMONGI, 2002, passim). 91 do Estado, para o filósofo essa é a justificativa para a defesa de um Estado forte. Por outro lado, numa possível “filosofia pliniana”, o homem nunca nasce mal, é a sociedade que o faz assim – incluindo aí o Estado. Nos anos setenta esse raciocínio foi depurado, embora de maneira simplista, maniqueísta e então com traços de espiritualidade latente, em Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos em Osasco: Mas, lá estavam, no cubículo imundo, vinte e cinco homens empilhados, espremidos, esmagados de corpo e alma, esperando o julgamento dos cidadãos contribuintes. Todos os vinte e cinco homens confessaram faltas e crimes hediondos. Confessaram debaixo de pancada. Debaixo de pancada, confessaram crimes contra a sociedade dos cidadãos contribuintes. Crimes contra a sociedade que sempre os amesquinhou. Crimes que não seriam crimes diante de santos de qualquer fé. Mas eles confessaram roubos, assaltos, agressões, assassinatos, contra os cidadãos contribuintes. Confessaram crimes que não sabiam crimes. Não sabiam crimes os crimes que confessaram. Quem se alimentou anos a fio do desamor não tem consciência do bem e do mal. O mal não existe para o anjos caídos. Para os anjos caídos existe o desespero. O desespero é o que existe. Existe a aflição. Essa é que existe. O mal, a maldade toda está com os cidadãos contribuintes. No coração imundo do cidadão contribuinte é que existe o mal. Deles é a fúria alucinada de acumular, de garantir privilégio para si e seus porcos descendentes, até o fim dos tempos. Os cidadãos contribuintes abrigam o mal. Os anjos caídos são anjos (MARCOS, 1977, p.18-19) (grifo meu). Sem fazer uma ligação mecanicista entre autor e obra, é importante, nesse caso, acentuar características da própria postura ideológica de Plínio. Em toda sua trajetória, o dramaturgo sempre priorizou a independência e, principalmente, a liberdade, e foi em nome dela que escreveu grande parte de seus textos: Malditas sejam as ditaduras! Malditos sejam todos os ditadores! Os grandes e os pequenos. Os que, com suas forças governamentais, escravizam o povo. Ou os homens que se deixam amesquinhar a ponto de perderam a noção de sua própria humanidade e que se transformam em déspotas em qualquer situação em que tenham comando. Malditos sejam os autoritários! (MARCOS, 1996, p.30). Plínio nunca permaneceu muito tempo ligado a nenhum grupo teatral e jamais foi filiado a partido algum. O autor maldito não via alternativas na sociedade em que vivia e, numa crônica, afirmou: “nesse sistema capitalista, industrial, consumista, não há possibilidade de fazer justiça social” (In: CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.38). Posteriormente, nos anos noventa, seria um anarquista assumido – “Acredito na democracia, mas meu sonho é não ter nenhum governo e muito menos políticos por aí”. 131 Porém, a palavra chave para compreendermos o pensamento de Plínio Marcos é, indubitavelmente, liberdade – plena liberdade de expressão e de reivindicação por uma sociedade que garanta igualdade de oportunidades para todos. Suas obras sempre apontavam 131 CÔMODO, Roberto. O afiado anarquista do ócio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 mai. 1994. 92 para a defesa da liberdade e, justamente, daqueles que raramente tiveram alguém que lhes dessem voz. Marginais: personagens e cenários. Na crônica em que relatou o episódio no qual foi ignorado pela comissão do sindicato dos jornalistas quando esteve preso, Plínio Marcos, respondendo à pergunta do policial sobre o que ele era (já que jornalista, oficialmente, ele não era), afirmou ser: “Um marginalizado, como a grande maioria dos brasileiros”. 132 Na trajetória pessoal e artística de Plínio Marcos encontramos inúmeros momentos em que ele foi marginalizado de diferentes maneiras – no colégio, como mau aluno; no meio artístico e intelectual, como “semi-analfabeto” e “ex-palhaço de circo”; pela censura, como subversivo e pornográfico; ou no mercado da indústria cultural, como figura incômoda e desagradável. Se Plínio abordou a vida dos marginalizados, ele escreveu com conhecimento de causa. Não somente pelas situações e experiências vividas, mas também pelas pessoas e lugares que conheceu em suas andanças ao longo dos anos. O dramaturgo conviveu com artistas mambembes, trupes de ciganos, prostitutas, jogadores de futebol e até bandidos. Em sua juventude, nos períodos de desemprego com as dificuldades da arte circense, se virou nas malandragens do cais do porto de Santos, conheceu sujeitos e fez amigos que, mais tarde, enveredaram pela criminalidade (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p. 109). Esse adjetivo – marginal – talvez seja o que melhor defina, justamente, os personagens e o universo que grande parte de sua obra abordou. Plínio escreveu sobre pessoas e lugares marginalizados, exatamente no sentido que o dicionário aponta. Ou seja, seus textos retratam personagens e cenários colocados à margem de e por um outro grupo de pessoas, que, se não aparecem, por exemplo, nos palcos, estão geralmente nas platéias. Ou seja, uma das principais características de sua obra é o foco em tudo que está à margem, seja da sociedade, da lei ou da vida pública. Entretanto, se Plínio traça “o retrato dos excluídos pela sociedade” ou aborda um universo marginal, falamos de personagens marginalizados ou excluídos por quem? Pelos 132 Crônica sem título, publicada no Diário da Noite, 11 dez. 1978. In: CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, op. cit., p.146-147. 93 “cidadãos contribuintes”, para usar uma expressão pliniana? Também, mas não apenas isto. Plínio Marcos nunca procurou transformar alguém ou um grupo de pessoas em vítimas inocentes. Ele próprio, perseguido barbaramente pela censura, não costumava se fazer de “coitado” e recusava qualquer rótulo comodista de “vítima”. Na dinâmica das obras de Plínio, quem marginaliza é quem tem o poder – não há um maniqueísmo de vítimas ou algozes pré-determinados. Mesmo dentro de uma cela de cadeia, num relacionamento entre cafetão e prostituta, ou num grupo de miseráveis carregadores do cais do porto, quem detiver alguma migalha de poder vai subjugar o próximo. Consequentemente, quanto maior o poder (de uma pessoa ou de um governo), maior a possibilidade de opressão ao próximo. Assumindo uma postura política, Plínio demonstra a crueldade do jogo de poder dentre os próprios marginalizados pela sociedade, evidenciando a violência inerente à própria sociedade, abordando o universos daqueles que ela mesma exclui. Como apontou a crítica teatral Ilka Marinho Zanotto (In: MARCOS, 1975 p.7), a chave do enigma de sua obra, é o fato de que Plínio: Mostra como gente aqueles que normalmente são considerados ‘marginais’. E ao responder a Neusa Suely que ela é gente sim, Plínio lança ao ar um desafio imenso à nossa obrigação moral e cívica de tratá-la como tal. Isso implica em reavaliação de toda uma estrutura social e em compromisso de transformar uma estrutura, que ao nosso imediatismo não interessa questionar, que à nossa inércia comodista de avestruz não interessa abalar, que à nossa covardia não interessa denunciar. Para Plínio, “mostrar como gente”, é mostrar como qualquer um pode ser cruel, egoísta e mesquinho quando se encontra numa situação de miséria, desigualdade e desamparo. Ao se falar de personagens egoístas e mesquinhos, é importante lembrar que para diversos estudiosos, e para o próprio Plínio Marcos, Nelson Rodrigues influenciou toda a dramaturgia moderna brasileira. Analisando os personagens da obra teatral de Plínio Marcos, Vieira (op. cit., p.14-15) sugeriu que os três grupos de personagens de Nelson Rodrigues descritos por Sábato Magaldi – as prostitutas, os loucos e os homossexuais – também seriam comuns ao universo das obras de Plínio Marcos. Mas além desses três, Vieira descreveu um outro conjunto de personagens também recorrentes na obra de Plínio: “os bandidos e os marginais” (Ibid, p.20-21). Pouco desenvolvido pelo autor, nessa categoria ele acrescenta os aspectos da criminalidade, do desemprego e da falta de caráter. Entretanto, acredito que a característica da marginalidade abarque todos os demais grupos de personagens e seja muito mais definidora dessas mesmas figuras dramáticas. 94 Todos os personagens de Plínio são marginais em algum sentido. As prostitutas são marginalizadas por sua profissão, que por ser, inclusive, ilegal, as condenam não só moralmente, como também criminalmente. Em Navalha na carne, a prostituta Neusa Sueli chega a reclamar, por exemplo, que o “novo delegado que entrou está querendo fazer média. Toda hora passa o rapa”. Apesar da “demanda” não ser proibida, a condenação moral e legal recaí sobre aquelas que oferecem o serviço. Situação muito parecida com a dos traficantes de drogas, por exemplo. Os loucos, por outro lado, se excluindo e sendo excluídos de uma sociabilidade convencional por seu comportamento, são completamente alijados da sociedade e “estão sujeitos também à legislação repressiva como membros da classe delinqüente” (VIEIRA, op.cit.,p.17). Os homossexuais, de certa maneira, são igualmente excluídos da parte mais ampla da sociedade devido à moral conservadora vigente, sobretudo nas décadas de 50 e 60. Plínio não aborda qualquer homossexual (ou a homossexualidade de forma mais ampla), mas aqueles que assumem sua sexualidade no ambiente característico das obras plinianas. As “bonecas” na obra de Plínio Marcos provavelmente teriam menos motivos para serem marginalizadas – geralmente tem emprego, mesmo que de baixa remuneração, e não costumam ter envolvimento com o crime –, se não fosse por sua opção sexual quando claramente explicitada, tanto pela roupa, quanto por gestos, postura e ações em público. Por outro lado, nas peças de Plínio Marcos, em que “sexualidade é uma arma e um castigo” (Ibid, p.19), a curra, assim como o assassinato, é mais uma maneira de exercer e impor poder. A dignidade ou o poder através do estupro, feminino ou masculino, é a única coisa que pode ser conseguida por ou daqueles que não tem nada, além somente da própria vida. Além da curra, resta o assassinato. Curiosamente, nesse universo alguns personagens homossexuais, como os travestis, por sua auto-afirmação surpreendentemente, como figuras de força. impositiva, aparecem, 133 Por último, os criminosos (aqueles que transgridem a lei, os “fora da lei”) são os que sofrem a forma mais óbvia e explícita de marginalização e de exclusão. Estes se transformam em presos, atingindo o nível máximo visível de guetificação (o encarceramento), ou em fugitivos, sendo obrigados a se afastarem ao máximo da vida pública para escapar da perseguição policial. 133 Esta questão será mais desenvolvida no capítulo 6. 95 Provavelmente o aspecto mais interessante apontado por Vieira é o fato de quase nenhum personagem da dramaturgia pliniana possuir emprego ou propriedade (Ibid, p.21). Apesar das possíveis exceções, nenhuma das atividades se configura como emprego formal, mas como estratégias de sobrevivência. Talvez a forma mais comum (e cruel) de marginalização seja, justamente, a econômica. A peça Quando as máquinas param, por exemplo, retrata a decaída de um casal após o personagem Zé, profissional não especializado, ter perdido um emprego na fábrica. A ação, novamente curta e vertiginosa, tem início num momento posterior à demissão, quando a jovem família já gastou todo o “dinheiro da indenização”, e se vê diante das conseqüências trágicas do desemprego prolongado. Em relação aos ambientes asfixiantes que servem de cenário à maior parte de suas obras, Plínio também aborda locais esquecidos, à margem. Não o centro, mas o entorno. Seus personagens transitam pelos subúrbios, periferias, desvios, becos e ruas escuras do universo urbano: as zonas de prostituição, os lixões, as prisões e o cais do porto. A Barra do Catimbó, favela criada pela imaginação de Plínio no romance de mesmo título (MARCOS, 1982), surge como uma terra prometida, distante e desconhecida, como um quilombo tardio fundado pelo crioulo Catimbó, fugitivo da polícia e do esquadrão da morte, e por sua amante, Negra Bina Calcanhar de Frigideira. Aparentemente, das três características ressaltadas na obra de Plínio – a linguagem, o ritmo e os personagens e ambientes marginais – as duas primeiras se referem primordialmente a aspectos formais, e a última, a aspectos temáticos. Entretanto, o entrelaçamento delas é inevitável. A linguagem de gírias e palavrões está intimamente ligada, justamente, aos tipos que seus textos abordam, assim como o ritmo vertiginoso e oscilante das peças está em sintonia com o tema fundamental do jogo de poder que permeia os conflitos desenvolvidos. Sobre os aspectos temáticos, podemos, ainda, apontar para o que foi descrito como os temas favoritos da obra pliniana. Para Szoka e Bratcher (1988) trata-se da procura da liberdade individual e do conhecimento espiritual, a dificuldade de comunicação entre os indivíduos e a revolta contra as regras sociais. Guidarini (op. cit., p.42) considerou como constantes temáticas da obra pliniana, sobretudo, o interesse pela “pessoa humana da ralé urbana” acuada pelo sistema; a ausência de soluções no universo de cada peça; personagens que não se portam como símbolos do povo; e o interesse do autor em comunicar-se com o público. Ou seja, a obra de Plínio Marcos, de extrema riqueza, nos encaminha ainda para discussões sobre fé e espiritualidade, a incomunicabilidade humana, a desesperança da 96 sociedade moderna, além de questões complexas que envolvem o nacional e o popular na cultura brasileira. Desse modo, não foram poucas as influências apontadas e as semelhanças traçadas entre suas obras e demais artistas. Influências e antecedentes Em relação a certas características da obra de Plínio são apontadas influências estrangeiras, do teatro mundial, especialmente a respeito do que existiria de “universal” em suas peças. O questionamento da prostituta Neusa Sueli, quando se indaga “Será que somos gente?”, se aproximaria, por exemplo, do existencialismo Sartreano. Décio de Almeida Prado, sobre Navalha na carne, peça em que três personagem se agridem mutuamente trancados num quarto de pensão, afirmou que “sem nenhum intuito de ironia ou menosprezo, é uma espécie de ‘Huis-Clos’ dos pobres”. De fato, a expressão “L’enfer, c’est les autres” (O inferno são os outros), da peça Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre, parece se adequar bastante ao universo pliniano. 134 São nítidas também as semelhanças de suas peças com o Teatro do Absurdo de um Fernando Arrabal ou Samuel Beckett, sobretudo em determinada etapa de sua carreira – como será descrito no capítulo 2 –, assim como com nihilismo do moderno teatro americano, especialmente História do Zoológico (Zoo Story), de Edward Albee. Com apenas dois personagens em um único cenário, a peça que mostra o interminável diálogo – às vezes banal, outras surreal, muitas vezes violento – entre um vagabundo e um jovem escritor burguês e pai de família num banco de praça, foi considerada uma clara influência, por exemplo, para Dois perdidos numa noite suja .135 Outra referência foi apontada por Kátia Carvalho da Silva (2001), que localizou na adaptação cinematográfica de A Navalha na carne (dir. Braz Chediak, 1970) e, consequentemente, no texto de Plínio Marcos, marcas e traços que fazem evocar os cultos e as estratégias que figuram na ficção decadentista. A autora traçou paralelos entre os personagens 134 PRADO, Décio de Almeida. A prospecção de “A Navalha na carne”. O Estado de São Paulo, São Paulo, 1 out. 1967. In: MARCOS, Plínio. A Navalha na carne. São Paulo: Senzala, 1968. 135 Zoo Story foi montada pelos alunos da Escola de Artes Dramática no começo dos anos 60 e, aparentemente, também por uma companhia estrangeira (com o ator Ben Gazarra no elenco) no Teatro Municipal de São Paulo. De fato, em 1966, Emílio Fontana, amigo de Plínio, montou o texto no mesmo palco do Ponto de Encontro, na Galeria Metrópole, onde Dois perdidos numa noite suja estrearia no mesmo ano. Em 1967, a peça de Plínio Marcos era apresentada em uma programa duplo no Teatro da Rua (Rua Augusta, 2203, São Paulo) juntamente com a peça de Edward Albee. 97 do filme / peça e as figuras típicas do fenômeno estético-existencial que dominou parte da Europa Ocidental nos anos finais do século XIX, como o dândi, o andrógino e a prostituta, além de ver no “quarto-estufa” em que se passava a ação, semelhanças com o palácio artificial decadentista. 136 Em relação às influências nacionais, Plínio Marcos, como todo o teatro brasileiro que se seguiu a sua descoberta em 1943, foi obviamente influenciado por Nelson Rodrigues. É famosa a história de que quando Pagu leu pela primeira vez Barrela, falou para Plínio que seus diálogos eram mais fortes do que os de Nelson Rodrigues. O jovem autor teria respondido: “Quem é Nelson Rodrigues?”. Posteriormente, Plínio admitiria a influência do “pai do teatro brasileiro moderno”, nem tanto por suas peças, mas especialmente pelas crônicas “A vida como ela é”, que Nelson começou a publicar a partir de 1951, e o jovem dramaturgo santista lia sem saber que era o autor. Na década de 60, ao contrário da maior parte dos jovens e engajados dramaturgos de sua geração, o autor de Navalha na carne tornou-se muito amigo do “reacionário” Nelson Rodrigues, de quem chegou a ser apontado como sucessor. 137 Algumas características de Plínio Marcos, como o uso de gírias e palavrões e a presença de personagens típicos de um imaginário brasileiro popular e urbano (o malandro, e a mulher do malandro, o imigrante que se dá mal na cidade grande, o vagabundo espertalhão), também já estavam presentes em certos aspectos no teatro de Nelson Rodrigues. 136 Apesar da análise detalhada e cuidadosa da autora, guiada por um “olhar semiológico”, e da pertinência de algumas de suas considerações, discordo da maior parte de suas conclusões. Ao ignorar o contexto do cinema e do teatro brasileiro quando a obra foi realizada, deixar de investigar as características do teatro de Plínio Marcos e não analisar com mais profundidade o próprio filme de Chediak (se retendo primordialmente nos diálogos), suas aproximações resultam apressadas e superficiais. Diversas características do decadentismo apontadas pela própria autora são radicalmente opostas às do filme de Chediak e da peça de Plínio Marcos, tais como o “caráter de ourivesaria e obsedante preocupação estilística”, os preciosismos de linguagem, o tom de bon vivant de alguns personagens e o clima refinado e exuberante. 137 Algumas semelhanças entre os dois podem ser observadas no próprio desenvolvimento de carreiras simultâneas de jornalista e dramaturgo, com pela rica produção tanto de crônicas quanto de peças, além do grande interesse pelo futebol (Nelson com seu Fluminense, Plínio Marcos com o Jabaquara F.C., de Santos). A relação entre os dois se aprofundou nos anos 60, quando Nelson deixou de ser uma referência para a nova geração de dramaturgos. Nas palavras de Plínio: “Eu gosto muito do Nelson Rodrigues. Era uma pessoa ext raordinária. [...] O problema é que ele fez a revolução no teatro brasileiro, esqueceram isso de sacanagem, porque ele não queria ser filiado à esquerda”. o autor maldito disse ainda que o problema do Nelson era “o charme”, na vontade de ficar se comparando com os outros autores, especialmente quando era criticado. Segundo Plínio, Nelson disparava contra todos: “Quero que o Vianinha venha comer alpiste na minha mão. O Boal era muito melhor quando copiava meus defeitos. O Zé Celso tem a profundidade de uma formiga. E o Dias Gomes não consegue ser melhor nem na casa dele, porque tem a Janete Clair”. Apesar da amizade, Nelson não deixou de disparar também contra Plínio Marcos no episódio em que ele liderou o protesto contra a novela Cabana do Pai Tomás (TV Tupi, 1969), na qual o ator Sérgio Cardoso, com o rosto pintado, interpretava o papel de um negro. Na crônica Furioso com o sucesso alheio, Nelson acusava Plínio de querer fingir uma luta racial no Brasil por inveja do sucesso de Sérgio Cardoso na novela (RODRIGUES, 1996, p.129). 98 Dias depois da morte de Plínio, Carlos Heitor Cony publicou uma crônica na qual manifestava sua admiração pelo dramaturgo e traçava comparações com Nelson Rodrigues: Eles viram a comédia humana em forma de tragédia, Nelson atingindo o universal, Plínio se detendo no local. O primeiro às voltas com a classe média, serviçal histórica das classes superiores da sociedade. O segundo na ralé, nos subúrbios da marginalidade. Na linguagem, o pudor de Nelson que evitava o palavrão. Em Plínio, a escancarada violência verbal do nosso tempo. Nelson sofria e fazia seus personagens sofrerem porque aspirava à dignidade e, em alguns casos, à santidade. Seu universo não conhecia a fome. Plínio desprezava a dignidade e se lixava para a santidade. A fome e a miséria, física ou moral, substituíam os valores burgueses da obra de Nelson. 138 Houve ainda diversos outros antecedentes da obra de Plínio Marcos na literatura brasileira, como escritor João Antônio, revelado em 1963 e de quem Plínio se aproximava pelos personagens marginais, pelo retrato sujo da cidade de São Paulo e pelo uso de uma linguagem coloquial; além, por exemplo, de Carolina Maria de Jesus, catadora de papel da antiga favela do Canindé, que publicou, em 1960, o livro Quarto de despejo. 139 Ou seja, mais do que tentar identificar precursores, antecedentes ou influências, é importante perceber o contexto cultural que se esboçava desde o pós Guerra, marcados pela crescente seriedade dos temas, pelo apelo do nacional-popular e pela politização e interesse social. No capítulo seguinte serão brevemente caracterizadas as relações entre o teatro e o cinema brasileiro nas décadas de 50 e 60 – sendo necessário, para isso, uma breve recapitulação – como forma de relacionar a obra de Plínio com o contexto do teatro brasileiro da época, destacando, especialmente, a “dis-sintonia” que marcou sua trajetória. Por outro lado, para abordar os filmes baseados em suas obras, serão discutidas as razões que despertaram o interesse de cineastas e diretores por seus textos, e também como essas mesmas adaptações cinematográficas se encaixavam na trajetória mais ampla do cinema nacional. Por último, se foi apenas esboçada uma reflexão sobre as diversas características do universo pliniano, nos capítulos seguintes que irão abordar as diferentes adaptações cinematográficas das obras de Plínio Marcos, os aspectos temáticos, ideológicos e formais específicos de cada peça ou texto que serviu de fonte para esses filmes serão aprofundados. 138 CONY, Carlos Heitor Cony. Folha de S.Paulo, 22 nov. 1999. Aos 26 anos João Antônio publicou seu primeiro e elogiado livro Malaguetas, perus e bacanaços, sendo imediatamente consagrado. Já Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, era uma compilações de trechos de seus diários, onde contava sua vida, seus sonhos e seu dia-a-dia de mulher negra e pobre. Recentemente o docu-drama em curta-metragem Carolina (dir. Jeferson Dé, 2003) abordou sua vida. 139 99 100 2. PALCOS E TELAS Theatro e o cinematographo. 140 A longa tradição de diálogo entre o teatro e o cinema no Brasil data desde a chegada do cinematógrafo ao país, em 1896, quando, para conquistar popularidade depois do interesse inicial, o novo invento não deixou de roubar diversos predicados do teatro, que era então o divertimento preferencial do público. Esse “empréstimo” pode ser notado, por exemplo, em dois dos principais “gêneros” da produção cinematográfica brasileira de ficção da primeira década do século XX, o filme cantante (nos quais famosos cantores do teatro lírico dublavam as canções dos filmes, ao vivo, atrás da tela) e a revista de ano filmada (que se aproveitava de um gênero teatral popular, mas já decadente àquela altura). Se o cinema esteve inicialmente associado à linha de divertimentos populares e de espetáculos de feira (que incluía o teatro popular), a aliança com um teatro de maior “nível” também foi uma forma buscada para angariar prestígio à atividade, como no caso dos film d’art franceses. 141 No Rio de Janeiro, entre 1907 e 1911, houve um grande desenvolvimento da atividade cinematográfica (chamado na época de “a febre do cinematógrafo”), com o crescimento do número de salas fixas de cinema e o conseqüente aumento da produção de filmes brasileiros. 142 Passado este momento, diante de fatores diversos como a disjunção de interesses entre produtores e exibidores com o surgimento do distribuidor de películas estrangeiras e a organização industrial do cinema nos EUA a partir de 1912, o mercado assumiu uma nova feição (SOUZA, J, 2004, p.102-103). Um dos efeitos desse processo foi a drástica diminuição da produção de filmes brasileiros e, posteriormente, a crescente 140 Pelo foco de interesse e os limites da dissertação, este relato se concentra sobretudo no universo do Rio de Janeiro e São Paulo, mas sem com isso desconsiderar a importância, além das diferenças e peculiaridades, do desenvolvimento do teatro e do cinema brasileiro nas demais regiões do país. 141 Realizados nas primeiras décadas do século XX, estes filmes eram anunciados como filmagens de “peças escritas pela Société Cinématographique des Auteurs et Gens de Lettres e representadas pelos primeiros artistas dos primeiros teatros parisienses” (SOUZA, J., 2004, p.299), sendo parte de uma ampla estratégia de conquista do público burguês para o cinema. 142 A historiografia clássica consagrou esse período como a Bela Época do Cinema Brasileiro (ARAÚJO, 1985), mas conforme estudos recentes (BERNARDET, 1995, SOUZA, J., op. cit.), o filme brasileiro continuou marginalizado no seu próprio mercado, representando uma pequena parcela dos filmes exibidos, produzidos principalmente na França, Itália, Dinamarca, Alemanha e Estados Unidos. 101 hegemonia do cinema americano, que tomaria definitivamente o lugar do filme europeu durante a crise decorrente da Primeira Guerra Mundial. Enquanto isso, o teatro permaneceria como o segmento mais vigoroso do ramo de diversões populares, mesmo que sem o esplendor de outrora. Passada a época das óperas, operetas, revistas e burletas, as revistas musicais com o moderno espírito do show é que se tornariam os grandes sucessos, principalmente tomando o carnaval como tema e a marchinha como trilha. A pequena elite, por outro lado, continuaria se satisfazendo em viagens pela Europa ou com as turnês de companhias européias ao Brasil. A partir dessa época, o apoio mútuo entre o cinema e o teatro se materializaria tanto nos locais de exibição, os cine-theatros que alternavam as duas atividades, como também no próprio espetáculo, com o casamento das duas artes nos chamados espetáculos de palco e tela. Essas duas experiências seriam a tônica, não a exceção, do teatro e do cinema brasileiro até a chegada e consolidação do filme sonoro. Ao longo também da década de 20, enquanto a dinamização das revistas musicais com atores as encaminhava para os shows de cantores, a comédia passou a dominar os palcos brasileiros, através de uma geração privilegiada de grandes astros, como Leopoldo Fróes, Jaime Costa e Procópio Ferreira. 143 A principal característica do que ficou conhecido como esse “teatro para rir” era permitir que os primeiros atores, verdadeiros ídolos populares, dispusessem de um esboço de texto sobre o qual projetar sua personalidade. A peça era um mero apoio para a improvisação com abundância de “cacos”, numa época em que o papel primordial do “encenador” era simplesmente determinar as marcas dos atores, e quando uma figura essencial do espetáculo era o “ponto”. 144 Dessa forma, permanecia sempre em primeiro plano a figura do astro, senhor absoluto do palco – e muitas vezes também das companhias, das quais costumava ser empresário ou dono (MAGALDI, 2001, p.194-195). 143 Com cada vez mais números musicais – mais luxuosos e requintados –, a revista se encaminhou para os shows de cassino nas décadas de 30 e 40, e para os shows de boates, nas décadas de 50 e 60. Além disso, face ao crescimento e a popularização do rádio nos anos 30 e ao desenvolvimento da indústria fonográfica, o teatro perdeu o papel de divulgador da música popular, enquanto o fenômeno novo dos programas de auditório radiofônicos substituiria gradativamente o teatro de revista no contato direto entre o cantor e o público. 144 O ponto era o responsável por ler em voz baixa todo o espetáculo para orientar o elenco que diante da mudança constante de peças, poucas vezes tinha o texto decorado nas primeiras apresentações. Conforme Décio de Almeida Prado (2003, p.19), “alguns espetáculos extras de Leopoldo Fróes, famoso por sua presença de espírito dentro e fora de cena, não puderam ser repetidos, apesar do sucesso, simplesmente porque o ator já pouco se lembrava do que dissera na noite anterior”. 102 A hegemonia do teatro na preferência do público somente seria ameaçada com o advento do filme sonoro e sua consolidação no Brasil, entre o final dos anos 20 e meados da década de 30. A partir desse momento, com o cinema se impondo definitivamente como principal divertimento popular, auxiliado pelo crescimento do circuito e o barateamento dos ingressos, o espetáculo teatral se encaminharia para um processo gradativo de elitização nas décadas seguintes. 145 Por último, é importante chamar atenção para o fato de que tanto o teatro quanto o cinema permaneceram ausentes dos eventos da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 1922, marco do modernismo nas artes brasileiras, especialmente na literatura e nas artes plásticas. Ficando de fora desse processo, se tornou corrente a idéia de que o teatro brasileiro só atingiu a modernidade na década de 40, enquanto o cinema brasileiro moderno apenas seria configurado a partir dos anos 50. Entretanto, é possível refletir se esse fato talvez se deva menos à inexistência de aspectos modernos no teatro e no cinema brasileiro até esses marcos definidos pela historiografia, do que ao desprezo da intelectualidade e da elite pelos filmes e peças realizados até então no país. 146 Palcos: o astro sai dos holofotes e o autor e o diretor entram em cena. Segundo Décio de Almeida Prado (2002, p.14), o teatro profissional existente no Brasil nos anos 30 continuou sobrevivendo nos “limites estreitos da comédia de costumes”, que já teria se esgotado após o surto criador da década de 20. Porém, com o cinema se tornando indiscutivelmente a principal opção de lazer do grande público, a única possibilidade do teatro passava a ser não enfrentá- lo no campo que ele se tornava imbatível. Desse modo, 145 O movimento de barateamento dos ingressos no circuito carioca teve início em 1932 e continuou até 1936, com os cinemas dos bairros e depois da própria Cinelândia progressivamente reduzindo o preço dos ingressos para os tetos praticados no início da década de 20. Em 1935, o cinema Pathé estendeu o preço do balcão – considerado a 2º classe – à platéia. Foi o fim das separações econômicas dentro das salas e o teatro e o cinema, no aspecto do local de encenação/exibição, se diferenciariam cada vez mais (GONZAGA, 1996, p.166). 146 Enquanto na Europa o cinema foi logo descoberto pelas vanguardas artísticas como o expressionismo alemão, o impressionismo francês, o construtivismo soviético ou o surrealismo, nas primeiras décadas do cinema brasileiro foram raros os exemplos de diálogo com o modernismo e a tendência na historiografia clássica foi considerar o célebre Limite (dir. Mário Peixoto, 1931) como a “única incursão do cinema mudo brasileiro na vanguarda estética” (Galvão, 1984), além de São Paulo, sinfonia de uma metrópole (dir. Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig, 1929). Por outro lado, desde o seu surgimento, a atividade cinematográfica em sua essência – a realização de qualquer filme ou o simples ato de ir ao cinema – já se configurava como um dos ícones da “invenção da vida moderna” (CHARNEY; SCHWARTZ,1995). 103 em contraponto ao “teatro para rir” profissional, ainda predominante, mas cada vez menos significativo no circuito de diversão popular, surgiria o “teatro sério” amador, com apoio decisivo do Estado (Ibid, p.37-38). Foi através da ação renovadora do amadorismo, esboçada pelo Teatro de Brinquedo, criado por Eugênio e Álvaro Moreyra ainda em 1927, que o teatro brasileiro ganhou consistência nas décadas de 30 e 40, por meio de uma prática intensa, inclusive com o apoio do Estado Novo. Desse modo, as experiências do Teatro do Estudante do Brasil (1938), do Teatro Universitário (1939) e da companhia Os Comediantes (1938) se tornaram marcos fundamentais na busca da “fixação de um teatro com padrão artístico”. Segundo Gustavo Dória, um dos participantes desse processo, no Rio de Janeiro de então, capital cultural do país e de onde partiam companhias em excursões para outras cidades e estados, Somente o povo, em suas camadas abaixo da média freqüentava as nossas salas de espetáculo, que se resumiam ao teatro de revista, localizado na Praça Tiradentes, ou então ao único teatro estável de comédia que era o Trianon, situado na Avenida Rio Branco. O Trianon, com as suas comediazinhas, que se sucediam quase que semanalmente no cartaz, [...] cuidavam rotineiramente dos pequenos problemas sentimentais e domésticos das famílias mo destas, moradoras dos subúrbios (DÓRIA, 1975, p.20-21). Ou seja, a renovação dos amadores foi almejada pelos “componentes da média burguesia que não se encontravam nos espetáculos que lhes eram oferecidos, geralmente onde não havia qualquer identidade entre os seus anseios, os seus problemas e o que lhe aparecia no palco” (Ibid, p.81). Antes da explosão dos amadores, sem existir um teatro profissional, em atividade regular que satisfizesse à classe média ou à elite, a chamada “sociedade” e os “intelectuais” contentavam-se com as temporadas de teatro francês ou,esporadicamente, as do teatro português ou italiano (Ibid, p.22-23). Por outro lado, não se pode deixar de sublinhar tanto avanços ocorridos também no teatro brasileiro profissional ao longo da década de 30, por espetáculos e por autores como Joracy Camargo (Deus lhe Pague, 1932), Oduvaldo Vianna (Amor, 1934) ou Renato Viana (Sexo, 1934), quanto às dificuldades decorrentes das restrições impostas pela pesada censura do Estado Novo a partir de 1935. 147 147 A relação do teatro brasileiro com o Estado Novo foi importante e contraditória, mas obviamente inserida no projeto mais amplo de intervenção estatal na cultura pelo governo Vargas. Até 1937, quando foi criado o SNT (Serviço Nacional de Teatro), excetuando mecanismos repressivos, o Estado jamais havia criado formas de participação contínuas no setor teatral (Pereira, V., 1998). Por outro lado, em sintonia com o populismo, Getúlio Vargas prestigiava o “teatro para rir” e era até certo ponto complacente com sua caricatura nas revistas. Por outro 104 Em 1943 ocorreu o que a historiografia oficial convencionou considerar como o marco da renovação moderna dos amadores, com a montagem no Teatro Municipal do Rio de Janeiro de O Vestido de Noiva pelo grupo Os Comediantes. Considerada como fundadora do teatro brasileiro moderno, a encenação da segunda peça de Nelson Rodrigues pelo diretor polonês Zbigniew Ziembinski (no Brasil desde 1941, fugindo da guerra na Europa), foi aclamada como um “milagre”, explicado “pelo encontro entre um drama irrepresentável se não em termos modernos e o único homem porventura existente no Brasil em condição de encená- lo adequadamente” (PRADO, op.cit., p.40). Dessa maneira, o teatro brasileiro, ao encontrar-se talvez pela primeira vez à altura do que já era visto nos palcos estrangeiros, fez com que o país – na verdade, a elite – descobrisse “essa arte julgada até então de segunda categoria, percebendo que ela podia ser tão rica e quase tão hermética quanto certa poesia ou certa pintura moderna” (Ibid). Não considerando a montagem de Vestido de Noiva uma ruptura radical, mas sim um ponto de culminância com as experiências anteriores de renovação do teatro brasileiro 148 , é possível apontar também para outras colaborações nesse processo ao longo da década de 40, tenha sido através de autores como Joracy Camargo, Abílio Pereira de Almeida ou Paschoal Carlos Magno, ou de cenógr afos como Santa Rosa. O próprio teatro de humor também passou por mudanças, como na modernização da comédia carioca efetuada por Silveira Sampaio. Da mesma forma, não se deve omitir a permanência de espetáculos populares como os do teatro de revista, lembrando, por exemplo, da Companhia de Revistas Walter Pinto, surgida em 1939 e que atravessou com sucesso as duas décadas seguintes. 149 lado, o Ministro Gustavo Capanema em sua gestão no Ministério da Educação e Saúde Pública (1934-1945), cercado de intelectuais de renome como Carlos Drummond de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Mário de Andrade ou Manuel Bandeira, prestou grande apoio às companhias amadoras, gerando inúmeros protestos dos profissionais. Essas reclamações, mesmo de forma bem-humorada, ainda podiam ser notadas em 1949, como numa canção da revista Está com Tudo e não está prosa (Walter Pinto e Freire Júnior): “O Serviço de Teatro / Está levando o diabo a quatro / A mercê dos amadores, / Que tem outras profissões / Além das subvenções / Que lhes dá este Serviço. / Ninguém tem nada com isso: / Pensem bem e me dirão: / Só paga imposto real / O teatro nacional. / E os seus profissionais, / Triste sorte, triste sina, / Continuam lá na esquina, / Passando à média e pão (In: FREITAS, 2001/2002, p. 26-27). 148 Conforme Aline Andrade Pereira (2004), mesmo sendo aclamada na época como o marco do “nascimento” do teatro moderno brasileiro, na verdade quem reconheceu Vestido de Noiva como excepcional e revolucionária foram os críticos literários e/ou críticos teatrais de uma nova geração; “os primeiros preocupados com uma arte que refletisse a elite, e os segundos, empenhados em uma mudança de comportamento por parte da crítica”. Ou seja, ao se referir à montagem da peça de Nelson Rodrigues como original e inédita, se alinhando ao novo tipo de criação teatral (primordialmente “séria”, em contraponto ao “teatro para rir”), os críticos construíam um lugar de autoridade para o próprio grupo, se legitimando também como uma crítica moderna. 149 Mesmo respeitando as convenções da revista, o empresário deu uma nova feição ao gênero, imprimindo-lhe um ar de modernidade, sobretudo pelo aparato espetacular (efeitos de luz e sombra, cascatas, escadas e passarelas monumentais no palco, coreografias elaboradas), além de “uma linguagem cênica mais sofisticada para atrair um público burguês, sem abrir mão das camadas mais populares.” Sob a influência dos musicais de 105 No final dos anos 40, como decorrência da renovação amadora, surgiria o novo profissionalismo, tentando conter em seus mais severos limites a flama amadora, traduzir em dados orçamentários as conquistas estéticas e evoluir das temporadas fortuitas para a continuidade das companhias permanentes (PRADO, op.cit.,p.41). Seu principal símbolo foi o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), criado em 1948, abrindo espaço para o surgimento de diversas companhias modernas na década de 1950. Mesmo aumentando o preço dos ingressos, o TBC atraiu não só a elite ao teatro, como também a classe média, que podia finalmente assistir no Brasil e em português aos grandes mestres do teatro mundial (e um ou outro autor nacional), em espetáculos com direção e interpretações de “alto nível”. Embora o centro de criatividade passasse do Rio de Janeiro para São Paulo, o TBC não investia numa estratégia muito diferente da que era posta em prática na capital federal pelas companhias profissionais que incorporavam gradativamente avanços dos amadores, que era a aliança de textos consagrados e encenadores estrangeiros. No Teatro Brasileiro de Comédia “a diferença seria antes de caráter empresarial, consistindo numa economia interna mais perfeita e num considerável salto quantitativo” (PRADO, op.cit., p.43). Dessa maneira, a companhia paulista manteve-se durante uma década como o denominador comum do palco brasileiro e seu mais alto padrão de qualidade. Uma grande mudança que ocorria também no teatro brasileiro era a passagem do comando do espetáculo do primeiro ator para o encenador, mas cujo poder ele não exercia em benefício próprio – “acima de tudo e de todos, conforme a lição de Stanislávski e de Copeau, brilhava, inatingível, o texto literário” (Ibid,p.47). 150 Nesse sentido, não se deixava de alertar para a necessidade de também serem encenados originais brasileiros – não tendo sido outro o conselho de Louis Jouvet a Os Comediantes, levando-os a Nelson Rodrigues –, mas a pressuposição da superioridade cultural estrangeira cada vez mais motivava os empresários à encenação quase exclusiva de Hollywood, tudo se tornava mais “bonito” – tanto o cenário, as roupas e, principalmente, as mulheres – dando passagem para “a aparição do maior símbolo do sonho e da fantasia do teatro de Walter Pinto, a vedete” (FREITAS, 2001/2002, p.29-30). 150 Nesse processo ocorreu um abrupto corte histórico que cindiu duas gerações de atores – de um lado os amadores, quase que exclusivamente formado por jovens abaixo dos trinta anos –, e do outro, astros acostumados com o ponto (que viria a ser abolido pelos amadores), desabituados a ensaios exaustivos e defensores do “caco”. Diferentemente dos veteranos, para essa nova geração de atores, a dignidade do intérprete residia justamente no respeito ao texto, sobretudo os clássicos. 106 textos de autores estrangeiros, tanto por convicções pessoais quanto pelo interesse em corresponder às expectativas de uma parcela do público e da crítica. 151 Mesmo alguns dos mais reconhecidos autores brasileiros das décadas de 40 e 50, como Guilherme Figueiredo, Pedro Bloch ou Henrique Pongetti, seriam marcados mais pela busca de temas universais, que os colocaria à altura dos autores estrangeiros, do que pela tentativa de construção de uma dramaturgia caracteristicamente brasileira. Segundo Décio de Almeida Prado (op. cit., p.51), o próprio Nelson Rodrigues, apesar de seus personagens “brasileiríssimos” e seus diálogos recheados de gírias e expressões coloquiais, “não permaneceu de todo imune à tentação universalizante”, sobretudo em suas obras iniciais, notadamente suas peças psicológicas e suas peças míticas. Telas: dos estúdios aos temas nacionais. O cinema brasileiro de ficção viveu entre as décadas de 30 e 50 o apogeu do cinema de estúdio no país, nos diferentes empreendimentos da Cinédia (1930), Atlântida (1941) e Vera Cruz (1949). Segundo João Luiz Vieira, “o modelo hollywoodiano de sucesso comprovado definiu-se, através da década de vinte, como o paradigma inquestionável diante do qual todo e qualquer impulso criativo em cinema deveria se confrontar”. 152 A Cinédia inaugurou o cinema industrial no Brasil justamente no momento da passagem do filme mudo para o sonoro, que embora determinasse o fim das iniciativas efêmeras e dispersas da década de 20, por outro lado gerava a (vã) euforia da possibilidade de enfrentamento do cinema americano dominante em nosso próprio território. 153 Se o projeto inicial da Cinédia era calcado nos preceitos da revista Cinearte, tendo como objetivo um cinema de estúdio, sofisticado, luxuoso, moderno e ao nível de Hollywood, a companhia acabou encontrando alguns dos seus principais sucessos na aliança com a música popular (consagrando os musicais carnavalescos) e com o teatro popular (importando muitos 151 Simbolizando o pensamento elitista de parte da sociedade da época, Carlos Lacerda, além de político, também dramaturgo, em entrevista publicada no Diário de Notícias em 2 de junho de 1946, afirmava: “Prefiro (Bernard) Shaw mal representado a qualquer “chanchada” bem urdida” (PEREIRA, V., op.cit.). 152 VIEIRA, João Luiz. Espelhos embaçados: o cinema de estúdio no Brasil, 1930/50, Rio de Janeiro, [199?]. Mimeografado. 153 A fundação dos estúdios de Adhemar Gonzaga coincidiu também com a Revolução de 30 e com o projeto nacionalista de Getúlio Vargas, quando pela primeira vez o governo apoiou o cinema, tenha sido através de uma legislação pioneira ou de uma intervenção mais direta, nesse caso, em relação ao cinema educativo, em sintonia com o projeto cultural e educativo do Estado Novo. 107 de seus astros e diretores). O primeiro filme da célebre trilogia inicial dos musicais carnavalescos – Alô, alô, Brasil (dir. Wallace Downey, 1935), Estudantes (dir. Wallace Downey, 1935) e Alô, alô, carnaval (dir. Wallace Downey e Adhemar Gonzaga, 1936) – teria surgido, segundo José Ramos Tinhorão (1972), no momento em que a revista virava show, se inspirando no espetáculo Alô... Alô... Rio?, de Jardel Jercolis, encenado em 1934 no Teatro Carlos Gomes. 154 Em outra chave, a popularidade do teatro nacional também era imediatamente aproveitada pelos filmes brasileiros, chegando a alimentar os temores dos defensores do cinema mudo pela “volta à teatralidade” decorrente da “praga dos talkies”, como acusavam os redatores do jornal O Fan, editado pelo primeiro clube de cinema do país, o Chaplin Club. O filme Alô, alô Brasil, por exemplo, foi acompanhado em parte de sua carreira pelo complemento Procopiadas com “dois impagáveis monólogos de Procópio Ferreira” (BERNARDET, 1979), provavelmente registrando em forma de “teatro filmado” o que o grande astro fazia com enorme sucesso nos palcos brasileiros. 155 Máximo Barro (2001, p.51) reforçou a influência no cinema brasileiro dos anos 30 do teatro popular: Grande parte da obra de Mesquitinha, Lulu de Barros e outros cariocas, nos anos 30, são ‘adaptações’ de peças teatrais que haviam carregado público ao teatro: O bobo do rei, Bonequinha de seda, Maridinho de luxo, Samba da vida, Bombonzinho, Futebol em família, Anastácio, Aves sem ninho, Onde estás, felicidade? e O simpático Jeremias. Nesse sentido, o que se constituiria uma das “síndromes” dos cineastas brasileiros da década de 30 seria “a teatralização representada por marcações solenes, olhares ‘psicológicos’ 154 O filme Alô, Alô, Carnaval, por exemplo, se passa justamente num ambiente luxuoso – como o dos cassinos para onde esses shows migravam –, no qual um fiapo de história (a tentativa de dois pobretões montarem uma revista musical) servia para os improvisos dos humoristas teatrais Barbosa Júnior e Pinto Filho e era entremeada por inúmeros números musicais de cantores de sucesso nas revistas da Praça Tiradentes e no Rádio. 155 Com o advento do som, muitos críticos e cineastas temeram pela volta do “teatro filmado”, nos termos dos então condenados films d’art dos primórdios. De fato, na passagem para o cinema sonoro, tanto por questões técnicas (uma maquinário maior e mais pesado) quanto pelas incontáveis adaptações de obras teatrais, aproveitando o amplo repertório de peças clássicas ou de sucessos contemporâneos, foi apontado um possível “retrocesso” de uma linguagem que atingira seu auge no cinema mudo no final da década de 20. No Brasil, no segundo número de O Fan, de outubro de 1928, um artigo de Octávio de Faria intitulado Contra o Film Falado oferece uma medida do tom dessas críticas em que o teatro representava a exata oposição de tudo que o cinema tinha de autêntico (e puro) e que estaria sendo ameaçado pelo advento do som: “Será que a América não vê que o film falado é uma retrogradação de não sei quantos anos, uma volta aos primeiros dias em que se confundia cinema com filmagem de teatro? Teatro. Aproximação do teatro. Volta à teatralidade. [...] Em uma palavra, que o film falado é um erro, desses mesmos sinistros, sobretudo num momento em que as mais modernas teorias sobre o scenário são pela absoluta supressão dos letreiros, definindo assim cada vez mais o cinema como arte pura, essencialmente visual...” (mantida a grafia original). 108 e ritmo arrastado, provenientes do teatro de Procópio Ferreira ou Jaime Costa, inspirado em Itália Fausta ou Leopoldo Fróes, cuja fonte era Eleonora Duse, Sarah Bernhardt, Lavedan e a Comédie Française” (BARRO, 2001). Por outro lado, o cinema brasileiro só ganhou ao aproveitar a espontaneidade, o histrionismo e a agilidade verbal, enfim, o talento dos atores criados no tal “teatro para rir”, como Jaime Costa em Samba da vida (dir. Luis de Barros, 1937) ou Mesquitinha em Maridinho de luxo (dir. Luis de Barros, 1938). Além disso, como desprezar a enorme popularidade de astros dos palcos e rádios, como o casal Gilda de Abreu e Vicente Celestino, protagonistas dos maiores sucessos do cinema brasileiro nas décadas de 30 e 40: Bonequinha de seda (dir. Oduvaldo Viana, 1936) e O ébrio (dir. Gilda de Abreu, 1946). Dessa forma, podemos afirmar que além do sucesso das músicas e dos artistas do rádio, foi o humor de origem teatral, especialmente a partir de uma tradição de comédia do teatro nacional, que sustentou parte do êxito do cinema brasileiro assumidamente popular da década de 30 a 50. A condenada e abundante comicidade, assim como o subestimado teor de crítica social e sátira política das chanchadas cinematográficas (termo também utilizado no teatro), que conheceriam seu auge nos anos 40 e 50, têm muito a ver com um teatro que na revista Para Todos, de 27 de agosto de 1927, o crítico Mário Nunes já condenava: Rir... Rir...Rir... Verdadeira fábrica de gargalhadas... O recorde da graça... O espetáculo mais desopilante... Etc... Etc... Etc... Os cartazes de nossos teatros são todos assim. Das duas uma: ou o nosso público, na opinião das empresas, é parvo, ou os autores brasileiros são os homens mais engraçados do mundo... (apud DÓRIA, op.cit., p.22). Entretanto, se para a Cinédia o investimento nos musicais e comédias carnavalescas se confirmou bem sucedido comercialmente, o objetivo de Adhemar Gonzaga permanecia sendo investir em filmes mais sofisticados, de acordo com suas pretensões iniciais. Essa estratégia que se mostrou aparentemente acertada com o enorme êxito de A bonequinha de seda não logrou o mesmo êxito em outras ocasiões. 156 156 Em comparação com os filmes musicais daquele momento (tanto os da própria Cinédia, como também os “abacaxis” da Sonofilms), uma comédia sofisticada como 24 horas de sonho (dir. Chianca de Garcia, 1941), estréia dos atores Dulcina e Odilon de Morais nas telas, representava um diferencial semelhante ao que as peças da própria Companhia Dulcina-Odilon simbolizavam no panorama teatral profissional da época. Na década de 40, os espetáculos do casal se diferenciavam do “teatro para rir” mais rasteiro por constituírem um “vaudeville bem-acabado” de apuro material ou, ainda, um teatro de boulevard de maior nível, com cenários e figurinos luxuosos. A “diferença flagrante entre o teatro feito por Dulcina e o realizado pelos demais” (DÓRIA, op.cit., p.94) se acentuou quando a atriz-empresária passou a representar originais estrangeiros de autores importantes e a valorizar o papel do encenador. 109 Além da Cinédia, na década de 30 também foram criados outros estúdios como a Brasil Vita Filmes (1935), da atriz Carmen Santos, ou a Sonofilms (1936) do empresário Alberto Byington Jr. Apesar das diferenças entes eles, todos foram afetados pelas dificuldades inerentes ao mercado dominado pelo filme americano, por problemas na importação de equipamentos e película virgem com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, além de complicações de outras ordens. Desse modo, o cinema brasileiro entrou em grave crise no começo dos anos 40, com a paralisação quase total da produção de longas- metragens pelos estúdios surgidos na década de 30. Por outro lado, em 1941, antes ainda do final do conflito mundial, surgiria a Atlântida, criada pelo homem de cinema Moacyr Fenelon (vindo da Sonofilms, arrasada por um incêndio no ano anterior), pelo fotógrafo Edgar Brasil, pelo advogado Arnaldo de Farias e pelos jornalistas Alinor Azevedo e José Carlos Burle. A empresa pretendia ser uma produtora de filmes independentes, realizando um cinema de cunho social. “Através de um novo sócio, o Conde Pereira Carneiro, dono do Jornal do Brasil, a Atlântida conseguiu o capital necessário para construir um estúdio algo improvisado, comprar equipamentos de segunda mão e partir para a produção de cine-jornais e documentários”. 157 O manifesto de criação da Atlântida dava o tom das pretensões do estúdio, apontando para a preocupação social e o nacionalismo latente de suas intenções: “Seremos uma grande empresa brasileira, começando por valorizar nossos temas, no que possuímos de mais belo, nos ambientes pictóricos e regionalistas, nos aspectos sociais do homem brasileiro, na sua história e seus costumes, e na psicologia desse homem”. 158 O primeiro longa- metragem de ficção realizado pelo estúdio apontaria na direção sugerida pelo manifesto: Moleque Tião (dir. José Carlos Burle, 1943) livremente baseado na vida do ator Sebastião Prata, o Grande Otelo. Entretanto, mesmo com o sucesso do filme, diante de dívidas melancólicas que se acumulariam posteriormente, já a partir de Tristezas não pagam dívidas (dir: José Carlos Burle e Rui Costa, 1944), primeira película na qual 157 AUTRAN, Artur. A questão da indústria cinematográfica brasileira na primeira metade do século. Mnemocine: Memória e Imagem. Cinema. História. São Paulo. Disponível em: <http://www.mnemocine.com.br/cinema/historiatextos/arturBras.htm>. Acesso em: 20 nov. 2005. 158 Uma outra versão do manifesto (de tom economicista) foi divulgada por diversos pesquisadores ao longo dos anos (NOBRE, 1955, p.57; VIANY, 1959; CATANI; SOUZA, J., 1983, p.41, VIEIRA, J., 1987, p.154). Entretanto, a que parece ser a versão “verdadeira” foi apresentada no catálogo de mostra sobre Moacyr Fenelon, baseado em pesquisa realizada a partir de seu acervo pessoal (BARRO, 2001). A presença de um trecho dessa versão – exatamente o citado aqui – num texto sobre a Atlântida no álbum de figurinhas Ídolos da Tela, de 1952 (acervo Cinemateca do MAM), parece comprovar a autenticidade dessa versão. 110 Grande Otelo e Oscarito formaram uma dupla, a Atlântida também seguiu o rastro das comédias musicais carnavalescas. Apesar de algumas esparsas tentativas posteriores de realizar filmes “sérios”, foi através das chanchadas que a Atlântida se consagrou e alcançou sucesso comercial. Essa linha seria seguida com mais ênfase após a aquisição da empresa, em 1947, por Luiz Severiano Ribeiro Jr., principal distribuidor cinematográfico do país, e nos filmes dirigidos por Watson Macedo e, posteriormente, Carlos Manga. Nessa mesma época, com a vitória aliada na Segunda Guerra, o Brasil saía da ditadura do Estado Novo alimentado pela política de substituição de importações, ingressando num processo de industrialização crescente. A burguesia paulista enriquecida, através de “industriais amadores das artes” (SOUZA, C., 1998, p.112), se encarregou de transformar São Paulo, motor econômico da nação, também na capital cultural do país, tanto por meio de um mecenato cultural, como pela possibilidade de diversificar seus negócios. Nesse ambiente surgiu a Companhia Cinematográfica Vera Cruz em 1949, liderada por Franco Zampari, o mesmo engenheiro que criara o TBC no ano anterior. Além do contexto econômico e cultural já apontado, ambos os projetos tinham em comum a pretensão de produzir tanto espetáculos teatrais quanto filmes à altura de seus equivalentes estrangeiros, ignorando ou desprezando o que era feito até então em São Paulo pelo teatro profissional (teatro de revista, o teatro para rir) e pelo cinema comercial carioca (as chanchadas da Atlântida). 159 Apesar dos resultados econômicos frustrantes e das acirradas críticas aos filmes produzidos, não se pode menosprezar os dividendos gerados pela Vera Cruz. Deve ser destacada, por exemplo, a indiscutível elevação do nível técnico do cinema brasileiro proporcionada pelo estúdio – nos mesmos moldes do que o TBC representou para o teatro brasileiro –, tanto pelos vultosos investimentos, quanto pela contratação de prestigiosos profissionais estrangeiros. Nessas duas experiências, em meio ao aprendizado e ao convívio com italianos, ingleses, russos e alemães, foi formada toda uma nova geração de atores, 159 Um exemplo dessa diferenciação se deu noite de entrega do troféu Índio (criado à imagem e semelhança do Oscar americano) aos melhores do cinema brasileiro de 1952. Nesta cerimônia realizada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e entremeada pela apresentação de árias de óperas, foram oferecidos prêmios de “melhor filme” (Tico-tico no fubá, de Adolfo Celi, produção da Vera Cruz) e “melhor filme carnavalesco” (É fogo na roupa, de Watson Macedo, da Atlântida). 111 diretores e, especialmente, técnicos brasileiros de cinema e de teatro que nos anos seguintes se tornariam nomes importantes para essas duas áreas. 160 Com o aumento da produção de filmes brasileiros, tanto com as populares chanchadas cariocas, quanto com os mais bem acabados filmes dos estúdios paulistas, o cinema brasileiro aparentemente se reerguia da crise no início dos anos 40, constituindo, inclusive, um verdadeiro estrelismo (star system) do cinema nacional. Mesmo ainda aproveitando humoristas revelados no circo, revistas e shows dos cassinos (como Ankito) ou nos programas radiofônicos (como Zé Trindade), além do elenco estelar de cantores e artistas do rádio, alguns dos maiores astros da Atlântida foram aqueles que se consagraram diretamente nas telas, realizando o sonho de se tornar “artista de cinema”. Surgia um grupo de atores que pela primeira vez trabalhava com enorme sucesso quase que exclusivamente em filmes nacionais, como a eterna mocinha Eliana Macedo, o galã Anselmo Duarte e seu sucessor Cyll Farney, ou o vilão José Lewgoy. Mesmo comediantes como Grande Otelo ou Oscarito, com origens e passagens por picadeiros e palcos, seriam elevados a celebridades através do sucesso das chanchadas nas telas de cinema. 161 Ainda assim, a vedete, por exemplo, continuava sendo uma figura que se projetava no teatro de revista e que o cinema incorporaria aproveitando sua fama, charme e glamour, numa linhagem de Virgínia Lane e Renata Fronzi até Norma Bengell e Irma Alvarez. 162 Por outro lado, mesmo a Vera Cruz, que não deixou de importar atores dos palcos, especialmente do Teatro Brasileiro de Comédia, como Cacilda Becker, Paulo Autran ou Jardel Filho, também tratou de descobrir suas próprias estrelas cinematográficas, como Eliane Lage ou Marisa Prado. 160 Entretanto, o TBC e a Vera Cruz não foram os únicos responsáveis por esse avanço. Além das companhias teatrais que foram formadas por ex-integrantes do Teatro Brasileiro de Comédia, entre 1949 e 1953 também surgiram 20 novas companhias cinematográficas e produtoras no rastro da Vera Cruz, mas além dela, apenas outros dois empreendimentos de vulto sustentados por grupos industriais paulistas foram à frente: a Maristela (1950) e a Multifilmes (1952). 161 Nesse processo, outros artistas formados no “teatro para rir” passaram a atuar mais efetivamente em cinema somente a partir da década de 50, diante da decadência mais acentuada desse tipo de teatro e do grande sucesso das chanchadas cinematográficas. Tanto Procópio Ferreira quanto Dercy Gonçalves, por exemplo, com esparsas atuações em filmes até os anos 40, participaram ativamente de comédias cinematográficas realizadas em estúdios paulistas a partir da década seguinte. Numa entrevista oferecida em 1949, Procópio Ferreira, afirmava que o teatro estava morrendo, pois “a concorrência com o cinema é mais do que um fato, é uma calamidade” (PRADO, 1984, p.14). Mas quem morria (ou se enfraquecia) era, talvez, um certo tipo de teatro ou de comicidade nacional do qual Procópio tinha sido o maior astro, mas que no cinema ainda parecia ter sobrevida. 162 É curioso apontar que o ultimo espetáculo da Companhia de Revistas Walter Pinto, principal empresa do gênero de revista, ocorreu em 1963, um ano após a paralisação das atividades da Atlântida, símbolo das chanchadas cinematográficas, ambas as empresas já sofrendo com a concorrência acirrada da televisão. 112 Se os atores já não vinham apenas de outros meios, os argumentos de boa parte dos filmes brasileiros, fossem paulistas ou cariocas, continuavam tendo origem em peças de sucesso, tanto da nova geração de dramaturgos, como Pedro Bloch, Silveira Sampaio e Abílio Pereira de Almeida – que chegaram a participar efetivamente da produção de filmes –, ou ainda dos antigos e populares comediógrafos como Armando Gonzaga, Gastão Tojeiro, José Wanderley e Mário Lago. Entretanto, a década de 50 seria caracterizada, essencialmente, por uma geração de jovens que marcados pela seriedade e pelo desejo de mudanças, sacud iria definitivamente o panorama do teatro e do cinema brasileiros numa busca pelo que eles consideravam a essência do Brasil, o seu povo. Nos palcos e telas, a redescoberta do Brasil. Na década de 50, as salas de teatro no Brasil encolheram definitivamente. Sem frisas, camarotes, balcões, galerias e nem fosso para orquestra, tanto o número de lugares quanto as dimensões do palco diminuíram. “Na maioria dos casos, não se tratava nem mesmo de salas de espetáculos construídas para tal fim, mas de adaptações um tanto quanto improvisadas, a cujas irregularidades a polícia e o corpo de bombeiros fechavam os olhos” (PRADO, op. cit., p.46). Mesmo a sala do Teatro Brasileiro de Comédia foi construída adaptando um antigo casarão. Mas nessas salas menores seriam permitidas mais liberdades, sobretudo de jovens companhias, como a de dar preferência ao autor brasileiro. O Teatro de Câmera, formado por Lúcio Cardoso, Agostinho Olavo e Gustavo Dória, por exemplo, foi criado em 1947 com a intenção de apresentar somente textos nacionais, pois “na verdade, depois de Vestido de Noiva, tudo voltara ao mesmo marasmo de antes” (DÓRIA, op. cit, p.124). O teatro finalmente aceitara sua posição secundária como diversão popular, “renunciando aos gêneros musicais, mais dispendiosos e lucrativos, para se concentrar no drama e na comédia”. Perdendo o grande público, mas conquistando a elite, o teatro passou a mirar nos pequenos públicos, nos “happy few das artes de vanguarda” (PRADO, op. cit.,p.46). Ou seja, acentuava-se um processo que já vinha se delineando desde a década de 30 de elitização do teatro frente a outras formas de lazer mais populares, como o cinema e o rádio e, em seguida, a televisão. 113 Por outro lado, com o enfrentamento pelos amadores da década de 1940 do preconceito em relação à profissão do ator (uma atividade que até então não era vista com bons olhos), os jovens, principalmente os estudantes, passaram a se envolver cada vez mais com o teatro. É significativo o surgimento a partir daí de diversos cursos e escolas – como a própria Escola de Artes Dramáticas (EAD), criada em 1948 – assim como o prosseguimento dos movimentos amadores através, por exemplo, de iniciativas como o Festival Nacional de Teatro de Estudante, organizado por Paschoal Carlos Magno. Nesse contexto que em 1953 foi fundada em São Paulo a Companhia do Teatro de Arena por José Renato e Geraldo Matheus, diplomados em teatro na primeira turma da EAD, ao lado de Sérgio Sampaio e Emílio Fontana. Aproveitando fundamentos teóricos do teatro de arena e tentando repetir bem sucedida experiência norte-americana que possibilitava grande barateamento das montagens, as primeiras apresentações ocorreram em clubes, fábricas e salões. No ano seguinte a Companhia já se instalaria na sala situada na Rua Teodoro Baima, n. 94, no bairro da Consolação, com seus 150 lugares. Por outro lado, grandes transformações também ocorriam no mundo do cinema. Após a idade de ouro do cinema americano no período entre guerras, a audiência dos filmes nos Estados Unidos e o lucro de suas produções seguiram em declínio, forçando Hollywood a mirar em dois públicos específicos – os adolescentes (que se tornavam o público principal) e os adultos. Para atender esses últimos, crescia o n “cinemas de arte” e de “companhias produtoras independentes”. Uma das principais dificuldades enfrentadas por Hollywood foi o fato de que no contexto do pós-guerra o cinema perdeu a centralidade na sociedade americana e o posto de principal opção de lazer nos Estados Unidos. Além disso, o cinema dos anos 40 também presenciou uma estética regeneradora do realismo de crítica social emergindo em diversas cinematografias. Os EUA não foram exceção e, nesse período, o cinema americano foi marcado pelo surgimento de uma nova geração de cineastas conscientes socialmente, fossem formados no teatro nova- iorquino ou na televisão ao vivo. Além disso, era notável a crescente influência em Hollywood de filmes europeus, especialmente do neo-realismo italiano, a partir do sucesso de Roma, cidade aberta (Roma, città aperta, Itália, dir. Roberto Rosselini, 1945). Entretanto, a grande indústria cinematográfica continuaria ainda perseguindo um público de massa indiferenciado e para isso enveredaria pelos orçamentos espetaculares e apelaria continuadamente para inovações tecnológicas que a televisão não poderia 114 acompanhar. 163 De um modo geral, “Hollywood passou a investir cada vez mais em menos e maiores filmes, alcançando menos e maiores sucessos, mas correndo também menos e maiores riscos” (SCHICKEL, 1992). No Brasil, o cinema, obviamente, também passou por mudanças. No Rio de Janeiro, o circuito exibidor que atingira seu auge em 1954, entrou em retração. A queda de público e de receita seria ainda mais acentuada a partir de 1961. 164 Os filmes exibidos também não eram mais os mesmos e a produção européia passou a ser uma grande influência para o cinema brasileiro. Se em 1945, dos 347 filmes lançados no país, 310 eram americanos, essa proporção de cerca de 90% cairia para 37% em 1959. Ainda assim, apesar de lançar menos filmes, durante alguns anos Hollywood continuou alcançando lucro igual ou até maior do que antes. A crise chegaria ao cinema americano com mais força na década de 60. Em meio às mudanças no universo cinematográfico, o Brasil dos anos 50 continuava vivendo na era de ouro do rádio, com o reinado absoluto da Rádio Nacional desde 1940. Se a chegada da televisão ao Brasil, em 1950, com a inauguração da TV Tupi de Assis Chateaubriand, não modificou significativamente esse panorama, ao final dessa década o meio teria crescido, superado o rádio em investimento publicitário, e começaria a ocorrer a migração direta para o novo veículo tanto de programas radiofônicos de sucesso (novelas, jornalísticos, humorísticos e os programas de auditório) quanto de diversos profissionais e artistas. Do mesmo modo, os filmes brasileiros também passaram por muitas mudanç as ao longo dos anos 50. As chanchadas se modificaram na segunda metade da década, apresentando um maior leque de personagens, novos produtores e diretores e maior definição dos tipos, mas aparentemente viu suas fórmulas se esgotarem no início dos anos 60 (VIEIRA, 1987, p.174). A televisão também incorporaria seu humor e linguagem, além de diretores e estrelas, como Carlos Manga, Chico Anísio, Costinha ou Jô Soares, além de diversos técnicos. Por outro lado, a falência da Vera Cruz em 1954, expôs todas as contradições de seu projeto. Como apontou Artur Autran (2004, p. 24), o país já tinha presenciado os principais 163 Entre elas, o filme colorido e o desenvolvimento de grandes formatos de imagem panorâmica, inaugurado em 1952 com o Cinerama e disseminado a partir de 1953 com o Cinemascope. Além, é claro, do 3-D, do advento do som estereofônico e de outros processos que usavam negativos de maior dimensão e definição de imagem, como o Todd-Ao e outros formatos de película 70 mm. 164 Do mesmo modo que os teatros, as salas de exibição ficaram menores e com o visual mais despojado. A partir de meados dos anos 60, novos cinemas não mais surgiriam como construções autônomas, mas geralmente localizados em galerias e centros comerciais (GONZAGA, op.cit., p.205). 115 estúdios cinematográficos brasileiros se desviarem de suas intenções diante das dificuldades do processo de industrialização. A Cinédia de Adhemar Gonzaga – crítico feroz dos “naturais” – acabaria se tornando uma grande produtora de cine-jornais; a Atlântida de Moacyr Fenelon, desejoso de filmes com aspirações sociais, teria que apelar para as famigeradas chanchadas; e a Vera Cruz de Franco Zampari, almejando realizar filmes com qualidade técnica e artística internacional e crendo na possibilidade de atingir até mesmo o mercado externo, seguiria já a partir de 1951 por uma linha de filmes capitaneada pelo comediante Mazzaropi dirigidos ao público popular. Nessa década, conforme o clássico artigo de Maria Rita Galvão (1980), é que surgiriam as contraditórias idéias de um cinema independente. Reunidos nos Congressos de Cinema, realizados no Rio e em São Paulo, em 1952 e 1953, seus partidários defendiam a temática nacional, mas com boa qualidade técnica. Havia uma ânsia por realismo e autenticidade – por mostrar o modo do brasileiro andar, se vestir, falar – mas sem a precariedade nem a “grossura” da chanchada. Por outro lado, se a qualidade técnica das produções da Vera Cruz era reconhecida, os filmes da companhia paulista eram criticados por não refletirem sobre a vida do povo. Em suma, pretendia-se um cinema que se baseasse num sistema de produção diferente do dos grandes estúdios, feito em cenários naturais, sem grandes vedetes caras, com equipes mínimas, sem luxos (mas com bom equipamento, é claro, fotografia limpa, bom som, continuidade etc.), sem submissão ou obrigação qualquer que fosse para com ninguém, [...] mas com proteção governamental para existir, financiamento para desenvolver-se, e se possível com a colaboração técnica dos grandes estúdios (GALVÃO, 1980, p.22). Do mesmo modo que o “cinema independente” dos anos 50 se colocou como alternativa às desprezadas chanchadas carnavalescas e às produções europeizadas e cosmopolitas da Vera Cruz, símbolo de uma burguesia considerada decadente, o Teatro de Arena também se opunha ao Teatro Brasileiro de Comédia e à resistente tradição do “teatro para rir”. Segundo o ator e dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, a pretensão da Companhia era criar, dentro do esquema profissional, uma alternativa ao modelo TBC – um teatro esteticamente sólido, mas desligado da realidade brasileira e “prestigiado por uma platéia grãfina que, segundo o Vianinha radical do início dos anos 60, assistia a Ibsen e a Pirandello sem notar diferença alguma” (MORAES, 2000, p.58). Tanto no cinema quanto no teatro, a divergência principal residia na questão do conteúdo. Em várias teses apresentadas nos congressos, como a de Nelson Pereira dos Santos, 116 O problema do conteúdo no cinema brasileiro, a discussão se dava no nível do argumento e pouco se falava da forma ou do ‘tratamento’ do assunto. A questão principal era se buscar temas e histórias de caráter popular e de características nacionais (GALVÃO; BERNARDET, 1983, p.75-79). De forma semelhante, também no Teatro de Arena a ênfase continuava residindo no texto. Se nos filmes a recusa pelo estúdio, além de baratear as produções, também permitia uma aproximação maior com o realismo almejado, a opção pelo teatro de arena, além de econômica, favorecia também a autenticidade do texto teatral. Conforme as palavras do diretor José Renato em 1956, “com a ausência de cenários e a proximidade do palco, toda a atenção se concentra sobre a peça e o desempenho. Os autores deveriam, aliás, entusiasmar-se com o teatro de arena, porque é o que mais os valoriza. Nos teatros comuns, uma rica montagem pode iludir o espectador” (apud MAGALDI, 1984, p.16). No campo cinematográfico, no começo da década de 50 poucas obras refletiam os discursos e os anseios dos participantes dos Congressos e eles tinham que “escolher” filmes para falar bem. Entretanto, depois de um marco como Rio 40 graus (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1956), mais produções seguiram o mesmo ideário, como o segundo longa-metragem do mesmo Nelson Pereira dos Santos, Rio zona norte (1957), e o filme de estréia de Roberto Santos, O grande momento (1957), produzido por Nelson. Por outro al do, embora os espetáculos apresentados pelo Arena de 1953 até 1958 tenham merecido elogios de alguns críticos (cf. MAGALDI, op.cit.), para Vianinha, egresso do Teatro Paulista de Estudante que se fundiu com o Arena em 1956, até a montagem da peça Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, “o Arena era um teatro como outro qualquer – talvez a única diferença fosse a de que era um teatro pior do que os outros. Um repertório comercial, feito por atores pouco expressivos, e principalmente pouco preocupados com tudo – inclusive com o teatro, que era um passatempo entre famílias.” (MORAES, op. cit., p.52). Assim como no cinema, também no teatro brasileiro era evidente o desejo dos jovens artistas de “descobrirem” o Brasil para os palcos e telas do país. Afinal, o teatro nacional já proclamava ter alcançado nível internacional com a evolução técnica do TBC, conquistando “consistência de encenação” e permitindo às classes médias e altas finalmente terem acesso a montagens “dignas” de grandes peças de “alto nível”. Superada essa “etapa”, o desafio da nova geração era tornar esse teatro realmente “brasileiro”, além de social e politicamente conscientes. 117 O mesmo se dava em relação ao cinema nacional, pois como Carlos Ortiz proclamava em 1949, aproveitando o lema de Louis Delluc, “façamos com que o cinema brasileiro seja verdadeiramente cinema e verdadeiramente brasileiro”. Um pensamento igualmente etapista também era corrente no meio cinematográfico, como é claro na constatação do mesmo Ortiz, em 1951, que após os primeiros anos da Vera Cruz o filme brasileiro teria vencido “sua grande e primeira luta: a batalha da produção”, superando os famosos problemas técnicos que o entravavam (In: BERRIEL, 1981). Nesse sentido, os jovens que vinham sendo formados no movimento cineclubista que voltara com força a partir do final dos anos 40, finalmente tendo acesso às obras-primas do cinema mundial e ao próprio passado do cinema brasileiro, confrontados com a despretensão e “grossura” das chanchadas e com a tão almejada quanto frustrante evolução técnica da Vera Cruz, encontravam-se igualmente ansiosos para traçar um retrato mais “autêntico” do país e do seu povo nas telas. 165 Ou seja, os jovens interessados em discutir a realidade de seu país, fossem através do teatro ou do cinema, começaram a querer ter sua própria voz. E da garganta de um deles saiu um berro assustador. “Ao abrir o pano, todos dormem. De repente, Portuga desperta de um pesadelo”. Plínio Marcos, Barrela Um grito parado no ar. 165 Podemos apontar semelhanças entre esses jovens pretendentes a cineastas com a geração de amadores do teatro brasileiro dos anos 30 e 40. Se a companhia Os Comediantes tinha sido formada por advogados, funcionários públicos e estudantes, o Cinema Novo também foi formado por estudantes de origem distintas. Como contou Zelito Viana, “Joaquim Pedro era físico, eu e o Leon éramos engenheiros, Cacá, Jabor e Glauber eram do direito, éramos todos de universidades distintas. Foram os cineclubes que nos reuniram” (NICOLAS, 2004, p.64). Após iniciativas pioneiras na década de 20, o movimento cineclubista renasceu definitivamente em São Paulo com o segundo Clube de Cinema da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1946, que daria origem à Filmoteca do Museu de Arte Moderna e, mais tarde, à Cinemateca Brasileira. No Rio de Janeiro, um marco foi a criação, em 1954, do departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, futura Cinemateca do MAM. Em 1949, já se realizava o I Congresso Brasileiro de Clubes de Cinema e, em 1957, o boletim mensal de cinema do Museu de Arte Moderna publicava uma reportagem com o significativo título “Cineclubismo no Brasil: uma realidade”. O movimento cineclubista, apoiados pelas cinematecas, possibilitou a realização de sessões, mostras, festivais, encontros e debates que formaram toda uma geração de cinéfilos e futuros cineastas nos anos 50 e 60, estando também ligado à organização de inúmeros cursos, seminários e escolas de cinema na mesma época. 118 Em 1958, Plínio Marcos, 22 anos, ator e diretor de teatro amador na cidade de Santos, escreveu sua primeira peça, Barrela, no qual já estavam presentes muitas das principais características, formais e temáticas, que sua dramaturgia consolidaria posteriormente. Plínio inspirou-se num fato real, ocorrido em Santos e reportado pela imprensa, sobre “um garoto que, por pouca coisa [...] foi recolhido ao xadrez, junto com a malandragem da pesada e penou o bastante para ficar picado de raiva e saindo de lá, se armar e ir matando todos que o barbarizaram no xadrez” (MARCOS, 1976, p.5-6). Comovido pela história do rapaz, que ele conhecia das vizinhanças, “despejou no papel” através de diálogos, “em forma de espetáculo de teatro”, que era o que ele mais conhecia, a história dos seis detentos (e mais o tal garoto) atravessando uma noite no xadrez tão trágica quanto banal, lutando por tudo e ao mesmo tempo por nada. A imediata proibição de Barrela após sua aclamação – e o posterior fracasso de sua peça seguinte, Os fantoches – fizeram com que os primeiros passos de Plínio Marcos no teatro ficassem circunscritos à Santos, sendo sua carreira interrompida pela “proverbial estupidez da censura que não precisou aguardar a ditadura militar para manifestar-se” (MAGALDI, 2003, p.94). Plínio lamentou muitas vezes não ter podido estrear junto com a sua geração, lembrando o fato de ter escrito Barrela no mesmo ano em que foi montada a peça Eles não usam black-tie. A proibição de Barrela em pleno governo democrático de Juscelino Kubitschek é característica, dentre outros aspectos, do conservadorismo da sociedade brasileira na década de 50, e que não evoluiria muito nos anos seguintes. Além do próprio Estado e da Igreja Católica, organizações civis como a Confederação das Famílias Cristãs (CFC) – criada em 1950 – intitulavam-se defensoras da “moral e bons costumes”, e o cinema e o teatro eram alvos constantes de seus ataques. 166 Nesse sentido, estritamente sob o aspecto da “moralidade”, não foi surpreendente que uma peça repleta de palavrões, na qual os personagens encarcerados num xadrez ameaçam uns aos outros com a possibilidade de curra, tenha sofrido repúdio e aversão tanto por um 166 No filme Anjo do lodo (dir. Luiz de Barros, 1950), adaptação atualizada do romance Lucíola, de José de Alencar, uma silhueta da atriz e vedete Virgínia Lane nua causou uma enorme polêmica, resultando no corte da cena. Alguns anos depois, a subtendida cena de sexo do filme francês Os a mantes (Les Amants, dir. Louis Malle, 1959) provocou enorme repercussão no Brasil. No caso do teatro, o próprio repúdio às primeiras obras de Nelson Rodrigues nos anos 40 e 50, considerado pornográfico e degenerado, é um caso exemplar. A peça Álbum de família, de 1945, ficou proibida durante 20 anos e o Anjo negro, de 1946, também sofreu tentativas de censura religiosa, conseguindo ir à cena apenas dois anos mais tarde. 119 Estado conservador quanto pela “burguesia provinciana de nossa cidadezinha”, nas palavras do santista Pedro Bandeira (In: MARCOS, 2004, 171). 167 Da mesma maneira, o retrato dramático traçado em Barrela de personagens cercados por “janelas de grade e tristeza” onde “a esperança não entra / não entra a crença / o sol não entra”, como dizia o prólogo da peça, diverge radicalmente da idéia de um “feliz 1958, o ano que não devia terminar” (SANTOS, J., 1997). Num ano freqüentemente idealizado como auge de um período marcado pela euforia desenvolvimentista dos “cinqüenta anos em cinco” de JK, pela relativa estabilidade política do país, pela alegria ufanista com a conquista da Copa do Mundo de Futebol (como dizia a marchinha, “com o brasileiro, não há quem possa”), pelo otimismo com a modernidade despontando no horizonte (junto com as primeiras construções da nova capital, Brasília) e pela esperança no futuro (Chega de saudade, já cantava a Bossa Nova); Plínio Marcos levava aos palcos, em sua primeira peça, um outro universo, menos utópico, risonho e feliz. Justamente em 1958, ano em que Plínio escreveu seu primeiro texto para o teatro, o enorme sucesso de crítica e público da montagem de Eles não usam black-tie pelo Teatro de Arena salvava o grupo da falência e revolucionava o panorama teatral brasileiro, representando o “abrasileiramento do nosso palco, pela imposição do autor nacional” (MAGALDI, 1984, p.7). Esta primeira e bem sucedida experiência na linha de apresentação de peças nacionais do Teatro de Arena, aliada ao surto de criatividade durante e a partir do Seminário de Dramaturgia iniciado em 1956 com Augusto Boal – recém chegado dos Estados Unidos, onde estudara na School of Dramatic Arts da Universidade de Columbia – foram responsáveis pela fisionomia definitiva do grupo, que viria a se tornar o principal elemento do teatro brasileiro nos anos seguintes. Mesmo inserido num momento de ampla renovação da dramaturgia nacional com a revelação de jovens autores, Eles não usam black-tie foi um marco que reorientou os rumos do Teatro de Arena e do próprio teatro brasileiro. Antes já havia aparecido Jorge de Andrade, com A moratória, em 1955, mas que fora montada pelo TBC (com grande prejuízo) e tratava da decadência de uma grande propriedade rural na passagem para os anos 30. Em Recife, ainda em 1956, também surgira Ariano Suassuna com a peça O auto da compadecida, mas que só chegou triunfalmente ao Rio de Janeiro dois anos mais tarde. Somente após o sucesso 167 Em 1958 Nelson Rodrigues também provocou polêmica no Rio de Janeiro com o “mar de incestos” de Os sete gatinhos. Entretanto, o dramaturgo já era um nome consagrado e mesmo com toda sua habitual controvérsia a peça foi encenada com grande sucesso. 120 absoluto da peça de Gianfrancesco Guarnieri é que novos dramaturgos despontariam com mais força, como José Celso Martinez Corrêa, Carlos Queiroz Telles e Dias Gomes, além de outros também egressos do Teatro de Arena, como Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho. Plínio Marcos também deveria ser um desses nomes, se não tivesse que esperar até 1966 para que conseguisse novamente fazer ouvir sua voz. Nessa mesma época, o cinema brasileiro também passava por um momento de renovação, através de filmes engajados socialmente, tendo o “povo” como objeto, feitos com poucos recursos e sob o impacto do neo-realismo italiano e seus herdeiros. A influência dos filmes realizados na Itália devastada pela guerra podia ser notada na própria peça Eles não usam black-tie, assim como em filmes do chamado “cinema independente”, nos já citados Rio zona norte e O grande momento, mas também nos emblemáticos documentários Arraial do Cabo (dir. Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro, 1959) e Aruanda (dir. Linduarte Noronha, 1959). 168 Ao final da década de 50 surgiam os primeiros trabalhos – sobretudo em forma de curtas- metragens – dos jovens que viriam a formar o núcleo do Cinema Novo no começo dos anos 60. 169 Diante desse panorama, é interessante questionarmos, como o fez Sábato Magaldi (2003, p.95), se seria outra a evolução da dramaturgia brasileira caso a primeira peça de Plínio Marcos pudesse ter sido apresentada livremente logo depois de escrita. Em que medida, por exemplo, Barrela se relacionava com o panorama teatral brasileiro do final da década de 50, que já teria se modificado quando Plínio voltou a despertar atenção anos depois. Indo mais além, podemos ainda pensar no que Barrela poderia ter significado para o cinema brasileiro naquele momento. O dramaturgo santista estaria de alguma forma em sintonia com os aqueles novos movimentos da cultura brasileira, especialmente o teatro e o cinema, que tinham como marcas o ideário político de esquerda, o nacionalismo e o populismo, além de uma moldura “realista” ou “naturalista”? Dessa maneira, acredito ser proveitoso ainda refletir brevemente sobre o filme Rio zona norte e a peça Eles não usam black-tie – obras emblemáticas do movimento de 168 Em comum nos quatro filmes nota-se o interesse em ver e mostrar o “verdadeiro povo brasileiro”. Na ficção, com um sambista de um morro carioca lutando para viver de sua arte ou com um proletário da periferia paulistana tentando realizar dignamente sua festa de casamento; no documentário, através do retrato de uma comunidade de pescadores do litoral do Estado do Rio de Janeiro ou de um agrupamento de remanescentes de quilombolas no sertão da Paraíba. 169 Entre outros, O pátio (dir. Glauber Rocha, 1959), Caminhos (dir. Paulo Cezar Saraceni, 1958), Fuga (dir. Cacá Diegues, 1959), Mestre de Apicucos (dir. Joaquim Pedro de Andrade, 1959) e O maquinista (Marcos Faria, 1958) (RAMOS, F., 1987, p.323-324). 121 renovação da produção cinematográfica e teatral brasileira e marcadas por caracterís ticas do ideário nacional-popular – como forma de apontar semelhanças e diferenças com Barrela, escrita, encenada e proibida na mesma época. Apesar de tanto o filme de Nelson Pereira dos Santos quanto a peça de Gianfrancesco Guarnieri terem sido dirigidos / escritos por paulistanos, a ação de ambos se passa em uma favela do Rio de Janeiro e tem dentre seus moradores os personagens principais. Em Rio zona norte, o protagonista é Espírito da Luz Soares (Grande Otelo), um sambista do morro que sonha em fazer sucesso, sendo igualmente admirado e ignorado por Moacir, músico profissional e burguês (Paulo Goulart). Entretanto, em sua ingenuidade e boa- fé, o compositor acaba sendo enganado por um empresário (Jece Valadão) que rouba suas músicas. Mesmo assim, Espírito, personagem inspirado na vida de Zé Kéti, autor da trilha sonora, encontra em seus amigos do morro, como no compadre, na afilhada e em seu patrão na mercearia, apoio e solidariedade. Por meio do flashback, com uma narrativa e linguagem bem articulada, mas convencional (o que foi motivo de críticas na época), a história é contada através das lembranças do protagonista após sofrer um acidente caindo dos trens da Central do Brasil. Já em Eles não usam black-tie, embora o roubo do samba de um cantor do morro ocupe o pano de fundo da peça, os personagens principais são os membros de uma família de operários. O texto de Guarnieri é centrado especialmente na relação entre o pai, Otávio, e o filho, Tião, a respeito de uma greve na fábrica em que ambos trabalham. O drama principal reside no conflito entre a solidariedade e a união pregada pelo sindicalista veterano Otávio e o individualismo do jovem fura-greve Tião, que prestes a casar e ter um filho, não deseja colocar em risco suas ambições. No doloroso desfecho, Tião – que fora criado “no asfalto” por seus padrinhos enquanto o pai esteve preso – acaba expulso da casa dos pais e do morro, perdendo o amor de Otávio e de Maria, sua noiva. A peça exalta o sentimento de solidariedade, principal característica presente nos personagens “bons” (os pais de Tião, Otávio e Romana, a noiva, Maria, e o amigo da família, Bráulio), ausente nos personagens “maus” (o ambicioso Jesuíno, além dos somente mencionados padrinhos de Tião e os patrões da fábrica) e difuso naquele simplesmente “medroso” (Tião). Mesmo que seja preciso separar o joio do trigo – ou os feijões bons dos ruins, como expresso na emblemática cena final, com Otávio e Romana – e o futuro esteja incerto, a esperança não morre, mas renasce no futuro rebento de Maria que terá o mesmo nome do avô, Otávio. 122 Da mesma maneira, em Rio zona norte, se Espírito finalmente morre no hospital devido ao acidente, ele caíra do trem no auge do entusiasmo, não apenas recuperado da tristeza pelo roubo de sua composição, como enquanto compunha um novo samba. Além disso, sua morte de alguma maneira promove a união, tirando o músico burguês de sua inércia e levando-o ao morro para auxiliar o compadre de Espírito no resgate das composições do sambista. 170 Também no filme de Nelson Pereira dos Santos há um embate entre a solidariedade e o individualismo e entre duas gerações, seja com Espírito e Adelaide, sua jovem e interesseira esposa, ou, principalmente, com seu filho, Norival. Arrancado do morro e de seu pai pelo juizado de infância, o garoto foi criado num internato (como Tião, no asfalto) e sob má influência dos amigos, tornou-se ladrão e egoísta. Entretanto, mas uma vez há a redenção no final, quando o filho morre defendendo o pai dos outros bandidos. 171 Já em Barrela, de Plínio Marcos, solidariedade e esperança de um futuro melhor é justamente o que não existe. Pelo contrário, o ódio surge por quase nada e o individualismo é a marca de todos os mesquinhos personagens. Algumas características comuns podem ser claramente encontradas entre a primeira peça de Plínio Marcos e Rio zona norte ou Eles não usam black-tie, como o interesse por dramas e personagens do povo, a busca de uma representação autêntica dessa realidade e uma moldura realista para essas histórias. Entretanto, os personagens populares de Barrela estão muito distantes de serem ingênuos, idealistas, corajosos, solidários ou positivos. Nesse sentido, é importante fazer algumas considerações a respeito do conteúdo político dessas obras realizadas num momento de crescente politização da juventude brasileira, do meio artístico e dos movimentos sociais. Na década de 50, acompanhando o desejo de mudanças após a era Getulista, a cultura brasileira foi claramente marcada por 170 O filme mostra o próprio “nascimento” da música, do momento em que Espírito tem a idéia de uma melodia e começa a batucá-la até finalmente desenvolver a canção e sua letra. Tanto em Eles não usam black -tie quanto em Rio zona norte fica clara a oposição morte e renascimento, como metáfora da necessidade de superação daquele modelo de sociedade decadente por outro. 171 É importante lembrar que essa questão individualismo (burguês) versus solidariedade (do povo), notada em Rio zona norte e Eles não usam black -tie, está associados aos fundamentos ideológicos presentes nas duas obras, realizadas por jovens influenciados pelo comunismo (Guarnieri era militante do PCB e Nelson também fora membro do partido). Nesse sentido, um marco no cinema brasileiro foi Ana, episódio dirigido por Alex Viany para o filme A Rosa-dos-ventos ou Cinco Canções (Die Windrose, 1955), produzido pela Alemanha Oriental, que conta a história de um grupo de retirantes nordestinos num pau-de-arara a caminho de São Paulo. A personagem Ana (Vanja Orico), junto com um operário (Miguel Torres) que voltava de uma visita à família, lidera a revolta dos viajantes contra o motorista do caminhão que, a mando de um coronel, enganava o grupo, o levando para uma fazenda de trabalho escravo. No fim do filme, o proletário fala à camponesa: “a única coisa que eu aprendi e posso te dizer, é que com união, ninguém pode nos derrotar”. 123 idéias de transformação sociopolítica, começando a se delinear a partir de então a “relativa hegemonia cultural de esquerda no país” que seria alcançada na década de 60 (SCHWARZ, 1978, p.62). Entretanto, com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) afetado pelas revelações da ditadura Stalinista e por seu posicionamento sectário na primeira metade dos anos 50, parte do pensamento progressista convergiu para o nacional-desenvolvimentismo, que pregava a aliança do povo com a burguesia nacional. Desse modo, o período democrático de governo JK (1956-1961) e, principalmente os anos que precederam o golpe militar de 1964, foram favoráveis à divulgação de um pensamento de esquerda sob a ótica do nacional-popular. Esse despertar para o debate, a discussão e o aprendizado, para Guarnieri, por exemplo, teve um momento marcante durante os cursos ministrados no Arena por volta de 1957. Para o dramaturgo, naquela ocasião ocorreu “o pontapé para nossa maioridade. Começamos a nos preocupar com questões estéticas e filosóficas. ‘Tem um tal de Hegel aí que tem que ser lido’, alguém recomendava. ‘E o Marx, o que diz disso?’, indagava outro. Enfim, a curiosidade foi aguçada como nunca” (MORAES, 2000, p.66-67). Já Plínio Marcos, se por um lado também viveu essa efervescência cultural, especialmente com os grupos de teatro amador e nas reuniões com o círculo de intelectuais de Pagu em Santos, por outro lado, era primeiramente um “ex-palhaço de circo”, “semianalfabeto” e filho de proletários, estando, talvez, fora de sintonia do caldo ideológico que permeava outras obras daquela mesma época. A peça de estréia de Plínio apresentava aspectos políticos distintos de algumas obras de artistas “comunistas de carteirinha”, uma vez que os personagens que se consagraram como tipicamente plinianos, já delineados em sua primeira peça, se revelam distantes da representação idealizada do povo. Fundamentalmente atravessada pelo plano econô mico na ótica marxista, os personagens populares seriam marcados por duas linhas de força: A idéia do politizável na qual não cabem mais atores populares que à classe trabalhadora, nem mais conflitos que os que provêm do choque entre capital e trabalho, nem mais espaços que os da fábrica e do sindicato; e uma visão heróica da política [...] deixando de fora o mundo da cotidianidade e da subjetividade (O. SINKEL apud MARTÍN-BARBERO, 1997, p.36-39). Essa análise leva à percepção de dois modos de operação que dariam origem tanto ao popular não representado (aceitos socialmente, mas não representados: atores e espaços como o velho, a mulher, a casa, o hospital, a medicina popular, a religião), quanto ao popular 124 reprimido. Os personagens e os cenários da peças mais famosas de Plínio Marcos se encaixam perfeitamente nesta última categoria, que: Se constitui como o conjunto de atores, espaços e conflitos que têm sido condenados a subsistir às margens do social, sujeitos a uma condenação ética e política. Atores como as prostitutas, os homossexuais, os alcoólatras, os drogados, os delinqüentes etc.; espaços como os reformatórios, os prostíbulos, os cárceres, os lugares de espetáculos noturnos etc. (Ibid). Mesmo no final dos anos 60, quando um novo contexto permitiu que Plínio Marcos emergisse no panorama cultural brasileiro, suas peças continuavam subvertendo todo o esquema do teatro político brasileiro realizado até então – e exacerbado desde a década anterior –, marcado pela figura do herói revolucionário ou da classe revolucionária, mostrando no palco, conforme Sônia Regina Guerra (1988, p.162), “aquele grupo social para o qual nem mesmo o próprio Marx encontrava solução”. 172 Distante do nacional-popular e do pensamento conservador, assim como de qualquer dogma, tanto de esquerda quanto de direita, a obra de Plínio Marcos realmente caminhava na direção dos esquecidos por todos, pelo Estado, pelas elites, mas também por autores de inspiração marxista. Desse modo, não é surpresa que após Barrela, Plínio tenha conhecido o fracasso, o anonimato e, principalmente, um longo caminho de tentativas e erros antes de sua consagração em 1966 e 1967. Esse período compreendido entre 1960 e 1965 – sempre ignorado quando se aborda a carreira do dramaturgo, como se tivesse havido um vácuo entre Barrela e Dois perdidos numa noite Suja – é fundamental para compreendermos sua obra e o que significou sua consagração nos últimos anos da década de 60. Ao longo desses cinco anos, Plínio Marcos sofreu diversas influências, tanto estéticas quanto políticas, evidenciadas diretamente em suas peças escritas nesse período. O dramaturgo se integrou ao meio teatral paulistano e procurou de diversas maneiras acompanhar as idéias, tendências e modismos que atravessaram o teatro brasileiros naqueles conturbados anos. Ou seja, Plínio procurou entrar em sintonia com seu tempo. Ao final dessa trajetória, mais do que alcançar novamente o sucesso de público e crítica, Plínio Marcos conseguiu se encontrar com sua própria obra. Se Plínio era demasiadamente ousado, pioneiro e original em 1958, ele continuaria sendo em 1966 e 1967. Mas aí, então, Brasil já estava mais preparado para ouvi- lo, enfrentá- lo e aplaudi- lo. Pelo menos enquanto os donos do poder permitissem. 172 Sobre essa questão, Plínio, bem-humorado como sempre, apenas dizia: “Como posso ser marxista se nunca li Marx?”. 125 Homem tem que vencer naquilo que escolheu, senão ele fracassa. Plínio Marcos, Enquanto os navios atracam 1960 a 1965: Jornada de um dramaturgo em busca de si mesmo. A primeira montagem de Os fantoches em Santos, em 1960, é lembrada sobretudo pela arrasadora crítica de Pagu, madrinha artística e mentora intelectual do próprio Plínio Marcos, e pela recepção frustrante da platéia, como foi dito no capítulo 1. O fracasso imediatamente seguinte à consagração de Barrela ajudou a condenar seu autor a anos de ostracismo e Os fantoches ao esquecimento quase completo. Ao mesmo tempo, a visão crítica de Pagu na época consolidou determinado julgamento a respeito do texto – até corroborado por Plínio depois de consagrado – como o de uma peça escrita por um semi-analfabeto tentando incorporar precariamente leituras de peças de vanguarda como as de Fernando Arrabal ou Samuel Beckett. Anos mais tarde, o dramaturgo repetiria diversas vezes as histórias sobre ter ouvido leituras de Esperando Godot e depois ter dito jocosamente “igual a essa eu escrevo umas dez” (apud VIEIRA, P., op. cit., p.156). Por outro lado, Os fantoches foi o texto que Plínio mais re-trabalhou. Após a estréia em Santos, a peça foi reformulada ao ser montada pelo teatro universitário do Teatro de Arena em 1962, sob a direção do próprio autor. Em 1966, reescrita e já com o título de Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar, foi censurada e impedida de ser levada ao palco. Finalmente em 1968, renomeada como Jornada de um imbecil até o entendimento, foi encenada profissionalmente pelo Grupo Opinião. A análise das modificações efetuadas por Plínio, além de demonstrar os caminhos e as opções na construção de sua dramaturgia, pode ajudar a traçar um retrato das mudanças do país na época através das incorporações e alterações no texto efetuadas pelo autor. Essa breve análise baseia-se em três versões diferentes do texto, mas cujas datas e contextos, como toda labiríntica produção do Plínio, é difícil definir com precisão. 173 173 Não tive acesso à primeira versão da peça (de 1960), a única que Paulo Vieira comenta em Plínio Marcos: A Flor e o Mal (1994). A partir de sua análise pudemos perceber as poucas modificações para a versão de 1962. Nos acervos da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), no Rio de Janeiro, e do arquivo Miroel Silveira, em São Paulo, encontrei uma versão de Os fantoches, e duas de Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar, com pequenas diferenças entre si. Esta versão de Os fantoches foi aquela apresentada em 1962. A versão 1 de Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar (arquivo Miroel Silveira) foi o texto 126 Na montagem do Teatro Universitário do Teatro de Arena, Os fantoches foi apresentada como uma “sátira em um ato”, com cinco personagens – os vagabundos Popo, Mandrião, Teco, Pilico e Manduca –, sendo passada em “uma clareira, à beira de um abismo”. O personagem Mandrião possui dois chapéus e com a ajuda de Teco – responsável por criar “mitos e superstições” e que estabeleceu ser anti- higiênico pedir esmolas sem chapéus – explora Popo e Manduca, fazendo-os mendigar com esses chapéus. Recebendo apenas 10% do “lucro” da mendicância e sendo obrigados a comprar comida do próprio Mandrião, ambos permanecem endividados e presos a ele. Entretanto, Pilico, vagabundo que também possui um chapéu, começa a ameaçar os negócios de Mandrião querendo que Manduca e Popo trabalhem com ele. Porém, Manduca tem o ideal de que “cada um tenha seu próprio chapéu e ninguém seja explorado”. Pilico diz que trabalhar com ele é uma fase para atingir esse ideal, mas Manduca acredita que ele é igual aos outros. Por outro lado, Popo, o mais obediente às crenças de Teco e às ordens de Mandrião, é considerado um estúpido por todos. À noite, depois de Mandrião e Teco recolherem a féria do dia, Manduca tenta roubar um chapéu, mas é pego por Pilico. Mandrião e Teco querem matá- lo, mas decidem primeiro fazer um julgamento de fachada. Sabendo que Manduca vai ser condenado, Pilico faz um último apelo para que eles se juntem. Manduca recusa, pois prefere morrer a renunciar a suas crenças. “Antes ser NADA do que escravo”, diz. Manduca ainda tenta manipular Popo para que ele o solte, mas não consegue convencê- lo. Por fim, ao ser levado para a morte no abismo, Manduca declara: “Está bem, vocês ganharam esta batalha, podem me matar, mas a idéia de que cada um deve ter o seu chapéu vocês nunca conseguirão sufocar”. Ao final, Popo, triste e pensativo, é abordado por Pilico: censurado em 1966. Já a versão 2 de Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar (acervo SBAT), parece ser mais próxima de Jornada de um imbecil até o entendimento, encenada em 1968. 127 Pilico: Que é isso Popo, parece que você está pensando, você não era disso. Popo: É, mas agora estou pensando! Pilico: O que você está pensando Popo? Popo: Estou pensando que cada um poderia ter seu chapéu. Os fantoches, sem dúvida, revela influências do teatro do absurdo, tanto pelos personagens vagabundos como os de Esperando Godot, assim como por sua paisagem inóspita, vazia e desértica, que exprime a metáfora de um mundo absurdo, sem perspectivas, literalmente “à beira do abismo”. Apesar do tom metafísico, muito distante do realismo cru de Barrela, por exemplo, e enveredando pela metáfora, muito próxima de uma estrutura de fábula, não concordo com a crença de a peça ser simplesmente “o resultado de uma lição mal assimilada sobre o teatro do absurdo” (VIEIRA, P., op.cit., p.157). Na verdade, essa é a propagação da mesma idéia de Pagu, em seu artigo de 1960, quando afirmava de forma até preconceituosa, que o “nível mental e intelectual do autor” se desencontrava com a possibilidade de invadir o “terreno difícil para sua experiência e seus conhecimentos” de um texto de tonalidades filosóficas. De fato, um ex-analfabeto podia escrever um bom texto em tom de reportagem, mas seria necessário um “milagre de circo” para que ele escrevesse uma peça como as de Arrabal ou Beckett. Pagu era uma admiradora do teatro experimental ou de vanguarda, representado por Jarry, Beckett, Ionesco, e do teatro poético de Lorca, Tardieu e Paz. Viajada e amiga de diversos artistas e intelectuais europeus, foi uma das primeiras divulgadoras do teatro do absurdo no Brasil. Na EAD, em São Paulo, traduziu para o português pela primeira vez A cantora careca, de Ionesco, e em Santos traduziu e co-dirigiu montagens de Fando e Lis, de Fernando Arrabal, e de A filha de Rappaccini, de Octavio Paz. Na década de 1950, o teatro do absurdo ainda não era uma escola influente no Brasil com seria alguns anos mais tarde. Nesse sentido, sob influência das leituras e das montagens de Pagu, Plínio Marcos escreveu um texto com características do teatro de absurdo de certa forma pioneira no país, mas também fora de sintonia com o teatro daquele momento, aliás, como a própria Barrela, mas em diferente chave. 174 174 A tradução feita por Patrícia Galvão na EAD para A Cantora Careca, de Ionesco, foi utilizada para a representação pelos alunos do curso de interpretação, a primeira desse autor no Brasil. A versão de Pagu foi utilizada posteriormente (sem ser creditada) pelo mímico Luiz de Lima nos espetáculos profissionais dessa peça. Outro precursor do Teatro do Absurdo no Brasil, Luiz Lima dirigiu também na década de 50, além de A cantora careca, as peças A lição e Os rinocerontes, de Ionesco (ambas pela primeira vez encenadas aqui). Entretanto, com exceção de montagens pioneiras na EAD, sempre na vanguarda da representação de textos experimentais no país, e as de Luiz Lima no final dos anos 50, somente a partir de meados da década de 1960 o Teatro do Absurdo chegou com mais força ao teatro brasileiro, adequando-se ao irracionalismo daquele momento na cultura 128 Pelos comentários de Paulo Vieira (op. cit., p.156), a versão de 1960, ainda que apresentasse modificações na ordem dos acontecimentos, não tinha muitas diferenças nos diálogos em relação à versão de 1962. Mas mesmo assim podemos perceber um mais acentuado tom metafísico, notadamente na última fala da peça. Ao contrário do texto encenado pelo grupo amador do Arena, no texto montado em Santos o desfecho se dava quando Pilico, sozinho depois de todos já terem se retirado, refletia no palco: “A vida é engraçada. Uns morrem, outros partem... Nada mais”. O lamento melancólico semelhante à fala final de Bereco em Barrela – “É... Mais um dia...” – parece, de fato, um tanto pueril e menos interessante que o teor político, mesmo que panfletário, da versão de 1962. Ou seja, é perceptível uma maior politização do texto de Os fantoches de sua encenação em Santos para a montagem no Teatro de Arena de São Paulo dois anos mais tarde. Aparentemente, Plínio se afastava da esfera de influência de Pagu – ex-comunista que não se entusiasmava com o teatro político e que chegou a atacar a “coceira nacionalista” do Arena – para se aproximar dos jovens politizados da companhia paulista. Talvez não tanto quanto a primeira versão, mas ainda “frágil em sua tessitura dramática” (Ibid, p. 153), o texto de 1962 de Os fantoches, menos interessado em questões existenciais, demonstra claramente suas intenções políticas. Embora também apresentasse, mesmo que de forma embrionária, óbvia ou didática, algumas questões da dramaturgia pliniana, como a exploração do homem pelo homem, Plínio evidencia a influência do teatro politizado nos moldes das experiências do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Como o próprio Plínio Marcos comentou, Os fantoches e suas demais versões são essencialmente ilustrações da mais-valia. Todos os personagens da peça de alguma forma tentam dominar os próximos, seja o capitalista inescrupuloso Mandrião ou o religioso a serviço do dono do poder Teco, seja o burguês progressista Pilico ou até mesmo o herói romântico e esclarecido com vocação para mártir, Manduca. O personagem mais surpreendente, entretanto, é Popo (cujo nome já remete à “povo”), o mais ingênuo e subestimado por todos, mas que, ao final da peça, contrariando a avaliação de Pilico (e do público), afirma estar começando a pensar sozinho. brasileira. Os primeiros contatos com a obra de Arrabal ocorreram em 1966, com as montagens de Piquenique no front e O triciclo, mas foi Cemitério de automóveis, com direção do argentino Victor Garcia, em 1968, que se tornou um marco do teatro brasileiro. Nesse mesmo ano foi descoberta a obra do autor brasileiro do século XIX José Joaquim Campos Leão, o Qorpo Santo, com elementos surrealistas. Em 1970, a peça O arquiteto e o Imperador da Síria, também de Arrabal, com direção de Ivan Albuquerque, ficou mais de um ano em cartaz no Teatro Ipanema. A própria peça Esperando Godot, escrita por Beckett em 1953 e encenado por estudantes no Brasil em 1955 e 1959, só foi montada profissionalmente em 1969, pelo Teatro Cacilda Becker, com direção de Flávio Rangel. 129 Ao contrário de Barrela, em sua melancólica visão de “um dia após o outro”, o final da versão de 1962 de Os fantoches é de certo modo otimista, pois mesmo com a execução de Manduca, desponta a almejada “conscientização” das massas. Da mesma forma, Os fantoches também resvala para um romantismo na representação do personagem popular (Popo), ausente antes em Barrela e que desapareceria também posteriormente em Dois perdidos numa noite suja ou Navalha na carne. Mas mesmo se alinhando ao ideário esquerdista pré-1964, Plínio se revela singular ao defender veementemente a visão de que o povo pode aprender sozinho, de que ele não é um simples “fantoche”. A peça contradiz a opinião arrogante, ainda que de boas intenções, do progressista Pilico, que acreditava que os homens, mesmo sendo “bons, trabalhadores, humildes e fiéis”, são uns “coitadinhos”, “porque não sabem andar sós, nem pensar por si”. A desconfiança também se estende ao “intelectual” Manduca, com toques de prepotência, vaidade e intransigência, e que deseja esclarecer e conduzir as massas como se elas fossem estúpidas. Dessa maneira, na versão de 1962 de Os fantoches, além de sua evidente politização, identifico como uma influência mais notável do que a dos clássicos do teatro do absurdo, a da peça Deus lhe pague, de Joracy Camargo, o maior sucesso do comediante Procópio Ferreira, reapresentada milhares de vezes ao longo das décadas. Segundo Décio de Almeida Prado (1984, p.46-47), a estréia de Deus lhe Pague, nos últimos dias de 1932, significou a culminação de tendências que já vinham se desenhando anteriormente, tanto teatrais (a aproximação à literatura dos anos 20, com seu gosto por trocadilhos, jogos de palavras e frases espirituosas), quanto políticas (o deslocamento para a esquerda sucitado pela Revolução de 30). Considerada como a precursora do teatro social no país, introduzindo o nome de Karl Marx nos palcos brasileiros, Deus lhe pague apresentava um mote aparentemente absurdo. Enquanto pede esmolas na frente de uma igreja, um mendigo revela a outro vagabundo ser na verdade um milionário, e lhe conta a história de sua vida, entremeada de comentários em que desfia idéias cínicas, progressistas e anti-capitalistas. É mais do que notável a influência e a admiração de Plínio por Procópio Ferreira, que ele afirmou ser “o maior artista dos palcos brasileiros” (MARCOS, 1996, p.41). Com a decadência do teatro para rir a partir dos anos 40 e 50, Procópio passou a excursionar pelo país, levando seus antigos sucessos para cidades menores e para o interior. Plínio escreveu sobre o dia em que o “grande ator” chegou a Santos para encenar Deus lhe pague e ele foi 130 chamado para fazer uma pequena ponta na peça. De tão nervoso por estar diante do mestre, o jovem ator esqueceu a fala e foi um verdadeiro fracasso. 175 Tanto na peça consagrada por Procópio Ferreira quanto na escrita por Plínio estão presentes a explicitação e posterior condenação (panfletária e explicativa, mas também metafórica) dos principais mecanismos do sistema capitalista. Também em seus defeitos Os fantoches se aproxima de Deus lhe Pague, seja pela literalidade – uma demasiada ênfase no texto, substituindo as ações – como pela ausência de uma evolução mais intensa de um conflito propriamente dito ou pelo didatismo na discussão das idéias. Mas se por um lado, um dos trunfos de Deus lhe pague estava justamente no talento de comediante de seu protagonista (que, como em todos os seus espetáculos, recheava o texto de cacos cômicos), Plínio Marcos também procurou ornamentar a mensagem social de seu texto com humor, sobretudo após o fracasso inicial. Na versão renomeada Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar, escrita e censurada já sob a égide da ditadura militar, o dramaturgo ampliou a peça (que passou a ter dois atos), e acrescentou uma personagem feminina, Totoca. Embora sendo também uma mendiga que pede esmolas com o chapéu de Mandrião, ela é seduzida pelos “chefes” para ficar ao lado deles contra Pilico e, principalmente, Manduca. Ao final, é Totoca quem interroga Popo a razão dele estar pensativo. O humor está mais evidente e com claras conotações políticas. Em determinado momento Mandrião ordena que Teco invente algo para acabar com a revolta de Manduca e Popo. Insatisfeito com as opções, ele grita: “Invente algo mais forte, mais forte!” e Teco começa então, a enumerar possíveis armas num crescente: “Cacetete, metralhadora, canhão, bomba atômica”, e, finalmente, “mulheres marchadeiras!”, no que seu comparsa explode: “Bravo! Muito Bem!”. Era uma alfinetada nas respeitosas senhoras de família que em passeatas de protesto como a Marcha da Família com Deus, pela Liberdade, dois anos antes, em 1964, tinham ajudado a precipitar o Golpe de Estado. Resultado: a peça foi censurada. Na corroboração do parecer do censor, o diretor da Divisão de Diversões Públicas da Secretaria de Segurança de São Paulo escreveu: 175 Após esse dia, Plínio foi apresentado a Procópio outras vezes e depois de se tornar um dramaturgo conhecido, acabou virando seu amigo. Mas Plínio nunca deixou de ser um fã assumido e foi um dos poucos a visitá-lo no hospital, doente e sozinho, dois dias antes de morrer. Plínio conta essa história no conto Mestres fingidores (MARCOS, 1996). 131 Somos pela proibição do texto em julgamento, pois o mesmo reflete inteligentemente o eterno conflito da exploração do ‘homem pelo homem’, que na época atual, quando se procura harmonizar apesar das dificuldades, serviria apenas para exaltar as platéias, mormente aquelas menos avisadas . Há ainda uma outra versão de Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar, que acredito ser semelhante ao texto que foi montado como Jornada de um imbecil até o entendimento, em 1968. Nessa versão, o tom do absurdo continua presente, igualmente atravessado pelo engajamento político, porém menos por um teor metafísico e mais por um caráter anárquico e non-sense, em sintonia com as experimentações do teatro brasileiro na segunda metade da década de 1960. Como no esquete Verde que te quero verde, escrito por Plínio Marcos para a Primeira Feira Paulista de Opinião do Teatro de Arena, nessa nova versão de sua segunda peça o dramaturgo extravasava suas críticas políticas e sociais com um humor agudo, debochado, escrachado e, como diziam os militares, “subversivo”. 176 Com os mesmos dois atos e seis personagens, essa versão 2 de Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar é aparentemente mais absurda e menos séria. Teco, por exemplo, agora professa a fé num deus chamado “Orogon”, ora associado ao cristianismo, ora ao candomblé (ele ordena à Popo, “Vá fazer suas obrigações para o encantado”, e depois reza. “Louvado seja Orogon, Saravá”). Nos diálogos quase surreais, se fala de bomba atômica e James Bond, passando pela jovem-guarda. Mas atrás do aparente non-sense, se esconde definitivamente uma curiosa sátira política. A discussão travada por Teco e Mandrião, quando decidem agir contra Popo, Manduca e Pilico, é recheado de citações, ditados populares, slogans publicitários e frases de efeito, numa composição pré-tropicalista: Teco: Araruta tem seu dia de mingau” Mandrião: A alta no preço dos ovos é episódica. Teco: ´W mais nobre dar um balde de sangue para um anêmico do que fazer a barba todos os dias. Mandrião: Não podemos falhar Teco: O caso requer ação Mandrião: Pronta e rápida Teco: Então agiremos. Da nossa atuação depende o nosso futuro. Mandrião: O preço da liberdade é a eterna vigilância. Teco: O futuro da pátria repousa na juventude Mandrião: É de pequeno que s e torce o pepino. Teco: Deus, pátria e família. Mandrião: A sobrevivência da cultura ocidental é um imperativo Teco: Precisamos incentivar o plantio do agrião. Mandrião: Só Esso dá a seu carro o máximo. 176 No programa da Primeira Feira Paulista de Opinião está escrito que Verde que te quero verde foi reescrita a partir de outra peça “inoesquiana” chamada O aumento do preço dos ovos é puramente episódico – frase esta que é dita em Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar. 132 Teco: Sem dúvida. Não estamos aqui para botar azeitona na empadinha dos outros. Viva o Tratado de Tordesilhas. Mandrião: Atacaremos o inimigo. Teco Já. Mandrião: Agora (Os dois ficam parados. Depois de um certo tempo, Mandrião fala) Mandrião: Bom, e daí? É muito mais clara a influência circense nesta obra de Plínio, na qual os personagens em certos momentos agem como palhaços saídos dos picadeiros piadas. 177 e permeiam o texto de 178 Por outro lado, os personagens da peça são mais definidos, refletindo a desilusão após o golpe de 1964 e a situação concreta do país. Pilico, por exemplo, que inicialmente apóia as reivindicações lideradas por Manduca, acaba cooperando com Mandrião e Teco em nome do “convênio entre os da mesma categoria”, sendo depois enganado por eles. De forma semelhante à peça O abajur lilás, nesta versão de Chapéu sobre um paralelepípedo para alguém chutar, cada um dos três mendigos assume uma postura diferente diante da opressão dos “patrões”. A vaidosa Totoca é logo cooptado através de um “cargo” superior. Manduca que pregava a união de todos, acaba sendo “demitido” e no desespero solitário, rouba um chapéu e é preso. Já Popo fica na dúvida em ajudar a libertar ou não Manduca, encontrando-se diante do dilema de “se omitir” e não salvar o companheiro da morte, ou agir e “arrumar encrenca”. O final desta peça, escrita e encenada nos exaltados meses anteriores ao AI-5, também se distingue do desfecho das outras versões. Depois da execução de Manduca (explicitamente mostrada em cena): (Popô fica em pose clássica de pensador por alguns instantes . Depois levanta-se, recolhe os chapéus e atira-os para o público) (Todos o cercam ameaçadoramente) Popô: (para o Teco) E agora? (Teco olha ameaçadoramente, Popô começa a rir, gargalha, e todos, rindo e gargalhando, contorcendose de riso, esperam o pano cair). 177 Mandrião: [... o Manduca] anda com idéias / Teco: Cruz, credo. / Mandrião: Isso é grave. / Teco: Lamentável / Mandrião: Terrível. / Teco: Gravíssimo / Mandrião: lamentável / Teco: Terrível. / Mandrião: Gravíssimo. / Teco: lamentável. / Mandrião: Terrível. / Teco: Gravíssimo. / Mandrião: Chega. 178 Num momento, quando Teco fala dos problemas com Popo, Manduca e Totoca, Mandrião conta um caso que ele viu. “Mandrião: [...] fui para atrás de uma árvore próxima, para escutar o que diziam. / Teco: Como você sabe que foi atrás da árvore, poderia estar na frente. / Mandrião: E onde é a frente da árvore. / Teco: Do lado oposto ao montinho de cocô. / Mandrião: Como você sabe? / Teco: Elementar meu caro Watson, todo mundo caga atrás da árvore.” 133 Plínio encerra sua peça não mais de forma otimista, com a conscientização plantando esperanças de um futuro melhor, mas propondo a ação concreta e o enfrentamento imediato. Entretanto, ao impasse diante da ameaça do horror e da violência, só resta a histeria coletiva. Mas voltando a 1962, no teatro universitário do Teatro de Arena, junto com Os fantoches Plínio Marcos apresentou a peça em um ato, Enquanto os navios atracam, que seria reescrita seis anos mais tarde com o título de Quando as máquinas param. Além de mais curta, esta primeira versão do texto apresentava algumas diferenças em relação àquela que se consagrou como a versão definitiva da peça. Comparando com a reformulação posterior, o casal de personagens (Zé e Nina). de Enquanto os navios atracam não são tão bem delineados e é menos elaborada sua evolução dramática. A história é basicamente a mesma, centrada nos dois jovens recém-casados e apaixonados cujas dificuldades financeiras acabam levando a um confronto final, qua ndo o homem, desiludido com o futuro, desfere um soco na barriga da mulher que tinha anunciado estar grávida. A contundência do drama já estava fortemente presente em Enquanto os navios atracam, em diálogos como: Nina: Não dá para ter filho por quê? Zé: Porque a gente não tem dinheiro. Filho é privilégio de rico. Se em Quando as máquinas param, Zé é um operário não especializado demitido da fábrica, em Enquanto os navios atracam o personagem é um “bagrinho” do cais do porto tentando se tornar um estivador e, conseqüentemente, ser sindicalizado. Curiosamente, como em Eles não usam black-tie, na peça de Plínio encenada pelo teatro universitário do teatro de Arena é delineado um conflito de gerações, através do pai de Zé, Seu Mané, inexistente na versão seguinte. Ele é justamente o presidente do sindicato dos estivadores e a resistência de Zé em trocar de profissão (tornar-se motorista, como quer Nina) se deve, em parte, por teimosia, em parte por crença no destino. “Vou ser estivador como meu pai foi e como meu filho vai ser”, diz o bagrinho em determinado momento, justificando-se em outro: “Homem tem que vencer naquilo que escolheu, senão ele fracassa”. O pai de Zé, entretanto, se recusa a ajudá-lo a entrar no sindicato, afirmando que “nos tempos da Guerra” a situação era muito pior e ele se virou sozinho. A solidariedade, sentimento aparentemente raro dos personagens plinianos, nesta peça, sequer existe entre pai e filho. A peça Quando as máquinas param termina somente com o soco de Zé na barriga da esposa grávida – “que se dobra lentamente e vai caindo, com espanto e dor na expressão, 134 sempre olhando para Zé” – atingindo em cheio, sem mais palavras, também a platéia. Já no desfecho da anterior Enquanto os navios atracam, as últimas falas imediatamente seguintes à agressão do marido e encerrando definitivamente o espetáculo, são talvez ainda mais perturbadoras: Nina (em dores): Eu não sou mais tua mulher, Zé. Zé: É sim, Nina. É sim. Tentando montar suas peças no Arena num esquema profissional, as duas outras peças que Plínio escreveu em 1964 e 1965 são bastante significativas de uma tentativa do dramaturgo em acompanhar as tendências do teatro brasileiro, embora de forma frustrada. A primeira, Nossa gente... nossa música, um musical em dois atos, tinha texto de Plínio Marcos, roteiro e direção de Dalmo Ferreira e músicas de vários autores populares como José Francisco, Antônio Martins, Celso Clóvis, Carlos Magno, Haroldo Costa, Chuvisco e Elton Medeiros. O musical de Plínio inseria-se numa linha de peças que apresentavam um forte vínculo com a música popular brasileira. O enorme sucesso do espetáculo Opinião, que estreou em dezembro de 1964, no Rio de Janeiro, lançou a fórmula da “colagem lítero-musical”, nas palavras do crítico Yan Michalski. Sob a direção de Augusto Boal, o texto de Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa era entremeado por canções interpretadas pelo trio Nara Leão, a menina de Copacabana (depois substituída por Maria Betânia), Zé Kéti, o sambista do morro, e João do Vale, o cantador nordestino. Nessa mesma linha seguiram espetáculos montados pelo Arena em 1965, como Arena conta Zumbi, Arena conta Bahia, além de outros que “se aproximavam mais de um show de música do que de uma encenação teatral”, como Este mundo é meu e Tempo de guerra. Iniciava-se uma fase predominantemente musical do grupo, que passou a contar com colaboradores e intérpretes como Sérgio Ricardo, Toquinho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Betânia, Tom Zé e Maria da Graça, futura Gal Costa (MICHALSKI, 1985, p.22-23). Da mesma maneira que alguns desses espetáculos, Nossa gente... nossa música também apresentava vários quadros curtos, entremeando canções com cenas envolvendo figuras arquetípicas do povo, como boiadeiros, cantadores, pescadores, marinheiros, sambistas do morro e macumbeiros. Mas o texto de Plínio não parece ter a mesma força em diálogos que remetem a um universo rural (é curioso uma fala pliniana num tom “caipira” como: “Nessa vida num há dotô que dê jeito”) ou nos piadas e “causos” que permeiam a peça. 135 Algumas vezes o texto resvala para clichês, sem renová- los na forma ou no conteúdo, como o velho drama do sambista do morro que vende sua canção para músico do asfalto que lhe prometera parceria, mas depois descobre ter sido passado para trás quando ouve a composição tocando no rádio apenas com o nome do impostor. 179 Do mesmo modo que em seus textos anteriores, em Nossa gente... nossa música também encontramos, mesmo que dispersos, elementos marcantes da dramaturgia pliniana, embora novamente atravessados por um otimismo no horizonte. No final da história, o sambista, ao lado de sua namorada, mesmo descobrindo que foi enganado pelo “parceiro”, tem esperança no futuro: Cabrocha: Mas eu acho que não está certo. Sambista: O que? Cabrocha: A vida. Um engolindo o outro. Sambista: Deixa pra lá. Amanhã é outro dia. Ou seja, ao contrário do que afirma Sônia Regina Guerra (1988, p.164), que analisou a obra pliniana como um das precursores da geração de 69 do teatro brasileiro, a experiência de Plínio Marcos com o Arena e o CPC representou efetivamente em seus textos, especialmente aqueles escritos entre 1962 e 1964, uma significativa influência de uma estética cepecista e populista, ainda que misturadas às características mais autorais de seu teatro, já esboçadas em Barrela. Entretanto, como todo o teatro brasileiro, Plínio também sinalizou uma mudança de rumo após o golpe de 1964. Reportagem de um tempo mau, proibida pela censura no dia de sua estréia em 1965, era uma peça de apenas um ato, com texto de Plínio Marcos e colagem de citações diversas, de Brecht até a Bíblia, passando por autores como C. N. Bialik e Langston Hughes. 180 A peça fala de diversos assuntos como intolerância, preconceito, bomba atômica e racismo nos EUA, através de diálogos curtos, canções, poesias e esquetes. O Brasil surge no palco através da música nordestina e de um diálogo entre um camponês e um coronel expressando a exploração do trabalho no campo. O texto não deixa de ser atravessado por 179 Essa mesma história, pano de fundo em Eles não usam black -tie (a composição roubada tem, justamente, o nome da peça) e trama principal de Rio zona norte, já tinha sido explorada antes em diversas ocasiões e obras, como no filme Quem roubou meu samba? (dir. Hélio Barroso e José Carlos Burle, 1959). O próprio Plínio escreveria mais tarde um conto, Uma história de amor, girando em torno do mesmo drama, mas com resultado mais interessante. 180 Do poeta negro Langston Hughes eram declamados trechos de seu poema Ku Klux Klan, enquanto do escritor Chaim Nachman Bialik, parte de Na cidade da matança, sobre o massacre de judeus ocorrido na Rússia, em 1903. 136 argumentos um tanto simplistas e maniqueístas, como na condenação da indústria cultural e do imperialismo norte-americano simbolizando o caos, em cenas que os atores dançam e gritam freneticamente ao som de um “Rock alucinante”. Alguns dos trechos mais curiosos de Reportagem de um tempo mau são os depoimentos de três pessoas, numa espécie de análise de grupo. O primeiro é o de uma mulher casada com um homem rico, mas que sofre de solidão e angústia. Em busca de realização, tem três filhos, escreve poemas, mas ao final, termina se entregando a inúmeros amantes. O segundo depoimento é o de um garoto ignorado pelos pais que acaba tendo uma “relação” com o primo, sendo depois desprezado por ele. Atormentado, se questiona: “eu sou um pederasta! Não sou?”. Por último, um rapaz solitário conta que foi levado a um bordel pelo padrasto para perder a virgindade, mas traumatizado, torna-se zoófilo. Todos os três choram no final de suas falas e são confortados por sentenças rigorosamente iguais de uma espécie de psiquiatra, agradecendo a confiança por terem compartilhado seus dramas. Os personagens burgueses são, enfim, adúlteros, homossexuais reprimidos, pervertidos e igualmente infelizes. O final da peça, escrita após o golpe de 1964, termina com um tom pessimista, com os atores entrando em fila e no centro do palco, enforcando-se com gravatas. É importante sublinhar também nesse período a relação de Plínio Marcos com o Teatro de Arena, que juntamente com o Oficina, era o grupo mais importante do teatro brasileiro de então. Plínio se juntou à companhia assim que chegou a São Paulo e permaneceu com ela até aproximadamente 1965. Nelson Rodrigues deu seu testemunho sobre essa questão. Reacionário assumido, crítico ferrenho do teatro politizado (ou panfletário) de esquerda e diversas vezes envolvido em polêmicas com os jovens e engajados dramaturgos da geração do Arena – basta conferir suas rusgas públicas com Vianinha (cf. MORAES, op. cit., e CASTRO, op. cit.) –, Nelson abordou esse período da carreira de Plínio com seu estilo caracteristicamente ferino e, obviamente, parcial: Eu diria que a fatalidade de Plínio foi ter começado no Teatro de Arena. Não sei se vocês sabem, mas o Arena é quase um SBAT. Lá o sujeito não dá um passo sem esbarrar, sem tropeçar num autor. Ora, não há ninguém que abomine mais um autor do que outro autor. E o Arena estava sendo um necrotério para as esperanças autorais de Plínio. Seus companheiros o suportavam como administrador, secretário, gerente, bilheteiro; como dramaturgo, jamais (RODRIGUES, 1996, p.126). 137 Em outra crônica em que Nelson falou de Plínio Marcos, que naqueles politizados anos de chumbo foi “o único autor jovem que ainda ousava dizer-se seu fã” (CASTRO, op.cit., p.370), o autor de Vestido de Noiva mais uma vez tocou no tema: Plínio Marcos passou, no Teatro de Arena, meses, anos. Não saía de lá. Conversou mil vezes com Augusto Boal; com Guarnieri; e com os outros. Todos o viam com os flancos abarrotados de fecundidade. Ele faz, a bem dizer, uma peça por dia. Pois essa abundância autoral causava, no Teatro de Arena, o maior desgosto e nojo. Jamais Augusto Boal ou Guarnieri foi dizer ao pobre Plínio: – ‘Vamos te montar’ (a frase saiu-me horrível). Se o não tão jovem autor ainda lá estivesse, continuaria virginalmente inédito. Sim, não teria uma vírgula encenada. Até que, um dia, apanhou um original seu e foi representá-lo num boteco. E o público de paus-d’água, gigolôs, contrabandistas e senhoras indignas foi muito mais generoso e solidário do que o Teatro de Arena. Ali começou a glória (RODRIGUES, 1993, p.112-113). De fato, as farpas disparadas por Nelson Rodrigues procedem em parte. Plínio nunca conseguiu ter uma peça montada profissionalmente pelo Teatro de Arena, grupo que era realmente conhecido por ser fechado internamente e só encenar peças de seus membros. Por outro lado, justiça seja feita, é importante lembrar, por exemplo, que Reportagem de um tempo mau, cujo pedido de avaliação enviado ao Serviço de Censura foi assinado por Augusto Boal, só não estreou devido à proibição da Polícia Federal. Ainda assim, é verdade que Plínio só alcançou o sucesso ao se desligar da companhia. Independente de ter sido iludido, sabotado ou desprezado, foi principalmente por se afastar do campo de influência do Arena que o dramaturgo pôde, afinal, amadurecer um estilo mais pessoal. Talvez tenha havido algum rancor (ou, segundo Nelson Rodrigues, despeito e inveja) nesse desligamento, pois a principal referência negativa feita posteriormente por Plínio aos colegas do Arena foi justamente em relação à injusta divisão de renda que a companhia impôs à ele para encenar Dois perdidos numa noite Suja no Teatro da Rua Teodoro Baima, depois que o palco do boteco Ponto de Encontro ficou pequeno para seu sucesso. 181 Mas seja qual tenha sido o papel que o Teatro de Arena representou para a carreira de Plínio Marcos, a análise dos diversos caminhos pelos quais o dramaturgo se aventurou depois de Barrela até finalmente encontrar o estilo que o consagraria, de qualquer maneira permite perceber em várias das peças escritas nesse período inúmeros elementos que seriam aproveitados posteriormente em outras de suas obras. 181 182 Nas palavras do próprio: “Fomos pro Teatro de Arena. Pagamos 70 por cento de aluguel. Um roubo. O normal é cobrarem 20, 30 por cento no máximo. Quem pediu isso foi o Augusto Boal, Guarnieri e todos os outros sócios. E nem mesmo com essa onda toda foram assistir ao espetáculo, ignoraram” (MARCOS, Plínio. O Maldito divino. Caros Amigos, São Paulo, n.6, p. 37, set. 1997. Entrevista concedida aos redatores da revista). 182 Alguns exemplos: na peça Enquanto os navios atracam, uma cena em que Zé manda Nina embora de casa, mas depois não a deixa sair pela porta, é semelhante ao que ocorre entre Vado e Veludo em Navalha na carne. 138 Desse modo, a grande mudança na carreira de Plínio Marcos ocorreria em 1966, quando partindo do conto O Terror de Roma (Il terrore di Roma), do escritor italiano Alberto Moravia, o dramaturgo escreveu Dois perdidos numa noite suja, atingindo a maturidade de sua dramaturgia e re-encontrando o sucesso. Por outro lado, podemos ainda pensar se essa peça de Plínio não estaria de certa maneira também no rastro da “nacionalização ou atualização de clássicos” empreendia pelo Arena, que levou aos palcos versões abrasileiradas ou atualizadas de peças de Moliére, Martins Pena e Gogol, ou das montagens de tom realista das peças de Gorki pelo Oficina. Depois de Dois perdidos numa noite suja, com Navalha na carne, Homens de Papel, Quando as máquinas param, entre outras peças, Plínio Marcos definitivamente construiu um estilo e uma obra autoral. Mas nesse momento especial da cultura brasileira em que o dramaturgo atingiu sua consagração, entre 1966 e 1968, o país já tinha mudado muito em relação à época em que ele escrevera Barrela, assim como também tinham mudado em muito o panorama do teatro e do cinema brasileiro e suas relações. A minha música não traz mensagem E não faz chantagem ou guerra fria E nem fala em ideologia Eu vim apenas para lhes falar De uma grande perda Que eu não sei Se é da direita ou da esquerda Guto Graça Melo e Mariozinho Rocha, Manifesto. É proibido proibir. Se na década de 50 o teatro foi o principal meio de expressão artística da juventude intelectualizada em processo de crescente politização, na passagem para os anos 60, o cinema é que se impôs como opção preferencial. Isso se deu quando jovens formados no movimento cineclubista, com passagens pela crítica cinematográfica, admiradores do cinema europeu e inspirados pelo slogan “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, começaram a partir para a realização de filmes. Em Reportagem de um tempo mau há um poema (“Para o poeta, o castigo / Para o monge, a guilhotina / Para o profeta, a cruz / E nós, onde vamos?”) que posteriormente ampliado, seria aproveitado no final da peça O abajúr lilás. 139 Segundo Ismail Xavier (2001, p.63), “o Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia de produção, em nome da vida, da atualidade e da criação. Aqui, atualidade era a realidade brasileira, vida era o engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias e capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da experiência social”. A produção cinematográfica dessa geração – que de maneira alguma se restringiu somente aos consgrados cinema-novistas –, foi resultado da busca por satisfazer um desejo de criação e expressão artística. Muito freqüentemente esses jovens diretores tiveram que jogar criativamente com o improviso e a precariedade, através do uso de pontas de negativo, maquinário antigo e equipes amadoras e mínimas. Por outro lado, a realização desses novos filmes também esteve condicionada a inovações técnicas como o surgimento de câmeras mais leves, equipamentos mais baratos, aparelhagens como Nagra ou a popularização da bitola 16 mm, além do crescimento do mercado publicitário (que ainda usava película) e da cadeia de laboratórios cinematográficos. Foi nesse contexto – não só brasileiro, mas como também em outros países – que muitos jovens artistas passaram a optar pelo cinema como canal de expressão de suas idéias e anseios em detrimento dos até então mais atraentes campos do teatro e literatura. Da mesma forma que ocorrera no teatro, com o “abrasileiramente” dos palcos nacionais no final da década de 50, os cineastas brasileiros igualmente expressavam o desejo de criar, pela primeira vez, um “estilo cinematográfico nacional” (GALVÃO; BERNARDET, op.cit., p.183). Uma das resoluções finais da Primeira Convenção Nacional da Crítica, realizada em 1960, já colocava como uma das metas: Afirmar a necessidade de o cinema nacional fundamentar-se, sempre que possível, nos nossos costumes, na realidade política e cultural da terra e da gente brasileira, aproveitando-se da experiência e das obras do nosso teatro, da nossa literatura, da nossa música e das nossas artes plásticas, criando assim um estilo próprio que retrate fielmente a paisagem, o homem e a vida brasileira (Ibid, p.189) (grifo meu). Também de maneira semelhante ao que ocorrera no teatro nacional, no cinema esse desejo surgia como uma segunda etapa, após os inegáveis avanços da década de 1950. JeanClaude Bernardet ressaltou que “nos anos 60, já estava realizada a ‘revolução técnica’ que a Vera Cruz efetivamente trouxe ao cinema brasileiro”, incluindo também aspectos estéticos na “conquista da linguagem”. A desmistificação da técnica e da sintaxe de um tipo de cinema tido como universal e baseado na linguagem clássica narrativa que se consolidou como 140 hegemônica, foi um primeiro passo decisivo para a constituição, nos anos 60, de uma estética para o cinema brasileiro que não se definiu apenas pela negação (Ibid, p.195-196). 183 Da mesma maneira, deve ser lembrado o contexto de um período que vinha sendo celebrado como o do renascimento artístico do cinema mundial, iniciado com o neo-realismo italiano e seguido pelo aparecimento de diretores (ou, como passaram a ser chamados, autores) como Satyajit Ray, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, Robert Bresson ou Federico Fellini, a “descoberta” do cinema japonês de Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi, e, posteriormente, o surgimento de movimentos como o Free Cinema inglês e a Nouvelle Vague francesa. Ou seja, um novo cinema brasileiro estava obviamente em consonância com os “Novos Cinemas” que surgiam no mundo todo, como no Leste Europeu, em Cuba, na América Latina e no Japão. Por outro lado, os jovens cineastas brasileiros não deixaram de se empenhar num esforço de legitimação artística deste novo cinema nacional, inclusive através de um exercício de construção teórica e crítica a partir de uma ruptura com o passado. Não se deve esquecer que muitos filmes hoje clássicos do Cinema Novo não foram recebidos na época com elogios unânimes da crítica e muito menos como sucessos absolutos de público. Assim como a montagem de Vestido de Noiva, em 1943, foi legitimada como marco fundador do teatro moderno brasileiro com a aprovação e elogios de crítico literários ou de uma nova crítica interessada em igualmente legitimar-se como moderna, também foi notável o esforço intelectual do Glauber Rocha de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (livro publicado em 1963) na aproximação do cinema com outros campos de expressão artística. Reconhecendo em Humberto Mauro as raízes de um almejado cinema verdadeiramente nacional, o veterano cineasta estrategicamente foi comparado a escritores, músicos ou artistas plásticos do porte de José Lins do Rego, Jorge Amador, Portinari, Di Cavalcanti, Jorge de Lima ou Villa- Lobos, sendo colocado no mesmo patamar de outros grandes nomes da poesia e do romance brasileiro. 183 184 Além da Vera Cruz, na década de 50 os filmes da Atlântida e de outros estúdios cariocas (tanto os “sérios” quanto as chanchadas) foram também responsáveis pela aquisição de um maior domínio da narrativa clássica por realizadores como Alex Viany, José Carlos Burle, Carlos Manga ou Jorge Ileli. O cineasta Roberto Farias, por exemplo, um dos mais talentosos de sua geração, teve como escola a participação em filmes de Watson Macedo e a direção de algumas comédias no começo de sua carreira. O mesmo pode ser dito de Anselmo Duarte, galã da Atlântida e da Vera Cruz nos anos 40 e 50, que depois passou à direção. 184 Não se tratava, em absoluto, de uma estratégia que nunca tivesse sido tentada na história do cinema brasileiro. Nos primórdios do cinema silencioso, muitos “posados” eram adaptações de obras de José de Alencar. Já a Cinédia produziu uma adaptação do romance de José Lins do Rego, Pureza (dir. Chianca de Garcia, 1940), e o escritor que também foi creditado como o autor dos diálogos caipiras da comédia urbano-rural O dia é nosso 141 Uma outra forma importante de legitimação empreendida pelo Cinema Novo brasileiro se deu através do prestígio internacional alcançado em festivais europeus com os muitos prêmios recebidos nos primeiros anos da década de 60. Já em 1965, depois da consagração na França, Alemanha e Itália, dos elogios da crítica internacional e, da mesma forma, do reconhecimento de parte da crítica brasileira, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos podiam afirmar, respectivamente, que “o cinema brasileiro não é mais uma atividade divorciada das demais atividades culturais de nível mais alto do país”, e que “hoje o diretor de cinema está no mesmo nível do que qualquer outro intelectual integrado no processo cultural brasileiro, o que não acontecia antigamente”. 185 Da mesma forma que ocorrera com o “nascimento” do teatro brasileiro moderno nos anos 40, o surgimento do Cinema Novo – tenha sido um movimento ou escola ou apenas um surto ou rótulo – confirmava definitivamente a concepção do “cinema brasileiro moderno no Brasil” iniciada por Nelson Pereira dos Santos nos anos 50. Mais além, acreditando que o cinema brasileiro acompanhava mudanças em diversos campos da cultura brasileira, Glauber Rocha afirmava, em entrevista de 1965, que: Antes de surgir o Cinema Novo, surgiu o movimento de renovação do teatro brasileiro (com o teatro de Arena), dentro daquela consciência de nacionalismo que começou a tomar forma nos últimos anos de Getúlio Vargas e que minha geração conheceu nos turbulentos governos subseqüentes de Juscelino, Jânio e Jango. 186 Conforme Ismail Xavier (2003, p.225), as propostas de atualização do teatro brasileiro, como a dos jovens do Arena e do Oficina, realmente proporcionaram uma transformação “que poderia ser vista, grosso modo, como paralela ao processo que preparou o cinema novo”. Entretanto, o diálogo entre os dois terrenos “foi mais tímido do que seria de esperar”. Desse modo, é possível concluir apressadamente que ao longo dos anos 60, excluindo o espectro político, as relações entre o “cinema moderno brasileiro” e “teatro brasileiro moderno” não tenham sido marcadas por um diálogo forte e continuado, ao contrário do (dir. Milton Rodrigues, 1941). No início dos anos 60, entretanto, essa aproximação do cinema com outros campos da cultura como forma de legitimação foi muito mais bem-sucedida. 185 (CINEMA Novo: origens, ambições e perspectivas. Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Alex Viany. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n.1, mar. 1965); Por outro lado, importantes prêmios recebidos pelos filmes da Vera Cruz (especialmente O Cangaceiro) e, principalmente, a Palma de Ouro conquistada por O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, não foram valorizados, mas identificados como equívocos de uma crítica estrangeira alheia à realidade brasileira. 186 CINEMA Novo: origens, ambições e perspectivas. Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Alex Viany. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n.1, mar. 1965. 142 diálogo do Cinema Novo com a literatura e a música. Ainda assim, do mesmo modo como em toda a história cinema no Brasil, o teatro nacional continuou exercendo uma forte presença no campo cinematográfico, tanto através de adaptações de peças, quanto compartilhando atores, diretores e também preocupações temáticas e formais. 187 É interessante apontar, por exemplo, que muitos dos futuros cineastas do próprio Cinema Novo, antes de se dedicarem ao cinema, se interessaram primeiramente pelo teatro. Leon Hirszman foi ligado ao grupo do Teatro de Arena e às atividades teatrais do CPC da UNE. 188 Arnaldo Jabor foi outro membro do grupo de teatro do CPC e afirmou que antes do Cinema Novo “não tinha contato maior com cinema. O que me interessava, então, era o teatro”. 189 Paulo Cezar Saraceni também relatou que quando jovem, por não gostar de chanchada, decidiu se dedicar ao teatro por “curtir” ator e literatura estrangeira: “No teatro fui assistente de direção do Ziembinski e até pude dirigir Cacilda Becker em Pega fogo. Fui assistente de Adolfo Celi, Eugenio Kusnet e finalmente Paulo Francis”. 190 Glauber Rocha, ainda em Salvador, participou da série de espetáculos teatrais As jogralescas, no colégio Central, além dos espetáculos da Escola de Teatro da Bahia, onde conheceu Helena Ignez, sua primeira esposa. Além disso, o Cinema Novo aproveitaria abundantemente em seus filmes toda uma nova geração de atores oriundos, por exemplo, do Teatro de Arena, como Nelson Xavier, Vianinha, Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio, Paulo José, Isabel Ribeiro ou Dina Sfat. Entretanto, a nova geração de cineastas que pretendia revolucionar o cinema nacional, escrevendo uma nova página da história do cinema brasileiro, mesmo buscando legitimação em outros campos da cultura brasileira de maior expressão – como a música ou a literatura – fazia questão de estrategicamente se distinguir das demais expressões artísticas, especialmente 187 Da mesma forma que nas décadas anteriores, nos anos 60 foram realizadas muitas adaptações cinematográficas de peças nacionais. É notável, inclusive, um intervalo muito curto entre as carreiras das peças no teatro e no cinema, o que demonstra a permanência de um diálogo fértil entre os dois meios. Além das peças da geração de dramaturgos engajados política e socialmente (que serão abordadas posteriormente), também foram levadas às telas comédias de novos autores como Gláucio Gil (Procura-se uma rosa ou Toda donzela tem um pai que é um fera) ou João Bethencourt (Como matar um playboy). Da mesma forma, a primeira onda de adaptações para o cinema de peças de Nelson Rodrigues entre 1962 e 1966, se interessou especialmente por peças então recentes, como Boca de Ouro, de 1960, Beijo no Asfalto, de 1961, e Bonitinha, mas ordinária, de 1962. 188 Leon participou do Seminário de Dramaturgia de Boal e de peças como Revolução na América do Sul, no Arena. Como membro do CPC da UNE, fez a “parte de cinema” da peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, com imagens do cine jornal Atualidades francesas e de filmes de ficção (LEON DE OURO: RETROSPECTIVA DA OBRA DE LEON HIRSZMAN, 1995, Rio de Janeiro. Catálogo... Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1995). 189 Filme Cultura, n.17, nov-dez. 1970. 190 VIANY, Alex. Os primeiros sinais do cinema novo, 13 jun. 1979. Mimeografado. Acervo Alex Viany. 143 do sempre ameaçador teatro. Um momento emblemático desse desejo ocorreu ainda em 1959, na tentativa de se escrever um manifesto do então embrionário Cinema Novo. O responsável por fazer a síntese de todas as discussões teóricas do grupo foi Miguel Borges. Segundo as palavras de Saraceni em sua autobiografia Por dentro do cinema novo (1993, p.47), o manifesto acabou sendo o máximo da alienação, pois começava assim: ‘Não queremos mais cinema literatura, não queremos mais cinema teatro, não queremos mais cinema música, não queremos mais cinema ballet, não queremos mais cinema arquitetura, não queremos mais cinema pintura, não queremos mais cinema escultura, queremos cinema cinema.” A leitura de Miguel Borges gerou um debate acirrado e uma réplica bastante espirituosa de Saraceni acabou batizando o frustrado manifesto: “isso é igual ao filho pedir ao pai uma bola, não de futebol, nem de basquete, nem de vôlei, nem de tênis, nem de pingue-pongue, eu quero é uma bola bola!” O manifesto acabou ficando conhecido como “Manifesto Bola Bola” e o grupo desistiu da idéia. As veementes acusações feitas por Saraceni na época – “Isto é manifesto dos anos 20, do cinema mudo. Pretensioso, nem Eisenstein assinaria. Ridículo” – eram, de fato, críticas bastante pertinentes. Conforme Robert Stam (2003, p.43), de modo geral os teóricos do cinema mudo se mostravam muito mais determinados a tentar demonstrar e afirmar as potencialidades artísticas do cinema seja, por exemplo, através de sua diferenciação em relação às outras artes. Na década de 50, isso já tinha sido há muito superado pelos teóricos menos defensivos e elitistas, e que já tomavam o estatuto artístico do cinema como pressuposto. Do mesmo modo que nos cineastas, numa parcela da crítica cinematográfica brasileira dos anos 50 e 60 ainda se notava a permanência de uma concepção clássica do cinema como ‘arte autônoma e essencialmente vis ual’. Jean-Claude Bernardet (1983, p.233) chamou a atenção para isso no caso do filme Boca de ouro (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1962) – um marco na “evolução do diálogo no cinema brasileiro” – que apontava para dois caminhos na solução do problema da língua nos filmes: “o apoio no moderno teatro nacional e a incorporação da linguagem popular”. Mas nesse caso, como aconteceria com a adaptação cinematográfica de Navalha na carne, dirigida por Braz Chediak em 1969, o “excesso” de diálogos (independente de sua qualidade ou vulgaridade) foi criticado por tornar o filme menos cinematográfico e mais teatral. Por outro lado, a influência da politique des auters, com a crença no diretor como verdadeiro e único “autor” do filme (e preferencialmente, assinando também seu argumento e 144 o roteiro), não incentivava a adaptação para o cinema de obras literárias ou dramáticas de nomes conhecidos. Como apontou James Naremore (2000, p.6), um dos mais bem guardados segredos dos cineastas da Nouvelle Vague era que muitos dos seus próprios filmes eram baseados em romances. As fontes que eles escolhiam, entretanto, eram geralmente pouco sofisticadas, e quando eles adaptavam textos “sérios” e “importantes” ou escreviam ensaios sobre adaptações desse tipo, eles faziam questão de que o cineasta (auteur) parecesse mais importante que o escritor (author). 191 Segundo François Truffaut, estritamente de acordo com o “autorismo” que caracterizou a Nouvelle Vague, não haveria boa ou má adaptação, nem sequer bons ou maus filmes, mas somente autores de filmes e suas políticas. Ou seja, Truffaut assumia para o campo das adaptações a frase de Girardoux, praticamente um lema da politique des auteurs: “não existem obras, só existem autores”. 192 Por outro lado, foram extremamente férteis as relações do Cinema Novo com a literatura, ocorrendo não apenas através do diálogo com determinadas obras ou escritores (como o de inúmeros cineastas com a literatura regionalista dos anos 30 ou, em particular, de Joaquim Pedro de Andrade com Mário e Oswald de Andrade e de Paulo Cezar Saraceni com Lúcio Cardoso), mas especialmente “com a própria produção literária pelo intermédio da caracterização dos personagens ou por citações” (BERNARDET, 1995, p.155). Ainda assim, não foram muitos os filmes do Cinema Novo exp licitamente assumidos como “adaptações formais” de outros textos. O padre e a moça (dir. Joaquim Pedro de Andrade, 1965), por exemplo, nos créditos se assume apenas “sugerido” pelo poema de Carlos Drummond de Andrade. Ou seja, a maior parte dessas adaptações foi exaltada justamente pela “recriação cinematográfica” dos elementos das obras originais, como a luz 191 Na clássica entrevista com Alfred Hitchcock, Truffaut comenta o fato de o diretor inglês ter optado principalmente por adaptações “de uma literatura estritamente recreativa, de ro mances populares”, remanejadas até se tornarem “filmes de Hitchcock”, embora muitas pessoas desejassem vê-lo levando às telas obras “importantes”, como Crime e Castigo. Hitchcock concorda com a observação, afirmando que jamais adaptaria o livro de Dostoiévski, mas se o fizesse, não teria um bom resultado. Segundo o diretor inglês, uma adaptação “séria” do clássico do escritor russo deveria ter de seis a dez horas, por ser necessário substituir pela linguagem cinematográfica todas as palavras da obra, cada uma delas com alguma função essencial. A questão colocada por Truffaut, e afirmada por Hitchcock, de que “uma obra -prima é alguma coisa que por definição encontrou sua forma perfeita, sua forma definitiva”, nos mostra que nem mesmo a Nouvelle Vague estava absolutamente livre da idéia de respeito aos clássicos literários (TRUFFAUT, 1988, p.45-46). 192 TRUFFAUT, François. Ali Baba e a “política dos autores”. Cahiers du Cinéma, n.44, fevereiro de 1955. In: NOUVELLE VAGUE, Lisboa. Catálogo... Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 1999. 145 estourada de Vidas Secas (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1963) de acordo com a secura e aridez tanto do sertão nordestino quanto da prosa de Graciliano Ramos. 193 Como os filmes da Nouvelle Vague, as obras cinema- novistas procuravam destacar sua especificidade em relação às fontes nos quais se basearam, entretanto, ao contrário dos filmes franceses, adaptaram ou dialogaram com obras de autores consagrados da cultura brasileira, inclusive de forma a legitimar seu cinema como uma continuidade da busca de “estilo nacional” iniciado por esses escritores. O distanciamento temporal – fosse em relação aos modernistas ou aos regionalistas –, por outro lado, ajudava a não “prejudicar” tanto a questão da “autoria” do filme. Esse questionamento pode nos encaminhar na compreensão, por exemplo, das razões por não ter sido fértil o diálogo desse mesmo cinema com a literatura nacional contemporânea ao próprio movimento cinema- novista. 194 Da mesma forma, o quadro esboçado nas linhas acima pode, talvez, também ajudar a esclarecer o fato de as adaptações para o cinema de peças teatrais da geração de jovens dramaturgos surgidos na década de 50 e 60 – como Jorge de Andrade, Ariano Suassuna, Gianfrancesco Guarnieri, Dias Gomes, Lauro César Muniz e Plínio Marcos –, mesmo que de alguma maneira alinhados ao Cinema Novo pela concepção do nacional-popular, terem sido levados para a tela por diretores de um dito “cinema comercial”, como Anselmo Duarte, George Jonas, Flávio Rangel, Carlos Coimbra ou Braz Chediak. 193 195 Em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, escrevendo sobre Boca de Ouro, Glauber afirma que “não pode ser considerado uma obra de autor, pois o próprio Nelson, neste filme, confessa que foi apenas um artesão do texto de Nelson Rodrigues” (1963, p. 83). Sobre premiada adaptação de Anselmo Duarte, diz que ele “em O Pagador de Promessas esteve preso às limitações exigidas por Dias Gomes e teve pouca liberdade criadora [...]. Ainda prefiro, por razões de verdade, o diretor simples, espontâneo e pessoal de Absolutamente Certo [com roteiro do próprio Anselmo], seu verdadeiro filme de autor” (Ibid, p.135). 194 Romances de escritores como Carlos Heitor Cony, Fernando Sabino ou Ignácio de Loyola Brandão foram adaptados em filmes como Antes o verão (dir. Gerson Tavares, 1968), O Homem Nu (dir, Roberto Santos, 1968) ou Bebel, a garota-propaganda (dir. Maurice Capovilla, 1986), dirigidos por cineastas dificilmente identificados como “cinema -novistas autênticos”. 195 O pagador de promessas, (dir. Anselmo Duarte, 1962), adaptação da peça homônima de Dias Gomes, de 1960; Gimba, presidente dos valentes (dir. Flávio Rangel, 1963), adaptação da peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri, de 1963; O Santo Milagroso (dir. Carlos Coimbra, 1965) adaptação da peça homônima de Lauro César Muniz, de 1963; Vereda da salvação (dir. Anselmo Duarte, 1965), adaptação da peça homônima de Jorge de Andrade, de 1961; A Navalha na carne (dir. Braz Chediak, 1970), adaptação da peça Navalha na carne, de Plínio Marcos, de 1967; e A Compadecida (dir. George Jonas, 1970), adaptação da peça O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, de 1956. Na década de 60, existiram ainda outros projetos que não foram realizados: Glauber Rocha chegou a planejar a adaptação de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues. Este projeto acabou dando origem ao filme A falecida, dirigido por Leon Hirszman, que anteriormente tinha a intenção de levar às telas a peça então inédita de Dias Gomes, Odorico, amor e morte (que se transformaria nos anos 70 na telenovela O Bem Amado). Outra peça de Dias Gomes, A Invasão, também foi alvo de interesse de Alex Viany, enquanto O Berço do Herói, do mesmo autor, só não foi transformada em filme pelo produtor Herbert Richers por ter sido proibida pela censura em 1965. O Auto da Compadecida, antes de chegar às telas em 1970, passou pelas mãos de Anselmo Duarte e Victor Lima. Já Nelson Pereira dos Santos, se interessou pela peça de Antônio Callado, Pedro Mico, que só viraria filme em 1985, mas dirigido por Ipojuca Pontes. 146 Num caderno especial sobre teatro publicado pela Revista Civilização Brasileira em julho de 1968, Nelson Werneck Sodré afirmava que pelo fato de o teatro e o cinema brasileiros terem assumido a vanguarda da cultura brasileira, seria bastante apropriado se falar em Cinema Novo e Teatro Novo. Por outro lado, na mesma publicação, uma tentativa de justificativa para o “diálogo tímido” entre os dois campos fo i esboçada por Luiz Carlos Maciel. Neste artigo, seu autor afirmava que a geração de teatro posterior ao Teatro Brasileiro de Comédia não levou a cabo um rompimento efetivo com a tradição estabelecida por seus antecessores. Para eles, a renovação do TBC me recia respeito e sob a aparência externa de seu ímpeto, escondia-se um caráter submisso e passivo. “Embora mais conscientes, os novos pequeno-burgueses sentiam-se fiéis continuadores dos mais velhos”. Já no campo cinematográfico, além das diferenças em relação ao caráter industrial da atividade, “a tradição anterior do cinema brasileiro não lhes merecia o respeito que se voltava ao teatro do TBC: era a desprezível chanchada que precisava ser erradicada para sempre e substituída por um cinema moderno e empenhado”. Desse modo, inventando um novo modo de produção, teria ocorrido um salto mais rápido no cinema que no teatro. 196 Embora sinalize alguns aspectos interessantes, essa análise apresenta, obviamente, várias deficiências. Mas além dos argumentos já explanados, um outro fator importante numa discussão sobre o cinema e o teatro brasileiro nos anos 60 talvez seja a questão da defesa estratégica do cinema como campo de direito dos cineastas. Numa edição da Revista de Cultura Cinematográfica, de 1963, foi feita uma lista com os 34 diretores de cinema então em atividade no Brasil, separando-os em determinadas categorias. Os grupos foram definidos por critérios aleatórios de tempo (“Os Pioneiros”), gênero (“Cinema Experimental” e “Cinema de Animação”), região (“Geração Carioca”, “Geração Paulista” e “Geração Baiana”) e, finalmente, também pela expressão artística (“Geração de Teatro ”). 196 197 Luiz Carlos Maciel aponta também para “estruturas psíquicas diferenciadas” no comportamento global dos artistas do teatro e do cinema brasileiro. O Cinema Novo seria “fálico-narcisista”,ou seja, seguro, arrogante, agressivo, desinibido e vaidoso e, em sintonia com a política dos autores, também autoritário e individualista. Já a geração posterior ao TBC seria “passiva-feminina”, sendo humilde, delicada, complacente e coletiva. Isso explicaria o fato dos cinema -novistas serem todos homens e as atrizes de teatro, ao contrário das de cinema, serem mais viris, empreendedoras e livres. 197 Dentre os Pioneiros, Humberto Mauro reinava solitário. A Geração Carioca, tinha o maior número de cineastas, abrangendo de veteranos (José Carlos Burle, Aloísio T. Carvalho) aos jovens cinema-novistas (Paulo Cezar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Marcos Farias, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Fernando Cony Campos e Miguel Borges), passando pelos seus precursores (Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany) e pelos “independentes do cinema comercial” (Jorge Ileli, Aurélio Teixeira e Carlos Hugo Christensen). Na Geração Paulista localizavam-se os remanescentes da Vera Cruz (Lima Barreto, Tom Payne, Galileu Garcia) e os novos 147 A categoria “Geração de Teatro” incluía Adolfo Celi, Alberto D’Aversa, Flávio Rangel e Flávio Migliaccio, que embora fossem efetivamente cineastas, todos eles já tendo dirigido pelo menos um longa-metragem, tinham carreiras anteriores mais significativas no teatro. 198 Formado por dois paulistas e dois italianos, os membros deste grupo parecem ser marginalizadas pela velha alcunha de “aventureiros” por virem de outro campo (e até de outro país) e invadirem o terreno dos cineastas, embora, como foi dito, a própria geração do Cinema Novo (dividida principalmente entre os baianos e cariocas), também tivesse uma origem, mesmo que passageira, no teatro. Por último, além de todos os argumentos já colocadas a respeito das relações entre o teatro e o cinema brasileiro nos anos 60, uma outra questão indispensável nessa discussão diz respeito à forma. autores, próximos ou distantes do cinema novo (Walter Hugo Khouri, Anselmo Duarte, Rubém Biáfora, Trigueirinho Neto, Carlos Coimbra e Roberto Santos). A Geração Baiana era representada somente por Roberto Pires e Glauber Rocha. Ainda eram citados os grupos do Cinema experimental (Bassano Vaccarini, Rubens F. Lucchetti), com integrantes do Centro de Cinema Experimental, anexo a Escola de Artes Plásticas de Ribeirão Preto, e outro dedicado ao Cinema de animação (Roberto Miller). Por último, restava o Cinema científico, representado somente pelo também crítico Benedito J. Duarte. 198 Adolfo Celi, diretor contratado para o TBC, também dirigiu filmes na Vera Cruz. Alberto D’Aversa, diretor, crítico e professor de teatro, já tinha dirigido filmes no exterior. Flávio Rangel era um dos principais diretores de teatro da nova geração; Flávio Migliaccio era dramaturgo e ator do Teatro de Arena. 148 Forma e conteúdo – (ir)realismo e realidade. Diferentemente do que acontecia até os anos 50, na década seguinte não era mais apenas o conteúdo o que, para o Cinema Novo, definia o caráter nacional e/ou popular de um filme, mas também a sua forma (GALVÃO; BERNARDET, 1983, p. 157). Ou então, como contou Saraceni a respeito dessa mudança (inclusive de geração), nos anos 60 se colocava: “De um lado Nelson dizendo que não tinha importância nenhuma onde colocar a câmera e eu e Glauber achando que o importante era exatamente onde colocar a câmera. O neo-realismo de Nelson ia se diluindo num realismo crítico da realidade brasileira e o nosso formalismo ia tomando a forma de adaptar o nosso inconsciente, subjetivo e anárquico à essa mesma realidade”. 199 Nesse momento, um ponto fundamental que emerge na cultura brasileira diz respeito à problemá tica do realismo, questão indispensável quando se aborda a obra de Plínio Marcos. No começo dos anos 60, existiu uma clara oposição na jovem produção artística engajada entre duas tendências que, grosso modo, podiam ser representadas pelas opiniões das lideranças do CPC da UNE e pelos “cabeças” do Cinema Novo. Muito simplificadamente, o primeiro grupo defendia a subordinação da arte à política, pretendendo fazer uso de “conteúdos políticos em formas de cultura popular”, resultando numa “cultura popular revolucionária”, nos termos do sociólogo Carlos Estevam Martins, membro fundador e primeiro presidente do CPC. Uma linguagem previamente conhecida e decodificada pelo povo (mesmo que considerada simplória, tosca ou ingênua) seria a forma de dirigir-se efetivamente ao mesmo povo com intenções didáticas de conscientização das massas. Foi essa visão, constantemente dogmática e paternalista (como a expressa no Anteprojeto do manifesto CPC), que norteou algumas experiências, por exemplo, dos Centros Populares de Cultura da UNE, no teatro, cinema, literatura e música. (Ibid, p.143-158). Por outro lado, o Cinema Novo, apoiando-se no aforismo de Maiakóvski – “não há arte revolucionária sem forma revolucionária” – e em sintonia tanto com o cinema de autor quanto com o nacional-popular, pretendia construir uma linguagem condizente com a realidade social expressa. Ou seja, era necessário elaborar uma nova e característica “estética”, como convocava Glauber no manifesto Uma eztetyka da fome, de 1965. O Cinema Novo buscou “um distanciamento crítico que suscitasse a reflexão sobre os problemas em pauta, enquanto que o CPC, ao contrário, buscava o envolvimento” (Ibid p.250). Dessa forma, se Carlos Estevam elogiava filmes como O pagador de promessas (dir. 199 VIANY, Alex. Os primeiros sinais do cinema novo, 13 jun. 1979. Mimeografado. Acervo Alex Viany. 149 Anselmo Duarte, 1962) ou O assalto ao trem pagador (dir. Roberto Farias, 1962), grandes sucessos de público, o Cinema Novo, de maneira geral, os criticava ou desprezava. Por outro lado, os cineastas eram acusados de formalistas e elitistas, e Vianinha, um dos principais líderes do CPC, não deixava de chamar filmes como Porto das caixas, O padre e a moça e Terra em transe de chatos ou herméticos. Dessa maneira, por divergências especialmente em relação à “forma”, o diálogo (sob o viés das adaptações) que se estabeleceu entre a nova geração de dramaturgos do teatro brasileiro e os jovens cineastas brasileiros, não foi com a geração do Cinema Novo, mas com outros diretores que podiam ser acusados pelos primeiros de trazerem a marca do capitalismo (pela associação com os estúdios ou produtores que visariam somente o lucro), do imperialismo (pela identificação com o cinema americano), da alienação (pela opção por uma narrativa clássica que seria confortante e artificial) ou da tradição (por ligações com a Vera Cruz ou as chanchadas). Ao longo da década, com os cinema-novistas sendo confrontados com a questão de atingir maior comunicação com o povo e diante do problema da marginalização do cinema brasileiro em seu próprio mercado, algumas soluções ou meio-termos foram tentados ou propostos. Uma crítica de Gimba, presidente dos valentes (dir. Flávio Rangel, 1963), adaptação cinematográfica da peça de Guarnieri, afirmava que o filme interessava ao cinema brasileiro por conciliar o Cinema Novo com a produção industrial, num meio termo já aplicado com êxito em O pagador de promessas e O assalto ao trem pagador. Apesar de seus defeitos enquanto filme, Gimba mostraria aos jovens do cinema novo ser “possível conciliar a liberdade expressiva com um mínimo de base industrial” e, ainda, que “o cinema ‘puramente’ independente” não era a única solução para o futuro de um genuíno cinema brasileiro. Ou seja, o apelo ao teatro brasileiro, assim como ao cinema de gêneros, poderia servir de contraponto ao excessivo hermetismo do cinema novo. 200 Entretanto, se no começo da década de 60 Carlos Estevam, à frente do CPC, chegou a dizer “nada de Brecht aqui”, as idéias do dramaturgo alemão – em consonância com uma tendência mundial – passaram a influenciar mais e mais a discussão a respeito da forma, tanto 200 BARROS, José F. de. Brasil leva cinema a Sestri Levante. Revista de Cultura Cinematográfica, Rio de Janeiro, n.35, mai-ago 1963, p.73. 150 no teatro quanto no cinema brasileiro, em sintonia com as diversas mudanças ocorridas no país, especialmente a partir do golpe de 1964, e, logo em seguida, com o tropicalismo. 201 Desse modo, em meio às novas questões que marcavam o meio artístico brasileiro especialmente a partir de meados dos anos 60, pode ser apontado um outro viés de diálogo, igualmente significativo, entre o teatro e o cinema brasileiro. Um dos mais importantes filmes do Cinema Novo, Terra em transe (dir. Glauber Rocha, 1967), foi assumido como uma “violenta influência” para a igualmente revolucionária montagem do Teatro Oficina para o até então inédito texto de Oswald de Andrade, O rei da vela, com direção de José Celso Martinez Corrêa. Nesse caso, a ousadia estética do Cinema Novo serviu de inspiração para uma renovação formal do teatro brasileiro. Como afirmou José Celso num verdadeiro manifesto publicado no programa de O rei da vela: “a peça é fundamental para a timidez artesanal do teatro brasileiro de hoje, tão distante do arrojo estético do cinema novo” (In: MICHALSKI, op. cit., p.31). 202 Em parte refletindo a violência e o absurdo da ditadura militar, uma parcela do meio artístico se debateu em experimentações, contestações, agressões e invenções, e o realismo – burguês, tradicional e conformista – foi se transformando definitivamente no inimigo a ser combatido. Nesse momento, nada talvez se distanciasse mais do formalismo, do irracionalismo ou do experimentalismo que caracterizava, dada as devidas proporções e particularidades, o Cinema Novo, o Teatro da Agressão ou o Tropicalismo, do que o teatro de Plínio Marcos. Entretanto, 1967, o ano do lançamento de Terra em transe, da montagem teatral de O rei da vela e da realização do III Festival de Música Popular Brasileira, também foi quando Navalha na carne transformou Plínio Marcos num dos maiores nomes do teatro brasileiro. 201 203 A teoria Brechtiana foi muito influente nos anos 60 e 70 por sua forte crítica de inflexão marxista do modelo realista dramático operante tanto no teatro tradicional quanto no cinema hollywoodiano. A “reflexividade”, por exemplo, termo que se popularizaria junto à crítica de esquerda influenciada por Althuser e Brecht, passou a ser exigida em peças e filmes como uma obrigação política: “A tendência à época era simplesmente equiparar ‘realista’ a ‘burguês’ e ‘reflexivo’ a ‘revolucionário” (STAM, 2003, p.175). 202 Em comum entre os artistas do cinema e teatro brasileiro na segunda metade da década de 60 está justamente um intenso diálogo com o modernismo dos anos 20 (cf. JOHNSON, 1982). 203 O III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, foi marcado pelas guitarras elétricas de Alegria, alegria (Caetano Veloso com a banda de rock argentina Beat Boys) e Domingo no parque (Gilberto Gil com Os Mutantes), pela ousadia da genial Roda viva (Chico Buarque e MPB 4) e pelas vaias que levaram Sérgio Ricardo a quebrar seu violão e jogá-lo para cima do público. O primeiro lugar coube a Edu Lobo, representante da esquerda musical no Brasil, com Ponteio. Conforme Nelson Mota (2000, p.157), “depois do vale tudo do festival da Record, onde abalaram várias amizades, a MPB começou a rachar”. Em 1968, no III Festival Internacional da Canção, da TV Globo, tudo se acentuaria: as vaias (Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, canção vencedora), o engajamento das letras (Pra não dizer que falei de flores, de Geraldo Vandré, aclamada pelo público) e o radicalismo tropicalista (É proibido proibir, Caetano Veloso, desclassificada). 151 Essa questão não deixou de ser apontada na época, como por Ian Michalski, em sua crítica à montagem teatral de Navalha na carne, escrita em 1967, da qual reproduzo um longo trecho: Como crítico não posso ignorar o fato de que o realismo, como linguagem dramática, está agonizando; e é bom que assim seja, pois a preocupação de mostrar naturalmente no palco a vida como ela é, tolheu profundamente, durante mais de um século, os vôos da arte dramática em todas as regiões da civilização ocidental. Principalmente no que se refere à conscientização social do público, a arte realista [...] é hoje em dia quase que unanimemente condenada. A verdadeira linguagem social do nosso tempo é, no teatro, a linguagem épica – com todas as suas subtendências, bem entendido – que estimula a participação crítica do espectador e lhe apresenta exemplos que conduzem o raciocínio do particular para o geral. E, no entanto, constato que no Brasil as peças que tem mostrado verdadeiramente capazes de abrir os olhos do público para determinados fatores cruéis e injustos da nossa realidade social tem sido precisamente aquelas que não se afastam dos conceitos formais de um realismo tradicional: Eles não usam black -tie, Pequenos burgueses, e agora Navalha na carne. Nenhuma encenação “brechtiana”, quer de textos nacionais ou estrangeiros, se tem revelado até agora, entre nós, tão eficientemente “didática” quanto estes três exemplos de obras escritas dentro de cânones que nada tem de “didáticos”. Não me cabe, dentro dos limites deste artigo, estudar o fenômeno; mas ele me pareceu digno de ser proposto à reflexão do público e dos estudiosos (In: MARCOS, 1968) (grifos meus). A respeito da questão apontada por Ian Michalski, o contexto do surgimento do teatro pliniano no Brasil pode ser confrontado com a crise do drama no teatro europeu no final do século XIX. Empreendendo uma análise historicizante da forma dramática, Peter Szondi (2001) apontou para um momento de crise no qual emergiam traços épicos no domínio da poesia dramática, surgindo correntes que “se atêm à forma dramática e tentam salvá-la de várias maneiras” (SZONDI, 2001, p.97). Entre essas tentativas de salvamento estaria o naturalismo (com seus heróis escolhidos dentre as camadas mais baixas da sociedade), a peça de conversação (sustentada basicamente sobre os diálogos), a peça de um só ato (procurando a situação limite) e as peças de confinamento e isolamento. 204 Essas tentativas de salvamento – segundo o autor, marcadas pela contradição entre uma forma não mais adequada ao conteúdo – caracterizam exemplarmente os métodos formais de Plínio Marcos, que surgiu em 1966 e 1967 com peças criadas segundo “métodos tradicionais”, mas ainda assim se revelando extremamente impactantes. Numa outra chave de interpretação, devemos considerar o fato de que no final da década de 1960, o espírito de rebeldia e inconformismo dos jovens validava qualquer proposta ou linguagem, mesmo as “agonizantes”. Como os estudantes parisienses picharam nas paredes 204 “O estilo dramático ameaçado de destruição pela impossibilidade do diálogo, é salvo quando, no confinamento, o próprio monólogo se torna impossível e volta a transformar-se necessariamente em diálogo” (SZONDI, 2001, p.114) 152 da capital francesa em maio de 1968 e Caetano Veloso cantou no Brasil, naquele momento era proibido proibir – tudo devia ser permitido. Para Plínio Marcos, foi justamente a efervescência e a multiplicidade de idéias característica do período entre 1966 e 1968 – o “mais sadio da dramaturgia brasileira” – que permitiu que ele alcançasse novamente o sucesso: A partir de 1966, cada um fazia o teatro que queria, cada um dava o seu testemunho. Então, se tinha um cara discutindo o problema do homossexual, coisa que o artista brasileiro, dramaturgo, antes de 1966 se recusava; eles só queriam fazer o discurso sobre Lampião, ou então montar peças falando do aspecto social. De repente, começou a aparecer em cena peças onde todos os problemas do homem eram discutidos. Cada um discutia os problemas que lhe interessavam. 205 Mas apesar dessa multiplicidade, esse final de década continuou sendo marcado por maniqueísmos radicais, como novo e velho, direita e esquerda ou reformistas e revolucionários, e o teatro brasileiro foi uma “arena” privilegiada para esses debates. Augusto Boal, um dos principais nomes do teatro brasileiro politizado, escreveu em 1968 o artigo O que você pensa da arte de esquerda?, no qual procurou descrever as três linhas principais do teatro brasileiro de esquerda. A linha Sempre de Pé seria representada pelo repertório recente do Teatro de Arena (o gênero “Zumbi”), caracterizada, assim como os espetáculos do extinto CPC, pela tendência exortativa, por simplificações analíticas e por um maniqueísmo assumido e desejado. O problema desse teatro – com o qual o Cinema Novo também se confrontava – seria o de “surdez”, pelo fato de que seu verdadeiro interlocutor deveria ser o povo e seu lugar, a praça. Classificando uma outra linha como Chacrinha e Dercy de Sapato Branco, Boal fez uma feroz crítica ao que ele chamava de “tropicalismo-chacriniano-dercinesco- néoromantico”, lançando mal-disfarçados ataques contra os estrangeirismos de Caetano Veloso ou à capitulação do Cinema Novo com Garota de Ipanema (dir. Leon Hirszman, 1967), mas principalmente, contra o Teatro Oficina. Pregando a arte pela arte, o tropicalismo seria individualista, romântico, politicamente indefinido e se aproximaria perigosamente da direita. Por último, a linha do Neo-Realismo, seria constituída por peças e espetáculos cujo principal objetivo seria mostrar a realidade (do povo, obviamente) como ela era, e Plínio Marcos era apontado justamente como o principal cultor dessa linha naquele momento. Entretanto, para Boal – crendo ainda no papel do intelectual como conscientizador das massas 205 MARCOS, Plínio. Entrevista com Plínio Marcos. Centro de documentação e informação sobre arte brasileira contemporânea, São Paulo, 23 fev. 1978. Entrevista concedida a Cláudia de Alencar e Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Mimeografado. 153 – o problema desse Neo-Realismo seria a impossibilidade do autor conseguir passar a mensagem desejada através dos personagens populares “que não tem verdadeira consciência dos seus problemas”. Apenas confrontado com a miséria alheia, o espectador poderia se sentir absolvido por sua comoção, sofrendo “terríveis dores morais, embora comodamente refestelado numa poltrona”. Ainda assim, para o diretor e dramaturgo do Teatro de Arena, este Neo-Realismo continuaria tendo um papel importante, mesmo que “esta importância seja mais documental do que combativa”. 206 Do lado oposto, o diretor José Celso Martinez Correia, em entrevista oferecida também em 1968, afirmava que naquela ocasião nada poderia ser mais eficaz politicamente do que a arte pela arte. O líder do Teatro Oficia defendia o rompimento com o passado através de um teatro anárquico, crue l e grosso, possibilitando que uma peça inventiva e confusa exercitasse o sentido estético e despertasse a iniciativa individual: O teatro não pode ser um instrumento de educação popular, de transformação da mentalidade na base do bom mocismo. A única possibilidade é exatamente pela deseducação, provocando o espectador [...]. A eficácia do teatro político hoje é o que Goddard colocou a respeito do cinema: a abertura de uma série de Vietnames no campo da cultura – uma guerra contra a cultura oficial (p.117-118). 207 José Celso dizia ainda não acreditar no que ele chamava de “pequeno teatro de crueldade”, que seria um “teatro dos maus costumes, com suas prostitutas folclóricas e tudo o mais”. Em meio às batalhas travadas no campo da cultura, Plínio Marcos, mesmo acusado de se expressar através de meios e métodos tradicionais e de não se afastar das concepções formais do naturalismo, ainda assim causou com as peças Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne uma verdadeira revolução nos palcos brasileiros entre 1966 e 1968. Sendo alinhado ao condenado e já superado (neo)realismo pela esquerda ou considerado um mero subversivo pornográfico pela direita, Plínio Marcos se destacava como um elemento isolado e de certa maneira independente e distintivo no panorama teatral daquele momento. Sábato Magaldi (2003, p. 95) apontou como sendo uma grande novidade da dramaturgia pliniana a incorporação do tema da marginalidade, em linguagem de desconhecida violência. Entretanto, a originalidade de sua dramaturgia no panorama do teatro brasileiro da segunda metade dos anos 60 não residia somente nos palavrões ou nos 206 BOAL, Augusto Boal. O que você pensa da arte de esquerda? In: PRIMEIRA FEIRA PAULISTA DE OPINIÃO, 1968, São Paulo. Programa da peça. 207 REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA. Caderno especial: teatro e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, n.2, jul. 1968. 154 personagens miseráveis vivendo em condições sub humanas. Conforme Décio de Almeida Prado (2003, p.103), seus personagens não constituíam propriamente o povo ou o proletariado nas formas dramáticas imaginadas até então. Em vez de propósitos revolucionários, ou de uma encantadora ingenuidade, revelavam em cena um rancor e um ressentimento que, embora de possível origem econômica, não se voltavam contra os poderosos, por eles mal entrevistos, mas contra seus próprios companheiros de infortúnio. Por outro lado, mesmo sem apresentar uma posição esteticamente avançada ou politicamente assumida, o teatro de Plínio Marcos também corria ao encontro de todas as tendências, tanto da vanguarda (pelo ineditismo dos temas e da forma com que foram tratados), como do teatro agressivo (pela violência exposta em cena sem pudores) e do teatro engajado (pela exposição da miséria da vida brasileira) (VIEIRA, P., op. cit., p.77-78). Nessa mesma conturbada época em que o teatro de Plínio Marcos foi revelado nacionalmente, o “cinema brasileiro de esquerda” também passava por um momento de diferentes rumos. Enquanto diversos cineastas ainda atrelados a certo romantismo revolucionário faziam a auto-análise do Golpe, desde O Desafio (dir. Paulo Cezar Saraceni, 1965) até Terra em Transe e Vida Provisória (dir. Maurício Gomes Leite, 1968), outros partiam assumidamente para um diálogo com o grande público, com resultados frustrantes como Garota de Ipanema, ou bem sucedidos, como Macunaíma (dir. Joaquim Pedro de Andrade, 1968). Ao mesmo tempo, a beleza e o sucesso dos filmes de Domingos de Oliveira, Todas as mulheres do mundo (1966) e Edu coração de Ouro (1967), já podiam justificar a opção por um tema individualista e burguês como o amor, em filmes feitos por jovens e para os jovens. Mas essa “virada para o mercado” também gerou rachas, como a saída de Roberto Farias da Difilm – distribuidora que congregava o núcleo dos cinema-novistas – diante dos crescentes frutos gerados pela linha mais explicitamente comercial que ele vinha seguindo desde 1966. Os irmãos Farias (Roberto, Rivanides e Reginaldo) atingiam o auge justamente naquele final de década, batendo sucessivamente os recordes de bilheteria do cinema brasileiro em 1968 e 1969, respectivamente com Roberto Carlos em ritmo de aventuras (dir. Roberto Farias, 1968) e Os Paqueras (dir. Reginaldo Farias, 1968). Radicalmente oposto a esse direcionamento rumo à “qualidade técnica” e ao mercado, surgia também um filme de encruzilhada, mas que acabaria sinalizando um outro caminho. O Bandido da Luz Vermelha (dir. Rogério Sganzerla, 1968) era justamente “um filme 155 encurralado entre a desagregação cinemanovista, a derrocada de um projeto nacional de forte repercussão, e a necessidade dilacerada de superação” (RAMOS, J., 1983, p.85). De diferentes maneiras, a grande parte desses filmes era influenciada pelo tropicalismo, que se tornava entre 1967 e 1968 o principal espaço da rebeldia e questionamento formal e conceitual na cultura brasileira, embaralhando, sem a menor cerimônia, “política, antropologia, arte, sexualidade e folclore, atrás do que imaginavam ser a revelação da personalidade multifacetada do país” (MORAES, op. cit., p.248). Ou seja, em meio à efervescência de propostas e projetos no teatro e no cinema brasileiro – todos eles radicalmente afetados pelo AI-5 –, o teatro de Plínio Marcos ainda assim surgia com um impacto que poucos dramaturgos brasileiros jamais alcançaram. Dentre os muitos espectadores de suas peças que foram atingidos pela força de sua dramaturgia, estava o então jovem cineasta Braz Chediak. 156 3. NAVALHA NA TELA Braz Chediak, Jece Valadão e Plínio Marcos. Braz Guimarães Chediak nasceu em Três Corações, Minas Gerais, em 1942, e começou sua carreira como ator, tendo cursado o Conservatório Nacional de Teatro no Rio de Janeiro, chegando a dirigir algumas peças posteriormente. Mesmo não dando prosseguimento a uma carreira nos palcos, a ligação de Chediak com o teatro permaneceu como um traço marcante de sua carreira no cinema. Por volta de 1962 viajou para a Itália, onde permaneceu um ano estudando direção e montagem cinematográfica. De volta ao Brasil, trabalhou como assistente de direção e dirigiu os atores brasileiros em cinco episódios adaptados da obra de Robert Louis Stevenson para a RAI-Televisão Italiana, com direção de Giorgio Moser. 208 No cinema brasileiro, Chediak também começou sua carreira como ator, fazendo pequenos papéis na comédia O homem que roubou a copa do mundo (dir. Victor Lima, 1963). Passou depois a assistente de direção no interessante “policial-social” Na mira do assassino (dir. Mário Latini, 1965) e em Na onda do iê-iê-iê (dir. Aurélio Teixeira, 1966). Neste último filme, veículo para astros da jovem guarda e primeiro encontro no cinema da dupla de comediantes Renato Aragão e Dedé Santana, Chediak também foi um dos roteiristas. Mais importante ainda foi o fato de ter sido este o seu primeiro trabalho com Aurélio Teixeira, diretor com quem afirmaria ter aprendido tudo sobre cinema e de quem se tornaria um grande parceiro. 209 Em seguida, Chediak começou a trabalhar na Magnus Filmes, produtora de Jece Valadão, escrevendo argumentos e roteiros, além de atuar como assistente de produção, de direção e ou de montagem em diversos filmes, entre eles, os policiais A lei do cão (1967) e As 208 BRAZ Chediak. In: ADORO CINEMA BRASILEIRO. Rio de Janeiro. Direção de Marcelo Drummond. Disponível em: < http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/personalidades/braz-chediak/braz-chediak.asp>. Acessado em: 7 fev. 2006. 209 Aurélio Teixeira, nascido em 1926, começou no cinema como ator, destacando-se em papéis de vilão nas chanchadas da década de 50. Estreou na direção com Três Cabras de Lampião (1962), grande sucesso que salvou financeiramente o produtor Jarbas Barbosa que o considerava “um dos maiores diretores do nosso cinema [...] um dos maiores autores do cinema acadêmico” (OROZ, 1993, p.34). Teixeira transitou por diversos gêneros, como o filme de cangaço, a comédia musical, o drama e o policial, alcançando grandes sucessos de bilheteria nas décadas de 60 e 70, mas tendo sua carreira prematuramente interrompida pela morte em 1973. 157 sete faces de um cafajeste (1968), ou ainda, a cine biografia da cantora Dolores Duran, A noite do meu bem (1968), todos dirigidos por Valadão. Trabalhou ainda no policial Mineirinho vivo ou morto ( dir. Aurélio Teixeira, 1967), co-produzido por Herbert Richers. A primeira experiência de Chediak como diretor foi o longa- metragem Os viciados, junção de três curtas- metragens (A trajetória, A fuga e A favela) realizados a partir de 1966 e lançados conjuntamente em 1968. Usando o expediente dos filmes em episódios, em moda na época, Os viciados foi um fracasso de crítica e bilheteria que poucos anos depois seria renegado pelo seu diretor. Mas mesmo assim, àquela altura Chediak já tinha se estabelecido como um profissional eficiente e experiente, tendo trabalhado com três dos principais produtores do cinema brasileiro, Jece Valadão, Jarbas Barbosa e Herbert Richers. 210 Ainda no final de 1968, Chediak partiria para sua segunda experiência como diretor – A navalha na carne (no filme a peça ganhou um “A”) –, novamente estrelado pelo astro Jece Valadão e produzido pela Magnus Filmes. Seu interesse por Plínio Marcos começou quando assistiu à montagem carioca da peça: [Chediak] teve logo vontade de fazer o filme, mas o texto já tinha sido vendido. Passou pela mão de cinco diretores, que não se decidiram a filmá -lo. Chediak convenceu, então, Jece Valadão a comprar a peça. Jece comprou sem saber de nada. Nem o nome da peça ele sabia: pensava que era ‘Navalha na cara. 211 A filmagem da adaptação somente seria encerrada em 1969. Nesse intervalo o Brasil presenciou a promulgação do AI-5 que transformou radicalmente a situação do país. O dramaturgo Plínio Marcos, entre outros, foi preso e suas atividades artísticas passaram a ser perseguidas sistematicamente. Diversas de suas peças que com graus variados de dificuldade tinham sido liberadas, foram proibidas, entre elas, Navalha na carne. Apesar disso, as filmagens de A navalha na carne foram devidamente concluídas e em agosto de 1969 o filme foi enviado para a avaliação do Serviço de Censura. Diante da ausência de respostas, o produtor Jece Valadão acusou pelos jornais o órgão federal de nem sequer assistir ao seu filme submetido a exame. Segundo recado trazido pelo produtor Jarbas Barbosa, Valadão afirmava que o então chefe da censura, o tenente-coronel Aloysio 210 Na época do lançamento de Os viciados, Chediak chegou a anunciar que dirigiria em seguida o policial Eu sou um matador profissional, mas permaneceu apenas como roteirista do filme que veio a se chamar O matador profissional (1968), com direção de Jece Valadão. Chediak foi também roteirista da produção de Jarbas Barbosa, Juventude e ternura (1968, dir. Aurélio Teixeira), estrelando a rainha da jovem guarda Wanderléa, além de Bobby Di Carlo e Os Vandecos. 211 “DOIS perdidos” só depende da censura. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 mar. 1971. 158 Muhlethaler de Souza, não queria nem que ele fosse ao seu gabinete, em Brasília, e o acusava pelos jornais: “Pessoas ligadas ao meio cinematográfico revelaram ontem que a atitude do chefe da Censura já era esperada, pois ele demonstrava verdadeira repulsa pela peça de Plínio Marcos, em sua versão teatral”. 212 A questão ganhou as manchetes e provocou polêmica. Jece Valadão afirmava ter mantido contato com o chefe de gabinete do Ministro da Justiça, a quem relatou o fato, além de ter constituído advogado para impetrar mandado de segurança que lhe garantisse o direito de freqüentar a censura na qualidade de produtor. Valadão ainda rebateu as supostas agressões verbais vindas do chefe da censura: “Quanto aos adjetivos de marginal e ameaças de lhe quebro a cara, disse Jece que sabe como comportar-se quando chegar o momento”. 213 No dia seguinte às declarações de Valadão, o tenente-coronel Aloysio Muhlethaler de Souza, através de sua assessoria de imprensa, afirmou que o produtor seria recebido “com a mesma consideração dispensada a todos os cineastas brasileiros”. Na mesma nota oficial, o então chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) refutava a acusação do filme não ter sido sequer submetido ao exame da censura. 214 Apesar dessa declaração, o caso de A navalha na carne só foi realmente tratado pelo SCDP dois meses depois, em novembro daquele ano, com a formação de uma comissão censória com cinco membros para analisar o caso. O que pode ser notado em comum nos diferentes pareceres emitidos é a relação sempre estabelecida do filme de Chediak com a peça e com a figura de Plínio Marcos. Em seu parecer, o censor Vicente de Paulo Alencar Monteiro afirmou: “Quando foi exibida em forma de peça teatral, Navalha na carne, pela má qualidade, não causou maior transtorno à vida artística do país. Caiu no vazio e logo foi esquecida. Não vejo razões para propor a interdição do filme ante o acima exposto”. Apesar de não identificar “valor educativo” no filme, o censor chegou a ver no filme uma “mensagem positiva”, por mostrar “que o tipo de vida não é o ideal e que a situação a que quase sempre é levada a prostituta não compensa”. 212 215 JECE Valadão afirma que a censura não quer ver seu filme A navalha na carne. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 ago. 1969. 1º caderno 213 CENSURA não quer Navalha na carne nem seu produtor. [s.n.], Rio de janeiro, 21 ago. 1969. Primeiro caderno. 214 CENSURA VOLTA A DIZER que receberá Valadão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 ago. 1969. 215 BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Polícia Federal, Ministério da Justiça. Parecer sobre o filme Navalha na carne. Parecer, Brasília, 26 nov. 1969. Censor: Vicente de Paulo Alencar Monteiro. 159 Da mesma forma, o censor José Augusto Costa, pela peça ter sido aprovada pela censura na ocasião de sua montagem sem ter causado na época “nenhum problema de ordem moral ou política”, liberava o filme com boa qualidade e livre para exportação. O censor também considerava que a produção de Valadão tinha “valor educativo” e uma “mensagem positiva”, por mostrar “um problema inconteste [...] tão cruamente que serve de advertência àqueles que por infelicidade se vejam atraídos por aquele tipo de vida”. 216 Diferentemente dos seus dois outros colegas, o censor Wilson de Queiroz Garcia sugeria a proibição de A navalha na carne para o circuito comercial, liberando o filme apenas para cineclubes e cinematecas. O censor acreditava que: O modo como este filme é apresentado – num tom de agressividade maior do que o que caracterizou a peça do mesmo nome e autor – é um acinte e um desrespeito à moral social. O cinema, como veículo de comunicação de massa, eminentemente popular, diferencia-se do teatro na razão direta do público que o freqüente. Se no teatro temos uma faixa de público mais intelectualizada, no cinema não há condições de se distinguir o público. Assim, os efeitos de um filme como o que era analisado, são, no cinema, terrivelmente mais danosos. 217 Com o “placar” marcando 2 a 1 a favor da liberação do filme, a opinião do censor Manoel Felipe de Souza Leão Neto, também relator da reunião, não só empatou a questão, como ajudou a “virar o jogo”. Em seu violento relatório, Manoel Felipe de Souza Leão Neto fez um duro ataque a Plínio Marcos, esquecendo-se do papel do diretor Braz Chediak e do produtor Jece Valadão no filme e aparentemente responsabilizando o dramaturgo pela adaptação cinematográfica de sua obra. Seu texto é uma síntese exemplar de preconceito, perseguição política, obscurantismo, hipocrisia e conservadorismo: Usando da chamada ‘liberdade artística’ (?), o senhor Plínio Marcos compôs uma obra cinematográfica somente de elementos deletérios, abusando de palavras e gestos obscenos. As leis brasileiras PROIBEM O GÊNERO LIVRE. E o filme em tela enfoca um tema LIVRE – face a presença de diálogos chulos, imorais e atentatórios à moral e aos bons costumes. Não vamos tecer considerações amplas sobre a película examinada. Apenas rebatendo a ousadia do produtor (?) Plínio Marcos, esclarecendo que, diariamente, os jornais e emissoras de radiodifusão do País, reverberam contra a Polícia, incriminando-a de decúria e descaso diante dos problemas sociais, demonstrando a inconveniência e os perigos que representam a prostituição, a malandragem, a vadiagem, a homossexualidade, a cafetinagem campeando livremente. E o filme “estrelado” por Jece Valadão é uma apologia ao crime a ao vício!!!... 216 BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Polícia Federal, Ministério da Justiça. Parecer sobre o filme Navalha na carne. Parecer, Brasília, 26 nov. 1969. Censor: José Augusto Costa 217 BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Polícia Federal, Ministério da Justiça. Parecer sobre o filme Navalha na carne. Parecer, Brasília, 26 nov. 1969. Censor: Wilson de Queiroz Garcia. 160 SE LIBERADO – será melhor guardar as leis penais vigentes, eis que, face ao comportamento dos críticos que defendem o chamado cinema verdade ou cinema livre, referidos diplomas estarão obsoletos, superados, a caminho dos incineradores... (grifos do texto). 218 Desse modo, o voto de Minerva coube ao chefe substituto do SCDP, Constâncio Montebello, que no dia 3 de dezembro de 1969, atendendo ao pedido de interdição sumária do filme proposto pelo relatório do censor Manoel Felipe de Souza Leão Neto, interditou o filme A navalha na carne, proibindo sua exibição pública em todo o território nacional. Durante esse tempo, na mesma estratégia seguida pelas peças de Plínio Marcos, Jece Valadão vinha exibindo o filme em sessões fechadas para convidados em busca de apoio. Diante da proibição do filme, a principal questão colocada em pauta pelo produtor não foi a da liberdade de expressão, mas a da possibilidade de enorme prejuízo financeiro diante da eventual proibição de um filme já concluído, que representava um alto capital já investido. O estabelecimento da pré-censura, por exemplo, era uma das formas debatidas para solucionar esse impasse, além da exigência de critérios rígidos e da sugestão de adoção do sistema classificatório por idade. Ou seja, as reivindicações pela liberação do filme assumiram um ponto de vista eminentemente econômico. Jece Valadão não lutava a favor da defesa da liberdade de expressão e da condenação irrestrita da censura como era a bandeira de Plínio Marcos, por exemplo, mas utilizava a defesa do desenvolvimento uma indústria cinematográfica nacional como argumento para um diálogo conciliatório com a ditadura. Esse discurso é claro na carta enviada por Jece Valadão, em 12 de dezembro de 1969, ao Diretor Geral da Polícia Federal, o General Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, na qual pede o indeferimento da proibição da Censura. O produtor afirmava: Estando o cinema brasileiro em desenvolvimento, ele precisa da ajuda de homens, que como V.S. compreendam nossas dificuldades e nos auxilie m, principalmente nesse momento em que toda a arte cinematográfica se renova numa luta enorme pela conquista do mercado nacional e internacional. [...] Ao mesmo tempo, acredito ser do conhecimento de V.S. o alto custo de um filme e as dificuldades que atravessamos durante sua realização. Dificuldades essas que somente serão ultrapassadas com a exibição do mesmo, pois sua interdição significaria, para mim, uma perda muito grande, além mesmo, de minhas possibilidades e me arrastaria à desintegração daquilo que consegui através de anos de lutas constantes, e de profundo crédito nessa indústria cinematográfica. 219 Aparentemente o tenente-coronel Aloysio Muhlethaler de Souza devia ter, de fato, uma aversão especial a Plínio Marcos, pois chegou a enviar também uma carta ao General 218 BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Polícia Federal, Ministério da Justiça. Parecer do relator sobre o filme Navalha na carne. Parecer, Brasília, 26 nov. 1969. Relator: Manoel Felipe de Souza Leão Neto. 219 VALADÃO, Jece. Pedido de liberação de “A navalha na carne” ao General Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, Diretor Geral da Polícia Federal, 12 dez. 1969. 161 Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, solicitando indeferimento da petição legal encaminhada por Valadão. Em sua carta afirmava: O senhor Plínio Marcos, autor intelectual do enredo do filme, usando da chamada ‘liberdade artística’, compôs uma obra somente de elementos de moral precária, de tipos deletérios, de párias da sociedade, usou para tal o linguajar obsceno e gestos imorais. O SCDP, ao vetar o filme nada mais fez do que cumprir a legislação vigente, defendendo a moral pública do espetáculo tão degradante e atentatório aos nossos costumes. 220 Entretanto, o Diretor Geral da Polícia Federal acabou por atender ao pedido do produtor e em 30 de dezembro de 1969 ordenou a liberação de A navalha na carne, mas já sugerindo os seguintes cortes a serem reexaminado pelo SCDP: 1) 2) 3) 4) retirar as cenas em que são vistos o pederasta e o cáften, na cama, em atos libidinosos; retirar as cenas em que o pederasta apalpa o pênis do cáften; retirar as cenas em que o cáften encosta o cigarro de maconha em seu pênis e manda o pederasta fumálo; retirar todas as palavras de baixo calão proferidas pelos atores. Obedecendo a esses cortes que A navalha na carne recebeu, em 7 de janeiro de 1970, o certificado do SCDP com o parecer de “liberado em grau de recurso pelo Sr. Diretor geral”. O filme recebeu a classificação de “boa qualidade” e “liberado para exportação”, mas, além dos cortes, foi proibido para menores de 18 anos e para exibição na televisão. Um documento ainda sugeria uma lista de cortes adicionais ao filme, incluindo expressões como “porra”, “puteiro”, “puta sem calça”, “puta nojenta”, “Botar no seu rabo” e “Puta que não gosta de bacanal”. Por fim, o certificado definitivo, de 19 de fevereiro de 1970, agora assinado pelo novo chefe do SCDP, o Prof. Wilson Aguiar, determinava os seguintes cortes: 1 - corte da cena em que aparecem as mãos do cáften deslizando pelas costas do pederasta; 2 – corte da cena em que o cáften beija o pederasta; 3 – corte da cena em que o pederasta apalpa o pênis do cáften; 4 – corte das cenas em que o cáften encosta o cigarro de maconha em seu pênis e manda o pederasta fumálo; 5 – corte e substituição (na trilha sonora) das seguintes palavras: porra – puteiro – puto – puta – rabo e puteiro. 221 220 BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Polícia Federal, Ministério da Justiça. Pedido de Indeferimento da Petição ao Diretor Geral do DPF. Pedido, Brasília, 30 dez. 1969. Responsável: Aloysio Muhlethaler de Souza. 221 Devido aos cortes impostos pela censura, no filme os palavrões puto ou puta foram substituídos por outras expressões, geralmente por nomes de animais. Neusa lembra que seu cliente “contou toda a história da porca da vida dele, da porca da mulher dele, da porca da filha dele”, e os personagens se xingam de “filho de uma cadela” e “filho de uma égua” (no lugar de “filho da puta”) ou “é a vaca da sua mãe” (ao invés de “é a puta que o pariu”). Mesmo quando a palavra puta é utilizada não como adjetivo, mas como substantivo, no sentido de prostituta – como na frase “puta que não gosta de bacanal” – ela é substituída, no caso, por mina. No mesmo sentido, “Vovó 162 Após mais de seis meses “retido para estudos”, finalmente foi autorizado o lançamento comercial do filme e Jece Valadão comemorou a liberação de A navalha na carne pela “nova censura de Brasília”. Sem necessariamente questionar o próprio aparato censório, o que era condenado era o procedimento de seus responsáveis. Depois de resolvida a sua questão, Valadão afirmou que “a censura, com o Dr. Wilson Aguiar, melhorou muito”. 222 Entretanto, para outras pessoas, como Plínio Marcos, a censura continuou piorando cada vez mais. 223 Pode-se notar a singularidade da adaptação de Chediak em relação à produção corrente da Magnus Filmes pelo fato da pré-estréia de A navalha na carne ter ocorrido no dia 6 de março de 1970, na Cinemateca do MAM, berço da cinefilia carioca e do Cinema Novo, movimento que não via o ator e produtor com bons olhos. Segundo Jece Valadão, o filme teria agradado muito aos convidados daquela pré-estréia. 224 A boa repercussão que o filme vinha gerando animava seu produtor. Antes do lançamento, Valadão anunciara que Luiz Severiano Ribeiro Jr. teria se interessado pela primeira vez em distribuir um filme da Magnus, utilizando sua melhor cadeia de cinemas. O das putas” vira “Vovó da zona”. Além disso, se no final da peça, Neusa, armada com a navalha, tentava obrigar Vado a transar com ela, e fazê -la gozar, no filme a prostituta diz que eles vão se deitar e ela vai ter que gostar. No programa Retratos brasileiros sobre Plínio Marcos, produzido pelo Canal Brasil, Braz Chediak afirmou que ao refazer a dublagem do filme para atender aos cortes da censura, ele colocou as palavras trocadas num volume diferente das demais. Desse modo, nas salas de cinema os espectadores notavam claramente os cortes exigidos pela ditadura. 222 MACHADO, Ney. A Navalha e a censura. Diário de notícias, Rio de Janeiro, 24 fev. 1970. 223 Sobre uma nova proibição de sua peça após o AI-5, Plínio comentou numa reportagem: “A medida da censura me desorientou. Como posso aceitá-la se a peça ficou tanto tempo em cartaz no Brasil, se o filme baseado nela continua a ser exibido tranquilamente?” (MOREIRA, Célia. Plínio Marcos, um ex-dramaturgo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 jul. 1972). 224 O público da Cinemateca do MAM podia ser muito agressivo em certas situações, como mostraram as vaias e os insultos que Hector Babenco recebeu na pré-estréia de O rei da noite, em 1975. O mesmo não aconteceu com Valadão, que embora com uma origem que o aproximava do Cinema Novo (ator de Rio 40 graus e Rio zona norte e protagonista e produtor de Os cafajestes), posteriormente se afastou gradativamente deste grupo. Na verdade, o Cinema Novo desde o início olhou Valadão com desconfiança, tanto por seu passado nas chanchadas da Atlântida, quanto pelo caráter duvidoso dos seus personagens que era estendido ao próprio. Antes ainda do lançamento de Os cafajestes, Alex Viany afirmava que o ator virava produtor para se promover a cafajeste com pinta de “nouvelle vague”. Após o sucesso do filme de Ruy Guerra (com quem chegou a trocar tapas no set), seguido do bem sucedido Boca de ouro , Valadão se distanciou mais e mais do movimento que ele afirmava se tornar cada vez mais “hermético”. Da mesma maneira, Valadão também foi rechaçado pelo Cinema Novo por sua persona de cafajeste, por sua ligação com o “reacionário” Nelson Rodrigues, por divergências políticoideológicas (chegou a dizer que odiava a esquerda) e por sua investida numa produção assumidamente comercial. Numa crítica sobre seu filme História de um crápula em Cadernos da Cinemateca (n.1, fev. 1966), publicação da própria Cinemateca do MAM, o crítico Wilson Silva descreveu sua carreira: “Sob o signo do crápula inicia -se em 1953 [...] a carreira – cinematográfica? – de Jece Valadão. Sempre posando – com muita verossimilhança – de crápula, Valadão foi passando, no tempo e no espaço, por vários filmes [...] Carreirista – com muita verossimilhança com o personagem que encarna – fez uma onda terrível [...] pretendendo que esta sua história representasse o Brasil no I Festival Internacional do Filme”. 163 astro de A navalha na carne afirmava ainda que a Columbia Pictures também desejava comprar o filme para exibição em todo o mundo. 225 Aos jornais, Valadão dizia acreditar que as perspectivas de bilheteria do filme eram as melhores, por ele apresentar uma história “bastante comercial, ou melhor, humana”, que contava o “outro lado da vida” de muita gente. 226 A navalha na carne estreou na segunda quinzena de março de 1970, nos cinemas cariocas São Luiz, Odeon, Rian, Comodoro, entre outros, entrando em exibição posteriormente em Recife e Belém, com distribuição da União Cinematográfica Brasileira, de Luiz Severiano Ribeiro Jr. Nas demais praças do país, a distribuição do filme ficou a cargo da recém-criada distribuidora Ipanema Filmes. A navalha na carne teve uma recepção satisfatória da crítica – que concedeu notas de “regular” a “bom”, numa acolhida muito acima das normalmente conferidas às demais produções da Magnus –, e alcançou, ainda, um excelente resultado de bilheteria para uma produção de baixo custo. Ao ser lançado em São Paulo, no final de abril, nos cine mas Marabá, Lumiere e Mini-Piga lle, uma reportagem afirmava que o filme tinha batido “recordes de bilheteria no Rio e no norte”. 227 Sem termos dados precisos da renda e do público de A navalha na carne, é possível se orientar por dados da imprensa que afirmavam ter a primeira adaptação de Plínio Marcos surpreendido seu próprio produtor ao render, só no Brasil, Cr$ 1 milhão, sendo Cr$ 190 mil somente na primeira semana de exibição no Rio de Janeiro. Levando em conta que o orçamento do filme, também conforme divulgado na imprensa, foi de Cr$ 250 mil, o lucro foi realmente significativo. 228 Comparando com dados de outros filmes lançados em 1970, podemos avaliar que se A navalha na carne alcançou a renda citada, seu público teria correspondido a aproximadamente 500 ou 600 mil espectadores. Confiando nesta projeção bastante crível, podemos realmente 225 FCF. Jece: a navalha. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 4 mar. 1970. FCF. Jece: a navalha. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 4 mar. 1970; MENEZES, Joaquim. Jece Valadão agora com “A navalha na carne”. O Jornal, Rio de Janeiro, 8 mar. 1970. 227 NAVALHA na carne. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 1 abr. 1970; COM Navalha na carne o palavrão invade o cinema. A Gazeta. São Paulo, 24 abr 1970; MENEZES, Joaquim. Jece Valadão agora com “A navalha na carne”. O Jornal, Rio de Janeiro, 8 mar. 1970. 228 É importante alertar que as informações sobre renda ou público dos filmes brasileiros até, pelo menos, meados dos anos 70 são muito pouco confiáveis pela inexistência de dados precisos, como pela própria manipulação das informações devido à sonegação de impostos pelas distribuidoras e à alteração dos borderôs pelos exibidores. 226 164 afirmar ter sido um resultado realmente bem sucedido, sobretudo para uma produção extremamente simples e polêmica. 229 De qualquer modo, o resultado positivo do filme também pode ser confirmado simplesmente pela iniciativa imediata da produtora de tentar repetir seu sucesso no projeto seguinte. Antes mesmo do lançamento comercial de A navalha na carne, já era anunciado para breve o início das filmagens de Dois perdidos numa noite suja, produção da Magnus Filmes “também baseada em original de Plínio Marcos”. Semelhante à situação de Plínio Marcos em relação ao teatro brasileiro, a presença e o sucesso de um filme como A navalha na carne, a princípio, também parece um “corpo estranho” no contexto do cinema brasileiro do final da década de 60. Embora seja um filme preto e branco, realizado a um baixíssimo cus to, com equipe mínima e que aborda personagens e cenários marginais com grande agressividade (pelo tema, história e linguagem, bruta e cruel), A navalha na carne se distancia de obras do chamado Cinema Marginal, no mínimo, pelo teor sério-dramático, intenso realismo e estrita linearidade narrativa. Por outro lado, mesmo compartilhando parcialmente a concepção “nacional-popular” do Cinema Novo e seu interesse em retratar sob o viés do filme autoral a problemática social do país, a adaptação de Chediak se distingue, entre outros motivos, por ter sido realizada no momento em que os cineastas do movimento reviam suas posições anteriores ao golpe de 1964, com parte deles se rendendo ao filme colorido e através dos “espetáculos-alegorias” seguindo a favor do mercado e contra quase tudo que atacavam antes. 230 Por último, mesmo tendo sido produzida por um membro do “grupo industrial” do cinema brasileiro e aproveitando a fama de uma peça de grande sucesso e o nome de uma figura de destaque nacional (Plínio era, ao mesmo tempo, um dramaturgo consagrado, o inimigo número um da censura e astro de telenovela), a adaptação cinematográfica de uma obra tão polêmica, agressiva e cercada de inimigos nas esferas do poder quanto Navalha na carne, não pode também ser alinhada simplesmente ao rótulo de “cinema comercial”, no sentido usualmente utilizado para designar filmes digestivos para o grande público. 229 A projeção do número de espectadores de A navalha na carne foi feita ao comparar com outras produções de 1970 que tinham alcançado uma renda próxima à Cr$ 1 milhão, a partir de dados de bilheterias oficiais Setor do Ingresso Padronizado do Instituto Nacional do Cinema. Seguindo esse raciocínio, a adaptação de Chediak teria superado, por exemplo, a bilheteria do mais ambicioso filme colorido de época, o Vale do Canaã (1971), adaptação do romance de Graça Aranha, dirigido por Jece Valadão. 230 Se Glauber Rocha afirmava em 1966 (In: COSTA, 1966, p.52) que “o caráter de um verdadeiro diretor de cinema se mede, sobretudo, pela sua resistência diante das tentações da indústria”, poucos anos depois um filme de um diretor alinhado ao Cinema Novo como Pindorama (dir. Arnaldo Jabor, 1970), era co-produzido pela Vera Cruz e distribuído pela Columbia Pictures. 165 Desse modo, para uma análise mais aprofundada de A navalha na carne, buscando compreender seu sucesso na época e seu esquecimento posterior, é necessário não se balizar simplesmente por categorias que podem ser usadas de forma aprisionadora, simplificadora ou redutora como, por exemplo, “Cinema Novo”, “Cinema Marginal” ou “Cinema Comercial”. Acredito ser mais proveitoso compreender o filme de Chediak – assim como a consagração do teatro de Plínio Marcos – como fruto específico de uma época, um momento tão rico e diverso quanto efêmero, em que o desejo dos cineastas de abordar certos temas coincidiu veio ao encontro da vontade das platéias de ver tratados esses mesmos assuntos. Quem não tem papel Dá recado pelo muro Quem não tem presente Se conforma com o futuro Raul Seixas, Como vovó já dizia (versos censurados) O encontro dos palavrões com a vontade de xingar. O primeiro filme de Braz Chediak, Os viciados 231 , se aproximava de uma parcela da produção cinematográfica dos anos 1960 que pretendia atingir as platéias através do movimento de atração e repulsa exercido pelo binômio sexo e violência. Em relação à ainda conservadora década de 50, os mais liberais anos 60 presenciaram uma produção cada vez mais ousada. No cinema brasileiro, a nudez frontal de Norma Bengell em Os cafajestes e o concurso de seios de Boca de ouro (ambos produzidos por Jece Valadão e estrelados por ele e Daniel Filho) foram verdadeiros marcos. A violência dos filmes de cangaço como A morte comanda o cangaço (dir. Carlos Coimbra, 1961) também representou um avanço semelhante. Nesse mesmo contexto, um dos fenômenos de bilheteria da década de 60 foram os filmes ditos “documentários”, sobretudo europeus (italianos, franceses, ingleses ou suecos), tanto de strip-tease quanto “de viagem”, que pretendiam mostrar a “verdade nua e crua” sobre aspectos polêmicos, sórdidos ou chocantes ao redor do mundo. 231 232 Esse tipo de produção O argumento, roteiro e direção eram de Chediak, a direção de fotografia do espanhol Antonio Smith Gomes (veterano técnico de som das chanchadas dos anos 50 que depois se tornou fotógrafo de diversas produções de Valadão) e a montagem de Rafael Justo Valverde. O filme foi produzido pela Magnus Filmes e distribuído por Herbert Richers. 232 Um dos pioneiros dessa produção foi o filme italiano O mundo de noite (Il Mondo di notte, 1959, dir. Luigi Vanzi) e suas continuações e similares, como Mundo não (Mondo cane, Itália, 1962, dir. Paolo Cavara, 166 alcançou grande sucesso no Brasil e posteriormente viria a inspirar os produtores paulistas da Boca do Lixo a seguir na mesma linha. 233 O próprio circuito exibidor também consagraria o casamento entre violência e erotismo, por exemplo, com a volta dos programas duplos em salas populares – no Rio de Janeiro, a partir de 1967 –, exibindo principalmente filmes de kung fu e western spaghetti. Por outro lado, o tratamento ousado de temas tabus, sobretudo o sexo e a violência, mas também “sub-temas” como incesto, homossexualidade, uso de drogas ou doenças mentais, sinalizavam para um filão que vinha sendo explorado igualmente por um cinema de maior prestígio, especialmente os “filmes de arte europeus” ou o “novo cinema americano” – como Perdidos na noite (Midnight cowboy, EUA, dir. John Schlesinger, 1969) ou Os viciados (The panic in the needle Park, EUA, dir. Jerry Schatzberg, 1971). 234 Na carta enviada ao diretor da Polícia Federal solicitando a liberação de A navalha na carne pela Censura Federal, o produtor Jece Valadão faz menção a essa produção e alinha o filme de Chediak ao que ele chama de um novo “gênero”: O referido filme [...] foi feito com o maior cuidado e carinho, sendo dado aos personagens um tratamento de grande profundidade, que vem colocá-lo lado a lado com as grandes produções estrangeiras que abordam o mesmo tema, tais como Punhos Cerrados 235 , de Marco Belochio, vencedor de vários festivais internacionais, inclusive Veneza, O incidente 236 , também várias vezes premiado, e Gualtiero Jacopetti e Franco Prosperi), um enorme sucesso que popularizou essa expressão e o gênero “Mondo films”. Essa linha também assumiu o lado erótico, por exemplo, com Mondo Topless (dir. Russ Meyer, EUA, 1966). Os também chamados “Shockumentaries” seriam retomados nos anos 80, com a conhecida série norteamericana Faces da morte (Faces of Death), que alcançou enorme sucesso já na era do videocassete. É evidente que mesmo com todo o sucesso de bilheteria, houve complicações na exibição desses filmes no Brasil e O mundo de noite 3 (Mondo di notte numero 3, Itália, 1963) a ser retirado de cartaz pela censura em 1964. 233 O caso do filme Vidas nuas (dir. Ody Fraga) é bastante significativo. Iniciado em 1962 com o título de Eróticas, o filme ficou inacabado. Alguns anos mais tarde, foi comprado pelo produtor Antônio Polo Galante e pelo montador Sylvio Renoldi, sendo completado com a introdução de cenas de São Paulo à noite e de mulheres fazendo strip-tease. Lançado em 1967 com o nome Vidas nuas, o filme foi um dos marcos iniciais da pornochanchada (MELO, Luis Alberto Rocha. Galante, um produtor. Contracampo, Rio de Janeiro, n.36, 2002. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/36/galanteprodutor.htm>. Acesso em: 5 fev. 2006.). 234 Em Perdidos na noite, o cowboy Joe Buck (Jon Voight) chega à Nova York onde conhece o marginal Ratso Rizzo (Dustin Hoffman) e acaba se prostituindo e conhecendo a face crua da vida. Foi o primeiro filme X-rated a ser premiado com o Oscar de Melhor Filme. Os viciados trata do drama de usuários de drogas que freqüentam o Needle Park (Parque das Agulhas), em Nova York, focando a trajetória do traficante e viciado Bobby (Al Pacino). 235 I pugni in tasca (Itália, 1965, dir. Marco Bellocchio). Numa família marcada por doenças hereditárias (mãe cega, um filho deficiente mental), o epiléptico e paranóico Alessandro decide livrar seu único irmão saudável, Augusto, do fardo de sustentar sozinho os parentes. O filme é considerado hoje um clássico do cinema mundial. 236 The incident (EUA, 1967, dir. Larry Peerce). Dois marginais invadem e aterrorizam os passageiros de um vagão do metrô de Nova Iorque. As agressões covardes dentro do ambiente claustrofóbico do trem subterrâneo se assemelham ao filme de Chediak. Es trelando Martin Sheen, Beau Bridges e Thelma Ritter, o filme ganhou aura de cult movie. 167 atualmente em cartaz no Rio de Janeiro, e muitos outros filmes de vanguarda europeus ou americanos (grifo meu). 237 Tanto de modo apelativo e rasteiro ou mais intelectualizado e sofisticado, o apelo à agressão / sedução pelo sexo e violência foi comum no cinema brasileiro de ficção dos anos 60. Muito freqüentemente essas características apareceram em diversas obras como marcas de um mundo caótico e desestruturado. Se o país vivia uma conturbada situação política, especialmente a partir do golpe de 1964 e chegando ao máximo de ebulição em 1968, na segunda metade da década, além de uma verdadeira revolução de costumes, o mundo também atravessou inúmeras turbulências. Como cantava a música de Guarnieri e Edu Lobo – que virou nome de peça do Teatro de Arena e trilha do filme O desafio – era “um tempo de guerra, um tempo sem sol”: Revolução Cultural na China, Guerra do Vietnã, Maio de 68 em Paris, Primavera de Praga, lutas por igualdade racial nos EUA, Che Guevara morto nas cordilheiras da Bolívia, aumento generalizado da violência urbana. 238 Antes ainda de A navalha na carne, o primeiro filme de Chediak já se encaixava nesse quadro. Os viciados, na época de seu lançamento, foi anunciado como “um filme de violentação. São três episódios nos quais os personagens se debatem, se aniquilam na tentativa de fuga de um mundo sórdido, desumano”. 239 Os viciados apresentava três episódios, com histórias independentes unidas pelo tema da violência. 237 240 Lançado apenas no Rio de Janeiro (em 30 de setembro de 1968) e em São VALADÃO, Jece. Pedido de liberação de “A navalha na carne” ao General Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, Diretor Geral da Polícia Federal, 12 dez. 1969. 238 O tropicalismo, apesar do caráter carnavalesco e irreverente, também se inseria nesse contexto de violência e agressão. O disco manifesto Tropicália (1968), por exemplo, começa e termina ao som de explosões de bombas, no final das canções Miserere Nóbis (Gilberto Gil e Capinam) e Hino do Senhor do Bonfim (Gilberto Gil, Gal Costa e os Mutantes). 239 OS VICIADOS, [Rio de Janeiro, 1968]. Material de divulgação. Mimeografado. 240 Como não existe cópia disponível de Os viciados (nem em película, nem em vídeo), sendo um filme completamente inacessível, traço uma descrição de sua narrativa baseada em diferentes fontes impressas. No primeiro episódio, A trajetória, José Américo (Andros Chediak) é um jovem advogado que, sem condições financeiras para levar a vida desejada, chega à “conclusão que, no mundo capitalista, é apenas uma peça na máquina que o prende e resolve libertar-se, tornando-se traficante de entorpecentes”. Rompe com a amante que o sustenta, fica noivo da namorada e se alia a outro advogado e também contraventor, Dr. Woni Leon Gomes (José Lewgoy). Disfarçado de peixeiro, passa a traficar cocaína (ou maconha?) enfiando papelotes na goela dos peixes. Ao final, José Américo é traído, “preso, julgado e eliminado”. No segundo episódio, Fuga, o repórter criminal Renato (Claudio Marzo), ao presenciar o atropelamento de uma criança, decide se afastar de um “mundo material” para procurar um “mundo de pureza”. Numa festa da sociedade, conhece uma moça que se passa por colegial (Esther Lessa), mas na verdade é uma prostituta e que mantêm um relacionamento “anormal” com outra mulher (Darlene Glória). O último episódio, Favela, remete à tragédia de Édipo e Jocasta. Jorge (Jece Valadão) é um favelado viciado em maconha que mora com a mãe viúva, Julia (Dinorah Brillanti). “Sem que ela saiba, dálhe cigarros dessa erva, mantendo relações incestuosas quando sob o torpor provocado pelo alucinógeno, sem que ela perceba”. Ao descobrir-se surpreendentemente grávida, Julia segue os conselhos do médico (Fábio 168 Paulo (em 8 de dezembro do mesmo ano), a crítica jornalística foi implacável com o filme, assim como costumava ser com esse tipo de produção considerada apelativa. O crítico Jaime Rodrigues afirmou que Os viciados se encaixava no contexto de “películas execráveis, que sequer são comercialmente dignas, e que ainda tentam travestir-se numa embalagem intelectualizada”. 241 Seu colega de O Jornal considerou que ao expor o sórdido, o filme não evitou descambar para o ridículo e a grossura, come ntando ainda a “vulgaridade dos diálogos, acompanhadas, não raro, de gestos obscenos dispensáveis”. 242 A crítica do jornal Luta democrática concluiu afinal que o longa- metragem de Chediak “é um filme vazio, que não conduz a nada, preocupado com cenas de ‘choque’, [...] composto do que há de mais corriqueiro em narrativa cinematográfica, [...] abusando de ‘clichês’ que hoje em dia qualquer filme modesto de produção francesa recusa com veemência”. 243 Chegando a se surpreender com sua liberação pela censura, o crítico Eduardo Monteiro não teve receio de considerar categoricamente Os viciados “uma vergonha para o cinema naciona l”. 244 Encaminhado para a censura em agosto de 1968, Os viciados recebeu dois pareceres. As opiniões divergentes da dupla de censores e “dublês de críticos” permitem uma visão talvez mais próxima do olhar de um público médio da época. Para o mais severo censor Carlos Lúcio Menezes, no filme de Chediak os atores atrelados “a uma direção medíocre, apresentam-se de maneira ridícula sem conseguir expressar autenticidade artística, desfigurando o cinema nacional que se encontra em fase de evolução”. Concedendo raros elogios à fotografia e ao elenco, de resto nada se salvava: “diálogos são de mau gosto e inexpressivos; som exageradamente mal gravado; montagem, regular, ritmo cansativo, entediante; câmera, regular”. Já o censor Coriolano de Loiola Cabral Fagundes afirmou que Os viciados tinha “direção e desempenho de satisfatório padrão artístico”, além de fotografia esmerada, “câmera de boa movimentação e equilíbrio rítmico interno e externo. A fita não chega a cair em monotonia nas passagens mais lentas. Enredos interessantes e diálogos adequados aos ambientes [...] soluções cinematograficamente convenientes para as diversas situações do enredo”. Sabag): “troca o cigarro de noite e, ante as arremetidas do filho completamente alucinado pela maconha, mata-o com vários tiros”. 241 RODRIGUES, Jaime. Os viciados. Diário de notícias, Rio de Janeiro, 09 out. 1968. 242 SANCHES, N. Huebra. Os viciados. O Jornal, Rio de Janeiro, 10 out. 1968. 243 OS VICIADOS, Luta democrática, Rio de Janeiro, 04 out. 1968. 244 MONTEIRO, Eduardo Nova. Os viciados, Tribuna da imprensa, Rio de Janeiro, 3 out. 1968. 169 Ambos os censores sugeriam proibição para menores de 18 anos, mas Coriolano Fagundes, apesar de não indicar cortes nas imagens, apontou para duas “passagens mais fortes dos diálogos”. Seus comentários foram acatados e no certificado de censura de Os viciados, de 30 de agosto de 1968, estavam indicados “cortes na trilha sonora: a) da frase este país só tem miséria. b) da palavra Brasil, na frase No Brasil nem o amor salva”. Ou seja, a miséria e a desilusão podiam ser expressas, desde que não fossem localizados no Brasil da ditadura militar. 245 De qualquer maneira, a liberação do filme pelo serviço de censura com poucos cortes demonstrava uma postura menos rígida da que se estabeleceria a partir de 13 de dezembro de 1968. 246 Segundo entrevista antes do lançamento de Os viciados, o desejo de seu diretor era que o filme assumisse um tom de denúncia. Chediak declarou aos jornais: “A ser intimista eu prefiro xingar e xingo fazendo cinema [... Os viciados] é um filme de agressão: agressão em imagem, diálogo, ritmo”. As intenções do diretor claramente se aproximavam do “repórter de um tempo mau”, do dramaturgo que escrevia, com a sutileza de um arroto, obras recheados de palavrões. Dizia Chediak palavras que poderiam perfeitamente ter saído da boca de Plínio Marcos naquela mesma época: “Eu não apresento soluções [...] apenas registro as angústias. E as registro com pressa, sem me deter”. 247 Em relação ao contexto do cinema brasileiro em 1968, a mesma reportagem tentou esclarecer a situação de Chediak: Sobre sua ligação com o grupo do cinema industrial (Jece Valadão) e a polêmica existente entre esse grupo e o pessoal do chamado cinema novo, Braz Chediak, esclarece: ‘Ser comercial quer dizer atingir o grande público. E essa é a meta de todo diretor honesto. Eu preferi ligar-me ao Jece não só por considerá-lo um excelente ator-produtor-diretor, como também por achar que ele, sendo homem do povo, é o que mais atinge esse povo. E quanto a ser participante, uma das metas do cinema novo, meu filme o é. Se não me liguei diretamente ao cinema novo – que considero válido – é porque não sinto o tipo de problema para o público ao qual ele se dirige: nunca morei em Ipanema, nunca fui de muito intelectualismo, não sou intimista. 248 245 O mesmo procedimento também ocorreu em dois cortes da censura no filme Vida provisória, de Maurício Gomes Leite, também de 1968: “B) eliminar o letreiro ‘Brasil’ sobre imagens tomadas de helicóptero no bairro de Copacabana; C) Eliminar na trilha sonora, a palavra ‘real’, na frase ‘esta é uma história real”. Posteriormente, quando lançava a adaptação da peça de Plínio Marcos, Chediak teria outro discurso: “A estrutura de Navalha na carne é universal. Tão que a censura não teve dúvida em liberar o meu filme”. 246 BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Departamento de Polícia Federal. Ficha de censura de Os viciados, Brasília, 29 ago. 1968. Censor: Carlos Lúcio Menezes; BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Departamento de Polícia Federal. Ficha de censura de Os viciados, Brasília, 29 ago. 1968. Censor: Coriolano de Loiola Cabral Fagundes; BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Departamento de Polícia Federal. Certificado de censura de Os viciados, Brasília, 30 ago. 1968. Censor: Aloysio Muhlethaler de Souza e Manoel F. de S. Leão Neto. 247 CHEDIAK com cinema, quer xingar. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 2 out. 1968. 248 Ibid. 170 Com o objetivo de atingir o grande público – desejo não realizado do Cinema Novo, que se assumiu inicialmente como anti- industrial – Chediak não teria recusado o cinema comercial (ou industrial, com todas as contingências que isso trazia) e disparava a repetitiva acusação dos cinema-novistas pertencerem à elite e somente atingirem essa mesma elite com seus filmes. Por outro lado, apesar de suas nobres intenções, é evidente também que Os viciados não deixava de ser, da mesma forma que as demais produções da Magnus nos anos 60, um veículo para o astro Jece Valadão desfilar sua consagrada persona cinematográfica, além de um filme obediente às convenções de um filão cinematográfico oportunamente em voga no cinema brasileiro. Para Chediak, o fato de seu produtor e representante do cinema industrial, Jece Valadão, ser um “homem do povo”, era um dos trunfos para o diretor alcançar seu objetivo de maior comunicação com esse mesmo povo. Nesse sentido, a peça Navalha na carne, do igualmente “homem do povo” Plínio Marcos, seria um instrumento ainda mais apropriado para atingir esse fim, aproveitado pelo diretor no seu filme seguinte. Ou seja, permanecendo aliado a Valadão e, imediatamente em seguida, também a Plínio Marcos – dramaturgo distante do intelectualismo e autenticamente “popular”, mas inegavelmente consagrado pela própria elite –, Chediak estaria se alinhando a esse mesmo povo, se apropriando do prestígio e do talento do premiado dramaturgo e ainda continuando distante dos chamados elitistas do Cinema Novo. 249 249 A trajetória de Valadão pode ser aproximada da de Plínio Marcos pela origem humilde e pelo trânsito junto à marginalidade, além de uma vida marcada pela sucessão de sucessos e fracassos. Nascido em 1930, em Murundu, no Estado do Rio de Janeiro, aos oito anos foi morar em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. De uma família de classe baixa, filho de um ferroviário, na adolescência trabalhou como engraxate e aprendeu o ofício de alfaiate, além de outros biscates. Saiu de casa aos 16 anos e caiu na estrada, ganhando a vida como alfaiate ou na mesa de sinuca e no carteado. Retornou a sua cidade natal para se tornar radioator e depois locutor de rádio. Em 1951 mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro, virando locutor comercial da Rádio Tupi. Como recebia um “salário de fome”, começou a trabalhar como corretor de anúncios de rádio e ganhou uma pequena fortuna. Aos 22 anos, morando em Copacabana e dirigindo um carro novo, decidiu ser ator. Já tinha feito figuração em filmes como Também Somos Irmãos (dir. José Carlos Burle, 1949) e batendo novamente na porta dos estúdios da Atlântida, foi só isso que conseguiu fazer novamente, em diversas chanchadas ou no policial Amei um bicheiro (dir. Jorge Ileli, 1952), no qual era um dos membros do bando do bicheiro interpretado por Cyll Farney. Como figurante perdeu todo o dinheiro e voltou a sobreviver “limpando os trouxas” na sinuca do Salão Palácio, em cima do Cinema Palácio, e aceitando “o dinheiro que as estrelinhas mais famosas e mais bem pagas lhe ‘cediam”. Conheceu Nelson Pereira dos Santos e Hélio Silva no I Congresso Brasileiro de Cinema, em 1953, sendo convidado para atuar em Rio 40 graus (1954), do qual também foi assistente de direção. Sua atuação no filme lhe valeu o prêmio de melhor ator no I Festival de Cinema do Rio de Janeiro: “Não queriam dar o prêmio, pois diziam que eu era mesmo marginal do morro. No fim, souberam da minha experiência como figurante e o prêmio foi entregue”. Voltou sua carreira para o teatro, atuando em peças de Nelson Rodrigues e casando com sua irmã, Dulce Rodrigues. Quando decidiu largar o teatro e partir definitivamente para o cinema, “investiu tudo que tinha” em Os cafajestes, cujo sucesso alavancou sua carreira de ator e produtor na década de 60. 171 Essa estratégia aparentemente funcionou em A navalha na carne, sendo elogiada em reportagem antes do seu lançamento. Para um jornalista que compartilhava da visão de Chediak, sua adaptação da peça de Plínio Marcos, “lírica e chocante ao mesmo tempo”, era também: Um excelente trabalho, direto, simples, seco e comunicativo na sua forma de narrar cinema sem se perder em elucubrações e mirabolantes mis-en-scènes cinematográficas. [...] Não se considerando um filho propriamente dito do Cinema Novo, realiza ao mesmo tempo um Cinema Novo, simples e novíssimo, quando não dispensa um só instante os recursos teatrais existentes na obra de Plínio Marcos. [...] Navalha na carne tem o dom e a pureza da arte e o comércio. É o binômio perfeito numa relação perfeita de cinema-indústria (grifos meus). 250 O filme de Chediak também se distancia do Cinema Novo (ou do cinema de esquerda, em geral) pelo teor “apelativo”, “escatológico” ou “grosseiro” da peça. O moralismo também presente na esquerda que condenava a investida em temas considerados “vulgares” (além de, obviamente, burgueses e alienados) não deve impedir o reconhecimento de semelhante teor nacional-popular em outras obras de programas aparentemente distintos. Indo contra uma visão romântica, paternalista ou preconceituosa do povo, as peças de Plínio Marcos, assim como a adaptação de Chediak, por outro lado, se aproximava m de idéias caras à esquerda como a investigação sobre um modo autêntico de expressão dos hábitos e modos de falar, viver e andar de personagens populares. Conforme afirmou com ousadia Décio de Almeida Prado em sua crítica de Navalha na carne, a peça de Plínio Marcos era “violenta, mas sadia – como um palavrão na boca de um homem do povo”. 251 Às vezes chego a pensar: Será que sou gente? Será que eu, você, o Veludo, somos gente? Chego até a duvidar. Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro. 250 (DINIZ, F. Navalha na carne, Diário de notícias, Rio de Janeiro, 11 mar. 1970). Um crítico como Salvyano Cavalcanti de Paiva, que não era exatamente fã do Cinema Novo, também ressaltava como virtude a capacidade de comunicação de certos filmes, aproveitando várias oportunidades para atirar farpas contra os “autores”. Na sua crítica de Os viciados, apesar de apontar inúmeros defeitos, o crítico elogiava a “vontade de acertar, de comunicar, sem apelar para o formalismo rebuscado de outros noviços. Na simplicidade, a larga estrada do triunfo”. (PAIVA, Salvyano Cavalcanti. Os viciados. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 2 out. 1968). Mesmo quando nada se salvasse num filme comunicativo, ele não deixava de soltar algum comentário, como na crítica do filme de Mário Latini: “Pensávamos que não existissem filmes brasileiros iguais ou piores do que Terra em Transe; há um, igual – pois pior ainda não apareceu. Está em cartaz. Chama -se Na mira do assassino” (PAIVA, Salvyano Cavalcanti. Na mira do assassino. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 2 set. 1967). 251 O moralismo de esquerda é especialmente notado no segmento Zé da cachorra de Miguel Borges, no filme Cinco vezes favela (1962), em que há a associação entre a burguesia e o sexo e o prazer. Do mesmo modo, em A Grande feira (dir. Roberto Pires, 1961), um jovem político progressista e idealista (Geraldo Del Rey), quando briga com a namorada Helena Ignês, uma jovem burguesa e alienada, diz: “Você não passa de uma romântica sem moral”. 172 Isso não pode ser coisa direita. Isso é uma bosta. Uma bosta! Um monte de bosta! Fedida! Fedida! Fedida! Plínio Marcos, Navalha na carne. Corte lento e doloroso. Navalha na carne, de Plínio Marcos, é uma peça em ato único com uma trama que se desenvolve vertiginosamente da primeira à última fala. Encenado em apenas um ambiente – um quarto de pensão com poucos móveis –, conta com somente três personagens: Neusa Sueli, uma prostituta; Vado, seu cafetão; e Veludo, faxineiro homossexual da pensão onde vive o casal. A ação começa com Neusa Sueli chegando de mais uma noite de trabalho na “viração” e encontrando Vado enraivecido por não achar o dinheiro que a prostituta sempre deixava para ele. Desconfiada de que Veludo poderia ter roubado a “grana” enquanto limpava o quarto, ela chama o faxineiro, estabelecendo-se uma situação de tensão entre os três. Após Veludo deixar a cena, Vado e Neusa mantêm uma discussão dramática, numa tensa relação de amor e ódio, até que, ao fim, o cafetão abandona a prostituta. Sozinha e solitária, só lhe resta comer seu sanduíche de mortadela. Escrita depois da repercussão de Dois perdidos numa noite suja, a peça seguinte de Plínio Marcos o elevou ao posto de principal revelação do teatro brasileiro em 1967. Segundo a crítica, Navalha na carne afirmou definitivamente seu “talento raro” de dramaturgo e confirmou sua vocação de autor teatral. Precedida por numa longa campanha pela liberação do texto que tinha sido proibido pela censura federal, as montagens simultâneas no Rio e em São Paulo da peça corresponderam plenamente às expectativas que as cercavam, alcançando enorme sucesso de público e crítica. Navalha na carne foi considerada por muitos, desde sua estréia até hoje, como a obra-prima de Plínio Marcos. De forma geral, nas críticas sobre as montagens pioneiras de Navalha na carne a maior parte das atenções se concentrou no texto teatral. 252 A peça foi aclamada quase que por unanimidade, sendo elogiada principalmente pelo seu pujante realismo e contundência, o que fica claro por algumas das expressões utilizadas na avaliação do texto, como “admirável autenticidade”, “intensamente verdadeira”, “audácia”, “sinceridade”, “nitidez feroz e amarga”, “dureza”, “narrativa franca” e “crueza da matéria bruta”. 252 Por outro lado, este não era um fato incomum, dada a primazia do texto no teatro brasileiro desde a década de 40 e 50, que só começaria a mudar nos anos 60/70. 173 Encontramos ainda expressões próximas de um vocabulário cinematográfico, remetendo à idéia da vocação realista da imagem fotográfica, como “fotografia perfeita e sem retoques”, “neo-realismo que impede a caricatura”, “investigar sem lentes embelezadoras a realidade” ou “objetivo de documentar a realidade”. Em sua crítica, Sábato Magaldi cristalizou numa frase os aspectos mais elogiados na obra: “A literatura teatral brasileira nunca produziu uma peça de verdade tão funda, de calor tão autêntico, de desnudamento tão cru da miséria humana como essa de Plínio Marcos”. 253 Nessas montagens pioneiras os demais aspectos do espetáculo (direção, cenário, figurinos, iluminação, interpretação dos atores etc.) foram elogiados ou criticados por sua sintonia com esse grau de realismo do texto. A direção de Jairo Arco e Flexa, por exemplo, foi ressaltada em sua “simplicidade” por João Apolinário. Na montagem carioca, Van Jaffa elogiou “o realismo fotográfico” da cenografia de Sarah Feres, assim como os figurinos, que “simplesmente vestem os personagens, com uma naturalidade cotidiana, sem artificialismo barato nem estereotipado”. Por outro lado, o crítico Alberto D’Aversa, a respeito das primeiras encenações exclusivas para convidados, considerou que “sendo o texto de uma escritura prepotente realista, a falta de cenário prejudicou o espetáculo e os atores, não conseguindo um clima de suficiente verossimilhança”. 254 Chediak, que decidiu adaptar o texto para o cinema após assistir à badalada montagem carioca, possivelmente encontrou na peça de Plínio Marcos a possibilidade de alcançar as mesmas intenções que tinha com Os viciados – denúncia social, choque agressivo, realismo contundente –, mas auxiliado pelo talento de Plínio. O filme anterior de Chediak fora justamente acusado de ser vulgar, grosso, de mau gosto ou apelativo, e em muitas das suas críticas encontramos condenações como “puro melodrama sentimentalóide à mexicana”, “diálogos péssimos”, “caindo na escatologia” 255 , “filosofia tão barata quanto constrangedora” 256 e “gestos obscenos dispensáveis” 257 . Já a peça Navalha na carne tinha sido aclamada pela crítica justamente por sua “não gratuidade”, por não fazer “qualquer concessão à melodramaticidade ou à pieguice” e por mesmo aquilo que pudesse ser acusado de “obsceno” (os palavrões, por exemplo), estarem subordinados a intenções e valores elevados, exercendo 253 MAGALDI, Sábato. Navalha na carne é apenas um espetáculo, mas como dói. O Estado de São Paulo, São Paulo, 12 set. 1967. 254 Todas as críticas citadas estão disponíveis no sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos, disponível em: <http://www.pliniomarcos.com >. Acesso em: 18 jun. 2005. 255 PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Os viciados, Correio da manhã, Rio de Janeiro, 02 out. 1968. 256 OS VICIADOS. Luta democrática, Rio de Janeiro, 04 out. 1968. 257 SANCHES, N. Huebra. Os viciados. O Jornal, Rio de Janeiro, 10 out. 1968. 174 uma função significativa no contexto total. Navalha na carne foi considerada definitivamente como poesia, mesmo que criada “a partir do mais sórdido dos ambientes e da mais vulgar das linguagens”. Como sintetizou D’Aversa, tratava-se de “uma peça de berrante humanidade, em que o melodrama assume dignidade de realismo, em que o convencional se faz psicológico e o retórico se transforma em tácita poesia”. 258 A adaptação cinematográfica de Navalha na carne, dirigida por Braz Chediak, estrategicamente se aproximou do texto e também da montagem teatral da temporada 1967 / 1968, especialmente da carioca. Com exceção do que chamaremos de “introdução” (que abordaremos mais a frente), a direção de arte do filme, com o mesmo despojamento e obediência das encenações teatrais, seguiu rigorosamente à descrição do texto de Plínio sobre o cenário único e sua cenografia: “Um sórdido quarto de hotel de quinta classe. Um guardaroupa bem velho, com espelho de corpo inteiro, uma cama de casal, um criado mudo, uma cadeira velha, são os móveis do quarto” (MARCOS, 2003, p.138). 259 No filme, Chediak escalou para o papel de Veludo o ator Emiliano Queiroz, o mesmo que interpretara o personagem na montagem carioca. Jece Valadão, produtor e astro principal, obviamente assumiu o papel de Vado, personagem que se encaixava adequadamente ao seu perfil. Para interpretar Neusa Sueli, a escolha recaiu sobre Glauce Rocha. Se a grande dama do teatro Tônia Carrero corajosamente encarou o papel da prostituta no teatro (meio no qual os atores se permitem maiores ousadias), para o filme Glauce Rocha pareceu uma escolha mais viável e coerente. Além de reconhecida pela absoluta dedicação e identificação passional com seus personagens, uma das características da atriz era o ecletismo, jamais se vinculando a companhias ou grupos específicos. No cinema transitou tanto pelos “independentes” dos anos 50 e pelo Cinema Novo, quanto pelo chamado cinema comercial. 258 260 Todas as críticas citadas estão disponíveis no sítio oficial criado a partir do acervo de Plínio Marcos conservado por seus filhos, disponível em: <http://www.pliniomarcos.com >. Acesso em: 18 jun. 2005. 259 Obviamente, o deslocamento da câmera no filme permite a revelação de um número maior de detalhes, como uma estátua de São Jorge na mesa, um terço pendurado na cama, garrafas vazias esquecidas pelos cantos, jornais velhos espalhados, diversos objetos na penteadeira ou outras roupas no armário. 260 No meio cinematográfico, Tônia Carrero era mais associada à decepcionante experiência da Vera Cruz, do qual a atriz foi uma das maiores estrelas. Significativamente, na passagem da década de 50 para 60, Tônia atuou principalmente em co-produções estrangeiras ou em filmes do “universalista” Carlos Hugo Christensen. Entretanto, na mesma época da adaptação de A navalha na carne, a atriz voltou ao cinema depois de sete anos num papel intenso – que envolvia inclusive uma cena de estupro – no interessante, mas esquecido Tempo de violência (1969), dirigido pelo fotógrafo argentino Hugo Kusnet, também emblemático daquele contexto ilustrado pelo seu próprio título. Por outro lado, Glauce Rocha desde os anos 50 vinha atuando em filmes dirigidos por “nacionalistas” como Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Glauber Rocha, sendo uma das mais reconhecidas intérpretes do cinema brasileiro. Já Ruthinéia de Moraes, atriz que interpretou Neusa Sueli na montagem paulista, praticamente não tinha ligação com o meio cinematográfico carioca, desenvolvendo uma carreira principalmente no teatro paulista e em televisão. 175 Em relação ao universo de Navalha na carne, pouco tempo antes a atriz já tinha interpretado uma favelada que se prostituía para ajudar o namorado no filme Na Mira do assassino, protagonizando uma corajosa cena de nudez. Além do mais, Glauce Rocha também tinha trabalhado na primeira produção da Magnus Filmes, Os cafajestes, fazendo uma pequena participação como uma prostituta seduzida pelo personagem de Valadão (que ela conhecia desde Rio 40 graus). Sua escolha para o papel de Neusa Sueli não poderia ser melhor. 261 O roteiro da adaptação cinematográfica de Navalha na carne foi escrito pelo próprio Chediak com a colaboração do crítico de cinema Fernando Cezar Ferreira e do principal representante da montagem teatral, o ator Emiliano Queiroz. Mas os diálogos do filme eram quase que única e exclusivamente as falas da própria peça, seguindo rigorosamente o texto de Plínio Marcos. A navalha na carne foi praticamente todo rodado em longos planos-seqüência 262 com câmera na mão, criando uma estrutura de continuidade que a crítica chegou a acusar de “teatro filmado”, um filme “que nada tem a ver com cinema”. 263 A partir do momento em que surgem os diálogos iniciais da peça (após a “introdução”), a narrativa segue espaçotemporalmente o mesmo desenrolar que o texto de Plínio Marcos. Não foram utilizadas elipses temporais, flash backs ou flash fowards, câmeras lentas ou aceleradas. Pelo contrário, os poucos cortes foram disfarçados, ou pelo menos não evidenciados, proporcionando uma fluidez do início ao fim do que seria a “peça”. Do mesmo modo, não há mudanças de cenário ou locação, permanecendo a câmera e os atores dentro do mesmo quarto de pensão. Essa parte que comporta dois terços do filme, com cerca de 60 minutos de duração, tem menos de 30 planos. Para fins de comparação, os 119 minutos do filme Os pássaros (The birds, EUA, 1963, dir. Alfred Hitchcock) tem 1360 planos. 261 264 Ainda em relação ao elenco, o ator Carlos Kroeber – diretor de produção da montagem carioca da peça – fez uma ponta em A navalha na carne, sua estréia no cinema. 262 Uma seqüência (unidade narrativa de um filme baseada no desenvolvimento e continuidade de uma idéia) realizada toda num só plano (unidade mínima do filme, localizada entre dois cortes) costuma ser chamada de plano-seqüência, tratando-se geralmente de um longo plano desenvolvido com freqüência através de virtuosismos da câmera. 263 RODRIGUES, Jaime. Navalha na carne. Diário de notícias, Rio de Janeiro, 10 abr. 1970. 264 Um exemplo anterior e célebre da estratégia de realizar um filme com planos longos no limite da duração dos chassis, é Festim diabólico (Rope, EUA, 1948, dir. Alfred Hitchcock), também adaptado de um texto teatral (de Patrick Hamilton). Segundo seu diretor, o filme buscou um equivalente para a peça que “transcorria no mesmo temp o que a ação, que era contínua, do levantar da cortina até a cortina baixada”. Como A navalha na carne, a trama também se passava num apartamento fechado, mas durante uma festa que durava de 19:30 às 21:15 da noite. Na célebre entrevista com François Truffaut, Hitchcock se mostrou severo com a experiência que chamou de “armadilha”. O diretor francês, entretanto, fez um interessante comentário de que o diretor inglês realizava 176 Desse modo, foi fácil considerar o filme como teatro filmado, ainda mais por uma parcela da crítica ainda presa a uma concepção puramente visual do cinema. Como apontou com perspicácia Susan Sontag (In: KNOPF, 2005, p.134-135), a história do cinema foi constantemente tratada como a história da sua emancipação dos modelos teatrais. Primeiramente da frontalidade teatral (a câmera imóvel, reproduzindo a posição do espectador de uma peça sentado em sua poltrona); depois da atuação teatral (gestos desnecessariamente estilizados e exagerados – desnecessários pois a partir de certo momento o ator passou a poder ser visto em close up); e, em seguida, do “mobiliário” teatral (“distanciando” o envolvimento emocional da platéia ao desperdiçar a oportunidade de imergi- la na realidade). Ou seja, os filmes foram vistos como uma evolução da imobilidade teatral para fluidez cinematográfica, da artificialidade teatral para naturalidade e imediatez cinematográfica. Embora demasiadamente simplista, essa visão continuou ainda muito presente. No início da década de 1950, contrariando os advogados do “cinema puro”, que pretendiam definir especificidades e vocações da sétima arte, o crítico André Bazin defendia o que ele chamava de “cinema impuro”, apontando para o intenso intercâmbio de todas as artes. Na época, frente às bem sucedidas adaptações cinematográficas de obras teatrais (como as de Laurence Olivier, Orson Welles, William Wyller ou Jean Cocteau 265 ), um dos fundadores da Cahiers du cinéma apontava que diante da dialética do realismo cinematográfico e da convenção da ilusão teatral, o problema do teatro filmado tinha sido radicalmente renovado. Se antes os filmes, especialmente as adaptações de peças, procuravam disfarçar o teatro (injetando à força cinema no teatro), a partir de então esses filmes acertadamente passaram a acentuar seu caráter teatral. Para Bazin não havia alternativa, uma vez que o texto já determinava modos e um estilo de representação que eram, em potencial, o teatro. Ou seja, para o crítico não era possível a um só tempo decidir ser fiel a ele e desviá- lo da expressão para o qual tendia. Entretanto, naquele momento a possibilidade de se incorporar o repertório um “sonho que todo diretor deve acalentar”, que é de querer “ligas as coisas a fim de não obter senão um único movimento”. Mas diante da autocrítica retrospectiva de Hitchcock, Truffaut divagava que na carreira de todos os grandes diretores, “quanto mais se reflete sobre cinema, mais se tem a tendência de reatar com a boa e velha decupagem clássica, que nunca deixou de mostrar seu valor desde Griffith”. Sem tentar compará -lo com o mestre inglês, Chediak não foi exceção nessa tendência (TRUFFAUT, 1988, p.107-110). 265 Henrique V (The chronicle history of king Henry the fift with his Battell fought at Agincourt in France, Inglaterra, 1944, dir. Laurence Olivier) Hamlet (idem, Inglaterra, 1948 dir. Laurence Olivier), Ricardo III (Richard III, Inglaterra, 1955 dir. Laurence Olivier), Macbeth (idem, EUA, 1948, dir. Orson Welles), Othelo (The tragedy of Othello: The moor of Venice, EUA, 1952, dir. Orson Welles), todos baseados em peças de Shakespeare, O pecado original (Les parents terribles, França, 1948, dir. Jean Cocteau), baseado em peça do próprio Cocteau, Pérfida (The little foxes, EUA, 1941, dir. William Wyller), baseado em peça de Lillian Hellman. 177 teatral revelaria um sinal de maturidade do cinema. Adaptar peças não significaria mais traílas, mas respeitá- las (BAZIN, 1991). Nos filmes citados por Bazin se esboçava o cinema moderno que se instalaria definitivamente no pós-guerra e, obviamente, entre seu pensamento e A navalha na carne, o universo cinematográfico foi atravessado pela politique des auteurs, pela Nouvelle Vague e os Novos Cinemas (incluindo o Cinema Novo brasileiro), que retrabalharam a questão da adaptação cinematográfica de peças teatrais. 266 Além disso, nos anos 60 surgia um novo contexto em que a oposição entre artificialismo teatral e o realismo cinematográfico também mudava de figura. 267 Colocadas essas questões, passamos a abordar justamente o que a adaptação de Chediak criou a partir da peça, um trecho que não existe no texto original de Plínio Marcos e que consiste nos primeiros 30 minutos do filme. Introdução: O silêncio que precede o esporro. 268 O filme de Chediak começa com Neusa Sueli (Glauce Rocha) acordando e se arrumando para sair. A escuridão da noite enquanto ela se veste no quarto, com Vado (Jece Valadão) dormindo ao seu lado, parece dar a impressão do operário que se levanta para ir trabalhar 266 A frase de Bazin (“Adaptar, enfim, não é mais trair, mas respeitar”), que provavelmente se referia ao aforismo de Carlo Rim (“Uma adaptação honesta é uma traição”) ganhou outro ponto de vista no polêmico artigo de François Truffaut Uma certa tendência do cinema francês, publicado na revista Cahiers du cinéma, em janeiro de 1954. Neste artigo, Truffaut atacava o cinema francês de uma “Tradição de qualidade”, representado especialmente pelos consagrados argumentistas Aurenche e Bost, que buscando o respeito ao “espírito” e não à “letra” das fontes literárias, faziam filmes marcados por pouca invenção para muita traição, infiéis tanto ao espírito quanto à letra. Mesmo ainda marcado pela crença no respeito à fonte original, Truffaut fazia uma contundente defesa da “política de autores” ao conceber uma adaptação somente se ela fosse escrita por um “homem de cinema”. Posteriormente, com a Nouvelle Vague, a questão do respeito à obra original ganharia mais sutilezas diante da defesa de que “não existem obras, somente autores”. 267 Como vimos no capítulo anterior, após a voga do neo-realismo no pós-guerra, no cinema dos anos 50/60 a questão artificialismo versus realismo foi radicalmente reavaliada a partir da oposição dos Cinemas Novos a um realismo disfarçado no dito universalismo do cinema clássico narrativo consagrado por Hollywood. Considerado burguês e decadente, o realismo passou a ser amplamente rejeitado em diversas obras e movimentos cinematográficos, representando, por outro lado, um retorno a certa “artificialidade” (através do “distanciamento brechtiano” ou da reflexividade) que podia remeter, em outra chave, a uma nova teatralidade. Entretanto, a crítica ao realismo não significou necessariamente o enterro dessa opção no cinema (tanto no “cinema de arte” e muito menos no hegemônico), não apenas pela inesgotável força dessa estética, quanto pela constante renovação da linguagem clássica em Hollywood a partir dos anos 40, pela permanência da influência do neo-realismo e pela emergência e influência de novos “estilos” realistas como o cinema direto ou o cinema verdade. 268 Com a licença de O Rappa. 178 ainda de madrugada ao som das badaladas de um sino distante. Antes de sair, a prostituta deixa para o cafetão um bolo de dinheiro próximo ao abajur do criado- mudo. A câmera acompanha Neusa saindo do quarto, atravessando os corredores e escadas da pensão, e percorrendo o ambiente mal iluminado do cortiço miserável que parece ser habitado por sombras. A fotografia em preto e branco é extremamente contrastada e não há diálogos ou som direto – mesmo o som ambiente acrescentado em estúdio no processo de finalização é escasso. O silêncio da madrugada é quebrado somente pelos passos da prostituta e poucos ruídos. Os latidos distantes de um vira-lata e uma lavadeira pendurando as roupas no varal do pátio ouvindo música num rádio reforçam a imagem de cotidianidade, do retrato naturalista do dia-a-dia. Nos corredores, a câmera permanece mais estática, movimentando-se apenas em seu próprio eixo, observando os personagens indo e vindo, se aproximando e se distanciando. Em alguns momentos ela ainda assume ângulos não convencionais, como, por exemplo, quando enquadra por cima do corrimão da escada. A iluminação de claros e escuros e sombras projetadas, com um tom expressionista (recorrente, às vezes involuntariamente, no cinema brasileiro), realizada efetivamente à noite e com poucos refletores, completam o teor desolador da pensão. Através de um extraordinário plano-seqüência com travelling lateral 269 , a câmera acompanha a prostituta saindo da pensão e seguindo pela rua, numa verdadeira trans ição sonora, fotográfica e emocional. Deixando as luzes do cortiço, os latidos do cachorro e a música do rádio para trás, Neusa atravessa um trecho de calçada deserta, escura e silenciosa, até chegar a um local mais movimentado e claro – iluminado pelas luzes das lojas, bares e postes –, e o silêncio vai dando lugar ao barulho de carros da cidade que não dorme. Ainda no mesmo plano-seqüência, a personagem passa em frente a um bar onde Veludo (Emiliano Queiroz) conversa com um rapaz (Ricardo Maciel), e a câmera abandona a prostituta para acompanhar os dois conversando e se despedindo. Logo, a montagem paralela estabelece simetrias através de planos cada vez mais curtos: Neusa na "viração" e Veludo começando a faxina na pensão. Mesmo sem fala, a aparênc ia (cabelo grande com franja caindo nos olhos, camiseta curta, apertada e enrolada na manga, calça justa e baixa), além dos gestos e do modo de andar de Veludo, já o caracterizam de 269 O travelling é um plano em que a câmera se desloca horizontalmente acompanhando um personagem ou uma ação e estando sobre um carrinho ou dolly (aparato mecânico com quatro rodas, geralmente deslizando sobre trilhos, que serve de plataforma para câmera e seu operador). 179 forma “efeminada”. A câmera acompanha sem pressa, sem cortes e novamente apenas com uma música distante de um rádio, o trabalho cotidiano do faxineiro, limpando e espanando despreocupadamente os quartos, inclusive o de Neusa, onde Vado continua dormindo. Muito discretamente, e após hesitar por instantes, Veludo sutilmente apanha o dinheiro do criadomudo, larga a faxina e volta para o quarto para se limpar e se trocar. 270 Pode-se perceber um tom documental na busca de um retrato cru da realidade nas cenas em que a prostituta faz seu trotoir. Neusa Sueli é filmada de longe, por trás das grades de um jardim como uma câmera escondida, andando na rua em meio a anônimos transeuntes. 271 O primeiro som de voz humana que se ouve no filme é o bocejo de Vado ao acordar, enquanto Veludo e Neusa já estão, aparentemente, trabalhando há horas. O cafetão senta-se na cama, ainda no escuro, acende um cigarro e somente quando se levanta e liga o interruptor, podemos finalmente vê- lo, de corpo inteiro e apenas de short, no meio do quarto. Novamente temos ações simultâneas apresentadas pela montagem paralela, dessa vez envolvendo os três personagens: Vado acordando e começando a se arrumar; Veludo se penteando e se perfumando no quarto antes do seu encontro; e Neusa Sueli e outras prostitutas tentando se abrigar numa ma rquise da chuva que começou a cair. Já há uma simetria entre os dois personagens masculinos, pois são montados em seqüência dois planos semelhantes de ambos diante do espelho, enquanto a prostituta está na rua, literalmente com o pé na lama. Enquanto Vado continua se arrumando e depois procura – e não acha – seu dinheiro, desenvolvem-se alternadamente duas seqüências: Veludo, numa esquina escura e tenebrosa, comprando maconha e depois se encontrando com o rapaz do bar e ambos indo para o seu quarto; e Neusa finalmente conseguindo um “cliente” depois de a chuva parar. O “freguês” já tinha abordado e sido recusado por outras prostitutas, mas é Neusa Sueli quem o interpela. Após um aparente desacordo (supostamente em relação ao preço), ela se encaminha para ir embora, mas muda de idéia e topa o programa. Não se ouve diálogo algum entre os dois, 270 Veludo coloca, então, uma camisa branca com listras horizontais, no estilo marinheiro, muito em moda na época. Repetia-se no filme o figurino do personagem em algumas montagens teatrais, bastando conferir a foto de Sérgio Mamberti no programa de Navalha na carne (São Paulo, 1968), ou dele e de Edgar Gurgel Aranha no sítio oficial de Plínio Marcos (http://www.pliniomarcos.com/teatro/navalha-progsp.htm). Esse aspecto acentua o tom de “revelação dos bastidores” que a introdução do filme possui, dando à seqüência o aspecto do ator estar se vestindo para entrar em cena na segunda parte de A navalha na carne. 271 Essas cenas foram filmadas na Lapa, centro do Rio de Janeiro, na Rua do Passeio e nas proximidades do Passeio Público. 180 somente o barulho dos carros na rua. Ambos vão para um hotel barato, onde cruzam na entrada com outros casais. 272 As duas cenas de sexo são mostradas alternadamente. Enquanto Veludo e o rapaz se acariciam delicadamente e o primeiro parece apaixonado e deliciado, Neusa está dividida entre o nojo e a ind iferença ao homem que se contorce e ofega grotescamente. A dessimetria entre os dois casais está refletida na própria posição inicial dos corpos (Neusa por baixo, Veludo por cima), na iluminação (Neusa no quarto com a luz acesa, Veludo no escuro) e na movimentação dos personagens (o “cliente” treme e se contorce grotescamente, Veludo e o rapaz se movem suavemente). O “freguês” da prostituta (Carlos Kroeber) segue o perfeito estereotipo – para certo tipo de teatro e cinema dos anos 60 – de um “típico” pequeno burguês: branco, gordo, suarento, de meia- idade, com óculos, costeletas e bigode, levemente grisalho e vestindo terno e gravata. Na cama, o personagem é retratado de forma repulsiva com as costas cobertas de pêlos, empapado de suor, ofegando e lambendo a prostituta. 273 A seqüência do programa, como toda a introdução, ilustra e antecipa o que o texto de Plínio Marcos revelava através dos diálogos. No monólogo em que Neusa questiona sua própria humanidade, a prostituta lembrava o que passara antes naquela mesma noite: “Hoje foi um dia de lascar. Andei para baixo e para cima, mais de mil vezes. Só peguei um trouxa a noite inteira. Um miserável que parecia um porco. Pesava mais de mil quilos. [...] O desgraçado ficou em cima de mim mais de duas horas. Bufou, bufou, babou, babou, bufou mais para pagar, reclamou pacas.” (MARCOS, 2003, p. 164) Esta mesma seqüência representa também o auge de uma gradual aproximação da câmera à personagem. Nas cenas externas iniciais a prostituta era observada com um aparente distanciamento documentário, chegando a ser vista na rua do outro lado da grade do Passeio 272 Nessa cena aparece o único texto legível da introdução – uma placa onde está escrito que se alugam quartos. Podemos enxergar nesta seqüência de A navalha na carne uma ligeira crítica à classe média brasileira e sua fachada de respeitabilidade, numa linha que Nelson Rodrigues abordava há alguns anos e o cinema, principalmente a partir da década de 50, também procurou ilustrar, inclusive no primeiro filme de Chediak (o crítico Jaime Rodrigues apontava, já em Os viciados, “figuras e situações típicas de Nelson Rodrigues, de onde, claramente, se originaram”). É possível perceber ainda outras implicações na seqüência de Neusa e o cliente, como, por exemplo, uma visão metafórica de uma classe trabalhadora (daí a analogia da prostituta com o operário) explorada econômica e sexualmente pela burguesia. A adaptação de Chediak, na introdução, ressalta algo que estava também presente na peça, ainda que implicitamente. Apesar de restringir-se a personagens e cenários marginais, Plínio Marcos também levava a burguesia à cena, fosse para demonstrar a corrupção moral de todos, independente das classes sociais, quando Vado fala para a prostituta que “velha cansa à toa. [...] Mas isso é igual na vida e nas casas de família. Os machos só aturam as coroas por interesse. Pra se divertir, a gente sempre tem uma garota enxutinha” (MARCOS, 2003, p.161); ou ainda, para afirmar que o vazio existencial não é exclusividade de seus personagens, quando Neusa conta para o cafetão de seu cliente: “Um miserável que parecia um porco. [...] Contou toda a história da puta da vida dele, da puta da mulher dele, da puta da filha dele, da puta que o pariu. Tudo gente muito bem instalada na puta da vida” (ibid, p.164) (grifos meus). 273 181 Público, na calçada oposta. Posteriormente, a câmera passava a enquadrar a cena do meio da rua e, finalmente, na mesma calçada em que Neusa e as outras “mulheres da vida” andavam. Se nas primeiras cenas de intimidade (no quarto de Vado e Neusa e no de Veludo) os planos já eram mais próximos dos personagens, na cena de sexo (no quarto de hotel), pela primeira vez são vistos close-up dos rostos de Veludo (extasiado) e Neusa (enojada), além de planos de detalhes de partes do corpo dos casais (mãos, olhos, braços), que, na montagem, parecem se misturar e se embaralhar. A câmera, antes mais distante e contemplativa, torna-se mais íntima para ampliar o contraste entre os sentimentos distintos de ambos. A deliberada e absolutamente total ausência de som acentua o grotesco das expressões de prazer do homem, se contorcendo por cima da prostituta que perma nece em expressivo silêncio. No final da seqüência, com a força que a imagem cinematográfica possibilita através do close-up, a tristeza é latente nos rostos de Veludo e Neusa – tanto no personagem que pagou quanto no que recebeu dinheiro em troca de sexo (carinho? amor? companhia?). Exausta, Neusa retorna ao cortiço e já ouvimos o som do galo cantando ao longe. Após subir as escadas, cruza ainda com o amante de Veludo saindo de seu quarto, fumando e fechando o cinto. Quando finalmente chega ao quarto, Neusa pela primeira (e praticamente única) vez abre um sorriso, mesmo encontrando Vado vestido e irritado. Temos, finalmente, o diálogo que abria a peça, mas que também se constitui como o primeiro do filme: Neusa Sueli: Oi, você está aí? Vado: O que você acha? Neusa Sueli: É que você nunca chega tão cedo. Vado: Não cheguei, sua vaca! Ainda nem saí! Neusa Sueli: Tá doente? Vado: Doente, o cacete! Neusa Sueli: Não precisa se zangar, só perguntei por perguntar Os conflitos dramáticos surgidos desde o início da peça e desenvolvidos num crescente, características do teatro de Plínio Marcos, procuraram ser mantidos no filme, apesar de só surgirem após a introdução. Entretanto, a crítica na época do lançamento de A navalha na carne se dividiu a respeito dessa parte inicial. Os críticos Carlos Frederico e José Lino Grünewald 274 elogiaram o prólogo, mas José Carlos Avellar questionou essa primeira meia hora – que situaria o ambiente e os personagens ao ilustrar os acontecimentos, antes 274 FREDERICO, Carlos. Tostão e a Navalha. O dia, Rio de Janeiro, 12 abr. 1970; e GRÜNEWALD, José Lino. A navalha na carne. Correio da manhã, Rio de janeiro, 8 abr. 1970. 182 simplesmente citados nos diálogos – por, justamente, diminuir a agressividade do espetáculo. 275 Ronald Monteiro também demonstrou restrições à introdução inexistente no texto original da peça, considerando-a um acréscimo inútil, já que esvaziaria a ação ao eliminar a surpresa da violência inicial e a dúvida sobre a culpa no roubo. 276 Entretanto, embora os xingamentos e a “gratuidade aparente da surra de boas-vindas” percam em parte seu impacto por se localizarem após um terço de projeção, acredito que Chediak conseguiu manter a agressividade original pelo fato daquelas permanecerem como as primeiras falas do filme. O tratamento sonoro na primeira parte de A Navalha na carne, de sofisticação e ousadia raras no cinema brasileiro, revelam criatividade no uso de elementos cinematográficos na adaptação teatral. O uso parcimonioso da música (localizada diegeticamente num aparelho de rádio na pensão), e a deliberada ausência de diálogos na introdução, marcada somente por sons de passos, portas, carros, além de latidos, grunhidos, gemidos e bocejos, preservam o choque da explosão de violência (talvez mais “explicada”, mas ainda surpreendente) que caracteriza as palavras iniciais de Vado. No universo pliniano recriado cinematograficamente por Chediak, os personagens só se expressam verbalmente para se enredar no emaranhado de agressões mútuas. Como contraponto analítico, o filme Boca de ouro (1962), adaptação da peça homônima de Nelson Rodrigues igualmente produzida por Jece Valadão, também já apresentava uma “introdução” ao que seria o “corpo da peça”. Nos aproximadamente cinco minutos iniciais do filme são encadeadas breves seqüências inexistentes na peça – quase que puramente visuais, praticamente sem diálogos ou música – que contam a história do protagonista e sua escalada no mundo do crime. Segundo Ismail Xavier (2003, p.236), “desfilam em imagens as armações de uma carreira padrão de bandido, em verdade próxima do modelo de ascensão de Scarface, tudo pontuado pelos créditos do filme e apoiado numa trilha musical associada ao gênero policial”. O protagonista (Jece Valadão) começa como mero contador do jogo do bicho que acaba preso num “rapa” da polícia. Após sair da prisão, onde já adquire respeito, começa a arrochar as bancas rivais (primeiro armado com porrete, depois com revólver), até se tornar braço-direito de um chefão do jogo do bicho. Logo seduz a mulher do bicheiro e o mata, mas acaba novamente preso. Dessa vez, ao invés de ser empilhado num camburão para ser levado para a delegacia como da primeira vez, ele simplesmente sai de lá num “carrão” com 275 276 AVELLAR, José Carlos. A navalha na carne. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 de abril de 1970. MONTEIRO, Ronald. A navalha na carne. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 de abril de 1970. 183 motorista e sob continência dos policiais. Finalmente, já como bicheiro, desenvolve-se a cena inicial da peça de Nelson Rodrigues num consultório odontológico, em que o personagem pede para o dentista lhe arrancar todos os dentes e colocar uma dentadura toda de ouro, se tornando o Boca de ouro. No filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos nota-se uma espécie de introdução sociológica e didática para a origem do protagonista. Essa opção naturalista, em sintonia com a moldura realista do filme, embora eficiente e bem realizada, por outro lado enfraquece o caráter mítico transcendental do texto rodriguiano, especialmente em relação aos inúmeros simbolismos da peça (o nascimento do persona gem numa pia de gafieira, a comparação com o deus asteca e a fixação pela dentadura e pelo caixão de ouro). Apesar da inegável existência de elementos simbólicos em Navalha na carne (as badaladas do sino e o pão como alimento ao final da peça, por exemplo), estes são freqüentemente menosprezados diante da crueza e da força realista do texto de Plínio Marcos. Dessa forma, sem querer traçar hierarquias, comparada com o filme de Nelson Pereira dos Santos, a moldura cinematográfica realista que Chediak confere à peça Navalha na carne parece, por um lado, uma opção mais óbvia e menos criativa, mas por outro, uma alternativa que não dispensa elementos fundamentais do texto original. É curioso que ambas as peças, tanto Navalha na carne quanto Boca de ouro, receberam novas adaptações cinematográficas na década de 90 em que, diferentemente dos filmes anteriores, foram ressaltados aspectos míticos e não-realistas dos textos originais. 277 Encerrada a discussão sobre a introdução, passo a me deter nos dois terços finais de A navalha na carne, do momento em que o filme passa a seguir o texto e as ações da peça, até o seu desfecho, que serão referidos como a peça no filme, expressão que não guarda nenhum juízo de valor. 277 Além da adaptação de Neville D’Almeida para a peça de Plínio Marcos, de 1997, também o filme Boca de ouro (1990, dir. Walter Avancini). 184 Peça no filme: A Navalha recriada Na adaptação de Chediak, em seguida ao que chamei de introdução, as ações do filme em sua última hora de projeção podem ser perfeitamente descritas pelo resumo mais detalhado da peça que Sábato Magaldi fez em sua crítica escrita em 1967: Neusa Suely, voltando ao quarto, encontra Wado na cama, a ler uma revista em quadrinhos. Ele nem havia saído: sem dinheiro, o que fazer lá fora? Antes de revelar a Suely o motivo do mau humor, Wado exercita o seu sadismo, e ela acredita numa intriga da vadia do 102. Garantindo Suely que deixou no criado-mudo o dinheiro, ocorre a suspeita de furto, e só Veludo seria o responsável por ele. Interrogatório nos mais persuasivos métodos policiais, e Veludo acaba confessando que tirou a quantia destinada a Wado: a metade fora para o resistente rapaz do bar e a outra metade para a maconha. A entrega do cigarro de erva a Wado sela o princípio de reconciliação, com a promessa de que o dinheiro seria devolvido. Veludo quer apenas uma baforada e se inicia uma cena ambígua entre os dois, cortada por uma explosão de Suely, que expulsa do quarto o homossexual. Ele deixara escapar o xingatório de “galinha velha”, que Wado retoma depois, para ferí-la e humilhá-la. Com sadismo implacável, Wado menciona as pelancas de Suely e tira-lhe a maquilagem do rosto para esfregar nele o espelho denunciador dos cinqüenta anos (ela diz não ter mais de trinta, gastos e envelhecidos naquela vida triste). Ao reconhecer, arriada, a própria miséria, Suely tenta uma saída pela verdade: se não tem beleza para assegurar a correspondência de Wado, que ele cumpra o papel de quem recebe dinheiro feminino. Prostituta, Suely inverte a situação, tornando consciente o jogo prostituído de Wado. E apóia o desejo de tê-lo à força da navalha. Ao ver-se acuado, o homem de fala macia tenta uma nova sedução e Suely se rende, desfazendo-se da arma. Seguro, Wado acaba por sair tranqüilamente. Quando se apagam as luzes, Suely tira a pelinha da mortadela do sanduíche, companheiro único da solidão. 278 Mesmo sendo possível uma comparação estrita, acredito que alguns elementos do filme (como a cenografia, o figurino e, principalmente, o texto) são próximos dos respectivos elementos teatrais presentes nas montagens originais de Navalha na carne. 279 Como já foi dito, os diálogos do filme são praticamente os mesmos da peça. O cenário do quarto de pensão foi recriado em estúdio para a adaptação cinematográfica, permitindo um controle da cenografia semelhante ao de um palco de teatro e igualmente buscando o realismo, fosse na parede descascada de tinta, nos móveis velhos ou nos objetos característicos daquele ambiente. Entretanto, outros elementos do filme aparentemente se distinguem de seus equivalentes teatrais e saltam aos olhos numa análise da adaptação cinematográfica de Chediak, principalmente a direção e a interpretação dos atores e a iluminação. Sobre os atores, Jece Valadão tem uma atuação convincente e intensa, talvez a melhor de sua carreira, embora sem se afastar do protótipo do cafajeste inescrupuloso com o qual se 278 MAGALDI, Sábato. Documento dramático. O Estado de São Paulo, São Paulo, 15 jul. 1967. Para uma tentativa de comparação do filme com as montagens teatrais, tive acesso a algumas fotos das montagens de Navalha na carne em 1967 / 1968, como as impressas nos programas da peça, as que ilustram o livro publicado em 1968 (e re -editado em 2005), as disponibilizadas no site oficial do dramaturgo (www.pliniomarcos.com) e as existentes no arquivo Multimeios do Centro Cultural São Paulo. 279 185 consagrou. Seu cafetão não está muito distante do malandro Miro de Rio 40 graus, do empresário mau-caráter, aproveitador e dissimulado de Rio zona norte, do playboy sacana e sedutor Jandir de Os cafajestes, ou do bicheiro mulherengo, violento e vaidoso de Boca de ouro, para citar seus papéis mais conhecidos. Entretanto, o porte físico e a interpretação de Valadão dão ao seu Vado um novo tom, diferentemente de Paulo Villaça ou de Nelson Xavier, atores que tinham assumido o personagem no teatro. Paulo Villaça, com seu topete loiro e costeletas, roupas estampadas e porte altivo, provavelmente era um Vado bastante diferente. Os críticos apontaram para um “ar ligeiramente postiço”, “cantando um pouco as falas” 280 , assim, como para um cafetão composto “sobre lembranças de tango e de literatura marginal”, algumas vezes com modos, gestos e dicção um pouco artificiais e pré-fabricados. 281 Na maior parte das fotos é possível vê- lo totalmente vestido (no máximo com a camisa aberta no peito) e muitas vezes numa pose ensaiada de superioridade: de pé, cabeça erguida e as mãos apoiadas na fivela do cinto. Podese imaginar o parentesco de seu Vado com o personagem boçal e blasé que interpretou em seguida no filme O bandido da luz vermelha, para o qual foi escolhido após o cineasta Rogério Sganzerla tê- lo visto na peça de Plínio Marcos, considerações que serão discutidas mais à frente, no capítulo 5. Já Nelson Xavier, o Vado dos palcos cariocas, também passava, como no filme, parte da peça sem camisa. O corpo magro e forte, aliado à beleza morena do ator, aparentemente o aproximava mais da figura do malandro carioca ou das figuras que freqüentavam os salões de bilhar da Boca do Lixo. A interpretação maliciosa de Nelson Xavier como o Catitu no filme A rainha diaba (outra adaptação de um texto pliniano) possivelmente nos fornece uma pista de como deveria ser o seu Vado. Na adaptação de Chediak, o cafetão de Jece Valadão tem um aspecto muito mais rude, grosso e, até mesmo, grotesco. Sua aparência cabocla e rústica – diferente da elegância de Xavier ou do deboche de Villaça –, assim como seu corpo mais forte, atarracado e praticamente curvo, confere Vado uma aparência brutalizada, quase simiesca, sobretudo nas cenas de violência que no filme são aparentemente mais “realistas”. 280 282 MAGALDI, Sábato. Navalha na carne é apenas um espetáculo, mas como dói. O Estado de São Paulo, São Paulo, 12 set. 1967. 281 D’AVERSA, Alberto. “A Navalha” como espetáculo. Diário de São Paulo, São Paulo, 17 set. 1967. 282 Na seqüência em que Veludo é chamado ao quarto de Neusa e passa a ser agredido pelo cafetão e pela prostituta, percebemos claramente que um pontapé de Emiliano Queiroz realmente acertou Glauce Rocha nas costas e a machucou (isso sendo mantido e incorporado ao filme). Já numa das montagens de Navalha na carne em São Paulo, a falta de “realismo” das brigas gerou até mesmo uma crítica de Alberto D’Aversa: “não se pode 186 De forma mais acentuada do que na peça, o filme é todo atravessado pelo ato de Vado se vestir, fazendo com que o corpo seminu de Valadão adquira uma presença central na narrativa. Depois de acordar e não encontrar o dinheiro, o cafetão continua no quarto, somente de cuecas. A partir do momento em que a prostituta chega e os diálogos têm início, todo o drama é permeado pelas ações de Vado se arrumando (se penteando e perfumando) e se vestindo (botando meia, sapato, calça e camisa). A preparação é brevemente atrasada por Veludo (suado depois do corpo-a-corpo, Vado tem que tirar a camisa), mas finalmente se completa quando no final, já totalmente alinhado para a noite (com camisa e paletó nos ombros), o cafetão abandona a prostituta sozinha no quarto. Veludo (Emiliano Queiroz), por outro lado, é o personagem camaleônico, mais consciente do “jogo” que permeia as relações no universo pliniano, escolhendo e trocando de “aliados” a todo o momento. Figura intrometido, seu papel é fazer o drama andar, criando novos conflitos entre o casal. No filme de Chediak, durante a agressão que sofre, ele está no meio da ação, entre Vado e Neusa, e, posteriormente, simbolicamente na cama entre os dois. Inicialmente agredido por Vado, Veludo se esconde atrás de Neusa (sua “amiga”). Sem conseguir maior apoio da prostituta, o faxineiro acaba incluindo-a em sua tentativa de contra-agressão a Vado (“Tu e essa perebenta”). Em sintonia com os ciclos de ação do teatro de Plínio Marcos, Veludo vai novamente apelar para Neusa (“Pelo amor de Deus, Neusa, não deixa esse tarado judiar de mim”), para atacá- la logo depois (“Não sou que nem você que tem que dar dinheiro pra homem”). A partir daí a situação se inverte e Neusa passa a assumir a luta corporal com Veludo. Mas isso é o que ele deseja (“Ela é mulher. Com ela eu posso”) e Vado novamente intervêm. Entretanto, é justamente Neusa, e não Vado, quem consegue dobrar definitivamente Veludo, ameaçando cortar seus olhos com a navalha. Conseguindo a confissão desejada, Neusa logo volta ao papel de mãe, sem persistir na agressão como o sádico Vado. No momento de trégua após Veludo conversar, é Neusa quem está no meio, tentando promover tímida e inutilmente um momento de carinho. falar como se fala no texto de Plínio e no momento de uma surra os atores fingirem bater-se sem se bater. Com isso não quero dizer que pretendo ver os atores massacrarem-se no palco, mas tenho o direito de exigir que me transmitam a ilusão de que isso está realmente acontecendo” (D’AVERSA, Alberto. “A Navalha” como espetáculo. Diário de São Paulo, São Paulo, 17 set. 1967). 187 Embora hoje, com o naturalismo de parte do queer cinema 283 , a interpretação de Emiliano Queiroz (na peça e no filme) possa soar caricata ou segundo Antonio Moreno (1995) estereotipada, e até sendo equivocadamente alinhada às “bichas” recorrentes nas pornochanchadas da década de 70 284 , o Veludo de A navalha na carne se distingue tanto por sua complexidade quanto por certo pioneirismo. Seu personagem não disfarça, mas assume sua homossexualidade (referindo-se a si próprio no gênero feminino) e utiliza isso como força. Ao contrário da postura curva e dos lamentos da personagem de Glauce Rocha, o Veludo de Emiliano Queiroz fala alto, é empinado e tem a cabeça erguida e o queixo levantado. Com ar de superioridade e orgulho, ele chega a dizer para a prostituta que ao contrário dela, ele não precisa pagar para ter homem e que não atura agressão de seus machos. Mesmo que esses comentários sejam totalmente desmentidos pela própria narrativa, Veludo, impositivo e abusado, consegue sair de cena “por cima”. Apesar da força de Veludo – que passa pelo filme como um furacão revirando tudo – é a personagem da prostituta que dá o tom ao filme. Glauce Rocha foi considerada uma das maiores atrizes de seu tempo e sua interpretação em A navalha na carne talvez tenha sido o ponto alto de sua carreira nas telas e, certamente, uma das maiores atuações da história do cinema brasileiro. Conforme a professora e crítica teatral Mariâ ngela Alves de Lima, um dos trunfos de seu desempenho foi a economia na configuração do trágico: Sua interpretação da prostituta Neusa Sueli [...] é uma singular construção reducionista. Exposta a planos longos [...], a personagem também se movimenta lentamente, sob o peso de um cansaço que 283 Sem subestimar as ainda existentes reações de preconceito, hoje um “cinema gay” já é razoavelmente mais aceito pelo grande público, e, obviamente, pelo próprio público homossexual importante fatia do mercado de produtos para classes A e B), como pode ser notado pelo sucesso de O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, EUA, 2005, dir. Ang Lee). Na “Hollywood dos trópicos”, algo semelhante pode também ser percebido pela presença cada vez mais comum de personagens homossexuais “normais” na grade de programação da Rede Globo, especialmente o casal adolescente Rafaela (Paula Picarelli) e Clara (Aline Moraes) na novela Mulheres apaixonadas (Manoel Carlos, 2003), o “não-assumido” Júnior (Bruno Gagliasso) em América (de Gloria Perez, 2005), e o militante Jean Willys, vencedor da quinta edição do Big Brother, em 2004/2005. Apesar do ainda enorme moralismo e conservadorismo (vide a censura ao beijo gay de América ou a não premiação do Oscar de melhor filme para O segredo de Brokeback Mountain) a situação parece ter mudado muito em relação, por exemplo, a 1995, quando o ator André Gonçalves, por interpretar o personagem Sandrinho, que mantinha um relacionamento inter-racial e homossexual – implícito – com Jeferson (Lui Mendes), na novela A próxima Vítima (de Silvio de Abreu), foi agredido por um grupo de jovens na Zona Sul do Rio de Janeiro. 284 Em muitas das chamadas pornochanchadas, além dos personagens masculinos “reprimidos” que tentam desastrosamente disfarçar a sexualidade não-assumida, muitas vezes os personagens “machões” eram obrigados, por injunções da trama, a se passarem por homossexuais, abusando dos trejeitos e excessos, como em A viúva virgem (dir. Pedro Carlos Rovai, 1972) ou, de forma emblemática, no trio de protagonistas de Os machões (dir. Reginaldo Faria, 1973). 188 parece infinito. É incapaz de esboçar um gesto à altura das violências que a atingem. O rosto encoberto pelo cabelo em desalinho e a voz que não tem força para o grito, que, pelo contrário, se reduz a um murmúrio quando o sofrimento se intensifica, reforçam a idéia de que há sempre um degrau mais baixo nesse calvário de humilhação. Glauce percorre, enfim, o caminho inverso ao da progressão dramática, retirando camadas de vitalidade da sua personagem até conduzi-la ao impressionante mutismo final.285 Já na introdução de A Navalha na carne, do momento em que acorda sonolenta de madrugada até o retorno da “viração”, subindo as escadas para o quarto lentamente e com enorme esforço, a prostituta parece carregar todo o mundo sobre seus ombros curvos. Em seus lamentos, Neusa se agarra a fragmentos de esperança, que mesmo risíveis, são as únicas coisas que ela ainda pode ter. Sua defesa contra as agressões de Vado ganha uma dimensão de revolta solitária não apenas contra as violências do amante, mas também das injustiças da vida agravadas pelo o peso da idade. Neusa luta para provar (para o cafetão e para si própria) que ainda agüenta, que ainda suporta. Mas a personagem de Glauce Rocha jamais parece ter realmente força suficiente para lutar. Embora não desista nunca e no final, após o cume das agressões físicas e psicológicas de Vado, ela ainda ressur ja com a navalha tentando uma última virada, a prostituta jamais parece que vai “ganhar” mesmo. Suas ameaças de agressão (seja contra Vado ou contra a “vadia do 102”) são murmuradas, quase inaudíveis e sem nenhuma convicção. Na verdade, Neusa parece já ter se cansado de tudo, inclusive de lutar, de se revoltar ou de tentar recomeçar. Quando ela diz que não é velha, mas sim “gasta”, toda sua interpretação adquire um tom de verdade único, reforçado no desfecho do filme, em que parece finalmente tomada por um cansaço infinito. A aparência de Glauce Rocha também confere singularidade à sua interpretação. Diferentemente da beleza em decadência da Tônia Carreiro ou da devastada exuberância de Ruthinéia de Moraes, Glauce Rocha representa alguém que jamais foi bela. O corpo magro de pele e ossos e o rosto de traços marcados, pouco sensuais ou femininos indicam uma beleza rude, de dureza compatível com sua vida. Na última seqüência de A navalha na carne, o close-up de seu rosto borrado de maquiagem, com o cabelo desgrenhado, os olhos esbugalhados e o esboço de um sorriso um tanto enlouquecido tornam sua ameaça para Vado – “agora nós vamos transar” – uma imagem muito mais forte. A artificialidade da aparência da prostituta sob a espessa camada de maquiagem transfigura-se numa verdadeira máscara de horror. 285 LIMA, Mariângela Alves de. Ela expressava a inquietação de várias gerações de artistas. O Estado de São Paulo, 5 de maio de 1998 189 Além da direção dos atores, o outro importante elemento que merece ser destacado na adaptação cinematográfica de Chediak é a fotografia de Hélio Silva. Sua importância se deve não apenas pelo fato de que a possibilidade de variação de pontos de vista através da câmera e a duração e a distância dos planos filmados serem apontados como os principais diferenciais entre o cinema e o teatro, mas também pelo papel fundamental que a iluminação, o enquadramento e a movimentação da câmera têm em A navalha na carne. Um dos principais e mais exaltados elementos estéticos da obra de Plínio é o ritmo de suas peças, dotadas de “nós dramáticos que se sucedem com precisão matemática”. A relação entre o cafetão e a prostituta parece se estabelecer através de gradações de agressões 286 , enquanto a ampla movimentação dos personagens, a alternância de posições e relações uns com os outros, chegam a se aproximar de uma verdadeira dança. 287 Na adaptação de Chediak, com pouca interferência da montagem, a câmera assume o papel de principal condutor do ritmo do filme, sendo seus movimentos e posições primordiais. Parte dos méritos são inequivocadamente de Hélio Silva, responsável pela direção de fotografia e pela câmera de A navalha na carne e um dos maiores fotógrafos do cinema brasileiro. 288 O trabalho de Hélio Silva em A navalha na carne foi fruto de “quarenta dias de pesquisa de laboratório” que solucionou o problema do foco, permitindo total liberdade de 286 Essa gradação está presente, por exemplo, na abertura da peça. Em seguida à violenta agressão física e verbal de Vado, sem maiores explicações ou palavras, o cafetão passa a agredir Neusa não só verbalmente, mas também psicologicamente (“Quer ver eu te aprontar uma dessas e você me agüentar? Duvida? Te faço uma pior e você me engole”). Posteriormente, a agressão segue num crescente, atingindo seu máximo quando alia tanto a humilhação física, verbal e psicológica, quando o cafetão agarra seu rosto à força e a obriga a dizer que ele só está com ela “por causa da grana”. 287 Não à toa, suas duas peças mais famosas já foram traduzidas para esse outro meio de expressão. Além da adaptação de Navalha na carne para um espetáculo de dança pelo Balé Stagium, apresentado no Teatro Municipal de São Paulo, em 1975, a peça Dois perdidos numa noite suja, também foi adaptada no espetáculo de dança moderna Dois perdidos, apresentado no Centro Cultural São Paulo, em 1997, com os bailarinos Mário Nascimento e Sandro Borelli, dirigidos por Fábio de Carvalho. 288 Hélio Silva tornou-se diretor de fotografia na década de 50, estreando nos clássicos Rio 40 graus, Rio zona norte e O grande momento, “materializando a partir de parcos recursos a inovadora imagem do filme independente dos anos 50” (HEFFNER, In: RAMOS; MIRANDA, 2000, p.514). Apesar de preterido pelo cinema novo, que trabalhou sobretudo com técnicos estrangeiros como Guido Cosulich ou com uma nova geração de fotógrafos (Waldemar Noya, Mário Carneiro, Fernando Duarte, Luiz Carlos Barreto, José Medeiros), Hélio Silva já antecipava um domínio de recursos estilísticos que viriam a se tornar característicos dos cinema novistas, como a câmera na mão e o uso de luzes naturais, que ele já utilizara vigorosamente nos filmes baianos de Roberto Pires, especialmente Tocaia no asfalto (1962). Na década de 60, Hélio Silva trabalhou novamente com seus primeiros parceiros Nelson Pereira dos Santos e Roberto Santos, enquanto se encaminhou gradativamente para o cinema comercial. Antes de A navalha na carne, já tinha fotografado também O matador profissional para a Magnus Filmes. 190 movimentação para a câmera e os atores. 289 Segundo Valadão contou em entrevista décadas depois, “o Braz pendurou a câmera por uma corda no teto e podia mexê- la em todas as direções seguindo os atores” 290 . Este truque extremamente simples e barato possibilitou ao filme a segurança necessária para uma extrema mobilidade da câmera semelhante a de mecanismos sofisticados como uma grua, ou mesmo um steadycam 291 , e sem o ar “irreal” que esses mecanismos freqüentemente proporcionam, mas sim com o toque de “realidade” da câmera na mão. A crueza do preto e branco, num momento em que o cinema brasileiro caminhava inexoravelmente para o filme colorido, colaborou para garantir ao filme o clima decadente, o aspecto realista-documental, um trabalho mais intenso de contraste na fotografia, além de películas mais baratas. 292 Falsamente despojados ou improvisados, os enquadramentos de A navalha na carne revelam uma extrema elaboração na busca de uma sintonia entre a imagem e os diálogos. Na época de lançamento, seu diretor afirmou: Confesso que tinha um certo receio de confundirem meu filme com mais uma montagem teatral jogada na tela. A minha intenção de usar elementos e recursos teatrais do texto, numa estrutura cinematográfica, sem cair no teatro puro, foram muito pensadas e elaboradas o que me permitiu um filme seco e essencial no seu resultado. Na própria fotografia, no próprio trabalho de câmara; lenta, analítica, como se fosse o olho humano que vê analisando, eu sinto, cada vez que revejo meu filme, que determinei a análise crítica-social-urbana sofisticada e as reflexões políticas que o drama Navalha na carne reflete [...].” 293 Mesmo ensaiados previamente, os planos-seqüências de A navalha na carne são marcados pela extrema naturalidade, mas sem nem por isso deixar de revelar uma profunda preocupação com a composição dos quadros. Por exemplo, na cena em que Vado e a câmera se aproximam de Neusa na cama, ela se abaixa, acompanhada pelo movimento vertical descendente da câmera e pela saída de Vado do quadro. Quando o cafetão entra novamente em cena – pelo mesmo lado que saiu (direita) –, ele está dessa vez à frente das barras da cama. 289 Trabalhando com um foco único, em A navalha na carne, somente quando a câmera se aproxima muito de algum objeto ou pessoa – aparentemente menos de um metro, o que ocorre poucas vezes – é que a imagem se desfoca. 290 O Estado de São Paulo, São Paulo, 1 ago. 1995. 291 O steadycam é um mecanismo composto por um colete com um jogo de molas e suportes que permite ao operador se movimentar livremente com a câmera sem causar tremidos à imagem. 292 Para se ter uma noção, dos 21 projetos aprovados pelo INC em 1969, quando A navalha na carne foi filmado, 20 eram filmes a cores (RAMOS, J., 1983, p.63). Se inicialmente os marginais apelavam para o preto e branco e o 16 mm para fazer filmes a qualquer custo, cinema -novistas consagrados como Leon, Joaquim Pedro, Glauber e Cacá já se encaminhavam definitivamente para o filme colorido em Garota de Ipanema (1967), Macunaíma (1968), Dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) e Os Herdeiros (1969). 293 DINIZ, F. Navalha na carne, Diário de notícias, Rio de Janeiro, 11 mar. 1970. 191 Os dois personagens são novamente enquadrados num plano fechado, mas dessa vez com as grades entre eles. No meio de um plano-seqüência, a sintonia do movimento dos atores e da câmera com o texto de Plínio Marcos acentua o aparente “aprisionamento” de Neusa pelo seu cafetão-carrasco-carcereiro. 294 Se A navalha na carne foi chamado de “teatro filmado”, essa crítica pode ter sido motivada pela fidelidade aos diálogos, pelo respeito à locação única ou, ainda, à primazia verbal no filme. Entretanto, se a imobilidade do ponto de vista é talvez o aspecto que mais caracteriza um filme de “teatral” – levando, por outro lado, à equivocada idéia de que quanto maior a mobilidade da câmera, mais cinematográfico é o filme –, Chediak consegue em sua adaptação um grande dinamismo e fluidez. Sendo a peça, como já foi dito, quase uma dança entre os personagens, alterando-se posições (de poder, refletida na dos corpos) num movimento de atração e repulsa movido a amor, sexo, ódio e repulsa, a câmera de Hélio Silva funciona praticamente como mais um personagem do filme. Sem jamais abandonar o quarto, ou o trio de protagonistas, e em momento algum sendo colocada sob um tripé, a câmera interage o tempo todo com os personagens e, acima de tudo, com o texto de Plínio Marcos. Chediak soube aproveitar muito bem a total liberdade concedida aos atores pela direção de fotografia de Hélio Silva, acentuando dramaticamente o próprio texto teatral. Se na introdução há uma gradual aproximação da câmera aos personagens, a partir do momento em que o filme passa para dentro do quarto, todos eles – Neusa, Vado e, depois Veludo – passam a viver um verdadeiro “jogo a jogo” com a câmera. Em toda a peça no filme, a câmera nunca se distancia dos personagens, jamais se afastando do ambiente apertado e claustrofóbico do quarto. Entretanto, nos momentos mais intensos, ela se aproxima ainda mais de cada um deles. Na seqüência da “surra de boas-vindas”, Neusa é jogada no chão e chutada várias vezes por Vado. Nesse momento, Glauce Rocha quase “cai”, literalmente, em cima da câmera, que é obrigada a recuar instintivamente. Entretanto, nenhuma das duas (câmera ou atriz) se abalou com esse “imprevisto” e nem interromperam o longo planoseqüência em curso. Nesta imensa intimidade da câmera com a atriz, marcada inclusive pelo improviso, ambas, e, conseqüentemente, também os espectadores, compartilham da fúria do cafetão enraivecido. 294 Em outro momento, já próximo do final do filme, a câmera permanece completamente estática, num quadro cuidadosamente composto, em que Neusa, ajoelhada na cama no lado esquerdo, empunha a navalha que se destaca sobre o fundo da camisa branca do cafetão, deitado no outro extremo da cama. Nesse caso, a fotografia se abstém da movimentação da câmera para trabalhar exclusivamente o aspecto plástico da imagem. 192 Do mesmo modo, logo em seguida, quando o clima se ameniza entre Vado e Neusa (mesmo sem ela ainda entender o porquê da agressão), a câmera igualmente “relaxa”, se distanciando e ficando imóvel, ao nível do chão, na mesma altura de prostituta, humilhada, que recolhe os objetos caídos de sua bolsa. Evitando os cortes e insistindo no uso do plano-seqüência – verdadeiros tours de force virtuosísticos –, A navalha na carne também recusa a estratégia básica do campo e contracampo. Ao longo do filme, a câmera “cola” num personagem, geralmente o que assume o papel de “dono da situação”, até essa situação se inverter, passando a acompanhar outro. Não é somente o enquadramento dos personagens que varia, mas também a posição dos atores e da câmera dentro do quarto ao logo do filme. Na cena em que Vado prossegue humilhando Neusa, dessa vez obrigando-a a responder por que ela lhe atura (“por causa da grana”, ela responde dolorosamente), os personagens saem da contraluz do canto escuro do quarto para o centro, embaixo do principal foco de luz, acompanhando o aumento do tom dramático. Enquanto o contraste de iluminação do quarto é maior, percebemos que nos momentos de agressão, os personagens vão para o “meio do palco”, para perto da luz do centro do quarto. Nesta primeira parte da “peça no filme”, o principal foco de iluminação do ambiente são as poucas lâmpadas dispersas, mas depois, com a chegada do amanhecer, o quarto vai ficando mais homogeneamente claro pela luz da janela. Na peça de Plínio Marcos, após a violenta discussão inicial, no momento em que a questão do roubo do dinheiro chega a uma indefinição (Vado: Então alguém pegou. / Neusa: Então pegou. / Vado: E não fui eu.), justamente, através da fala seguinte de Neusa (Será?... Será que foi o desgraçado?...), o conflito é imediatamente deslocado. A adaptação cinematográfica, por outro lado, neste e em outros momentos, valoriza e estende o impasse. Apesar do ritmo acelerado dos diálogos de uma peça “curta e direta”, o filme A navalha na carne apresenta uma “marcha lenta”, no qual os quase inexistentes tempos mortos do texto são valorizados, numa estratégia semelhante, por exemplo, à opção sério-dramática de Leon Hirszman ao adaptar a peça de Nelson Rodrigues, A falecida, também marcada pela “cunhagem naturalista”. Conforme Ismail Xavier (2003, p.267), no filme A falecida (1965) seu diretor ressaltava o drama interior que o filme procurava “trabalhar na cadência lenta, nos tempos mortos, uma vez que sua premissa é a de uma conexão específica que ata o mundo material das personagens e sua subjetividade, na solidão”. 193 De maneira semelhante, o filme de Chediak assume um tom mais cadenciado e menos vertiginoso do que aponta o texto de Plínio Marcos, valorizando os impasses e alongando as constrangedoras e silenciosas tréguas tensas. Desse modo, após a “poeira baixar” depois da agressão inicial, Neusa recolhe seus objetos e se recompõe da surra. A prostituta vai até a sacada da janela pendurar sua roupa no varal, de onde ela pode ver a janela de Veludo. O faxineiro está em seu quarto, sem camisa e cantarolando despreocupadamente. Neusa retorna pensativa ao quarto e, só aí, a partir dessa visão, a prostituta suspeita: “Será que foi ele?”. Enquanto na peça a dúvida aparece imediatamente após o momento de tensão anterior, no filme instala-se uma pausa na qual cada personagem se recompõe antes de se iniciar um novo momento de embate. Por outro lado, especificamente nessa cena, ao fazer com que a imagem de Veludo desencadeie o prosseguimento do drama e não apenas a lembrança expressada verbalmente pela personagem, Chediak aproveita as possibilidades (ou demandas) visuais do cinema. A entrada de Veludo, tanto na peça quanto no filme, é justamente um momento chave de reviravolta, quase que um segundo ato, iniciado, como o primeiro, por uma surra de Vado em quem entra no quarto e na cena. No filme, a agressão de Vado (e depois de Neusa) contra Veludo é ainda mais violenta do que a surra que era encenada nos palcos. A liberdade dada aos atores permitiu um maior improviso e espontaneidade nesta cena que, sem diálogos ou textos decorados, desenvolve-se visualmente, praticamente apenas através de ações físicas. Num plano-seqüência, Veludo corre para porta, mas Vado pula atrás dele e o segura antes dele conseguir escapar. O faxineiro rola no chão e se esconde embaixo da cama, mas é puxado pelos pés pelo cafetão e pela prostituta. Depois das pancadas inúteis, o casal ainda tenta torturá- lo com cócegas. Chediak aparentemente deixou a ação “correr solta” e foi preciso um corte (até brusco) para um plano fechado, no qual Vado está dando uma “gravata” em Veludo, para que os personagens voltassem ao texto. Ainda em relação ao texto original, o momento da confissão do roubo também é representado de forma distinta no filme. Na adaptação de Chediak, há o acréscimo do seguinte diálogo, inexistente na peça: Vado: Você não vai sair vivo daqui, sua bicha danada. (Vado tira a camisa e se penteia) Veludo: Deixa eu ir embora para o meu quarto, Seu Vado. Deixa eu ir. Vado: O que você fez com o dinheiro? 194 Veludo fica com medo da ameaça de morte, mas mesmo assim não admite a autoria do roubo. É somente com a navalha de Neusa Sueli que, como na peça, o faxineiro vai contar a verdade. Após a confissão de Veludo e sua promessa de reembolso com juros do dinheiro roubado, o ritmo diminui e há novamente uma trégua tensa, mais uma vez distendida. Pouco depois, um novo conflito e ponto de ação têm início, dessa vez com o cigarro de maconha que Vado toma de Veludo e acende. Neusa que estava no “centro do palco”, extraindo definitivamente a verdade de Veludo e depois tentando apaziguar a relação dos três, vai ficar de fora da nova seqüência que gira em torno da droga – uma “porcaria” que ela não gosta de ver sendo queimada no quarto, pois “Dona Tereza não gosta de bagunça aqui na pensão”. A partir dessa exclusão da prostituta é que Veludo vai assumir o comando e se tornar maestro da situação e dono da cena. Sentado na cama com Neusa, após sentir-se mais à vontade diante da “trégua” e vendo que a maconha opõe a prostituta ao cafetão, Veludo vai se tornar o protagonista dos acontecimentos seguinte. O faxineiro se levanta, anda pelo quarto, dá conselhos para Neusa. Ameaça deixar a cena, mas hesita. Já na porta, olha para Vado fumando a maconha que ele comprara, e pergunta com submissão sedutora, voltando a usar o pronome de tratamento que dispensava inicialmente ao hóspede da pensão: “Seu Vado, deixa eu dar um cheiro?” Logo se desenvolve entre os dois um diálogo de duplo sentido, permeado por um aspecto de sedução. Vado pergunta se ele gosta de maconha e Veludo responde “Sou tarado”, o que pode se referir ao fumo ou outra coisa. Vado não fica atrás e depois de perguntar se o faxineiro gosta mais de maconha ou de meninos – e Veludo responder que cada um tem seu tempo –, o cafetão sentencia com aprovação: “bichona malandra”. A conotação sexual vai se tornando gradativamente mais explícita, envolvendo até o contato físico. Vado oferece o cigarro, colocando em frente de seu pênis – “Pega aqui” –, enquanto Veludo pede infantilmente: “Dá?”. Impedindo que ele pegue o cigarro com as mãos, o cafetão o obrigando a abaixar até ficar de joelhos à sua frente. O homossexual quase põe a boca no pênis de Vado, que vibra, em júbilo, com a total submissão do faxineiro. Os dois começam a brincar, simulando uma tourada, e o clima “esquenta” até o impasse que se dá quando Veludo encosta explicitamente a mão no pênis de Vado. Nesse momento de tensão, ambos olham para Neusa em busca do tom de reprovação em seu olhar. 295 295 Na peça, essa seqüência era resumida da seguinte maneira: “A cena repete-se várias vezes, sempre Veludo tentando alcançar, com a boca, o cigarro que está na mão de Vado. Veludo fica cada vez mais agoniado. Vado ri 195 Vado muda de expressão e abandona a “brincadeira”. As indiretas tinham se tornado diretas demais. Veludo também adota a seriedade e encara Vado, pela primeira vez enfrentando-o de igual para igual, de queixo levantado: “Vado, deixa eu fumar”. O faxineiro toma um tapa, mas depois desarma o cafetão da vantagem física quando rebate “Bate mais, bate”; até finalmente fazê- lo recuar. “Seu trouxa”, o faxineiro diz, enquanto Vado apenas resmunga: “viado de merda”. Veludo atinge tal superioridade que chega a aconselhar Neusa sobre como ela deve tratar “seu macho”. Neusa se irrita e manda Veludo sair do quarto, mas Vado o impede, pois agora quer que ele fume. Mas Veludo pega o cigarro para logo em seguida o largar no chão com desprezo (“Pra mim mixou”). Perdendo aos poucos o controle, Vado tenta desesperadamente obrigar Veludo a fumar. Se antes era Vado quem se entusiasmava com a submissão de Veludo, passa a ser o faxineiro quem domina a situação com sua recusa que atinge o orgulho da pretensa onipotência do cafetão. O ataque de Vado à Veludo, assim como suas agressões, são talvez mais explícitas no filme que na peça. O cafetão pega nos seus cabelos e senta por cima dele na cama, enquanto o homossexual o abraça gritando: “me mata, meu homem”. Em seguida, Vado ainda se deita por cima dele de bruços na cama, tentando obrigá-lo a fumar. O contato físico que Veludo encaminhou (a partir do seu toque no pênis de Vado) é conseguido e aproveitado pelo homossexual. Da mesma forma que na confissão, é Neusa quem resolve o impasse entre Vado e Veludo. Depois do apelo do cafetão, a prostituta afugenta veludo que vai recuando da cama até a porta. Com a saída de Veludo, o tom exaltado do filme diminui. Vado é enquadrado parado ao lado da cama fumando. Neusa entra em cena e lhe chama de “nojento”. A câmera permanece imóvel, enquadrando os dois personagens de corpo inteiro, um de frente para o outro, com Neusa xingando Vado com desprezo e o cafetão rebatendo os xingamentos despreocupadamente. Neusa então se afasta e Vado volta à carga ao ver que a prostituta se incomodou ao ser chamada de velha. A câmera, a partir de então, cola no personagem. Com a saída de Veludo, cada vez mais. Neusa Sueli permanece indiferente. Veludo agarra a mão de Vado, que lhe dá um violento empurrão” (MARCOS, 2003, p.154). Nas fotos da montagem que ilustram o livro com o texto publicado em 1968, as imagens desse trecho da peça mostram Veludo arqueado de costas, com Vado pela frente (como que o abraçando) tentando enfiar o cigarro em sua boca – muito distante do contato quase explícito dos dois personagens no filme de Chediak. 196 o show é novamente de Vado. Ele senta-se ao lado de Neusa e começa a agredi- la verbalmente. Mas os xingamentos mútuos, ao contrário de antes, são feitos sem nenhum dos personagens mudar de fisionomia ou sequer alterar o tom de voz. A agressão é monocórdia. Mas Neusa tenta fugir novamente do embate. Levanta da cama e senta-se na cadeira da penteadeira, tentando se afastar e não alimentar a discussão (“deixa de história”), mas Vado insiste e vai atrás. O cafetão, alimentado pelo sadismo, fala em seu ouvido, descobrindo seu ponto fraco: “A vovó da zona todas é metida à família, é?”. Neusa não consegue mais se segurar e explode: “Vovó da zona é a vaca da sua mãe!”. Sendo a primeira a levantar a voz e a perder a paciência e o controle (seus lábios ficam trêmulos), a prostituta começa a também perder o “jogo”. Percebendo isso, Vado parte para cima de Neusa, andando a sua volta e lançando ataques sucessivos e cada vez mais agressivos à prostituta. Como uma mosca zunindo em volta de alguém, Vado se levanta e se abaixa em torno de Neusa, com a câmera acompanhando seu movimento ao se afastar e se aproximar. Neusa, já derrotada, pede uma trégua, mas Vado não pára, ingressando praticamente num monólogo, indo e vindo pelo quarto. Neusa já não olha mais para o cafetão, foge dele, refugia-se na cama, mas ele vai atrás. Vado dessa vez combina seus xingamentos com um tom de sedução, que acentua a sensação de desprezo e humilhação (colocando-se de um lado e do outro do rosto de Neusa) Neusa ainda se levanta e tenta encarar a agressão, apontando para o que Vado deixara escapara com Veludo (“Neusa: Teu negócio é viado. Vi hoje”), mas o cafetão rebate apelando pro ponto fraco já descoberto (“Vado: Que é isso, coroa? Tá com ciúme do Veludo?). A prostituta tenta uma trégua, mas Vado vê nesse recuo a oportunidade de pegar pesado. “Você está velha”, diz Vado, depois se aproximando de Neusa e tentando arrancar a bolsa de suas mãos para pegar sua identidade. Os objetos da prostituta caem no chão e Vado pisa em cima da carteira. Neusa está literalmente no chão, aos seus pés. A câmera vê tudo em plano conjunto. O cafetão deixa ela recolher suas coisas e Neusa, de joelhos, começa a lamentar sua vida e aquela noite. Câmera vai se aproximando com a tensão do diálogo, até o ponto máximo no qual a prostituta, em close-up, faz seu famoso questionamento: “Poxa, será que sou gente?”. Findo o monólogo de Neusa, Vado, que estava na parede, se aproxima da prostituta ajoelhada. Câmera se levanta, enquadrando em plongê a cena, e a prostituta fica ainda mais baixa. Numa composição exemplar, a opressão de Neusa é visualizada pela sombra de Vado 197 que a cobre no chão no momento em que o cafetão apenas confirma com desprezo: “É, é mesmo. [...] Você está uma velha podre”. Como no universo pliniano a covardia impera no lugar da compaixão, no momento de maior fragilidade, Vado começa a agredi- la novamente e ainda mais intensamente. Pegando Neusa pelos cabelos, a leva para frente do espelho e a obriga a olhar para sua própria imagem. A câmera treme e Neusa grita, mas Vado não hesita e a carrega para embaixo da luz, para os espelhos da penteadeira e da porta do armário, e, depois, até a pia, onde joga água no seu rosto querendo livrá- la da “meleca” que cobre o seu rosto. 296 Se antes Neusa ainda gritava “não”, depois disso ela perde completamente as forças. Aparentemente não lhe resta mais energia para revidar, nem para reagir ou para implorar. Com lentidão, apenas um fiapo de voz sai de sua boca, pedindo para Vado pare. Vendo-a definitivamente derrotada, o vitorioso cafetão prepara-se para sair, pegando outra camisa limpa e o paletó. Mas nesse momento Neusa praticamente ressuscita: com um pulo, corre até a porta, trancando a fechadura, guardando a chave em seus seios e impedindo a saída de Vado. Em close-up, com o rosto coberto pela pintura borrada, Neusa enumera seus defeitos (“velha, feia, gasta, bagaço, lixo dos lixos, galinha, coroa”), tira os cílios postiços e assume a face sem maquiagem, franca e verdadeira enquanto diz que o cafetão vai ter que transar com ela. Vado ameaça bater em seu rosto, mas Neusa aprendeu a lição com Veludo e responde, desarmando o machão: “Bate, mas Bate legal”. Mas o cafetão não deixa por menos e decide se deitar para dormir e esperar a “onda” passar, ignorando-a completamente. Neusa, tomada de raiva, novamente apela para a navalha na gaveta. Diante da ameaça, o cafetão se assusta e muda de estratégia. Com outro tom de voz e assumindo novamente o caráter de cafajeste sedutor, se levanta e toma conta da situação mais uma vez. Neusa perde o impulso e suas últimas forças, abaixando a navalha. Como ela mesma diz ao cafetão: “Você me arriou”. Vado toma a navalha e põe em seu bolso. Deita Neusa na cama e enquanto a acaricia, pega a chave escondida. Sem olhar para trás, Vado abre a porta e sai. Neusa ainda se levanta e vai até a porta gritar: “Vado!... Você vai voltar?...” 296 Na peça, Vado esfregava o lençol no rosto de Neusa para tirar a maquiagem. O cenário do filme permite, ao contrário do palco de um teatro, a presença de uma pia com torneira jorrando água. O efeito resultante é talvez mais interessante, pela plasticidade da tinta escorrendo dos olhos da atriz. 198 A prostituta fecha a porta e as janelas, escurecendo o quarto já claro pela luz da manhã, para finalmente poder dormir e, pelo menos momentaneamente, se isolar do mundo. Sem forças, completamente esgotada, Neusa ainda se senta e começa a comer um sanduíche embrulhado em papel que pega da bolsa. Nestes planos silenciosos fica a dúvida no que desejar a prostituta: que Vado volte e recomece seu martírio ou que ela permaneça naquela desoladora e angustiante solidão. Enquadrando Neusa no centro da tela, a câmera se aproxima de seu rosto enquanto a prostituta mastiga o pão e seus olhos vagam sem se fixar em nada. Um sino distante toca cinco vezes. A imagem do rosto de Neusa ainda permanece congelada por alguns segundos antes da cartela de “Fim”. 199 3. UM FILME PERDIDO NUMA NOITE ESCURA Fórmula de sucesso. Um das estratégias da Magnus Filmes de Jece Valadão ao longo da década de 60 foi investir seguidamente em adaptações de livros e peças conhecidas que se revelassem bem sucedidas na bilheteria. A segunda experiência de Valadão como produtor, o filme Boca de ouro (1962, dir. Nelson Pereira dos Santos), tinha sido a primeira adaptação para o cinema de uma peça do polêmico Nelson Rodrigues, inaugurando a primeira fase de adaptações rodriguianas (1962-1966). O grande sucesso do filme e do personagem do bicheiro – que colaborou para consagrar a persona “cafajeste” do ator, assim como o próprio Os cafajestes, sua primeira investida como produtor – o levou a produzir em seguida Bonitinha, mas ordinária (1963, dir. J.P. de Carvalho), também baseado em peça homônima do “anjo pornográfico”. Ele atuaria ainda como intérprete em outra adaptação de Nelson Rodrigues, Asfalto selvagem (dir. J.B. Tanko, 1964). 297 Assim como percebera a possibilidade de explorar a obra de Nelson Rodrigues no cinema, diante da repercussão de A Navalha na carne Valadão decidiu investir no filão, apostando em outra adaptação de Plínio Marcos. Dessa maneira, Chediak partiu ainda em 1970 para a realização de seu projeto seguinte, a adaptação de Dois perdidos numa noite suja, que, no auge do entusiasmo, era anunciada como a segunda parte de uma prevista trilogia pliniana no cinema, que incluiria ainda a peça Homens de Papel, jamais realizada. 298 Da mesma maneira que A navalha na carne, a adaptação de Dois perdidos numa noite suja também foi toda rodada no Rio de Janeiro, “tendo custado [...] apenas um pouco mais do que o filme anterior”, segundo seu diretor. 297 299 Nelson Pereira dos Santos, com quem Valadão trabalhou em Rio 40 graus e Rio zona norte, não se interessava pelo projeto de Boca de ouro e assumiu o filme como diretor contratado. Já Bonitinha, mas ordinária teria sido co-dirigido por Jece Valadão, que deixou o co-produtor J.P. de Carvalho assinar sozinho (CASTRO, 1992, p.339). 298 Antes do lançamento de Dois perdidos numa noite suja uma reportagem anunciava o filme seguinte de Chediak, Homens de papel, com Norma Benguel, Sérgio Malta e Emiliano Queiroz no elenco, que “será em cores, e será também uma denúncia” (ALENCAR, Miriam. Denúncia na noite suja. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 21 mar. 1971). 299 “DOIS perdidos” só depende da censura. Correio da Manhã. Rio de Janeiro. 11 mar. 1971 200 Filmado no segundo semestre de 1970, no começo do ano seguinte o filme de Chediak já estava pronto para ser enviado para a avaliação da censura federal para, também como A navalha na carne, enfrentar alguns problemas. Avaliado pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas em 10 de março de 1971, Dois perdidos numa noite suja recebeu, cinco dias depois, uma liberação especial para a exibição no festival de Teresópolis, sendo depois exigida a recomposição de sua trilha sonora para “eliminação das pornografias”. 300 O certificado de censura definitivo de 6 de abril de 1971 liberava o filme para exibição comercial somente para maiores de 18 anos, com cortes das expressões “filho da puta” e “porra” e sem os critérios de “boa qualidade” ou “livre para exportação”. 301 Tentando repetir o êxito da adaptação anterior, a publicidade da Magnus Filmes explorou o filão do filme sério e artístico, provavelmente mirando no mesmo público que prestigiara A navalha na carne. Na revista da produtora, a Magnonotícias, Dois perdidos numa noite suja era anunciado como uma obra diferenciada, inclusive da produção da empresa: “Esta versão, em Eastmancolor, da peça de PLÍNIO MARCOS, integra a política da MAGNUS em não se ater somente às produções comerciais ou comédias ligeiras” (grifos do texto). 302 Diferentemente das demais produções da Magnus Filmes que não costumavam participar de Festivais de Cinema, Dois perdidos numa noite suja concorreu e foi o grande vencedor do V Festival de Teresópolis de Cinema, em 1971 – conquista que foi aproveitada em sua campanha de lançamento. 303 Entretanto, lançado no Rio de Janeiro em 22 de março de 1971, Dois perdidos numa noite suja não teve a mesma acolhida pela crítica que o filme anterior e nem repetiu o êxito de bilheteria. 300 No parecer datado de 15 de março de 1971, o censor Wilson de Queiroz Garcia considerava que o filme apresentava uma mensagem negativa – “indutiva ao crime e aos maus costumes” – e não possuía nenhum valor educativo. Com linguagem chula, ambiente inapreciável e “diálogos pontilhados de pornografias de tal sorte que impossibilita qualquer corte”, o censor sugeriu a liberação do filme com impropriedade para menores de 18 anos. Da mesma maneira, a censora Therezinha de Toledo também não atribuiu ao filme o critério de “boa qualidade” e de “livre para exportação”. Já o parecer de autoria de Coriolano de Loiola Cabral Fagundes e Raymundo Eustáquio de Mesquita, não sugeriu cortes, mas optou por liberá-lo apenas para maiores (“a exemplo do que já foi feito com a peça”), poupando o público em formação, “cujos valores morais por certo [o filme] confunde”. 301 Menos de um ano depois, em 17 de fevereiro de 1972, a Magnus Filmes conseguiu dois pareceres favoráveis do SCDP para a atribuição dos valores de “livre para exportação” e “boa qualidade” para Dois perdidos numa noite suja, mas mantendo os cortes anteriores. 302 DOIS Perdidos. Magnotícias, Rio de Janeiro, ano 2, n.10, jun. 1971. 303 Dois perdidos numa noite suja conquistou o Dedo de Deus de melhor filme, diretor (Braz Chediak), ator (Emiliano Queiroz) e produtor (Jece Valadão). O filme concorreu com Minha Namorada, de Zelito Viana, estrelando Laura Maia (melhor atriz) e 20 passos para a morte, de Adolpho Chadler, p remiado pela fotografia de Roberto Pace. 201 Os críticos José Carlos Monteiro e Roberto Bandeira, julgando o filme apenas regular, o condenaram como teatro filmado, apontando para a falta de criatividade na submissão desastrosa do diretor ao texto original. 304 A comparação com A navalha na carne foi recorrente nas críticas de Dois perdidos numa noite suja, sempre destacando a inferioridade da segunda investida de Chediak. Nelson Hoineff sintetizou os comentários gerais: “Dois perdidos numa noite suja erra exatamente sobre os acertos anteriores de seu autor”. 305 O santista Rubens Edwald Filho escreveu uma crítica arrasadora sobre o filme. Se para ele A navalha na carne tinha “certa dignidade artesanal”, no filme seguinte a fórmula teria se tornado repetida, o final previsível e a naturalidade das falas perdido o valor: “Dois perdidos numa noite suja ficou completamente perdido no cinema. É até um merecido fracasso de bilheteria.”. O crítico concluiu o artigo da seguinte maneira: “O filme ganhou também uns prêmios no Festival de Teresópolis. Estivemos lá e garantimos: os outros dois filmes eram muito piores. Depois, como não falar mal do cinema brasileiro?”. 306 Diferentemente das críticas ao filme A navalha na carne, nas de Dois perdidos numa noite suja os aspectos técnicos são constantemente citados, com reclamações sobre a fotografia (“filme é tão escuro que mal se consegue enxergar alguma coisa”307 ) e, especialmente, o som ( “não se consegue ouvir nada direito”308 , “dublagem inaudível” 309 ). Nas bilheterias, Dois perdidos numa noite suja alcançou, segundo os dados oficiais, a renda de Cr$ 213.516.19, com um público de 133.985 espectadores. 310 Pouco tempo depois de seu lançamento, Jece Valadão afirmou que a segunda adaptação da obra de Plínio Marcos “não fez o sucesso esperado. Foi um sucesso relativo”. Mas como o produtor já estava aliado a Roberto Farias e Jarbas Barbosa, seus sócios na Ipanema Filmes, distribuidora que já tinha outros quatro filmes na fila de lançamentos daquele ano, ele podia afirmar que “nós não nos preocupamos mais, a esta altura, com a renda de apenas um filme. Nós jogamos isso na média”. 304 311 MONTEIRO, José Carlos. Dois Perdidos numa noite suja: A flauta e o sapato. O Globo, Rio de Janeiro, 24 mar. 1971. BANDEIRA, Roberto. Dois Perdidos numa noite suja. A notícia, Rio de Janeiro, 31 mar. 1971. 305 HOINEFF, Nelson. Dois perdidos numa noite suja. O Jornal, Rio de Janeiro, 25 mar. 1971. 306 EDWALD FILHO. Rubens. Dois sujos numa noite perdida. A tribuna, Santos, 18 jun. 1971. 307 Ibid. 308 Ibid. 309 MONTEIRO, José Carlos. Dois Perdidos numa noite suja: A flauta e o sapato. O Globo, Rio de Janeiro, 24 mar. 1971. 310 BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Instituto Nacional do Cinema. Setor do Ingresso Padronizado. Informativo SIP, Rio de Janeiro, ano 3, 1973. 311 Correio da manhã, Rio de Janeiro, 8 mai. 1971. 202 Ainda que não representasse necessariamente um grande prejuízo (embora colorido, não tinha sido uma grande produção), o resultado frustrante do filme, rendendo menos de um quarto da adaptação anterior, fazia com que o filão cinematográfico das adaptações de Plínio Marcos parecesse ter cada vez menos futuro na Magnus Filmes. Situação inversa, por exemplo, das comédias eróticas baseadas nas obras de Marcos Rey. 312 Peça e filme Realizada imediatamente após A navalha na carne, a segunda adaptação para o cinema do teatro de Plínio Marcos, Dois perdidos numa noite suja, tinha como objetivo repetir o êxito do primeiro filme. De acordo com o ditado “não se mexe em time que está ganhando”, muitas coisas se repetiram no segundo projeto. Produzido novamente pela Magnus Filmes, Chediak apelou mais uma vez para os serviços de Hélio Silva como diretor de fotografia e câmera, repetindo a estratégia de longos planos seqüências com câmera na mão. Entretanto, ao contrário de A navalha na carne, Chediak afirmou que não tinha visto Dois perdidos numa noite suja nos palcos, mas que quando dirigiu sua adaptação da peça somente tinha lido o texto de Plínio Marcos. 313 Apesar disso, uma aproximação com a montagem original da peça – embora menos evidente do que no filme anterior – ocorreu também na segunda adaptação cinematográfica de Chediak, sobretudo na escalação dos atores. Emiliano Queiroz, o Veludo de Navalha na carne (peça e filme), foi escalado para o papel de Tonho. Já Nelson Xavier, que tinha interpretado no teatro o Vado de Navalha na carne na montagem pioneira de 1967, repetiu o personagem Paco de Dois perdidos numa noite suja que interpretara também no teatro. Nelson Xavier, aliás, além de estrelar, tinha também, em parceria com seu companheiro de palco, Fauzi Arap, dirigido a peça que estreara no Rio de Janeiro em 1967. 312 314 Lançado três meses após A navalha na carne, a primeira adaptação de um romance de Marcos Rey, a comédia Memórias de um gigolô (dir. Alberto Pieralisi, 1970), produzida e estrelada por Valadão, foi o maior sucesso da Magnus Filmes e um dos maiores do cinema brasileiro naquele ano, com mais de 1 milhão de espectadores. No ano seguinte, ao contrário de Dois perdidos numa noite suja, a segunda incursão no universo do escritor, O enterro da cafetina (dir. Alberto Pieralisi,1971), superou os resultados de bilheteria da primeira. Em 1972, com A filha de Madame Betina (dir. Jece Valadão, 1972), mesmo enfrentando problemas com a censura, obteve mais um sucesso nesta linha. 313 ALENCAR, Miriam. Denúncia na noite suja. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 21 mar 1971. 314 Nelson Xavier falou sobre a montagem da peça em 1967: “Havia no Rio de Janeiro um lugar que não existe mais que chamavam Beco da Fome. Era uma galeria que mais parecia um mercado, com várias lojinhas pequenas, vários lugares que faziam comida. E a gente comia lá de madrugada. Os duros iam comer lá. Eu já 203 Em Dois perdidos numa noite suja, Chediak igualmente contou com a colaboração dos atores na feitura do roteiro, no caso, de Emiliano Queiroz e Nelson Xavier. Assim como em A navalha na carne, na sua segunda incursão no universo pliniano, Chediak mais uma vez respeitou rigorosamente o texto teatral. Por outro lado, novamente “ilustrou” as situações que na peça eram somente mencionadas pelos atores (a entrevista de emprego, a ameaça constante do Negrão, o assalto), dando rosto – mas não voz – a personagens que no palco não existiam. Esses acréscimos, que no filme anterior se resumiam somente à introdução de meia hora, pontuam toda a adaptação de Dois perdidos numa noite suja, literalmente do início ao fim do filme. Ao contrário também do filme anterior, Chediak dessa vez “arejou” o texto teatral, escapando em diversas seqüências do ambiente claustrofóbico do quarto imundo onde essa peça também se passava. O diretor levou os personagens e os diálogos para diversos outros lugares, como um bar, o pátio do cortiço, o mercado de frutas e, principalmente, para as ruas escuras e desertas da cidade grande. O resultado em Dois perdidos numa noite suja de estratégias semelhantes às de A navalha na carne serão ana lisadas neste capítulo, procurando descrever suas implicações. Se a segunda adaptação dirigida por Chediak não teve o mesmo êxito de bilheteria nem de critica que o filme anterior, as questões contextuais devem efetivamente ser levadas em conta, tais como a comparação imediata e desfavorável com o filme recente, um clima menos favorável à discussão de temas “desagradáveis” do que no período próximo a 1968, certas incongruências do projeto de uma “produção maior” com uma peça escrita originalmente para ser montada da forma mais barata possível, além de se situar um momento em que a “qualidade” técnica do filme começava a ganhar maior importância. Entretanto, assim como A navalha na carne, Dois Perdidos numa noite Suja não é um filme isolado no contexto cinematográfico brasileiro. Dramaturgos da chamada geração de 1969 foram adaptados em pelo menos dois filmes nos primeiros anos da década de 70 – Na boca da noite (dir. Walter Lima Jr., 1970) adaptado de O assalto, de José Vicente, e Cordélia, Cordélia (dir. Rodolfo Nanni,, 1971) baseado na peça de Antônio Bivar – apontando para estava palitando os dentes quando numa madrugada qualquer o Fauzi apareceu e disse: ‘é você, Nelson! Ele é você! Você pode fazer o Paco!’. Eu conhecia o Fauzi, mas não pessoalmente. Eu tinha ficado encantado com o trabalho dele em Pequenos burgueses. Ele estava com o texto do Plínio, Dois perdidos numa noite suja. Eu me apaixonei pelo texto e fizemos. [...] Foi um sucesso incrível no Rio de janeiro” (XAVIER, Nelson. Depoimento de Nelson Xavier, 29 setembro de 2004, São Paulo. In: ARENA CONTA 50 ANOS. São Paulo, Cia. Livre da Cooperativa Paulista de Teatro. Coordenado por Isabel Teixeira. Disponível em: <http:www.teatrodearena.com.br>. Acesso em: 19 mar. 2006). 204 relações entre o teatro e o cinema brasileiro diferentes das mantidas nos anos 60. O jogo da vida (dir. Maurice Capovilla, 1976), adaptação da consagrada novela Malaguetas, perus e bacanaços, de João Antônio, guarda muitas semelhanças com Dois perdidos numa noite suja num retrato do universo marginal urbano marcado pelo tom melancólico e desiludido de crítica social, pela aparência documental da fotografia colorida, pela preferência pela integridade do plano (com a câmera na mão de Dib Lutfi) no lugar da fragmentação da montagem e pelo investimento em expressivas atuações do elenco (Lima Duarte, Gianfrancesco Guarnieri e Maurício do Valle). 315 Por outro lado, sem buscar uma contextualização diluidora ou uma comparação exaustiva de Dois perdidos numa noite suja com outras produções, principalmente com Navalha na carne, podemo s evidentemente encontrar qualidades e elementos de grande interesse na adaptação da peça de Plínio Marcos e que devem ser trazidas à tona. Mas o primeiro ponto que deve ser discutido por ser responsável pelo menor vigor da segunda adaptação de Chediak é o equívoco comum (e do qual o diretor não escapou) de tratar peças diferentes de Plínio Marcos como se fossem iguais. Apesar das muitas semelhanças (cenário único, poucos atores, linguagem crua e violenta, temas polêmicos, ritmo acelerado, alternância de posições de acordo com o jogo de poder etc.) a peça Dois perdidos numa noite suja apresenta efetivamente diferenças fundamentais de Navalha na carne e um tratamento cinematográfico semelhante funcionou de maneira distinta nas adaptações dos dois textos. A peça Escrita em 1966, Dois perdidos numa noite suja representou a redescoberta do caminho do sucesso por Plínio após sua fugaz consagração com Barrela, em 1959, ainda em Santos. O dramaturgo se inspirou num conto de escrito italiano Alberto Moravia, intitulado O Terror de Roma (Il terrore di Roma) e incluído na coletânea Contos Ro manos (Racconti Romani). A trama da peça, de um modo geral, foi retirada do conto que tratava de dois 315 Maurice Capovilla, um dos principais interlocutores do Cinema Novo em São Paulo, investiu principalmente no cinema documentário, defendendo um cinema realista, crítico e popular. Alcançou relativo sucesso com seu primeiro filme de ficção, Bebel, a garota propaganda (1967). Posteriormente, trabalhou sobretudo como jornalista, professor e na televisão. O Jogo da Vida representou seu retorno ao cinema de ficção do qual se afastara em 1971. Entretanto, assim como Dois perdidos numa noite suja, seu filme não alcançou repercussão nem de crítica, nem de público, parecendo também “perdido” no cinema brasileiro daquela década. 205 vagabundos – o narrador, sem nome, e Lorusso, seu companheiro de quarto – que decidiam fazer um assalto para conseguir o que precisavam: um par de sapatos para o primeiro e uma flauta para o outro. Após o crime, se descobre que os calçados roubados eram pequenos para os pés do personagem e depois de pedir e implorar para que o companheiro trocasse pelos dele (que eram novos), os dois acabavam se enfrentando. Mesmo aproveitando a história e muitos detalhes, situações e até diálogos da narrativa de Moravia, a peça de Plínio Marcos é bastante diferente do conto. 316 Além da óbvia diferença de linguagem, a alteração na época e no local no qual se passava a história colaborou largamente para essa diferença. Escrito em 1954, o conto adquiria um tom neo-realista ao se passar na Roma do pós- guerra, com seus personagens sobrevivendo em meio às agruras da fome e da pobreza. As conseqüências do conflito estão embutidas em tudo, inclusive na questão dos sapatos: o narrador tem um par dado pelos americanos, do tipo “baixo e leve”, e inveja os calçados de Lorusso, altos, com solas duplas e de couro grosso, “do tipo daqueles usados pelos oficiais aliados”. O final também é outro. Após o assalto e a discussão sobre a troca não-realizada de sapatos, os dois estão no quarto, já deitados para dormir, e o narrador tenta roubar os sapatos de Lorusso, que acorda e parte para briga. A polícia é chamada e ambos são presos, logo sendo associados ao assalto e ao homicídio no parque. Na delegacia, se descobre que Lorusso já tinha sido preso antes e ele até comemora o novo encarceramento ao saber que o dia seguinte era sexta-feira: “Oba, bom, amanhã em Regina Coeli tem sopa de feijão”. Por outro lado, o protagonista também não fica tão triste na prisão: “Depois olhei meus pés, vi que estava com os sapatos de Lorusso e pensei que, no final das contas, tinha conseguido aquilo que queria” (MORAVIA, 1985, p.203). O conto de Moravia se aproxima do tom melancólico das comédias amargas italianas da década de 50 e 60, especialmente dos filmes de Mário Monicelli – como Risate di gioia (Itália, 1960) –, no qual a fome era a principal ameaça acima de qualquer outra coisa. A cadeia como um final não tão ruim, uma vez que há comida, também aparece, por exemplo, 316 Nas críticas da peça Dois perdidos numa noite suja a origem no conto de Moravia não foi considerada desabonadora, como no artigo de Alberto D’Aversa: “A assimilação do conto de Moravia foi perfeita, total e absoluta; o conto desapareceu no seu lugar nasceu uma peça nova e original, de uma originalidade eminentemente teatral ou seja baseada sobre a novidade da linguagem, a precisão dos golpes de cena e dos nós dramáticos, a temperatura das situações, a eficácia das personagens, a credível possibilidade da fábula”. 206 no filme Onde está a liberdade? (Dov'è la libertà...?, Itália, dir. Roberto Rosselini, 1954) com o comediante Totò. 317 A partir do pequeno conto de Moravia, Plínio Marcos criou Dois perdidos numa noite suja, com um nível enorme de despojamento e concisão em seus dois atos, sendo o primeiro dividido em seis quadros, e com apenas dois personagens (Paco e Tonho) habitando um cenário único: “um quarto de hospedaria de última categoria, onde se vêem duas camas bem velhas, caixotes improvisando cadeiras, roupas espalhadas etc. Nas paredes estão colados recortes, fotografias de time de futebol e de mulheres nuas” (MARCOS, 2002, p.64). No início do primeiro quadro, já estão em cena os dois personagens, ambos vivendo de “biscate no mercado” e dividindo um quarto alugado. A desmedida agressão inicial típica de Plínio Marcos está presente na peça, quando logo após uma breve discussão inicial entre Tonho, que quer dormir, e Paco, que quer tocar sua gaita, “Tonho pula sobre Paco. Os dois lutam com violência. Tonho leva vantagem e tira a gaita de Paco”. Diante de ameaças de ambos os lados, a gaita é devolvida e se estabelece uma “trégua tensa”. Mas logo em seguida um novo ponto de conflito surge: Tonho: Então, toma. (Tonho joga a gaita na cama de Paco.) Se tocar, já sabe. Pego outra vez e quebro. (Paco limpa a gaita e guarda. Olha o sapato, limpa com a manga do paletó.) Paco: Você arranhou meu sapato. (Molha o dedo na boca e passa no sapato.) Meu pisante é legal para chuchu. (Examina o sapato.) Você não acha bacana? A oposição entre o sapato novo de Paco e o sapato velho de Tonho surge nesse exato momento e se torna o centro da discussão, sendo responsável por alternar a posição de superioridade dos personagens. Se em seguida Paco fica descontrolado ao ser acusado de ladrão e de ter roubado o sapato, depois é Tonho quem perde o controle ao ser humilhado e gozado por Paco pelo seu calçado velho. Muito nervoso, Tonho bate violentamente em Paco até ele desmaiar, acordando logo depois. O equilíbrio se instala novamente. Embora a superioridade física de Tonho tenha ficado evidente, o personagem também demonstra maior carência, falando de sua vida (“fiz até o ginásio”), das dificuldades que enfrentou vindo do interior (“não conhecia ninguém nessa terra, foi difícil me virar”), e já colocando a culpa no sapato pelo seu fracasso (ele não teria passado numa entrevista de emprego por ter ficado nervoso pelo seu sapato ser velho). O 317 O cinema italiano logo adaptou os contos de Moravia, incluindo O terror de Roma, na comédia Racconti romani (dir. Gianni Franciolini, 1955) que tinha no elenco Totò e Vittorio De Sica. Fazendo uma adaptação crítica, Jean-Luc Godard levou as telas um romance do escritor italiano em O desprezo (Le Mépris, França, 1963). 207 drama que vai se desenvolver já encontra expressão verbal nos primeiros desabafos de Tonho: “Sabe, às vezes penso que, se o seu sapato fosse meu, eu já tinha me livrado dessa vida”. Já Paco, que não fala de sua vida pessoal e não demonstra se sensibilizar com o drama do companheiro de quarto, também expressa verbalmente sua “filosofia”, que é a que rege aquele mundo: “Quem tem amigo é puta de zona”. Simetricamente, o primeiro quadro termina como começou, com ambos deitados na cama e Paco tocando sua gaita. No início do segundo quadro, já surge um novo dado que vai novamente movimentar a peça. Paco afirma para Tonho que tem um recado para ele do “Negrão” do mercado. Segundo Paco, por ter descarregado um caminhão que era dele, o Negrão “mandou avisar que vai te dar tanta porrada, que e até capaz de te apagar”. Acuado pelo temor do Negrão, novamente Tonho lamenta pela sua vida, falando de sua família e de sua vida. Novamente também o tema do sapato vem à tona, com o personagem pedindo o calçado de Paco emprestado para mudar sua situação. Negando-se a emprestar o sapato, Paco ainda utiliza a ameaça do Negrão para se promover, seja para afirmar ser bem relacionado – “[O Negrão] falou que eu era um cara legal” –, seja para dizer que agiria de outra forma naquela situação – “Comigo é assim. Pode ser quem for; folgou, dou pau”. 318 Ao mesmo tempo em que Paco espizinha Tonho, apontando suas difíceis alternativas – ou briga e mata o Negrão ou volta para casa –, todas recusadas por ele, o personagem também parece já compreender perfeitamente o caráter do colega, definindo-o de forma cristalina: “Você é muito escamoso. Tem medo de pedir emprego por causa do sapato. Tem medo de encarar o Negrão. Desse jeito só pode tubular”. O segundo quadro termina justamente com um alerta aterrorizante de Paco para Tonho, que lembra a própria peça Barrela: “Se pensa que vai engrupir o Negrão, está enganado. O Negrão é vivo paca. Ele vai te enrabar”. Se o segundo quadro terminava com a previsão sinistra de Paco e o medo de Tonho, o terceiro começa com Tonho por baixo e Paco chamando-o de “Trouxa” por ter “batido um papo” com o Negrão e resolvido a situação lhe dando o dinheiro do caminhão da noite anterior. O episódio fez com que Tonho passasse a ser chamado no mercado de “boneca do 318 Da mesma forma que Veludo, as qualidades que Paco se atribui são quase sempre desmentidas pela própria narrativa. 208 Negrão” e dava a Paco segurança para se impor sobre Tonho, que mesmo mais forte fisicamente, agora recua diante dele: Tonho: Boneca do Negrão é a mãe! Paco: (Avançando) A mãe de quem? Tonho: Sei lá! A mãe de quem falou. Paco: Veja lá, Boneca do Negrão! Não folga comigo, não. Já tenho bronca sua porque inveja meu sapato. Se me enche o saco, te dou umas porradas. Depois não adianta contar pro teu macho, que eu não tenho medo de Negrão nenhum. Novamente, um outro elemento entra em cena para movimentar a his tória. Tonho mostra para Paco um revólver que o chofer do mercado lhe deu para vender. Novamente se estabelece uma trégua tensa. Tonho recusa as alternativas que lhe restam (brigar com o Negrão para recupera a moral ou voltar para casa, onde não há empregos), e confirma que inveja o sapato de Paco. Um momento de tensão ameaça se instalar quando Tonho sugere a intenção de roubar o calçado de Paco com o revólver, mas é logo desfeito quando ele diz que a arma está descarregada. Paco não deixa por menos, e afirma que armado com seu alicate ele não ia ter facilidade – “sem arma, ninguém bota a mão no meu sapato”. Trata-se de uma marcante característica dos textos de Plínio Marcos, também presente em Dois perdidos numa noite suja, as previsões que sempre se confirmam. Em geral, suas peças não são marcadas por grandes surpresas no desfecho, mas simplesmente pela trágica confirmação e realização das idéias mais cruéis já sugeridas ao longo delas: a curra em Barrela, o enfrentamento e o roubo do sapato de Paco por To nho, o abandono de Neusa por Vado. Voltando a Dois perdidos numa noite suja, no momento de maior tranqüilidade, quando Tonho chega a oferecer um cigarro ao colega, Paco, pela primeira vez, fala de quando tocava flauta nos bares, levando uma “vida legal”, mas que mudou no dia em que ele “apagou” na calçada e seu instrumento foi roubado. Ao contrário de Tonho, Paco não tem lamentos e faz planos concretos para o futuro, com sua gaita – “quando aprender [ a tocar], adeus mercado. Dou pinote. Me largo na vida de novo”. Os dois personagens identificam um no outro necessidades semelhantes, mas o drama de Tonho – e Paco lembra isso – é mais premente, com a ameaça do Negrão sempre presente. O terceiro quadro novamente termina com Paco pintando um futuro negro para Tonho, embora sinalize uma saída – o revólver: 209 Paco: Você é um trouxa. Não manja nada. Vai morrer sendo a Boneca do Negrão. Tem a faca e o queijo na mão e não sabe cortar. Poxa, já vi muito cara louco, mas você é o rei. Quero que se dane. No quarto quadro, Paco encontra Tonho no quarto, de onde ele não saiu o dia todo, nem para ir ao mercado, nem para comer. Os dois discutem sobre os dramas pessoais de cada um, tentando ver no outro alguém ainda mais infeliz do que si próprio. Entretanto, diante do impasse, surge um novo elemento para movimentar a história. Tonho diz ter achado uma solução para ele conseguir um par de sapatos e Paco uma flauta: assaltarem um casal de namorados no parque. Paco se empolga com a idéia, mas quando diz “a gente limpa o sujeito, espanta ele e passa a mulher na cara”, surge um outro “porém”. Tonho não admite agarrar mulher à força, chamando Paco de “tarado”, enquanto é acusado por ele de ser “bicha”. Se Tonho afirma que na sua terra sempre apanhou mulher, o jeito encabulado de Paco o leva a descobrir um ponto fraco no companheiro de quarto: “Você é até cabaço.” O equilíbrio, mesmo que tenso, mais uma vez se instaura, com dois pontos fracos expostos: Tonho diz que Paco nunca teve mulher, enquanto Paco o xinga de Boneca do negrão, lembrando sua situação complicada. O quarto quadro novamente termina com Tonho acuado em sua situação: Tonho: Pode deixar que eu cuido de mim. Paco: Então cuida. Mas no mercado você não pode aparecer. (Ri.). O quinto quadro começa com Paco recebendo Tonho no quarto, uma vez que ele mais uma vez não apareceu no mercado. Tonho está ainda mais desesperado com sua situação e Paco, entusiasmado com a idéia do assalto. Para convencer o parceiro, lembra a toda hora sua situação afirmando repetidamente: “Sua saída é o assalto”. Com Paco concordando em não fazer nada à mulher e obedecer todas as ordens de Tonho, os dois finalmente partem para a ação. Os dois personagens saem juntos de cena pela primeira vez, encerrando o quadro e o primeiro ato. O segundo ato, formado apenas por um quadro, começa com os dois retornando ao quarto após o assalto. Paco está entusiasmado, enquanto Tonho se mostra nervoso e discute por ele ter dado uma “porrada” numa das vítimas. Paco não demonstra remorso e nem medo das ameaça de cadeia sugerida por Tonho. Tomado pela empolgação, Paco começa a ter delírios de grandeza, falando em se tornar um bandido famoso, ter uma gangue e andar com uma faca, um alicate e um revólver: 210 Paco: [...] Limpo o cara, daí mando ele ficar nu na frente da mulher. Daí, digo pra ele: Que prefere, miserável? Um tiro, uma facada ou um beliscão? O cara, tremendo de medo, escolhe o beliscão. Daí eu pego o alicate e aperto o saco do bruto até ele se arrear. Paco Maluco, o Perigoso, fala macio pra mulher: Agora nós, belezinha. Os nervos à flor da pele levam ao quase derradeiro enfrentamento dos dois personagens, num dos trechos maior tensão da peça: Paco: Que é? Vai engrossar por quê? É bicha mesmo. Tonho: É melhor você deixar de frescura comigo. Paco: Quem tem frescura é você, que é bicha. Tonho: (Avança para Paco.) Canalha! Paco: (Pega o porrete.). Vem! Vem, viado! Mas Tonho pára. Diante da loucura de Paco, ele não tem mais a mesma confiança para enfrentá- lo fisicamente. Plínio Marcos mais uma vez promove uma mudança de ritmo e o deslocamento de conflito na peça, quando os dois personagens passam, então, a tratar da divisão dos frutos do roubo. Neste momento, um novo e mais acentuado conflito vai se estabelecer. Dividindo tudo meio a meio (metade do dinheiro para cada um, carteira para um, relógio para o outro etc.), na hora em que Tonho pega o par de sapatos roubado para ele, Paco reclama. Se Tonho for ficar com o sapato, todo o resto deve ficar com ele. Ou então, um pé do sapato para cada um. Diante da intransigência de Paco e da vontade de resolver tudo logo, Tonho finalmente concorda: “Está bem, Paco. Fique com tudo. Você me levou no bico, mas não faz mal”. Tonho pega seus sapatos e já começa a arrumar sua mala para partir, diante do que Paco se mostra dissimuladamente desolado (“Dorme aí hoje, já pagou o quarto mesmo”). Entretanto, quando Tonho vai calçar os sapatos, percebe que ele é pequeno demais para o seu pé. Paco “estoura de rir” com o drama de Tonho, feliz por ele não poder mais ir embora por que, dessa maneira, eles terão que fazer outros assaltos juntos. Tonho implora para Paco trocar de sapato com ele, uma vez que o calçado dele serviria para seus pés, mas o companheiro se nega, pois se isso acontecesse, ele não teria nenhuma evidência de ter participado do roubo. 319 319 Esse “álibi” justifica perfeitamente a recusa de Paco, que não precisa explicitar que não deseja se separar de Tonho e nem passar por tão cruel e egoísta (“Paco: A gente troca o pisante, você se manda. Quando os tiras te pegam, você sai bem, não tem nada com o assalto”). 211 Diante do desespero e do choro de Tonho, no mesmo sadismo que caracteriza o Vado de Navalha na carne, Paco humilha ao máximo o colega, rindo e gozando de seu drama. Depois do auge da humilhação e do desespero, assim como Neusa faz no final, Tonho se recompõe, pára de chorar e ressurge das cinzas. Carregando o revólver de balas, ele inverte a situação totalmente. Tonho não só toma tudo de Paco (seu par de sapatos e todo os objetos roubados), como ainda o humilha, o obrigando a rebolar com os brincos roubados sob a mira da arma. A inversão entre os personagens é total, com Tonho assumindo as frases anteriormente ditas por Paco: Paco: Mas, poxa, Tonho... Nós sempre fomos amigos. Tonho: Quem tem amigo é puta de zona. Tonho não apenas se torna o que Paco era (individualista e egoísta), mas o que ele também planejava ser (cruel e violento), fazendo a mesma ameaça que ele anunciara anteriormente: Tonho (Frio): Vou acabar com você. Mas te dou uma chance. Prefere um tiro nos cornos ou um beliscão? Só que o beliscão vai ser no saco com o alicate. E enquanto eu aperto, você vai ter que tocar gaita. Tonho ainda cospe na cara de Paco antes de finalmente atirar em sua cara. A peça se encerra com a transformação definitiva – a apropriação do nome, do instrumento, da atitude e do caráter de um personagem pelo outro: Tonho: Por que você não ri agora, paspalho? Por que não ri? Eu estou estourando de rir! (Toca a gaita e dança). Até danço de alegria! Eu sou mau! Eu sou o Tonho Maluco, o Perigoso! Mau pacas! (pega as bugingangas e sai dançando. Pano Fecha.). Do quarto e do palco para as ruas escuras Ao contrário de outras peças de Plínio Marcos, como Barrela, Navalha na carne ou Oração para um pé-de-chinelo, nos quais a ação corre ininterruptamente numa mesma noite, Dois perdidos numa noite suja é uma peça formada por quadros sucessivos – representando noites seguidas – que no teatro tinham suas separações marcadas pelo apagar e acender da luz. 212 Nesta peça, talvez de maneira ainda mais intensa do que em outras do mesmo autor, a ação é construída a partir de pequenos “entre-atos”. Do seu início ao desfecho, as principais ações ou eventos que ocorrem com seus personagens (Tonho descarregando o caminhão do Negrão, o encontro e o acordo entre os dois, o assalto aos namorados no parque), são apenas mencionados, jamais vistos. Em seus seis quadros – cinco no primeiro ato e um no segundo –, a peça mostra os dois personagens na véspera ou na ressaca desses fatos, angustiados ou temerosos com sua futura concretização ou sofrendo suas conseqüências e danos. Possivelmente, parte do impacto de Dois perdidos numa noite suja se deve por mostrar justamente na privacidade do quarto, na escuridão dos momentos antes do sono, as angústias mais íntimas de duas vidas miseráveis e seus dramas ainda mais miseráveis. Mesmo que por motivos econômicos, o fato da peça ter um cenário único, com apenas duas camas como objetos cênicos e somente dois personagens em cena, não privou o texto de sua força, pelo contrário. O crítico Paulo Mendonça, quando assistiu à primeira montagem da peça em 1966, se surpreendeu com um espetáculo “dos materialmente mais modestos que já tenho visto e, intelectualmente, guardadas as proporções, dos mais estimulantes”. Dirigido e co-protagonizado pelo próprio Plínio Marcos (como Paco), essa encenação extraía da pobreza de recursos – condizente com o universo retratado – um vigor extraordinário que colocava o texto e os atores em primeiro plano. Além disso, o diretor dessa montagem, Benjamim Cattan, admitiu que sua direção “procurou ser a mais clara e objetiva possível”. 320 No filme Dois perdidos numa noite suja, Braz Chediak tentou utilizar uma estratégia semelhante a que colocara em prática na adaptação cinematográfica de Navalha na carne. O diretor procurou mais uma vez ilustrar “cinematograficamente” (isto é, principalmente através de imagens e ruídos) o que era apenas sugerido no texto, e filmar de forma fluida (com planos-seqüências e câmera na mão) os diálogos e as cenas da peça em si, sem muitas modificações em relação à peça original. A partir de Dois perdidos numa noite suja, Chediak tinha muito mais possibilidades de explorar o que era apenas mencionado no texto do que em seu filme anterior. Em Navalha na carne há referências dos três protagonistas apenas sobre outros seis personagens. Quatro deles não ganham corpo (Mariazinha e “seu macho”, a “cadela do 102” e Dona Teresa, senhoria da pensão), mas os outros dois (o “trouxa” do cliente de Neusa e o “rapaz do bar”) não apenas são vistos, como suas presenças ocupam boa parte da introdução. As ações citadas no texto – 320 DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA, 1968, Teatro de Arena, São Paulo. Programa da peça. 213 o roubo do dinheiro, a compra da maconha, o programa de Neusa – também são plenamente ilustradas pelo filme em sua primeira parte. Em Dois perdidos numa noite suja, os personagens do Negrão (Paulo Sacramento), Carocinho (Fernando José) e o casal de namorados (Vanda Trizkaya e J. Diniz), também ganham rosto, assim como os acontecimentos relacionados a eles passam a fazer parte da ação do filme. Além disso, Chediak não apenas acrescenta outras seqüências apenas mencionadas no filme – como o teste do emprego de Tonho –, como cria outras. Em Navalha na carne, Chediak conferiu ao texto de Plínio um novo ritmo, uma cadência lenta que valorizava os tempos mortos. Não à toa, Kátia Carvalho da Silva (2001) estabeleceu relações entre o filme e a estética decadentista, com seu clima de artificialidade decadente, como uma estufa no qual o tempo aparentemente não passa. Essa mesma mudança de ritmo tem outro efeito em Dois perdidos numa noite suja. Nesta peça, em cada um dos quadros há o surgimento de um novo elemento, geralmente resultando num ponto de conflito e no gancho para o quadro seguinte: no primeiro quadro, é a gaita e o sapato de Paco; no segundo, a ameaça do Negrão; no terceiro, as conseqüências do acordo de Tonho com o Negrão e o revólver; no quarto, a idéia do assalto e a discordância sobre mulher; no quinto, a decisão de partirem para o crime; no sexto (segundo ato), as conseqüências do roubo. Mas toda a peça, do primeiro ao último quadro, é atravessada pela ladainha dos sapatos novos de Paco e dos sapatos velhos de Tonho. A inveja dos calçados e a idéia de que eles possam significar uma saída surge no primeiro quadro, sendo retomada em todos os quadros seguintes até o trágico desfecho no qual a troca finalmente se concretiza. Chediak liga e “lineariza” a peça de Plínio Marcos. As elipses desaparecem e os intervalos entre os quadros são ocupados pelas seqüências que na peça eram anunciadas anteriormente e referenciadas posteriormente. Entretanto, esse “recheio” é filmado de forma óbvia e acaba por tornar o filme redundante e repetitivo. Um texto que era ágil se torna monótono. Sendo uma peça menos visual e mais verbal do que Navalha na carne (cujo final é uma ação silenciosa: o comer do sanduíche), a segunda adaptação cinematográfica de Plínio Marcos, apesar de ter praticamente a mesma duração da primeira, parece significativamente 214 mais longa. A cadência lenta que se adaptou à Navalha na carne, peça significativamente mais curta, em Dois perdidos numa noite suja não adquire a mesma coesão. 321 Contraditoriamente, apesar de criar mais seqüê ncias inexistentes no texto e sem diálogos, o filme Dois perdidos numa noite suja foi criticado ainda mais incisivamente pelo seu aspecto “teatral”, ao ponto do próprio texto ser criticado em função da adaptação Sábato Magaldi afirmou que em Dois perdidos numa noite suja, Plínio Marcos se valeu de sua primitiva experiência no circo, fazendo de Paco e Tonho quase uma dupla de palhaços que apelam para “a técnica de puxar as falas, impedindo que a tensão caia”. Uma estratégia semelhante também a dos desafios ou pelejas de repentistas que travam verdadeiras “brigas poéticas” cuja arma é o verso rápido e vigoroso. Ou seja, o dramaturgo se revelou um mestre na criação de diálogos ágeis, diretos e contundentes, com personagens sempre prontos para atacar ou contra-atacar, num verdadeiro sobe e desce, uma constante aceleração e desaceleração. Foi justamente a mudança de ritmo (do filme e dos diálogos) o principal pecado de Braz Chediak ao levar a peça de Plínio para o cinema. Do palco para as ruas O filme de Chediak começa com cenas externas, filmadas à noite, com a voz de um garoto que anuncia as manchetes de um jornal popular. Durante os créditos iniciais já se desenvolve uma montagem paralela entre Tonho (Emiliano Queiroz) e Paco (Nelson Xavier). Ambos vagam pelas ruas em meio à noite escura, mas em suas atitudes logo se percebe as diferenças entre eles. Tonho, cabisbaixo, passa em frente a um restaurante iluminado e espia timidamente pelo vidro, com inveja, os clientes no interior. Paco, mais boêmio e atrevido, chega a um bar onde dois homens cantam numa mesa e logo se junta a eles, sentando-se à mesa. 322 Paco trabalha à noite num armazé m onde vários homens descarregam caixotes de frutas de diversos caminhões. Tonho, de dia e vestindo terno e gravata, está numa sala onde diversas pessoas batem à máquina sob o olhar de um supervisor no que parece ser um teste de 321 Na edição da coleção Melhor Teatro (2003), a peça Dois perdidos numa noite suja ocupa 73 páginas, enquanto Navalha na carne, somente 34 páginas. O filme Dois perdidos numa noite suja tem 93 minutos e A navalha na carne, 90 minutos. 322 Assim como em A navalha na carne, as cenas externas foram filmadas nas imediações da Lapa, no Rio de Janeiro. 215 emprego. O homem passa ao lado da mesa de Tonho que acha que está sendo observado, demonstrando nervosismo e insegurança. 323 São então encadeados planos de detalhes dos pés de Tonho andando numa direção, anúncios de jornal (com ofertas de emprego) e planos dos pés em outra direção. A cada anúncio, os sapatos de Tonho ficam mais gastos e as ruas surgem mais sujas, enquanto os pés dos outros pedestres (de chinelo ou sapatos furados) evidenciam a decadência depois de cada entrevista de trabalho mal sucedida. Chediak encontra uma forma criativa e funcional de demonstrar, sem música e sem diá logos, apenas visualmente e através de elipses (da mesma forma que próprio texto de Plínio Marcos) a decadência de Tonho na cidade. Já de mala na mão e com o sapato grosseiramente furado e remendado, Tonho chega a uma espécie de vila de sobrados, onde procura uma senhora que aluga uma cama. A cena ocorre durante um dia ensolarado e no lugar aparentemente tranqüilo, com vasos de plantas nas varandas, crianças cantam e brincam enquanto senhoras penduram lençóis num varal. É curioso que o lugar não traz nenhum signo de violência. Enquanto a pensão em que se passava Navalha na carne era um cortiço lúgubre e tenebroso, perto do centro da cidade e da zona de prostituição, o quarto de Tonho e Paco, mesmo que miserável, fica num lugar aparentemente humilde, mas tranqüilo, onde parecem viver famílias pobres, mas sem sinais mais evidentes de abatimento ou tristeza. Após essa cena ensolarada, o filme vai entrar no regime noturno. A mesma vila vai mudar de figura, sendo retratado a partir de então como um lugar escuro, deserto, cujas únicas vozes não são de crianças, mas latidos distantes de cachorros. Entretanto, o silêncio não é acompanhado do tom decadente que tinha A navalha na carne, mas sobretudo de um aspecto de solidão. No tal quarto, no último andar do sobrado, Paco toca sua flauta e abre a porta para Tonho e a senhoria. Ocorrem então diálogos ausentes da peça, quando Tonho cumprimenta Paco e vai para sua cama. Se mostrando receptivo à companhia, Paco olha com curiosidade para o novo inquilino, que observa um pouco assustado o lugar escuro, sujo e cheio de “tranqueiras”. Após alguns momentos à sós. Paco pergunta: “Você vai ficar um dia ou mais?”, no que Tonho responde: “Só até eu me arranjar”. Ele pergunta pelo nome do novo companheiro (“Antônio”) e sem ser perguntado, já responde: “O meu é Paco”. 323 Chediak juntou diferentes informações da peça para criar essa cena. Tonho diz em certo momento “sei escrever à máquina e tudo” e depois conta o caso da entrevista – “Outro dia, me apresentei para fazer um teste num banco [...]. O sujeito que parecia ser o chefe bateu os olhos em mim, me mediu de cima a baixo. Quando viu meu sapato, deu uma risadinha, me invocou. Fiquei nervoso paca. Se não fosse isso, claro que eu seria aprovado” (MARCOS, 2003, p.74). 216 Paco continua observando o outro que desfaz sua mala e tira de dentro dela uma foto de sua família. A câmera se aproxima dessa imagem até que o som de ruídos e vozes já antecipe o corte para o mercado de frutas. Lá, Paco e, agora também Tonho, descarregam um caminhão em meio a outros tantos trabalhadores andando em todas as direções como formigas, num alvoroço visual (pessoas indo e vindo) e sonoro (vozes e ruídos misturados). Esses primeiros nove minutos de Dois perdidos numa noite suja são muito eficientes e promissores. Através de poucas seqüências, a trajetória decadente de Tonho é sumariamente mostrada, assim como uma personalidade já notadamente diferenciada da de Paco. São criações curiosas também a apresentação fria, mas cordial dos dois personagens e a satisfação demonstrada por Paco em ganhar um colega de quarto, havendo inclusive a sugestão de que foi ele quem arranjou o serviço de carregador para Tonho, ajudando-o em seu primeiro dia. 324 Desse modo, algumas características dos personagens também já são esboçadas, como a solidão de Paco, feliz em ter uma companhia, ou a insegurança de Tonho, responsável por seu fracasso e, provavelmente, por seu mau humor e agressividade. Depois dessa pequena introdução, cuidadosamente elaborada, têm início o que seria a “peça”, com os dois personagens no quarto após uma noite de trabalho. Tonho volta do banho e sequer cumprimenta Paco, que ao ser completamente ignorado, segue tocando sua gaita. Os dois brigam por causa dela e Paco, com sua voz aguda, revela um tom infantilizado, quando diz repetidas vezes que não roubou o sapato, balançando a cabeça negativamente como uma criança contrariada. Esse aspecto maroto é reforçado na adaptação cinematográfica. Na peça, após levar uma surra, Paco desmaiava e só era acordado quando Tonho jogava um copo d’água em seu rosto. Já no filme, Tonho também se preocupa pelo companheiro estar desacordado (“Desgraçado. Será que morreu?”), mas quando estrategicamente fala em voz alta “Se morreu, melhor. Jogo a gaita na privada e puxo a descarga!”, Paco se levanta rapidamente, mostrando que apenas fingia ter desmaiado. O desmaio não teria muito sentido mesmo no filme, uma vez que os “socos violentos” de Tonho não são muito “reais” e a briga inicial entre os dois não apresenta muita verossimilhança. Ao contrário das cenas de violência de A navalha na carne, pontuado por longos planos que proporcionavam liberdade de improviso aos atores na busca de maior 324 No mercado, é Paco quem avisa Tonho da chegada de um caminhão para ser descarregado. 217 realismo, em Dois perdidos numa noite suja, na seqüência do primeiro enfrentamento entre Tonho e Paco há inclusive um corte do plano interrompendo a briga. Do mesmo modo que no filme anterior, Chediak novamente busca uma sintonia da posição dos atores e da câmera com o texto. Depois de ser esbofeteado por Tonho, Paco senta-se no chão, encostado na parede. Tonho se abaixa para conversar, como que se rebaixando a ele depois de ter se mostrado superior fisicamente. Depois, quando começa a se lamentar, acaba se sentando também, enquanto Paco já se levanta. O que seria o “primeiro quadro” da peça termina com um close-up do rosto preocupado de Tonho, com os sons do mercado novamente antecipando o plano seguinte. Entre o que se constituía na peça como o primeiro e o segundo quadro, há uma curta seqüência ilustrando o que viria a ser referido depois. No mercado, um motorista chama numa roda por pessoas para descarregar um caminhão e todos se recusam. Mas Tonho, sozinho ao lado, aceita o serviço. Um homem que passa por lá – o Carocinho (Fernando José) – vê a cena e vai relatar a um negro alto e forte, com um touca na cabeça – o Negrão (Paulo Sacramento) – que jogava cartas ali perto. Na seqüência seguinte, Paco encontra o companheiro se lavando na pia do pátio do cortiço e o observa sem falar nada. Tonho, com seu mal- humor, pergunta: “Tá me invocando por quê?”. Paco fala do recado que o Negrão lhe mandou, enquanto Tonho se veste e o silêncio só é quebrado pelas vozes dos dois e pelo som ininterrupto de gotas pingando. 325 Logo depois de Paco ter contado da ameaça do Negrão, Tonho, surpreso e preocupado, vai até o quarto acompanhado do companheiro para ouvir o resto da história. Começa aí a primeira das inúmeras interrupções desnecessárias de Dois perdidos numa noite suja. A pausa realmente indicada no texto da peça é alongada, mostrando os dois personagens subindo a escada e atravessando o corredor em toda sua extensão. A montagem de Raimundo Higino a partir daí vai ser revelar cada vez mais equivocada e desequilibrada. 326 No quarto, a conversa é retomada e novamente interrompida quando Tonho se coloca a escrever uma carta para a família da qual se pode ler o cabeçalho: “Rio, junho de 1970. Querida mamãe”. 325 No início do segundo quadro da peça, Paco parava de tocar gaita quando Tonho entrava no quarto. Chediak, ao mudar de cenário, efetivamente elimina as primeiras falas desse quadro que se tornava incoerente. 326 Neste momento, por exemplo, é questionável o insistente apelo a longos planos seqüência e é possível pensar por que Chediak não usou um simples corte para abreviar o deslocamento do personagem como o cinema clássico já fazia pelo menos desde Griffith. A extensão desse plano, em Dois perdidos numa noite suja, não provoca nenhum efeito que não o de uma aparentemente indesejada monotonia com a constante quebra de ritmo no meio de uma seqüência de diálogos. 218 Enquanto Paco volta a apontar a falta de saídas de Tonho frente ao Negrão, Chediak busca denotar significação aos objetos cênicos. Quando Paco diz “Você nunca vai ser ninguém” em meio aos lamentos de Tonho, ele pega sua mala e se senta lentamente sobre um vaso sanitário quebrado largado no canto do quarto. Observado por Paco, Tonho volta a culpar seus sapatos velhos, responsabilizando-os por sua vida de azar e sem querer admitir seu fracasso, encontra nele um “bode expiatório”. A câmera se afasta, enquadrando o personagem de Emiliano Queiroz no canto do quarto e do quadro, sozinho, sentado no vaso. 327 Paco volta para sua cama e começa a engraxar seus sapatos novos e Tonho, em segundo plano, se aproxima dizendo “Você podia me ajudar”, pedindo novamente para ele emprestar seus sapatos. Paco mais uma vez recusa, voltando a lembrá- lo do Negrão. Dando um chutinho sacana na bunda de Tonho, Paco fecha o “segundo quadro” o gozando pela sua difícil situação no mercado. Novamente o que seria o segundo quadro da peça termina com um close-up do rosto preocupado e tenso de Tonho, com os sons do mercado novamente antecipando um novo e breve “intervalo”. Em meio aos caminhões, Negrão procura por Tonho que está numa roda e os dois saem para um canto para conversar. No plano seguinte, Tonho está um bar jantando sopa quando Paco entra e o vê. 328 Com seu jeito abusado e folgado, Paco já vai se sentando ao lado de Tonho, pegando um pedaço de seu pão, molhando em sua sopa e começando a falar que o Negrão espalhou para todo mundo que ele lhe dera o dinheiro do caminhão. 329 A cada revelação de Paco, Tonho muda de lugar levando seu prato, mas o companheiro vai atrás, acompanhando-o de mesa em mesa até o fundo do bar. Tonho tenta tola e inutilmente fugir de Paco e da verdade que ele teima em jogar na sua cara. Mais uma vez as pausas entre as falas são estendidas para que os personagens mudem de cenário. Nessa cena, os dois saem do bar e voltam a dialogar somente quando já estão andando na rua. Apesar de esses intervalos prejudicarem o ritmo dos diálogos, os diferentes cenários são explorados eficientemente. Na rua deserta, as luzes dos postes são utilizadas de forma dramática, mostrando um grande entrosamento na marcação dos atores, uma vez que 327 Braz Chediak disse numa entrevista que esse era seu plano preferido no filme. Uma música do rádio toca um forró fundo, e na parede do bar vemos em destaque a bandeira do Brasil. 329 A personalidade despachada e despreocupada de Paco fica clara quando o dono do bar se aproxima da mesa e pergunta se ele vai querer algo. Diante da negativa, ele resumunga “Não tem grana, né?”, mas Paco ignora completamente seu desprezo. 328 219 Paco e Tonho param nos focos de luz exatamente nos momentos de aumento de tom dramático. Enquanto Paco o espezinha, Tonho diz que tem algo escondido e ele, assim como fez no restaurante, continua seguindo o companheiro pela rua, mas dessa vez movido pela curiosidade e repetindo: “O que que é? O que que é?”. Enquanto andam até o pátio do cortiço, o assunto volta ao Negrão e aos sapatos. Novamente, Chediak ilustra visualmente o antagonismo entre os dois, quando Paco tira a camisa para se lavar e Paco apenas tira os sapatos para limpar os pés. Numa cena inexistente na peça, Tonho admite que inveja os calçados do companheiro e chega a pedir para vê- los – “Bacana, mesmo”, diz. Ele o mede com seus pés e quando faz menção de prová- los, é interrompido por Paco (“É meu!”), que os pega de volta. Tonho se ofende com a insinuação (“É, eu sei, né?”) e volta para o quarto, enquanto Paco o segue logo depois. Chediak, obedecendo a uma pausa indicada na peça, justifica o tempo de Paco retornar ao quarto, tomando cuidado para não sujar os pés descalços enquanto leva os sapatos na mão. Os diálogos são novamente retomados, com Tonho abrindo um embrulho que revela ser um revólver. Paco se assusta tanto que chega a se esconder atrás do varal improvisado ao lado da cama e em seguida e pela primeira vez, levanta sua voz, fazendo-a mais grossa. Depois de estabelecida uma nova “trégua tensa”, Tonho puxa conversa e Paco, enquanto varre o chão (infantilmente jogando a sujeira para o lado da cama do companheiro), começa a falar de sua vida e a câmera aos poucos se aproxima dele. Em seguida, quando a situação parece se apaziguar, o filme de Chediak continua recusando o plano e contra-plano, preferindo optar por um plano mais aberto, enquadrando os dois personagens na cama, lado a lado, demonstrando visualmente o equilíbrio que se estabelece nesse momento. Quanto Tonho volta a tocar no assunto dos sapatos, Paco se irrita e apaga a lâmpada para dormir e acende o lampião. Tonho ainda puxa conversa e o plano termina novamente com a câmera enquadrando o rosto de Tonho, com Paco ao fundo deitado. 330 No que na peça seria o intervalo entre o terceiro e o quarto quadro, quando, efetivamente não acontece nada – Paco teria ido para o mercado e Tonho ficado o dia inteiro no quarto – Chediak coloca outras seqüências visuais, com apelos simbólicos mas que constituem-se como as mais redundantes do filme. Insistindo em ilustrar visualmente o que 330 Nesses planos ficam visíveis as deficiências de iluminação com o apagar da luz durante o plano-seqüência e a exposição acaba sendo corrigida tardiamente com uma aparente, brusca e “anti-natural” correção do diafragma. 220 antes eram elipses, a adaptação de Dois perdidos numa noite suja em dado momento começa a se tornar excessivamente repetitiva, ao reforçar visualmente fatos ou aspectos dos personagens cujos diálogos – já bastante diretos e claros – posteriormente se referem. Tonho novamente ganha as ruas desertas onde caminha solitário: passa em frente a uma loja de sapatos, admirando a vitrine iluminada; se aproxima de um velho que coloca gatos num saco, aparentemente com a intenção de mostrar a arma para vender, mas se afasta ao ver um casal se aproximar. Enquanto isso, em montagem paralela, Paco vê Carocinho e Negrão jogando cartas num bar. O encontro entre os dois personagem no início do quarto quadro novamente é transferido para as ruas, quando Paco vê Tonho sentado numas escadas, que diz: “não sai de casa o dia todo, só agora”. Os dois discutem sobre o Negrão e sobre a idéia do assalto, mas depois de novamente discordarem sobre o que fazer com a mulher que for assaltada, Tonho desiste de conversar e volta para o quarto. Depois de mais uma pausa longa – existente no texto, mas estendida no filme –, Paco chega ao quarto onde Tonho já está deitado. Paco, então, retoma a idéia do assalto, mas Tonho se recusa por considerá- lo um tarado por querer fazer mal à moça. “Isso é desculpa”, Paco diz, enquanto pega uma revista masculina com fotos de mulheres nuas, como que querendo exibir dessa forma sua virilidade. Percebendo isso, Tonho diz: “Você é até cabaço” e a câmera se aproxima rapidamente do rosto de Paco, bastante nervoso, e o texto de Plínio Marcos ganha força e impacto através da linguagem cinematográfica. O xingamento de “filho da mãe” choroso de Paco reforça a impressão de que seu ponto fraco foi atingido. Tonho ainda goza novamente Paco: “Cabaçinho, fiu, fiu”, num acréscimo bem oportuno do filme aos diálogos de Plínio Marcos. Durante uma nova pausa das falas, esta muito bem acentuada por Chediak, os dois personagens ficam de costas um para o outro: Paco admira e toca as fotos de mulher pelada coladas na parede em frente a sua cama e Tonho olha e limpa a foto de sua família. Paco ainda tenta voltar à idéia do assalto, mas como Tonho não quer papo, ele pega uma revista de mulher pelada e se encaminha para a porta, fechando o quarto quadro. É bastante curioso que a discreta sugestão que ele está indo para o banheiro se masturbar evidencia novamente uma tentativa de auto-afimação de Paco em relação a sua sexualidade. Novamente, entram planos “recheando” o intervalo entre o quarto e o quinto quadro. Ficando cada vez mais longas, essas seqüências “intermediárias” já se revelam totalmente prejudiciais ao andamento do filme. 221 Mais uma vez os personagens são retratados em montagens paralelas. Tonho caminha desanimado e cabisbaixo pela rodoviária, passando em frente ao guichê de passagens. Paco acorda de madrugada para ir ao mercado e sai do quarto, passando pela cama vazia e pela mala fechada e pronta do companheiro. Mas Tonho está num local onde várias pessoas rezam em frente a um altar com centenas de velas. Sem ter mais ninguém a quem recorrer, Tonho faz o sinal da cruz. No mercado, o Negrão e Carocinho conversam. Mais uma vez o encontro entre Tonho e Paco ocorre na rua, com o segundo esperando pelo primeiro na escada do pátio, numa completa inversão da seqüência anterior. Os diálogos do quinto quadro começam ali mesmo, mas são interrompidos quando os dois voltam para dentro. No quarto, decidem finalmente partir para o assalto. Paco pega logo um porrete, mas Tonho ainda hesita ao segurar a foto da família, enquanto o companheiro diz: “Larga essa família e vamos logo!”. A câmera, sem cortar, depois dos personagens saírem, dá um close-up na foto, sobretudo na imagem de Tonho, como que simbolizando um passado que vai ficando definitivamente para trás. Chediak, obviamente, não perde a oportunidade de registrar o assalto e mostra Paco e Tonho chegando ao parque e esperando o melhor momento para escolher e atacar as vítimas. Tonho se aproxima de um casal de namorados num banco de praça e anuncia: “É um assalto”. A agitação e o nervosismo são expressos por uma trêmula câmera na mão e por um alvoroço de vozes exaltadas. O homem passa todos os objetos que Paco pede e Tonho vai guardando em seus bolsos. Bastante nervoso, Tonho só quer saber dos sapatos e mal se controla ao mandar repetidas vezes a vítima passar também os sapatos. Conseguindo o que queria, Tonho diz “vamos embora, Paco, que eu já tenho os meus sapatos”, mas o companheiro decide atacar também a mulher, tentando arrancar suas jóias, mas aproveitando para abraçá-la e apertar seu seio. O homem esboça uma reação de defender a moça desesperada, mas Paco imediatamente o acerta com o porrete em sua cabeça, no que ele cai no chão, trêmulo e depois imóvel e, aparentemente, morto. Tonho sai correndo, seguido por Paco, enquanto a mulher continua gritando e a câmera mostrando a vítima deitada no chão. No plano seguinte, Tonho e Paco atravessam o pátio silencioso em meio aos latidos dos cachorros que atraem a atenção da senhoria, que olha desconfiada para os inquilinos. Os dois entram no quarto nervosos, dando início ao segundo ato da peça. Inicialmente, Paco fica acuado (e visual e literalmente contra a parede) com a ameaça de ser preso que Tonho, apavorado, joga sobre ele. Mas Paco, mesmo acuado, começa a levantar a voz, 222 respondendo de igual para igual ao afirmar que Tonho era o chefe. Tonho vai se desesperando e fica chocado quando Paco diz que deseja mesmo que o cara que acertou morra. “Você é um animal”, diz Tonho. “Vai a merda”, responde Paco, enquanto o colega começa a arrumar suas malas. Essa mudança de Paco, filmada num plano-seqüência, sem grandes movimentos, é, pela força do texto do Plínio (sem interrupções ou acréscimos) e pela interpretação dos atores dirigidos por Chediak, um dos momentos em que o filme começa a ganhar realmente vigor e impacto. O próprio Paco anuncia essa sua mudança (“você vai ver, você não me conhece”), se levantando e mostrando seu novo lado antes desconhecido. Delirando em seus planos, mostrase mais violento, batendo com o porrete na cama. Quando Tonho o chama de Maluco, pula para cima da cama, gritando com uma voz mais grave do que a normal, como que anunciando seu batismo: “Boa! Paco Maluco, o Perigoso”. Cada vez mais agressivo, Paco diz que vai formar um gangue e se tornar um bandido perigoso. Quando Tonho ameaça enfrentá- lo, chamando-o de canalha e partindo em sua direção, ele, de pé na cama, com a arma em punho e o braço erguido, o desafia com um berro: “Vem viado, vem!”. Mas Tonho decide acalmar os nervos e dividir a “muamba”. Paco desce da cama e os dois voltam a estar no mesmo “nível”, embora Paco já tenha assumido uma nova postura com a voz mais grave, rosto fechado e atitudes mais desafiadoras. 331 Na cama, ao lado dos objetos roubados (carteira, caneta, sapato, dinheiro, colar, brinco, cinto), permanece a foto da família de Tonho, como que a lembrar permanentemente do passado com o qual o personagem está rompendo definitivamente. Depois das discussões sobre a divisão, Tonho aceita ficar só com o sapato e se prepara para partir. Paco se mostra verdadeiramente triste e melancólico, enquanto Tonho aproveita seu momento, limpando cuidadosamente os sapatos novos e lavando os pés enquanto se despede. Entretanto, quando vai finalmente calçá-los, vê que eles são muito pequenos para seus pés. Tonho tenta de todas as maneiras enfiar os sapatos, mas seus pés não entram e o filme mostra alongadamente seus esforços enquanto rola pelo chão, tentando inutilmente calçar um pé e depois o outro. Observando a cena, Paco estoura de rir quando Tonho diz que não vai mais embora. No filme, as risadas parecem menos para humilhar Tonho e mais por felicidade por ele não 331 O impacto desse momento no filme também se deve ao fato de que em nenhuma outra cena anterior, Paco, na interpretação de Nelson Xavier, tinha manifestado qualquer expressão de força ou violência, mesmo em diálogos que sugeririam isso no primeiro ato. 223 mais partir. To nho chega a implorar choramingando para Paco trocar de sapatos, mas ele não aceita. No plano-seqüência a câmera se posiciona do alto, em plongê, para mostrar o nível mais baixo a que o personagem chega, de joelhos, em frente a Paco, de pé. Tonho chora desesperadamente abaixado no chão, implorando para Paco parar de humilhá- lo. Ainda assim, ele encara a desgraça do amigo com muito menos agressividade do que o texto apontava. Na verdade, Paco demonstra até com certa doçura e ternura na fala “Pára de chorar” e “não adianta chorar”, ou mesmo apreensão e preocupação quando diz: “Você vai se matar?”. Mas Tonho finalmente pára de chorar e se recompõe com aguda seriedade. Põe balas no revólver e aponta a arma para um agora assustado Paco. Tonho, então, repete a humilhação a que fora submetido, obrigando o companheiro a dançar e rebolar usando os brincos roubados. Paco chora compulsivamente, mas Tonho grita exaltado: “Ri, Bicha Louca! Ri!”. O momento de maior crueldade e de agressividade mais intensa e explícita do filme acaba prejudicado por uma decupagem equivocada e pela interpretação dos atores, especialmente Nelson Xavier, que, nesse momento, não alcança a seriedade exigida pela cena, beirando inadvertidamente o caricatural no close-up de seu rosto. O crítico Nelson Hoineff, por exemplo, reprovou uma caracterização excessivamente estereotipada de ambos os atores, “que, diante da câmera como na boca da cena, nada podem fazer”. 332 A crítica Ida Laura, questionando uma opção de Nelson Xavier por uma “chave cômica inexplicável”, afirmou que “quando Paco é baleado, o filme chega a ficar ridículo”. 333 Entretanto, mesmo se aproximando do ridículo (ou do grotesco), pelo menos a banda sonora do filme consegue provocar uma incrível sensação de incômodo e desespero através dos gritos enlouquecidos de Tonho e do choro desesperado de Paco, que só é interrompido com um tiro certeiro em sua testa, que o faz desabar fulminado e se esvaindo em sangue. Tonho pega todos os objetos roubados e ajoelha-se imóvel ao lado do corpo para dizer suas últimas linhas, com uma tristeza muito diferente do delírio na dança final da peça. A fala “Por que você não ri agora?” é dita chorosamente como um verdadeiro lamento. O último plano, no meio de uma rua movimentada, ao som de carros e iluminado por faróis, mostra To nho, que de um caminhar lento passa a correr na direção da câmera. 332 HOINEFF, Nelson. Dois perdidos numa noite suja. O Jornal, Rio de Janeiro, 25 mar. 1971. LAURA, Ida. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20 mai. 1971. In: Guia de filmes. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Cinema, n. 32, mar-abr. 1971. 333 224 Entretanto, a câmera (e nós) cada vez no afastamos mais dele, que insiste em sua inútil perseguição. *** Como foi dito, o grande problema de Dois perdidos numa noite suja é a opção equivocada por um ritmo lento, com uma estrutura em que os quadros da peça são permeados de seqüências visuais redundantes, resultando num ritmo claudicante. A segunda adaptação de Plínio Marcos dirigida por Chediak não alcançou uma cadência lenta e adequada ao texto como em A navalha na carne, e nem encontrou uma narrativa cinematográfica equivalente aos ciclos de ação, às acelerações e desacelerações da peça adaptada. Por outro lado, é perceptível uma tentativa de maior invenção do diretor neste filme, caracterizado por uma elaborada marcação dos atores em relação à câmera, pela tentativa de um uso expressivo do som, além de uma busca da sintonia da movimentação e do enquadramento da câmera com o texto. Nas “tréguas” entre Tonho e Paco (os momentos em que se planta a amizade), a câmera permanece mais estática, buscando um quadro mais simétrico. Quando os dois personagens entram em conflito, a câmera se movimenta mais, enquadrando os atores em planos próximos, ou minimizando-os em relação ao cenário. Esse aspecto foi reconhecido e elogiado pelo pesquisador Reinaldo Cardenuto, para quem os protagonistas “parecem pólos de uma balança na qual o peso tende ora para um lado e ora para outro. O diálogo expressivo e áspero é quem comanda o desequilíbrio. Tal construção fílmica fica evidente logo na primeira discussão entre Tonho e Paco, quando ambos estão em suas camas, com os espaços da direita e da esquerda preenchidos e do centro esvaziado”. 334 Além dessa decupagem mais sofisticada nas cenas dentro do quarto miserável, o filme explora novos ambientes inexistentes no texto original em busca também da sintonia entre o estado de espírito dos personagens e as ruas desertas, vazias e escuras. Sendo o tema principal dessa e de muitas outras peças de Plínio Marcos a solidão, existe, obviamente, um subtexto homossexual em Dois perdidos numa noite suja. Como diz Reinaldo Cardenuto, "o órfão mantém-se próximo do imigrante” e sendo ambos solitários, um buscando uma socialização (pois não tem amigos) e o outro tentando preservar possíveis laços simbólicos de parentesco (pois está distante da família), surge aí uma relação que é criada e 334 CARDENUTO FILHO, Reinaldo. Duas noites diferentes e iguais: Contextos e conflitos em diferentes adaptações cinematográficas de “Dois perdidos numa noite suja”. Sombras elétricas, n.2, 2002. Disponível em: <http://geocities.yahoo.com.br/sombraseletricas/2olhivre5.htm>. Acesso em: 20 mar. 2005. 225 destruída mútua e simultaneamente. Entretanto, é interessante como o filme de Chediak de certa maneira reforça o sentimento escondido por baixo da dureza de Paco e Tonho, principalmente na oposição que se estabelece entre os dois personagens. Ainda que a interpretação de Nelson Xavier com seu jeito de andar próximo do de um palhaço, sempre com as mãos no bolso, balançando de um lado para o outro e com os pés grandes (pelos sapatos folgados), se aproxime do tom circense do personagem (que foi interpretado pela primeira vez por um Plínio Marcos que aproveitava sua gagueira natural), há outros elementos em sua composição. Mesmo bon-vivant, despachado e com pretensões artísticas, Paco sofre com a solidão, mostrando-se extremamente carente e necessitado de companhia. Por outro lado, Tonho é o macho frustrado por não vencer na vida, por não conseguir prover o sustento almejado (no mercado só consegue dinheiro para pagar cama e comer). Ao mesmo tempo é o personagem mais viril, fisicamente mais forte e corpulento, que volta e meia se exibe sem camisa enquanto se lava. Mas se Tonho se afirma mais forte e esperto, ele acaba realmente “tubulando” como já previa Paco. 335 Com Tonho sendo retratado como o “macho”, Paco ganha uma conotação mais “feminina”, seja pela voz aguda e estridente, pela personalidade “marota” e “manhosa” ou por sua comprovada pureza (é realmente “cabaço”). Nesse sentido também, no momento em que Tonho descobre a virgindade do companheiro, este olha para as fotos de mulher nua com um olhar mais de fragilidade do que de desejo. E no assalto, quando Paco ataca a mulher no parque, sua violência tem menos um aspecto de desejo físico do que de auto-afirmação de força e poder quando aperta o seio da vítima ou tenta tirar sua blusa sem a menor sensualidade, mas em meios a risadas e gozações. 336 Os conflitos entre os dois personagens ao longo da peça se sustentam em grande parte na tentativa de um se impor sobre outro através da afirmação da virilidade pessoal e no descrédito na do próximo. Embora Tonho seja mais forte do que Paco (e se vanglorie disso), ele é mais fraco que o Negrão, se tornando a “boneca do negrão” no mercado. Esse fato faz com que a todo o momento Paco o chame de “bicha” por não querer enfrentar o Negrão, o que ele diz que faria em seu lugar. A tentativa de um apontar a feminilidade do outro como um 335 É interessante como Tonho se lava o tempo todo ao longo do filme (diferentemente de Paco que num único momento lava justamente os pés), como que querendo se manter limpo na noite suja. Essa mesma tentativa inútil de escapar do próprio destino é explicitada por suas constantes “fugas”, se afastando de Paco no restaurante ou nas ruas ou o ignorando no quarto. Entretanto, como a peça revela no final, por mais que ele tente, ele não consegue escapar ou ficar imune à sujeira que envolve a todos naquele universo. 336 Enquanto Tonho possui um revólver – objeto fálico –, Paco arma -se com um alicate. Posteriormente, quando assume uma postura mais agressiva, se armar de um igualmente fálico porrete. 226 ponto fraco fica clara, por exemplo, na divisão da “muamba” do assalto, quando um tenta empurrar para o outro os objetos femininos. Paco chega a dividir todos os objetos exatamente dessa forma: relógio, isqueiro e carteira para ele, pulseira, broche, anel e cinto para Tonho. Mas antes disso ainda, quando chegavam ao parque em busca de vítimas desprevenidas para o assalto, os dois marginais eram obrigados a disfarçar suas intenções quando um outro casal se aproximava. Tonho e Paco fingem conversar, ficando um de frente para o outro, com os corpos próximos um do outro. Nessa seqüência Chediak apela discretamente para um velho artifício das comédias românticas, em que, por injunções da trama, duas pessoas são obrigadas a fingirem ser um casal (às vezes sendo forçadas a se beijarem ou se abraçarem), fazendo o que, na verdade, desejavam fazer, mas não o faziam. 337 Na seqüência final, essa relação afetuosa entre os dois é reforçada ainda mais explicitamente. O tom que Nelson Xavier empresta às falas em que Paco observa Tonho desesperado com seus sapatos roubados inutilmente retira muito da crueldade do texto pliniano, acentuando um fiapo de compaixão que a peça apresentava de forma mais reduzida. Essa mudança é ainda mais notável no personagem Tonho, interpretado por Emiliano Queiroz. A “macheza” com que tratava Paco – próximo ao jeito de Vado com Neusa Sueli – já ia se esfacelando ao longo do filme, com o personagem surgindo gradativamente com um tom mais feminino e frágil, por exemplo, quando se surpreendia por Paco ter dito aos outros carregadores do mercado não ter certeza que ele não era bicha. “Como você teve coragem de falar uma coisa dessas?”, dizia um Tonho meio afetado. A própria escalação do ator Emiliano Queiroz é sintomática, uma vez que ele tinha interpretado o Veludo em Navalha na carne (no teatro e no cinema), justamente o personagem homossexual da peça de Plínio Marcos, além de ter feito uma ponta como uma “bicha assumida” em As confissões de frei Abóbora e seus amores, dirigido pelo mesmo diretor e lançado também em 1971. Voltando ao desfecho de Dois perdidos numa noite suja, após Tonho finalmente atirar e matar Paco encontramos a maior mudança de tom de todo o filme. Ao invés de gritos delirantes e uma dança enlouquecida, Chediak coloca o personagem balbuciando palavras em meio ao choro, ajoelhado ao lado do corpo de Paco, com um pesar e tristeza enorme por ter matado o companheiro. Depois do tiro, a própria arma perde sua importância e a morte de 337 Há uma longa tradição de filmes que se sustentam sobre esse artifício, desde o jornalista ambicioso (Clark Gable) e a herdeira fugitiva (Claudette Colbert) que são obrigados a passar por recém-casados em Aconteceu naquela noite (It happened one night, EUA, dir. Frank Capra, 1932), até a prostituta (Julia Roberts) que é contratada para fingir ser uma acompanhante de um executivo milionário (Richard Gere) em Uma linda mulher (Pretty Woman, EUA, dir. Gary Marshal, 1990). 227 Paco é o único foco de atenção. A carreira desabalada de Tonho no final também sugere não uma inversão total do personagem com a incorporação de uma personalidade cruel e criminosa, mas talvez um desespero com o que acabara de fazer e do qual tenta inutilmente escapar. Ou seja, o ponto talvez mais interessante do filme de Chediak é a substituição da dança e das risadas delirantes de Tonho no desfecho da peça pela corrida e pelos gritos de dor e desespero. Atirando para os dois lados É muito significativo desse quadro de transição e de incertezas na passagem dos anos 60 para os 70 que Braz Chediak tenha dirigido dois filmes exibidos em 1971, no ano seguinte ao sucesso de A navalha na carne. Seis meses depois do lançamento de Dois perdidos numa noite suja, chegou aos cinemas do Rio de Janeiro, em 4 de setembro de 1971, As confissões de frei Abóbora e seus amores, produzido por Herbert Richers. 338 Roteirista e diretor do filme, Braz Chediak diferenciava claramente os dois projetos: _Tanto Navalha quanto Dois perdidos são filmes de baixo custo. Apesar disso, alcançam excelente desenvolvimento, em termos de conjunto. Acho que o público deve ser respeitado, quando se planeja um filme. _Frei Abóbora, ao contrário, é filme eminentemente comercial. Já custou, até agora, 500 mil. Até o lançamento [...] deverá gastar mais 200 mil. 339 Grande produção a cores, com locações no Rio de Janeiro, São Paulo e em plena Amazônia, no alto Xingu, As confissões de frei Abóbora e seus amores tinha no elenco o astro Tarcísio Meira (protagonista de duas então recentes e bem-sucedidas novelas de Janete Clair, Irmãos Coragem e O Homem Que Deve Morrer), além da estrela internacional Norma 338 O filme era inspirado no livro de José Mauro Vasconcelos, mesmo autor de Meu pé de laranja lima (1970), cuja sensível adaptação para o cinema roteirizada por Chediak tinha sido um dos maiores sucessos do produtor Herbert Richers. A história de tons autobiográficos do menino Zezé tinha conquistado tanto leitores quanto espectadores de todo o Brasil. No mesmo ano Meu pé de laranja lima virou também novela, escrita por Ivani Ribeiro e exibida na TV Tupi de 1970 a 1971 (novas versões seriam feitas em 1980-1981 e em 1998-1999, ambas pela TV Bandeirantes). Herbert Richers – que tinha produzido também Rua descalça (1971, dir. J.B. Tanko), outra adaptação de José Mauro Vasconcelos, mas destinada principalmente ao público infantil – possivelmente pretendia tentar repetir parte do sucesso de Meu pé de laranja lima com As confissões de frei Abóbora e seus amores adaptando novamente outra obra do mesmo escritor e com direção do roteirista e assistente do filme anterior, embora mirando num público mais adulto. 339 “DOIS perdidos” só depende da censura. Correio da Manhã. Rio de Janeiro. 11 mar. 1971. 228 Bengell. Em depoimento aos jornais, Chediak salientava a diferença entre os dois filmes que assinava: Esta foi uma experiência inteiramente diferente. Mudei todo o livro. Ainda assim o trabalho resultou num filme apenas comercial. Com o Plínio é diferente: eu acho que ele é o teatrólogo mais sério que nós temos. 340 Tendo seu final picotado pela censura (tornando a história ainda mais confusa), antes do lançamento do filme foi acrescentado ao título original (do romance e da adaptação) As confissões de frei Abóbora, o complemento e seus amores, provavelmente como forma de atrair o público – o que não funcionou tão bem. 341 Sem alcançar um resultado de bilheteria plenamente satisfatório para uma grande produção (renda de Cr$ 817.407.69 e público de 398.715 espectadores) 342 , a crítica, de maneira geral, considerou As confissões de frei Abóbora e seus amores um filme equivocado, medíocre, enfadonho e descaracterizado. Luiz Alípio de Barros, por exemplo, o comparou com outros filmes de Chediak: É curioso. Frei Abóbora, cinematograficamente, tem maior ‘campo de ação’ do que poderia oferecer A navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja; no entanto, o moço Chediak, apesar das limitações, sob o ponto de vista do cinema, dos dois textos teatrais de Marcos, saiu-se muito mais satisfatoriamente nas películas anteriores. 343 Entretanto, nas bilheterias Dois perdidos numa noite suja tinha tido um resultado ainda menos satisfatório do que As confissões de frei Abóbora e seus amores. Ou seja, após o insucesso tanto do filme autoral sério e de baixo custo (produzido por Jece Valadão), quanto da grande produção comercial sério-dramática (produzida por Herbert Richers), a carreira de Chediak tomaria um novo rumo, menos “sério” e mais bem sucedido comercialmente. Se o filme barato e sério lucrou menos do que o filme caro, sério e com elementos eróticos, por que não investir num filme barato, nada sério e com um tom erótico ainda maior? Chediak não completou a pretendida trilogia pliniana e a adaptação cinematográfica da peça Homens de Papel jamais saiu do papel. Continuando disposto a investir num cinema de grande 340 Ibid. Podemos resumir a história de As confissões de frei Abóbora e seus amores da seguinte maneira: Contagiado por malária, Frei Abóbora (Tarcísio Meira) é encontrado à beira da morte junto aos índios do alto Xingu. Enquanto se recupera da doença, ele rememora a própria vida: a relação conflituosa com uma mulher mais velha e rica (Norma Bengell) que sustentava sua arte, entremeada por sua paixão pelos índios da Amazônia. Já restabelecido, volta para a cidade para enfrentar seu passado. 342 BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Instituto Nacional do Cinema. Setor do Ingresso Padronizado. Informativo SIP, Rio de Janeiro, ano 3, 1973. 343 BARROS, Luiz Alípio. As confissões de Frei Abóbora. Última Hora, Rio de Janeiro, 8 out. 1971. 341 229 comunicação, ao longo da década de 70 o diretor mudou radicalmente o rumo de sua carreira. Seu filme seguinte, Os mansos (1973), seria produzido pela Sincrofilmes de Pedro Carlos Rovai, que se consagraria como um dos principais produtores de pornochanchadas. Se a partir de 1971 Chediak seguiria um caminho que o afastaria da temática e da linguagem de A navalha na carne ou Dois perdidos numa noite suja, naquele mesmo ano um outro diretor seria obrigado a mudar de direção após adaptar uma obra de Plínio Marcos. O motivo também seria de força maior, mas não exatamente por pressões de bilheteria ou do mercado. Nenê Bandalho, dirigido por Emílio Fontana e baseado num conto de Plínio Marcos, seria lançado comercialmente em 1971 e brutalmente interditado pela Censura Federal no final desse mesmo ano. Assim como Plínio Marcos era cruelmente cerceado profissionalmente, os filmes baseados em suas obras sofriam as mesmas limitações. Nenê Bandalho é um filme marginalizado, surgido num momento em que a própria produção que se tornou conhecida como Cinema Marginal saía de cena. Seus principais expoentes, Rogério Sganzerla e Julio Bressane, já tinham deixado o país em 1970, “avisados” pelo pai do segundo, um general do exército. A maior parte dos cineastas ditos marginais acabou partindo para o exílio por volta de 1971, retornando em torno de 1972 e 1973. “Exílio” não exatamente por uma expulsão oficial do país, mas como uma emigração forçada devido à falta de condições para o desenvolvimento de um trabalho criativo no país (RAMOS, F., 1987a, p.98). Entretanto, também não foi por falta de condições que Chediak não pôde completar sua trilogia pliniana? Enquadrando o filme Nenê Bandalho dentro da trajetória das adaptações da obra de Plínio Marcos no cinema brasileiro, tornam- se questionáveis as classificações rígidas da historiografia clássica do cinema brasileiro que distanciariam a adaptação de Emílio Fontana tanto dos filmes de Chediak, quanto também do filme seguinte a se basear numa história de Plínio Marcos, A rainha diaba, filmado em 1974. 230 4. O MALDITO, O MARGINAL E O BANDIDO. Cinema Marginal? Cinema Marginal foi o termo consagrado para nomear um conjunto específico de filmes brasileiros realizados no final dos anos 60 e início dos 70. Segundo Fernão Ramos (1987a, passim), apesar da heterogeneidade das obras, das particularidades de cada cineasta, da constante recusa de rótulos por muitos deles e da ausência de grupos autodefinidos, manifestos ou coesão ao nível das idéias, estes filmes apresentariam uma coesão ao nível estético que permitiria agrupá-los como “marginais”. 344 Nenê Bandalho (dir. Emílio Fontana, 1971), costuma ser freqüentemente alinhado sem maiores discussões ao Cinema Marginal. Realizado no período mais fértil desse “movimento” (1968-1971), algumas de suas características o filiariam realmente a uma “estética marginal”, além da própria estrutura de produção similar a de outros filmes desse grupo. Além disso, em reportagens e artigos de jornais ou mostras e festivais dedicadas ao Cinema Marginal ao longo das décadas, Nenê Bandalho foi constantemente citado como um “filme marginal”. 345 A discussão se Nenê Bandalho é ou não um filme marginal, além de improdutiva, é uma questão repetitiva, pois Sérgio Villela já se fez essa mesma pergunta (e a respondeu) em 1977 – “Afinal de contas, Nenê Bandalho é ou não um filme marginal? Não. Não é marginal, não é cinema novo, não é policial americano, não é etc. É um filme. Um filme de cinéfilo”. Para Villela a questão se encerrava com uma citação do cineasta (considerado marginal) Luís Rosemberg Filho: “o cinema marginal não existe, o que existe são alguns autores brasileiros que procuram fazer um cinema político”. 344 346 Esses filmes também receberam ao longo dos anos diversas outras denominações, mais ou menos apropriadas, como ciclo experimental do cinema brasileiro, cinema marginalizado, cinema independente, cinema bandido, udigrúdi (Glauber Rocha) ou cinema de invenção (Jairo Ferreira). 345 Nenê Bandalho constou, por exemplo, do último grande evento retrospectivo dedicado a essa produção: a já histórica mostra Cinema Marginal e suas fronteiras, nas filiais carioca e paulista do Centro Cultural Banco do Brasil, em 2001. 346 VILELLA, Sérgio. Nenê Bandalho: realismo fantástico. Movimento, Rio de Janeiro, 21 mar. 1977. 231 O próprio diretor Emílio Fontana também refletiu em entrevista sobre o rótulo de marginal que pairava sobre seu filme: Talvez não me considere enquadrado dentro do cinema marginal como se costuma falar, no cinema boca-de-lixo, não por uma questão de preconceito, mas por uma questão de realmente eu não ter relacionamento nenhum com esse tipo de cinema que é feito ali. Ou que foi feito numa época, de uma certa maneira. O meu filme pode ter a posição de marginal por ter assumido uma posição de rejeição às características clássicas do cinema comercial. Então, naturalmente ele é marginalizado (FONTANA, [1977], p.44). Na entrevista realizada com o diretor na pesquisa deste trabalho, Emílio Fontana contou que na época em que dirigiu Nenê Bandalho, seu “mundo era o teatro”. Apesar de ter freqüentado a Boca do Lixo em São Paulo (em busca de informações, equipe técnica e apoio) e visto na época os “clássicos marginais”, ele não manteve de fato relações com aquele grupo. Mesmo o crítico Jairo Ferreira em seu livro Cinema de Invenção (1986), relato íntimo e pessoal do cinema underground paulista de fins dos anos 60 e início dos 70, não faz praticamente nenhuma referência ao filme Nenê Bandalho ou ao seu diretor. 347 Direcionando um olhar despido de concepções pré-determinadas sobre a adaptação de Emílio Fontana do conto homônimo de Plínio Marcos, o filme pode revelar características peculiares que desafiam tentativas de encaixá-lo em divisões ou categorias estanques. Assim como A navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, Nenê Bandalho determina uma reflexão sobre o cinema brasileiro do final dos anos 60 e início dos anos 70 mais sutil e ponderada do que a historiografia clássica freqüentemente sugere. 348 Quem não é marginal? 347 Os cineastas paulistas que Fontana disse conhecer na época, como Luiz Sérgio Person, João Batista de Andrade e Denoy de Oliveira (que àquela altura ainda não tinha dirigido nenhum longa-metragem) dificilmente são rotulados também como “autênticos marginais”. 348 Além disso, igualmente importante é relativizar a rígida barreira entre o auto-intitulado cinema de autor e o denominado cinema comercial brasileiro. Como lembra Bernardet (2001, p.12), a oposição Cinema Novo e Cinema Marginal, segundo a qual tem sido escrita a maior parte da história do cinema brasileiros dos anos 60 e 70, está relacionada primordialmente ao cinema culto, alijando boa parte da produção cinematográfica brasileira desse período que não se enquadra em nenhum dos dois “movimentos” e com a qual, muito freqüentemente, mantiveram algum tipo de relação. 232 O Cinema Marginal emergiu entre 1967 e 1969, mesma época em que o teatro de Plínio Marcos foi consagrado pela crítica e público. Aquele momento de efervescência cultural no Brasil e no mundo, já descrito anteriormente, foi também o ambiente no qual surgiu uma nova geração de jovens cineastas marcados pelos mais diferentes elementos, como a contracultura e o existencialismo, o movimento hippie, as drogas e a psicodelia, a pop art e uma nova fase do rock and roll, o feminismo e a revolução sexual. Todas essas influências devidamente absorvidas no conturbado contexto social, político e cultural brasileiro da época, além de devidamente misturadas e embaralhadas como apontava o tropicalismo. Entretanto, especificamente no meio cinematográfico brasileiro, aquele era também um momento delicado para o Cinema Novo e seus principais representantes. O “movimento” que tinha ganhado ampla expressividade no panorama cultural brasileiro ao longo dos anos 60 se via naquele momento diante de um impasse com a aparente ruptura de uma nova geração de cineastas. Fernão Ramos (ibid, p.27), por exemplo, relatou dramaticamente aquele momento, quando “jovens que faziam parte do que alguns jornalistas chamavam de ‘cinemanovíssimo’ (1966-1967), acabam, na evolução dos fatos, por matar os pais que antes idolatravam assumindo os seus mais ultrajosos farrapos”. Entretanto, é difícil apontar mortes e assassinatos, ou ainda, movimentos marcadamente separados e rupturas definitivas (mesmo que declaradas publicamente pelos próprios cineastas) quando a história e os filmes não são tão facilmente definidos por conceitos rígidos ou grupos coesos. Antes mesmo da explosão do Cinema Novo em 1963 / 1964, o ator e roteirista Miguel Torres já considerava o movimento um farsa, denunciando aspectos que seriam justamente as principais acusações dos marginais cerca de seis anos depois: Cinema novo virou indústria. Se mercantilizou. Devemos nos negar a vender a miséria alheia por um bom preço. Não é possível a co-existência entre o cinema-idéia e o cinema-comércio. Não é possível um cinema realmente novo enquanto não estiver totalmente purificado de todas as suas origens e impurezas comerciais [...]Ainda não foi feito um só filme no Brasil absolutamente livre de injunções comerciais ou de diretrizes políticas preestabelecidas, portanto, ainda não foi feito no Brasil um só filme do cinema realmente novo (grifos meus). Miguel Torres, antevendo elementos posteriormente presentes em filmes como Câncer (dir. Glauber Rocha, 1968-1971) ou na produção de Sganzerla e Bressane, afirmava: “Cinema de autor já existe em Nova York, no Japão, em vários países do mundo. Não existe aqui. São 233 filmes feitos com câmera na mão, em 16 mm, sem iluminadores, sem atores e sem um argumento previamente elaborado”. 349 Anos mais tarde, num artigo publicado em 1970 – no auge do que se passou a ser conhecido como Cinema Marginal –, Flávio Moreira da Costa afirmava que os filmes de Sganzerla, Bressane, André Luis de Oliveira, Rosemberg Filho e outros, surgidos então recentemente, não chegavam a constituir um cinema marginal, sendo apenas uma fase transitória: Não existe ainda entre nós um cinema marginal. O que existe, na realidade, são filmes marginais por situação, e não (pelo menos parte dele) como programa político ou estético. [...] não se pode considerar marginal um conjunto de filmes que são lançados comercialmente, e que concorrem a festivais (O bandido da luz vermelha, Meteorango Kid,herói intergalático), além de receber prêmios e adicionais. A própria marginalidade dos cineastas é, quase sempre, transitória: hoje fazem filmes em 16 mm, e amanhã filmam em cinemascope (grifos meus). Apesar de afirmar que a realidade plástica de Matou a família e foi ao cinema era a única opção possível naquele momento, o autor ainda via em 1970 o underground como uma possibilidade futura. 350 Ainda assim, mesmo questionando a existência concreta de uma produção marginal, é perfeitamente possível apontar para características gerais comuns a filmes e cineastas de determinado contexto ou época, assim como distinções óbvias e fundamentais entre dois momentos específicos. A própria diferença geracional, por exemplo, é inquestionável. Mas também não é nem um pouco incomum que jovens cineastas reformulem as idéias sobre o que é um cinema verdadeiramente experimental e revolucionário ou realmente novo e independente, passando a questionar os conceitos da geração anterior. Conforme o cineasta Carlos Reichenbach contou em entrevista: 349 NEVES, David. Cinema Novo uma farsa. Revista de Cultura Cinematográfica, ano 6, n.33, set-dez. 1962, p.34-35. Este depoimento de Miguel Torres foi dado a David Neves poucos meses antes de sua morte, em 31 de dezembro de 1962, num acidente de carro no interior da Paraíba quando procurava locações para o filme Os Fuzis. 350 COSTA, Flávio Moreira da. Notas para um cinema underground Filme Cultura, Rio de Janeiro, ano 3, n.16, set-out 1970, p.28-31. Segundo a tese defendida pelo autor, o underground americano não pôde encontrar um equivalente no Brasil no final dos anos 50 e início dos anos 60, de modo que o Cinema de Autor foi uma opção mais atraente. Entretanto, a partir de 1970, com o crescimento do cinema industrial, o underground voltava a ser uma saída viável, como anticorpos do organismo do cinema industrial que se estruturava. 234 O Cinema Marginal que nasceu foi feito por um certo número de pessoas que se filiavam, absolutamente, nem ao cinema oficial, nem ao Cinema Novo, que num dado momento se tornou cinema oficial, nem ao cinema comercial, um grupo de pessoas que resolveu fazer fitas independentemente, não filiadas a grupo nenhum (REICHENBACH; CANDEIAS, [1977], p.28). Em 1968, os rebeldes expoentes do nascente Cinema Marginal, no alto dos seus vinte e poucos anos não pretendiam seguir os passos dos integrantes do núcleo inicial do Cinema Novo, cineastas “balzaquianos”, premiados (inclusive no exterior) e com carreiras consolidadas. 351 Entretanto, outras questões contextuais devem ser levadas em conta na oposição feita entre a produção do Cinema Novo e o Cinema Marginal. Enquanto o Cinema Novo foi um movimento basicamente carioca, a partir da forte influência dos documentários paraibanos (especialmente Aruanda, de Linduarte Noronha) e dos filmes de ficção baianos (com os de Trigueirinho Neto, Roberto Pires e Glauber Rocha), a origem básica do cinema marginal está em São Paulo – terra de José Mojica Marins e Ozualdo Candeias e onde se desenvolveria a célebre Boca do Lixo. Da mesma maneira, enquanto diversos integrantes do Cinema Novo concretizaram suas formações em escolas estrangeiras, sobretudo européias (como o Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma, e o Institut des Hautes Études Cinématographiques – IDHEC, de Paris), ou em cursos ministrados por estrangeiros (como o do sueco Arne Sucksdorff, em 1962), a novíssima geração do cinema marginal foi formada, em grande parte, no Brasil, e, muitas vezes, tendo como professores os ainda jovens, mas já experientes cinema- novistas. Futuros cineastas como Carlos Reichenbach e João Callegaro estudaram na então recém criada Escola Superior de Cinema São Luiz, em São Paulo, tendo como professores Roberto Santos e Luiz Sérgio Person. Na Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, diversos cursos foram dados por quase todos os integrantes do Cinema Novo, como Ruy Guerra, Gustavo Dahl, Eduardo Escorel, Glauber Rocha, Luiz Carlos Barreto e outros. 352 351 Em 1968, cineastas como Andrea Tonacci, Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Carlos Reichenbach tinham todos entre 22 e 24 anos. Já Glauber Rocha, Cacá Diegues e Leon Hirszman beiravam ou tinham chegado aos trinta anos, enquanto Joaquim Pedro, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni e Nelson Pereira dos Santos já passavam dos 35 anos. 352 No campo do ensino de cinema, vale lembrar ainda da tentativa frustrada pela ditadura de criação do primeiro curso superior de cinema na Universidade de Brasília (UnB) em 1965. A crise na UnB devido ao golpe militar de 1964, marcada pelo afastamento de professores e expulsão de alunos, chegou ao ponto máximo no dia 18 de outubro de 1965, com a demissão de 15 professores considerados subversivos, seguido do pedido de demissão coletiva de 209 professores e instrutores. Dentre eles estavam alguns dos idealizares do curso de cinema, como Paulo Emílio Salles Gomes, Jean-Claude e Lucilla Bernardet, que criariam o curso de cinema da Universidade 235 Podemos afirmar, então, que a formação de boa parte dos cineastas marginais ocorreu no Brasil, alinhando a experiência teórica (muitos eram críticos de jornais e estudantes de cinema), a cinefilia (vivia-se a fase de ouro do movimento cineclubista e, no Rio de Janeiro, da chamada Geração Paissandu), além, sobretudo, da intensa atividade prática, mesmo que amadora. Nesse sentido, um dos principais pontos de ebulição foi o Festival JB/Mesbla de Cinema Amador, sobretudo a partir da segunda edição, em 1966. Neville D’Almeida, Andrea Tonacci, André Luis Oliveira e Rogério Sganzerla foram alguns dos premiados nesse evento. 353 Entretanto, esses mesmos aspectos – cinefilia, cineclubismo, experimentações em curtas- metragens – que caracterizaram o surgimento do cinema marginal, também marcaram, de forma semelhante, o nascimento do cinema novo, conforme foi dito no capítulo 2. Mas da mesma maneira que cineastas como Glauber Rocha, Paulo Cezar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman tinham desejado uma ruptura com o cinema brasileiro da época (a Vera Cruz e a Chanchada), anos mais tarde eles se tornaram os “pais” contra os quais a nova geração passou a se opor. O novo virava a tradição. Entretanto, se idéias novas (ou reformuladas) substituíam outras antigas (ou esquecidas), os mesmos cineastas também se renovaram e Glauber, afinal, chegou a chamar o Cinema Marginal de uma “velha novidade”. Afinal, como pensar filmes como Câncer, dirigido pelo maior representante do Cinema Novo, ou Fome de amor (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1968), do principal nome do cinema independente dos anos 50, e tantos outros que se aproximam de diversas formas dos filmes do jovens cineastas marginais? Por outro lado, esses filmes “marginais” de Glauber Rocha e de Nelson Pereira dos Santos acompanhavam produções mais caras realizadas simultaneamente (O dragão da maldade contra o santo guerreiro, 1969) ou logo em seguida (Como era gostoso o meu francês, 1971) e que alcançaram bons resultados de bilheteria, buscando e estabelecendo um diálogo mais intenso com o grande público. Dessa forma, talvez a constatação objetiva das dificuldades reais e práticas de fazer cinema no Brasil – na mesma época em que o Cinema Novo se distanciava em direção ao cinema industrial – tenha sido um dos motivos para o de São Paulo (USP) em 1967, além de Nelson Pereira dos Santos, que seria um dos responsáveis pelo curso de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1968. 353 Esses festivais também seriam o berço para uma outra geração (Bruno Barreto, Murilo Salles, Oswaldo Caldeira, Djalma Limongi Batista, Suzana Amaral, entre outros) que estrearia no longa-metragem na década de 70, já num contexto do cinema brasileiro bastante diferente. 236 fascínio e a aproximação (até mesmo pragmática) desses jovens novatos por figuras como Mojica, Candeias e os produtores, técnicos e artistas da Boca do Lixo, que faziam cinema “a qualquer custo” (geralmente a custo zero). 354 Embora o longa- metragem A margem (dir. Ozualdo Candeias, 1967) seja uma inspiração assumida para os cineastas marginais (não à toa, o título do filme é um argumento de defesa para o rótulo) – assim como a obra de José Mojica Marins e seu personagem Zé do Caixão (numa série iniciada em 1964 com À meia-noite levarei sua alma) –, trata-se de O bandido da luz vermelha (dir. Rogério Sganzerla, 1968) o filme considerado como deflagrador do movimento e o ponto de partida do que seria mais tarde o cinema marginal. O bandido da luz vermelha, que hoje desfruta do status de clássico incontestável do cinema brasileiro, é talvez o maior emblema da produção marginal – esse “cinema de orçamento mínimo, sem concessões, autoral, agressivo, apto a chocar pela textura da imagem, pela violência dos gestos e pelo grotesco das feições que por aí desfilavam” (XAVIER, 2001, p.20). Além do impacto que O bandido da luz vermelha causou, sobretudo em sua consagração no IV Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 1968, deve-se destacar o papel chave que seu diretor assumiu como intermediador entre a produção paulista da Boca do Lixo e os cineastas marginais no Rio de Janeiro, além de principal pivô da polêmica com os cinema- novistas. No lançamento de seu longa- metragem de estréia, Sganzerla declarou publicamente sua ruptura com os “deslumbrados do cinema novo rico” e com o movimento que ele denunciava como sendo “de elite, aristocrático, paternalizante e acadêmico”. 355 Embora o diálogo de Nenê Bandalho com O bandido da luz vermelha seja claro e evidente, as diferenças entre os dois filmes são grandes e podem talvez ser avaliadas não tanto sob o prisma de serem simplesmente dois “filmes marginais”, mas por espelharem temas e idéias afins que marcaram não só o Cinema Marginal, mas grande parte da produção cultural brasileira naquele momento. 354 Nesse aspecto pode ser apontada uma identificação com a associação de Braz Chediak com o diretor Aurélio Teixeira e o produtor Jece Valadão. 355 SGANZERLA, Rogério. Aos senhores críticos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 mai. 1969, Caderno B. 237 A idéia A história de Nenê Bandalho começou a se desenhar quando o jornalista e artista plástico Douglas Marques de Sá foi agraciado no XV Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em dezembro de 1966, com o prêmio de viagem para o exterior e uma bolsa de 500 dólares por dois anos. Após poucos meses na Europa, parou de receber o dinheiro devido à política de contenção de gastos implantada pelo Congresso Nacional: Claro, tive que me virar. Dei aulas de português, fiz desenhos, fui garçom. De repente, recebi tudo que me deviam, tudo de uma vez, mais de 5 mil dólares. Como já estava acostumado a viver sem o dinheiro ‘deles’, economizei. Foi com esse dinheiro que Nenê Bandalho foi produzido. Douglas, que já tinha produzido o filme Morte em três tempos (dir. Fernando Cony Campos, 1964), um dos raros exemplares de um policial em tons cinema-novista, usou parte do dinheiro para comprar uma câmera Reflex 16 mm com a qual viria a ser filmado Nenê Bandalho. Ao voltar para São Paulo em 1968, encontrou Emílio Fontana, que fora seu colega no Ginásio do Estado de São Paulo. Segundo o produtor: [Fontana] tinha uma escolinha de atores muito suburbana, as alunas eram empregadinhas, pequenas comerciárias. Cheguei com a idéia, ele topou na hora e começamos a programar o filme. Fomos procurar o Plínio Marcos, ele estava preso. Era 68, havia uma farta distribuição de cana na época, como todo mundo sabe. Não deu para conversar com o Plínio, mas a esposa dele tinha uma sinopse que ele havia submetido para a televisão e que tinha sido recusada porque era muito ‘violenta’. Imagine uma novela, um seriado, onde no primeiro ato, na primeira cena, um rapaz estrangula uma inocente comerciária. Não existia patrocinador que agüentasse, né?. 356 Conforme Douglas Marques de Sá, alguns dias depois deste primeiro contato, Plínio saiu da cadeia dizendo não ter uma história para cinema, mas mostrou o tal projeto de um seriado recusado pela TV Record e perguntou se eles queriam aproveitá- lo: eram duas folhas com a história de Nenê Bandalho. Emílio Fontana contou uma versão ligeiramente diferente. Douglas Marques de Sá teria lhe procurado com a idéia de filmar uma peça de teatro para lançar nos cinemas, mas ele 356 HENRIQUES, Manuel. Na tela Nenê Bandalho, o pai que embalou Pixote. Jornal de Brasília, Brasília, 10 fev. 1984. 238 o convenceu a mudar de idéia e sugeriu que procurassem Plínio Marcos em busca de uma história original para filmarem. Paulistano do bairro de Bela Vista, “nascido e criado no asfalto de São Paulo”, Fontana já conhecia intimamente o dramaturgo santista. Emílio Fontana era formado em direito e em interpretação e direção teatral, tendo cursado simultaneamente a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e a Escola de Artes Dramáticas. Antes mesmo de terminar a EAD, Fontana gravou seu nome na história do teatro brasileiro ao ser um dos fundadores da Cia. de Teatro de Arena de São Paulo, em 1953. Entretanto, como tinha pretensões de dirigir, desligou-se do grupo pouco tempo depois, uma vez que José Renato, já formado, seria o diretor das peças da companhia. 357 Mais tarde, inspirado pelo Théâtre National Populaire de Jean Villar, Fontana criou com amigos o Pequeno Teatro Popular, com o objetivo de levar teatro para a grande massa trabalhadora. Segundo seu depoimento: Voltei-me para um teatro dirigido exclusivamente para a classe operária. Eu e meu grupo visitamos principalmente, os Sindicatos e distribuíamos convites em enorme quantidade. Meio que se denominaria, mais tarde, “filipeta”. [...] Entre 55 e 56 chegamos a atingir um milhão de pessoas com a campanha. Colocamos no Teatro São Paulo, 10 mil pessoas em 10 dias. O crítico Hilton Viana, estampou no Diário da Noite, onde mantinha uma coluna, foto de milhares de pessoas em frente ao teatro. 358 Entretanto, devido a problemas de saúde de seu pai, Fontana abandonou o projeto e passou a Osman Rodrigues Cruz o know-how do Pequeno Teatro Popular (os contatos nos Sindicatos e o sistema de divulgação alternativo, baseado principalmente em filipetas, que ele teria inventado 359 ), dando origem, por volta de 1962, ao Teatro Popular do SESI. Com o propósito de manter uma atividade contínua que garantisse seu sustento e não ser obrigado a arranjar um trabalho paralelo ou um emprego fora da área teatral, Fontana 357 Em um de seus contos, o dramaturgo santista escreveu sobre o amigo “meio maluco”, “gente boa” e “inovador”. Segundo Plínio, Fontana era filho de um mambembeiro que “tinha uma barraca de espetáculos cheia de mágicas num mafuá em São Vicente, o Pavilhão do Doutor Fritz”. Fontana, com sete anos, ajudava seus pais recolhendo os ingressos do público. “O velho Fontana montou uma fábrica de material fotográfico e refletores para teatro – os primeiros no Brasil. Antes era panelão, gambiarra, luzes de ribalta. Os primeiros refletores-spots chamavam ‘fontaninha’. Muita gente conta histórias da arte cênica no Brasil. Mas pulam o pedaço dos ‘fontaninhas’. Por quê? Sei lá.” (MARCOS, 1996, p.117-118). Esses refletores, na época os únicos existentes e também chamados de Fontamac, foi o capital que Emílio Fontana usou para entrar como sócio do Teatro de Arena em 1953. 358 EMILIO Fontana uma participação na história do teatro. In: EMÍLIO FONTANA, TEATRO, CINEMA E TELEVISÃO: O MESTRE DA ARTE DE REPRESENTAR. São Paulo. Disponível em: <http://www.emiliofontana.com.br/emiliofontana.html>. Acesso em: 16 de abril de 2005. 359 Plínio contou que Fontana, nessa época, teria sido o inventor da filipeta – “um bônus que dá desconto nas entradas. Essa coisa salvou muitas e muitas companhias” (MARCOS, 1996, p.118). 239 passou a ministrar cursos para atores. Em 1958, ainda no começo de sua carreira de professor, Fontana fo i dar aulas de interpretação no Clube de Artes de Santos e entre seus alunos estava o jovem e então desconhecido Plínio Marcos. Ele conta, inclusive, que na época Plínio lhe deu um manuscrito da ainda inédita Barrela. 360 Na década de 60 os dois voltaram a se encontrar em São Paulo e mantiveram a amizade. Em 1965, Emílio Fontana dirigiu a peça Zoo Story, de Edward Albee, com Raul Cortez, no bar Ponto de Encontro, na Galeria Metrópole, centro de São Paulo. Graças a ele, no ano seguinte, Plínio Marcos pôde encenar pela primeira vez, no mesmo palco da Galeria Metrópole, Dois perdidos numa noite suja. Antes de Nenê Bandalho, Fontana era ligado eminentemente ao meio teatral e não tinha tido qualquer experiência em cinema além da atividade cineclubista e de um antigo interesse. Durante o lançamento do filme afirmo u que entendia um pouco de fotografia, mas que antes da montagem do seu filme, nunca tinha visto uma moviola na vida. 361 O próprio Plínio Marcos (1996, p.118) também contou sua versão do encontro entre os dois que teria ocorrido em 1968, no Teatro de Arena, no intervalo de uma apresentação da peça Dois perdidos numa noite suja: _Que é que manda, Fontana? _Eu tenho um amigo. Meio maluco. O Douglas Marques de Sá. Artista. Professor da Universidade de Brasília. Que quando vem em São Paulo vai tomar café comigo. Ele é cheio de idéias. Tem um dinheirinho. Acha que a gente pode fazer um filme em 16 milímetros e depois ampliar. Pode ser um caminho alternativo para o cinema brasileiro. _E daí? _Daí é que precisamos de um bom roteiro. _Roteiro é coisa de diretor. Até posso arrumar um argumento. Um conto para você adaptar. Tem grana nessa jogada? O bruto se encabulou. Enroscou antes de responder: _Vai ter. Claro que vai ter. Quando o filme estrear. Eu ri, fingindo que acreditava. Tantas vezes não ganhei nada. Por que não dar uma mão praquele cara de tanto valor? _Olha, tem um conto aí. Escrevi para ver se me bandeando para literatura escapo da praga da censura. Chama Nenê Bandalho. Vê lá com seu amigo maluco. Se servir, vão em frente. 362 360 Seu trabalho como professor resultou no Curso Emílio Fontana de interpretação, um dos mais antigos do país e continua funcionando até hoje (conferir o sítio eletrônico: http://www.emiliofontana.com.br ). 361 Junto com um grupo de amigos, por volta dos 17 anos, Fontana começou a freqüentar o Centro de Estudos Cinematográficos organizado pelo Museu de Arte de São Paulo um ano após sua inauguração, em 1947. Segundo Fontana, era um cineclube ministrado por um cinéfilo – “um italiano que tinha uma loja de cordas na região do mercado”, e freqüentado por críticos como Rubens Biáfora. A partir de 1949, o clube de cinema tornou-se um Seminário de Cinema, dirigido por Marcos Marguliès, sob o formato de um curso noturno. 362 Segundo o relato de Emílio Fontana, a história de Nenê Bandalho era realmente um conto que Plínio Marcos tinha escrito para o jornal Última Hora e não um projeto de seriado para a TV. Embora este texto não faça parte da sua coletânea de contos Nas quebradas do Mundaréu (1973), Fontana afirmou que Nenê Bandalho já tinha sido publicado numa edição anterior feita pelo próprio Plínio. Sabendo como o dramaturgo reciclava e reaproveitava seus textos, é possível que o conto de jornal e o projeto de seriado fossem, de fato, a mesma coisa. 240 Produção, exibição e censura. Nenê Bandalho foi filmado em exatos 45 dias entre março e maio de 1969, totalmente em locações (quase todas no centro de São Paulo) e num modesto esquema de produção, mas no qual tomaram parte cerca de quinhentas pessoas, incluindo mais de setenta alunos do Curso de Teatro Emílio Fontana. Segundo Douglas Marques de Sá, a equipe permanente era composta basicamente de quatro pessoas: ele próprio (produtor), Miro Reis (assistente), Emílio Fontana (diretor) e Pio Zamuner (fotógrafo). 363 Sendo o filme bancado com as economias de Douglas Marques de Sá e Emílio Fontana, somente três profissio nais foram pagos enquanto todos os demais trabalharam de graça, inclusive Jô Soares, convidado para uma participação especial. A única exceção no elenco foi Rodrigo Santiago, que já tinha trabalhado na novela Beto Rockfeller (assim como Plínio Marcos) e ga nhou “uma ninharia” para interpretar o marginal. O ator vinha de uma experiência traumática como protagonista da peça Roda viva, de Chico Buarque, suspensa quando um grupo composto de “vinte elementos bem vestidos, alguns deles com terno e gravata”, armados de cassetetes, revólveres e soco- inglês, invadiu o teatro Galpão, em São Paulo, pouco antes da meia- noite do dia 17 de julho de 1968, “espancando quem encontravam”. Segundo relatos da imprensa, após o fim do espetáculo, o bando começou um tumulto, agredindo os técnicos, funcionários e atores. Depois ainda “depredaram as poltronas, quebraram os ‘spots’, instrumentos musicais, e subiram aos camarins onde as atrizes estavam mudando de roupa. Espancaram- nas, tirando- lhes a roupa, e praticaram atos brutais de sevicia”. Os protagonistas da peça, Rodrigo Santiago e Marília Pêra, foram obrigados a, despidos, irem para a rua. Após a agressão à equipe de Roda viva, a classe teatral organizou uma assembléia que teria sido presidida exatamente por Emílio Fontana. 363 364 Carlos Ebert, câmera de O bandido da luz vermelha, foi o responsável pela fotografia adicional de Nenê Bandalho. 364 A primeira montagem de Roda viva, no Rio de Janeiro, no início de 1968, com direção de José Celso Martinez Corrêa e Marieta Severo, Heleno Pests e Antônio Pedro nos papéis principais, foi um grande sucesso. Os incidentes ocorreram na temporada da montagem paulista, com direção do mesmo Zé Celso, mas com Marília Pêra, Rodrigo Santiago e, novamente, Antônio Pedro no elenco principal. No momento do tumulto, após o susto inicial, os atores tentaram revidar e conseguiram deter dois dos agressores e os levaram para a delegacia. Apenas um deles, que portava documento de identidade do exército, permaneceu preso, enquanto o segundo, oficial da aeronáutica, foi liberado pelos policiais. Plínio Marcos, no dia seguinte ao episódio, foi provavelmente 241 O clima só esquentou ao longo daquele ano (pouco mais de três meses depois o elenco de Roda viva sofreu agressões ainda mais graves em Porto Alegre) chegando ao ponto máximo em dezembro de 1968, quando a ditadura militar no Brasil se tornou “escancarada”. Nenê Bandalho foi realizado nos primeiros meses após a decretação do AI-5, sendo filmado em 16 mm e tendo seu copião ampliado para 35 mm. Foi um dos primeiros longas- metragens brasileiros a ser feito nesta bitola e o primeiro filme de ficção paulista a utilizar esse processo. 365 Antes dele, pelo menos Julio Bressane já tinha usado o mesmo expediente com seus filmes realizados simultaneamente no Rio de Janeiro, em 1968 / 1969, O anjo nasceu e Matou a família e foi ao cinema (cf. BRESSANE, 2003). 366 O processo de finalização foi longo e complicado, não somente por questões técnicas, como também financeiras, prolongando-se por cerca de um ano e meio. O filme foi montado por Luiz Elias numa moviola emprestada por uma produtora de comerciais nos horários vagos. Além disso, Nenê Bandalho teve vários efeitos sonoros e fotográficos feito no laboratório e na edição de som ao longo do processo de pós produção. Foi justamente neste período, entre 1969 e 1970, que foram lançados algumas das primeiras produções marginais. A repercussão e até mesmo o sucesso popular de alguns desses filmes pode ter ajudado no processo de finalização do longa- metragem de Emílio Fontana. Nenê Bandalho recebeu seu Certificado de Censura em 16 de dezembro de 1970 (sem nenhuma exigência de corte) e foi exibido no Rio de Janeiro em pré-estréia na mostra Novos Rumos do Cinema Brasileiro na Cinemateca do MAM, em janeiro de 1971, junto com outros filmes então inéditos que viriam a se considerados também marginais como Bangue bangue (dir. Andrea Tonacci), Perdidos e Malditos (dir. Geraldo Veloso), A Família do Barulho (dir. Julio Bressane) e Orgia ou o homem que deu cria (dir. José Silvério Trevisan), além de A um dos primeiros a acusar publicamente os agressores de pertencerem ao grupo Comando de Caça aos Comunistas – conhecido como CCC (PLÍNIO diz quem invadiu. Última Hora, São Paulo, [19 jul. 1968]). Em outro jornal, Plínio também comentou sobre o ocorrido: “Esta terrível agressão é absurda, é ridícula. A cultura e a inteligência brasileira foram massacradas em seu templo. Temos que recear a formação de entidade do tipo de Ku Klux Kan. A classe teatral suspeita de que esses elementos são os mesmos que soltam bombas e matam soldados. São pessoas interessadas em tumultuar a nação. [...] todo o patriota teme e nós tememos pelos destinos de nossa Pátria. Sentimos que há realmente um grupo organizado, forçando a barra, para levar a Nação a um regime de terror e violência” (INVADIDO e depredado o teatro galpão. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jul. 1968). 365 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 mar. 1977. 366 Até então, o 16 mm era utilizado sobretudo na publicidade e no cinema documentário. As pioneiras tentativas de ampliação (blow up) da bitola e seu uso com som direto ocorreram com os filmes produzidos por Thomas Farkas, embora existissem dificuldades como a sincronização do gravador Nagra com as câmeras 16 mm e o uso de moviolas 16 mm sincrônicas. Ao traçar um “breve histórico do cinema -direto no Brasil” (In. COSTA, 1966), David Neves apontou para os problemas do uso desta bitola em 1966: “os laboratórios comerciais existentes na praça não revelam, não trabalham com película de 16mm reversível; no trabalho com material negativo é evidente que dão preferência ao 35 mm, desprezando consequentemente o 16 mm”. 242 guerra dos pelados (dir. Silvio Back), Um homem sem importância (dir. Alberto Salvá) e A possuída dos mil demônios (dir. Carlos Frederico). 367 O lançamento comercial do filme de Fontana, “beneficiado por uma reação favorável de público e crítica”, ocorreu dia 29 de março daquele ano no cinema Marabá, em São Paulo, e da mesma forma que as adaptações produzidas por Valadão, o prestígio do nome de Plínio Marcos nos créditos foi aproveitado na divulgação de Nenê Bandalho. 368 O filme parecia seguir uma trajetória favorável ao ser selecionado para a competição do VII Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, além de ter sido indicado para o Festival de Berlim 1971. 369 Naquele ano o Festival de Brasília despertou muita polêmica e discussão antes mesmo de seu início devido à substituição, a poucos dias da abertura do evento, dos filmes O país de São Saruê (longa), de Vladimir Carvalho, e sexta-feira da Paixão (curta), de Livu Spengler, por, respectivamente, Brasil bom de bola, de Carlos Niemeyer, e Museu de Arte de São Paulo, de Hector Babenco. A troca foi efetuada pelo Conselho Deliberativo da Fundação Cultural do Distrito Federal a partir da lista feita pelo Comitê de Seleção, embora este tenha se manifestado na imprensa isento de responsabilidade e contrários à substituição. Era o prenúncio de um festival conturbado. Enquanto O país de São Saruê era excluído da competição (para permanecer, a partir dali, oito anos proibido), entrava em seu lugar Brasil bom de bola, “que tem no final o presidente Médici recebendo e abraçando Pelé na tribuna de honra, em frente ao Palácio do Planalto, na volta do México” (SIMÕES, 1999, p.140). Mas o caso de censura mais brutal e surpreendente ocorreu após o início do Festival, para ser mais exato, no dia 8 de dezembro de 1971, véspera da premiação. Às 21hs estava 367 Depois de realizar duas mostras das novas tendências do cinema brasileiro, a Cinemateca do MAM organizou a partir de agosto de 1971 a mostra Revisão do Cinema Novo, com a projeção de mais de uma dezena de filmes acompanhados de debates com os realizadores. O próprio fato de se fazer um ciclo sobre o movimento já conferia uma possibilidade de que naquele momento essas obras fossem vistas com um certo distanciamento, ou, pelo menos, como um momento bem definido – e dessa maneira, totalmente sujeito a contestações e rupturas. 368 Nenê Bandalho foi anunciado como um filme feito a partir do primeiro argumento de Plínio Marcos escrito diretamente para o cinema e seu nome foi aproveitado tanto no trailer que começava com três significativas cartelas – “A estória mais explosiva do cinema brasileiro” / “Uma estória inédita de...” / “Plínio Marcos” (ocupando toda a tela), quanto em notícias da imprensa que anunciavam “um filme de Plínio Marcos”. Há indicações em jornais da época de que o filme também foi exibido em outras sete salas do interior paulista e duas de Curitiba no primeiro semestre de 1971, mas Fontana não soube confirmar. 369 Independentemente de ter sido indicado, não encontramos nenhuma evidência de que Nenê Bandalho tenha sido efetivamente exibido no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Na edição de 1971, o único filme brasileiro em competição foi Como era gostoso o meu francês (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1971), enquanto Na boca da noite (dir. Walter Lima Júnior, 1970) foi exibido no Fórum Internacional de Novos Cinemas. Segundo Emílio Fontana, o filme foi selecionado pelo crítico Alberto Shatowski para uma mostra paralela de cinema brasileiro. Essa hipótese é mais provável, dado o grande interesse da crítica e do público alemão pelo cinema brasileiro naquela época, embora não tenha sido possível confirmá -la. 243 programada a sessão aberta ao público de Nenê Bandalho, último longa em competição a ser exibido. Cerca de trinta minutos antes de sua projeção, os organizadores do festival e a platéia foram surpreendidos pela ocupação da sala de cinema lotada pela polícia para a apreensão da cópia. Nenê Bandalho, conforme noticiado pela imprensa, foi interditado pela censura sem que os organizadores do festival tivessem tomado conhecimento disso com antecedência. Em seu lugar foi exibido pela segunda vez, sob vaias, justamente, o ufanista Brasil Bom de bola. “O Festival entrou em parafuso, público e participantes irritados com a interferência [...] a saída encontrada fo i suspender o evento – o mais importante do calendário cultural da cidade – por três anos” (ibid.). A edição seguinte (a oitava) do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro só seria realizada em 1975. Fernando Adolfo, membro da organização do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro desde a primeira edição, falou sobre o caso em entrevista no qual afirmou ter sido este um dos fatos mais marcantes da história do Festival: Na hora de exibição de filmes, tinha duas cadeiras para o juizado de menores, duas para a censura e duas para a SBAT [Sociedade Brasileira de Autores], com placa de identificação. Os lanterninhas tomavam conta dessas cadeiras como cães de guarda. Eles iam observar os cortes determinados. Se não tivesse o corte, eles subiam na cabine e mandavam parar a exibição. O País de São Saruê, do Vladimir, já estava proibido. Foi o que ocorreu com Nenê Bandalho. A seleção foi feita no Cine Atlântida, e um dos selecionadores levantou problemas, e disse que o filme fazia a propaganda das drogas. Foi determinada a apreensão do filme no último dia do festival. E no lugar dele, todo mundo sabe, foi exibido o Brasil Bom de Bola. Foi uma vaia só no Cine Atlântida, onde acontecia o festival. Quando vi que a coisa ia engrossar, fui na cabine, peguei a lata, pus debaixo do braço e levei pra Fundação. Quando veio a ordem pra recolher, não acharam o filme, e foi uma confusão, tive que inventar uma desculpa. O filme foi despachado pro Rio de Janeiro e se salvou sem os cortes. Nesse mesmo ano, proibiram o festival. O público reagiu violentamente, quebrando cadeiras e gritando, no Cine Atlântida.370 O próprio Plínio Marcos (1996, p.19) também falou sobre o caso, sugerindo que o motivo da censura poderia ser uma perseguição pessoal da cens ura, que, caso confirmada, revelar-se- ia ainda mais brutal: Logo de saída o crítico Luís Eugênio de Almeida Salles veio avisar o Fontana. _Nós fomos proibidos de indicar seu filme para o prêmio. _Por quê? _Por causa do nome do Plínio Marcos. _Não pode ser. Podia. Podia tudo naquela porca censura. O ministro Buzaid mandou a polícia invadir o cinema e prender os rolos do filme. Fontana ainda tentou resistir: _Cadê o alvará de apreensão? 370 GOVERNO DO DISTRITO OFICIAL. Portal oficial do Governo do Distrito Oficial. Festival de Cinema. Entrevista com o coordenador do Festival de Cinema, Fernando Adolfo. Disponível em: <http://www.sc.df.gov.br/paginas/festival_de_cinema/festival_de_cinema_04.htm>. Acesso em: 12 abr. 2005. 244 _Sem alvará. Alvará é o caralho. O Buzaid mandou e fim. O que ficou realmente comprovado é que a interdição de Nenê Bandalho ocorreu devido à denúncia feita diretamente para o Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, por um membro do júri da premiação, Hugo Adler, desembargador e crítico de arte do Correio Braziliense, que era do conselho da Fundação. Segundo entrevista com Fontana: Ele chegou a pedir que o júri solicitasse a interdição do filme. Como não foi atendido, correu aos escalões superiores para derrubar a validade do certificado de Censura, impedir a exibição e conseguir a apreensão da cópia. [...] Tudo sem que fosse passado um documento. Nenhuma ordem por escrito. Passei a andar pelos corredores da Censura, para saber com quem falar, o que fazer. O filme tinha toda a documentação em ordem, mas a situação era indefinida. O que se sabia oficiosamente é que ele não poderia ser exibido enquanto perdurasse essa situação. Não consegui jamais ser recebido pelo chefe da Censura. Os assessores diziam que iam ver e meus amigos me aconselhavam a esquecer o filme e partir para outra. 371 Segundo relato de Plínio (1996, p.119), sempre generoso com os amigos, Nenê Bandalho foi apreendido “porque um cagüeta avisou para a polícia que os intelectuais do júri eram bons moços e obedientes; os críticos estavam controlados e não fariam graça. Porém (e sempre tem um porém), haveria um júri popular. E com certeza o Nenê Bandalho ganharia”. Conforme Fontana, durante o festival ele tinha sido avisado que a comissão julgadora queria premiar Nenê Bandalho: Era pra gente ganhar melhor filme e melhor ator [Rodrigo Santiago]. Isso já estava decidido. O prêmio era nosso. E quando o [Ministro Alfredo] Buzaid soube disso ele mandou uma ordem para se alterar a decisão dos jurados... Isso já estava resolvido. O Almeida Salles, que era o presidente do júri, disse que isso estava resolvido, mas veio a ordem e eles iam ver o que fazer. 372 Segundo o diretor, Nenê Bandalho era o principal favorito para o prêmio de melhor filme do júri popular. A programação do Festival tinha deixado a sua exibição por último para ser o ponto culminante. Aquela frustrada exibição deveria ter sido o coroamento do filme. Refletindo sobre a afirmação enfática de Fontana de que “quem ganhou o Festival de Brasília de 1971 foi o Nenê Bandalho”, é necessário avaliar o histórico do festival e daquela edição. O Festival de Brasília era realmente conhecido por premiar filmes de caráter experimental, distantes do esquema industrial, além de valorizar obras de estreantes. Como Fontana era um desconhecido no meio cinematográfico, a seleção de seu filme provocou 371 ALENCAR, Miriam. Nenê Bandalho: o anti-herói que passou cinco anos nos corredores da censura consegue chegar às telas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 mar. 1977. 372 Entrevista concedida ao autor, São Paulo, 4 out. 2005. 245 muita projeção e é realmente possível que Nenê Bandalho – encarado como uma novidade de um novato – fosse um dos favoritos ao prêmio. 373 Em relação à censura brutal ao filme, trata-se de uma tarefa difícil apontar sua razão exata, até porque a censura muitas vezes parecia agir sem razão alguma. Segundo Fontana, houve vários motivos: Em primeiro lugar, o nome incomodava. É meio absurdo, mas um filme chamado Nenê Bandalho... Onde já se viu? Segundo, tem a cena da maconha. Terceiro, é evidentemente uma crítica ao regime estabelecido. A agressividade do policial, a maneira ridícula como eles são vistos... E a figura do Plínio que era um contestador na época. 374 É verdade que Plínio Marcos sofria uma perseguição implacável naqueles anos – em 1971, simplesmente todas as suas peças estavam proibidas – inclusive devido às inimizades que ele tinha cultivado nos quadros da censura. Entretanto, as adaptações de Chediak já tinham sido exibidas em circuito comercial no ano anterior e naquele mesmo ano. Mas o produtor Jece Valadão tinha muito mais influência, circulação e até afinidade com as esferas do poder público que os realizadores de Nenê Bandalho, e isso influenciava muito na solução dos problemas com a censura federal. A questão da presença explícita do uso de drogas no filme – o personagem é visto repetidamente e em detalhes fumando um cigarro de maconha – talvez seja um dos principais motivos da interdição de Nenê Bandalho. Anteriormente outros filmes também mostraram com liberdade o uso de maconha, como Os cafajestes (1962) – no qual “pela primeira vez o cinema mostrou como se enrola um baseado” (VALADÃO, 1996, p.86) – ou, ainda, Meteorango Kid, o herói intergalático (dir. André Luiz Oliveira, 1969). 373 375 Entretanto, além Os principais premiados do Festival de Brasília de 1971 foram A casa assassinada, de Paulo Cezar Saraceni (melhor filme, diretor, ator, música e montagem) e Como era gostoso o meu francês (melhor filme júri popular). Até aquela edição, o Festival de Brasília tinha premiado como melhor filme A hora e a vez de Augusto Matraga (1965, dir. Roberto Santos), Todas as mulheres do mundo (1966, dir. Domingos de Oliveira), Proezas de Satanás na vila do Leva-e-Traz (1967, dir. Paulo Gil Soares), O bandido da luz vermelha (1968, dir. Rogério Sganzerla), Memórias de Helena (1969, dir. David Neves) e Os deuses e os mortos (1970, dir. Ruy Guerra). Dessas seis premiações, apenas Roberto Santos e Ruy Guerra não eram estreantes. Além disso, em diversas ocasiões filmes de diretores mais “famosos” foram preteridos em favor de novatos, como aconteceu com Macunaíma, em 1969. De certo modo, esse perfil sobrevive até hoje, sobretudo em comparação com outros festivais nacionais, como o de Gramado, bastando notar as premiações recentes de filmes de estreantes como Baile perfumado (em 1996), Anahy de las missiones (em 1997), Bicho de sete cabeças (em 2000), Lavoura arcaica e Samba Riachão (em 2001) e Amarelo manga (em 2002), ou de eternos rebeldes como Julio Bressane (Miramar em 1997 e Filme de amor em 2003). 374 Entrevista concedida ao autor, São Paulo, 4 out. 2005. 375 Meteorango Kid foi exibido e premiado pelo júri popular no 5º Festival de Brasília, em 1969, mas, posteriormente teve muitas dificuldades de ser exibido comercialmente em diversas cidades do país. No Rio de 246 das restrições terem se tornado mais rígidas após o AI-5, alcançando seu máximo justamente em 1970-1971, a promulgação da repressiva lei anti-tóxico poucos meses antes do Festival de Brasília provavelmente favoreceu o clima de perseguição. 376 Além disso, a presença dos policias e a pioneira denúncia do esquadrão da morte também eram questões que chamavam a atenção da censura. Por último, ainda havia a suspeita de que o membro do júri Hugo Adler queria simplesmente “aparecer bem” para o Ministro da Justiça. Comprovando a conhecida frase do político mineiro Pedro Aleixo, vicepresidente do General Costa e Silva, a maior ameaça numa ditadura não era o ditador, mas o guarda da esquina. O filme . A cartela de abertura e a música já indicam a ligação do filme com o cinema de gênero, especialmente o western e o policial. O nome do filme (e do bandido) – Nenê Bandalho – surge ocupando toda a tela, com as letras como que escritas à tinta, semelhante a um típico cartaz de “procurado” do velho oeste, incluindo as bordas rasgadas, ao som de um “canto de queda de um índio Cheyenne”. No longo plano inicial, fixo e sem cortes, uma mulher caminha sozinha (na direção da câmera) numa rua deserta de um aparentemente tranqüilo bairro residencial. De repente, quando ela já está mais próxima, surge um homem (Rodrigo Santiago) que a ataca e estrangula. Um vigia noturno dobra a esquina correndo e soando o apito em socorro da vítima, Janeiro, além de uma exibição na Cinemateca do MAM em 1971, o filme só entraria em cartaz em 1972 e numa única sala, a do Cinema 1. 376 Na Lei nº 5.726, de 29 de outubro de 1971, que dispunha sobre “medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”, o artigo 4º apresentava como uma das medidas preventivas “a execução de planos e programas nacionais e regionais de esclarecimento popular, especialmente junto à juventude, a respeito dos malefícios ocasionados pelo uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, bem como da eliminação de suas causas”. Durante a ditadura militar, a questão das drogas continuou sendo um dos principais alvos da censura federal. No filme Uma nega chamada Teresa (dir. Fernando Cony Campos, 1973), por exemplo, a censura ordenou o corte da “cena onde aparece um hippie fumando, possivelmente entorpecente, embora de forma dissimulada”. Quase dez anos depois, O Sonho não acabou (dir. Sérgio Rezende, 1982) foi proibido para menores de 18 anos e recebeu diversos cortes, principalmente das “cenas de consumo de substâncias intorpecentes” (sic), no caso, maconha e cocaína. Diante da severa classificação etária para um filme que se pretendia direcionado aos jovens, os produtores insistiram numa reavaliação e conseguiram com que a classificação baixasse para 16 anos, embora ainda com os cortes. 247 mas o assassino saca um revólver e atira no rosto do guarda, que cai cobrindo a face coberta de sangue abundante. A iluminação de contrastes lembra tanto o filme noir, quanto os filmes B, especialmente pela precariedade debochada, caracterizada pelo close up do rosto da vítima de olhos esbugalhados, assim como pelo tropeço desastrado do bandido quando tentava fugir. Os policiais examinam as vítimas e entrando na viatura falam com o rádio. Imediatamente começa a narração de uma comunicação da polícia para as viaturas, assim como a música de orquestração grandiloqüente. A primeira descrição do bandido – tanto seu nome (“o perigoso bandido Nenê Bandalho”) e histórico (“autor de vários homicídios e assaltos à mão armada”), quanto sua aparência em detalhes (“indivíduo de cor branca, estatura mediana, magro, cabelos compridos, óculos escuros, jaqueta de nylon de cor cinza, camisa listrada”) – é feita, justamente, pelo alerta radiofônico do plantão para as patrulhas que acompanha as diversas imagens da perseguição policial, emolduradas pela música. Numa delegacia de polícia, dois rapazes estão sentados, algemados e com a cabeça baixa. Eles são brancos, jovens, com cabelos pretos e um deles usa justamente uma camisa listrada, ajustando-se descrição do bandido feito pela polícia. O delegado, numa mesa ao lado, vira-se para a câmera e começa a falar diretamente para o espectador como num telejornal. Inicialmente ouve-se somente o som ininterrupto de sirenes, depois entrando na banda sonora um comunicado aparentemente jornalístico em inglês. O estranhamento dura alguns instantes até que a trilha sobrepõe à voz em inglês, uma dublagem em português com um pronunciado de tom oficial anunciando que “a polícia está atrás do bandido” e outros clichês. Diversas imagens da caçada dos policias são articuladas com o som das sirenes e dos automóveis. 377 Em seguida, um silêncio súbito acompanha planos detalhes da orelha e dos óculos escuros do bandido (seus sentidos estão atentos?). Nenê rouba um carro estacionado na rua. Através da montagem fragmentada, temos a impressão de uma perseguição por diversas viaturas. O marginal abandona o carro na beira de uma estrada e embrenha-se na mata fechada, com os policiais em seu rastro, enquanto na trilha sonora começa uma música de filme de aventura de tom épico. Na montagem paralela do perseguido e seus perseguidores são 377 Apenas um plano de somente uma viatura saindo da delegacia foi filmado, mas que copiado várias vezes e montado em looping, em seqüência, dão a impressão de uma verdadeira frota de carros sendo acionada. 248 alternados planos cada vez menores, numa radicalidade que chega próximo ao limite do fotograma, dando efeito quase estroboscópico. 378 O clima de perseguição e a seriedade são quebrados (e a música interrompida) quando o bandido, chegando num descampado e aparentemente livre dos policiais, vai sentar-se no chão para descansar e se levanta assustado com os cacarejos de uma galinha que estava no lugar. Nenê relaxa e abre a camisa, revelando um par de revólveres e dois cintos de balas presos em sua cintura, como um verdadeiro cowboy. Um longo plano mostra, em close-up, o bandido limpando e recarregado cuidadosamente as armas. Terminada a tarefa, Nenê fecha novamente os botões da camisa, como que pronto para o confronto. Mas o plano prossegue mostrando Nenê, mais relaxado, pegando uma caixa de fósforos e acendendo e fumando um “baseado”. A analogia arma e maconha, que sugere uma ligação entre marginalidade e contracultura (ambas figuras de revolta contra o sistema estabelecido), fica clara pela descrição das duas ações, ligadas pela quase ausência de cortes e enquadradas com o mesmo fascínio e detalhamento aparentemente pedagógico e fetichista. Enquanto sente o barato do baseado, sons oníricos e vozes (“Mãe? Mãe?”) já antecipam as lembranças que a maconha traz para Nenê, posteriormente visualizadas quando o bandido deita e fecha os olhos: um garoto (Nenê quando criança) está sentado no chão de um barraco que a câmera percorre descritivamente. A mãe responde ao chamado do garoto: “Não enche o saco!”. Este e os demais flashbacks do filme se distinguem imediatamente das demais seqüências pela diferença de textura da imagem, hiper contrastada e praticamente sem tonalidades entre o preto e o branco. 379 Em uma favela, três vagabundos sentados na calçada de um bairro pobre. Quase que animalizados, em meio a risos, arrotos e grunhidos, um, aparentemente, tenta bolinar o outro, que se defende, embora rindo. Como “três patetas do mal”, segundo crítica recente de Sergio Alpendre, “suas risadas antecipam, curiosamente, as 378 Embora hoje essa edição “hiper picotada” seja comum, sobretudo nos filmes de ação hollywoodianos, para a época, aquilo era uma grande (e trabalhosa) ousadia – ainda mais lembrando que os filmes eram montados manualmente em moviolas. 379 Esse alto contraste foi alcançado através da feitura de cópias sucessivas da película. Tendo como diretor de fotografia um “fotógrafo clássico” como o italiano Pio Zamuner, encarregado da fotografia e, posteriormente, da direção de diversos filmes de Mazzaropi, os efeitos fotográficos de Nenê Bandalho foram conseguidos quase todos em laboratório, na finalização do filme. 249 de Beavis and Butthead”. 380 Uma “negra gostosa”, de mini-saia, passa sensualmente em frente aos três que, em silêncio absoluto, acompanham- na, com o olhar, dobrar a esquina. Os vagabundos se levantam para segui- la e entram no barraco de Nenê por engano. Sua mãe (Maria do Carmo Bauer) – uma senhora sóbria, vestida de preto – os recebe rispidamente: “O que é seus vagabundos? Saí, saí! O que vocês querem aqui?”. Um deles responde: “Onde está a menina, coroa escamosa?”, e os três se aproximam ameaçadoramente. O garoto se abraça à mãe, mas é jogado longe quando os vagabundos atacam a dona de casa, derrubando móveis, novamente rindo e arrotando. A montagem fragmentada destaca grotescamente detalhes do rosto dos algozes: o olho de vidro de um, os dentes tortos do outro. Os sons guturais acentuam o clima de filme de terror que se instala. A agressão é direcionada também para o espectador, que assume o ponto de vista da vítima. Em determinado momento a câmera se aproxima da boca aberta de um deles que praticamente nos “engole”. Após a deixa de um deles – “só tem tu, vai tu mesmo” 381 – os três partem para o estupro da mãe de Nenê. O som incômodo e ininterrupto que acompanhava as imagens fragmentadas, de repente some. Planos de detalhes do rosto da mãe e, principalmente, de Nenê-criança gritando, sentado num canto do barraco, surgem silenciosas. Quando o grito de “Não!” da mãe é ouvido subitamente, finalmente em sincronia com a imagem, Nenê Bandalho acorda, de volta ao presente, refeito das lembranças e assustado. Logo em seguida o bandido fica tenso e em expectativa, prestando atenção aos barulhos a sua volta que se limitam ao som de pássaros. De repente escuta a voz de um policial que se aproxima e reage com um tiro, dando início a um intenso tiroteio. O bandido parece se multiplicar, atirando para todas as direções com um número ilimitado de balas (sem recarregar a arma nenhuma vez). Os policiais atingidos voam e rodopiam antes de cair no chão com num western spaghetti. Ao perceber que está cercado, o bandido foge e pula o muro de uma casa. No quintal, esconde-se dentro de um latão de lixo, colocando uma caixa de papelão na cabeça. 380 ALPENDRE, Sérgio. Nenê Bandalho e Deseperato. Contracampo, Rio de Janeiro: Associação Cultural Contracampo, n.30, 2001. Disponível em: <http://www.contracampo.he.com.br/30/bandalhodesesperato.htm>. Acesso em: 12 abr. 2005. 381 Em diálogos como este, percebemos claramente o toque de Plínio Marcos no uso constante e reiterado de provérbios nas situações menos prováveis. Se não tem tu, vai tu mesmo é, inclusive, o título de um divertido conto seu sobre um ladrão de galinhas que passa a pintar as aves roubadas de preto devido ao aumento no volume de encomendas com a chegada de um novo pai-de-santo à região (MARCOS, 2004, p.30) 250 A ironia está presente aqui, seja no pastiche ao cinema de gênero, tanto o policial quanto o faroeste (o bandido não é atingido por nenhum tiro, as balas não acabam), mas também, assim como O bandido da luz vermelha, no retrato dos policiais como idiotas. No filme de Sganzerla, se o bandido é um boçal, mesmo assim a polícia não o captura – e quando o faz, após seu suicídio, o delegado ainda morre eletrocutado estupidamente. Na seqüência em que, pela primeira vez, a casa que Luz assaltava é cercada por viaturas, ele escapa facilmente pela janela da frente enquanto os tiras dão a volta pelo quintal para prendê- lo. A semelhança com Nenê Bandalho fica patente na cena em que seus perseguidores pulam o muro com dificuldade (um gordo precisa ser ajudado pelos colegas) e não encontram Nenê escondido dentro da lixeira na frente deles. Assim que os policiais vão embora procurá- lo em outro lugar, o bandido escapa subindo no alto de uma casa. Nenê caminha solitário pelas telhas das casas enquanto embaixo, a rua já está cercada de policias e curiosos. A ausência de vozes (apesar da multidão conversando) e o barulho insistente do vento, depois substituído pela música de faroeste, proporcionam aos vastos telhados nos quais o bandido anda, corre e escala incansavelmente, uma aparência de Monument Valley ou das pradarias do oeste americano, sobretudo nos planos gerais em que o personagem surge no horizonte. Quando pisa por engano na janela de um banheiro e quase escorrega, sendo visto por uma mulher que grita assustada, uma saraivada de tiros vem de baixo e os curiosos comentam: “a polícia está tentando pegar o bandido no telhado!”. Cabe aqui reafirmar as relações entre o bandido da luz vermelha e nenê bandalho – o bandido do telhado, que passam, sobretudo, pela ligação com a imprensa sensacionalista, ou melhor, uma mídia sensacionalista, que incluía ainda as emissoras de rádio e televisão. No seu longa-metragem de estréia, Sganzerla inspirou-se no bandido João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, preso em agosto de 1967 e condenado a 351 anos, 9 meses e 3 dias. Por sua vez, Acácio era uma “cópia” de Caryl Chesmann, um bandido americano surgido nos anos cinqüenta, também jovem, bonito, loiro e charmoso, que sempre usava uma lanterna vermelha em seus assaltos Após publicar livros no corredor da morte e adiar durante anos sua execução, Chesmann foi eletrocutado na cadeira elétrica em 1961. 382 382 Um de seus livros autobiográficos inspirou o filme Cell 2455 Death Row (dir. Fred F. Sears, 1955). No Brasil o longa-metragem recebeu o título de O corredor da morte e chegou a ser proibido pela censura na época. 251 Já para criar Nenê Bandalho, Plínio Marcos se inspirou num “personagem que freqüentou 15 linhas de uma página policial paulista no final da década de 60”. 383 Plínio contou que não aproveitou a história do bandido de verdade – que nem tinha matado mulheres, seu negócio era roubar carteiras – mas somente seu no me: “Nenê Bandalho! Já nasceu todo coberto de vícios”. 384 Como era típico da obra pliniana, em diversos textos seus sobre sambistas anônimos, jogadores de futebol de várzea ou velhos palhaços de circo, todos marginais em algum sentido, a inspiração veio de uma figura folclórica das ruas e desconhecida do grande público. Ou seja, se Nenê era, acima de tudo, um bandido “pé de chinelo”, Sganzerla baseou-se num personagem bem mais famoso, uma autêntica versão terceiro- mundista de um produto do lixo americano. Era a verdadeira estética do lixo e nada poderia também ser mais tropicalista. Provavelmente, além do inegável talento do diretor, esse foi também uma das razões para o sucesso de público de O bandido da luz vermelha. Em Nenê Bandalho, o bandido refugia-se num canto para descansar e volta a acender um baseado. Já “chapado”, ele olha para o lado e vê, como numa alucinação, uma mulher (sua ex-namorada). No plano seguinte, os dois estão de pé, de mãos dadas, rindo e atirando na direção da câmera, numa imagem semelhante à consagrada na representação do casal de bandidos americanos Bonnie e Clyde no filme então recente e bem-sucedido Bonnie e Clyde: uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, EUA, dir. Arthur Penn, 1967). Novamente através do recurso convencional da perda gradual de foco da imagem, é introduzido em seguida o segundo flashback, com um plano de uma roda gigante. Num parque de diversões, Nenê se diverte com sua namorada, Ana (Leda Villela), e amigos numa barraca de tiro a alvo, onde ele ganha o prêmio máximo ao demonstrar sua boa mira. Os dois afastam-se dos demais para conversarem a sós. Nenê diz que eles têm que resolver alguma coisa sobre o relacionamento. Ele afirma que é “gamado” nela e que quer casar, mas ela recua, afirmando que “gama não enche barriga”. Revelando claramente o estilo de Plínio Marcos, os personagens chegam a conclusão que casamento precisa de grana. Ana tenta se justificar: “eu queria tanta coisa que nunca tive. Eu quero escapar dessa vida. Não me 383 HENRIQUES, Manuel. Na tela Nenê Bandalho, o pai que embalou Pixote. Jornal de Brasília, Brasília, 10 fev. 1984. 384 Plínio contou ainda que o diretor e o produtor não tinham gostado do título do conto: “Levou dois anos para reconhecerem que Nenê Bandalho é um bom nome”. Douglas Marques e Emílio Fontana tinham pensado em trocar o título e até fizeram enquetes entre os amigos, mas Plínio lutou pelo nome e acabou convencendo os dois. (FONTANA, Emílio; MARCOS, Plínio. [s.t.]. Revista Bondinho, São Paulo, 2 a 19 abr. 1971, p.28. Mesa redonda conduzida por Roberto Freire e Humberto Pereira.) 252 leve à mal, Nenê, mas eu cansei dessa miséria”. Magoado, o namorado pergunta diretamente: “Se eu tivesse (grana), tu casava comigo?”, mas Ana tenta se esquivar de responder. Diante do desconsolo de Nenê, a moça afirma seu amor e faz uma proposta: “Eu sou gamada em você. Se você quiser uma prova que eu gosto de você, eu me entrego a você, mas casar não...”. Todos esses diálogos ocorrem em meio a beijos, abraços e lágrimas, retratados em planos com enquadramentos diversos, sem sincronia entre as imagens e as falas (dubladas, como em todo o filme), alternando constantemente silenciosos close-ups dos rostos imóveis do casal e planos detalhes dos olhos e bocas, com os diversos diálogos entre eles. Após a proposta de Ana, Nenê dá um tapa em sua cara e sai correndo pela rua, sozinho, em desespero e gritando seu nome. 385 O flashback termina novamente com uma imagem de uma roda gigante. Mais uma vez é o grito de uma lembrança traumática que acorda Nenê de seu transe no presente, momentos antes de iniciar um tiroteio com os policiais em seu encalço. São inseridas imagens de outros filmes, com planos de bombas e explosões. O cerco aumenta e ao som de uma música épica, chegam dois camburões com um grupo de policias armados de metralhadoras, além de um caminhão com a tropa de choque que cerca e isola a área dos curiosos. De forma próxima a um western, o reforço policial parece chegar como a célebre “sétima cavalaria” americana, embora a semelhança seja com um famoso “esquadrão” tupiniquim. Ao mesmo tempo, o circo em torno do bandido só aumenta. Curiosos observam a perseguição com rádios de pilha, binóculos e comendo pipoca. O deboche surge novamente com cenas de inocentes sendo alvejados por balas perdidas (um homem é atingido na bunda e outro é baleado enquanto sua esposa continua falando sem perceber) ou com um policial se escondendo num banheiro já ocupado. Um vendedor já oferece fotografias do bandido no meio da multidão e um repórter (Jô Soares) entrevista um grupo de curiosos satirizando os programas sensacionalistas. Em seguida entra em cena uma banda no estilo jovem guarda chamada The Gonk´s, que apresenta “a música que compusemos para Nenê Bandalho, o 385 No Certificado de Censura de Nenê Bandalho estão anotados as seguintes determinações de cortes: cortar no fim da segunda parte na trilha sonora, os diálogos: “se você quiser, eu dou para você”; “puta...puta”. Da mesma forma que Chediak disse ter feito em A navalha na carne, as palavras que substituíram as cortadas (“eu me entrego a você” no lugar de “eu dou para você”) foram redubladas com um volume diferente, sendo claramente perceptível para o espectador esse “remendo”. 253 bandido no telhado: Sangue, coração e balas”. Indiferentes ao tiroteio, vários jovens dançam ié-ié- ié freneticamente. 386 Um policial à paisana passa pelo meio do “show” e entra num camburão, onde já estão três de seus colegas. Ele comenta com os outros: “Vamos acabar com essa palhaçada. Um simples pé de chinelo dando um trabalho danado. Estão gozando com as nossas fuças. Precisamos dar uma lição no bandido e no povo”. “Mas como?”, pergunta outro. Um terceiro, com o rosto impassível e voz monocórdica, anuncia: “Tive uma idéia sensaciona l! Vamos jogar uma bomba no desgraçado” O primeiro concorda entusiasmado, enquanto outro pondera em relação às casas da vizinhança. Apesar de um policial discordar da preocupação (“Que se danem!”), a proposta é colocada em votação e acaba sendo aprovada por unanimidade. Enquanto a debochada, interminável e estúpida discussão prossegue (em seguida, sobre quem irá colocar a bomba), os tiros permanecem sendo ouvidos o tempo todo, às vezes tão alto que se sobrepõem aos diálogos. Ao mesmo tempo em que os quatro discutem, o tiroteio segue vitimando policias e inocentes. Em contraste com o incômodo e quase ensurdecedor barulho de tiros, a cena seguinte, numa festa da alta sociedade, é embalada por uma contínua e suave música ambiente. A câmera mostra em planos longos, com movimentos lentos e sem cortes bruscos, diversos casais e situações do evento social. Um homem aos beijos e risos com uma bela mulher (Isabela Giorgetti) começa a passar mal e vomita no chão, atrás do sofá (com riqueza de sons), quase que olhando para a câmera. Enquanto isso, um outro casal se beija, mas não vemos seus rostos, apenas a mão dele subindo da cintura ao seio da moça. Um casal mais velho boceja, come e bebe sem parar. Um homem careca (Sandro Polônio) está flertando com uma jovem e pergunta a ela de seu marido – “Ele está ali”, ela responde – enquanto ele diz: 386 A jovem guarda foi um movimento musical de grande sucesso popular cujo auge coincidiu com o programa Jovem Guarda, apresentado na TV Record a partir de 1965. Apesar de criticado como alienado e colonizado, as estrelas e as canções da jovem guarda estiveram presentes em diversos filmes brasileiros ao longo de toda a década de 60, inclusive em Garota de Ipanema, que não deixou de “apelar” para a fama de Ronnie Von. O mega-sucesso Roberto Carlos em ritmo de aventura (dir. Roberto Faria, 1968) marcou época no cinema brasileiro num momento em que o “Rei Roberto” já direcionava sua carreira para a canção romântica. Em Nenê Bandalho a jovem guarda ainda carregava o estigma pré-tropicalista da alienação americanizada em sua vinculação à indústria cultural, aparecendo como um dos elementos do circo criado pela mídia para explorar o drama do bandido. A ligação da jovem guarda com grupos estrangeiros foi marcante e assim como muitos de seus hits eram versões nacionais de músicas americanas, na banda do filme, como em muitas outras da jovem guarda – como The Cleans, The Pops, The Clevers, The Sunshines, The Youngsters – a influência era notada até em seus nomes. The Gonks nos remete claramente ao famoso grupo americano The Monkeys, por exemplo. Esse aspecto é ainda mais presente numa cena seguinte do filme em que se ouve uma música de um dos conjuntos mais bem sucedidos da jovem guarda, The Fevers. 254 “minha mulher está ali”. O casal sai discretamente até o jardim onde começam a se abraçar e ele a beijar demoradamente o pescoço e o braço da mulher como um verdadeiro Nosferatu. Na sala, uma outra jovem puxa conversa com um homem mais velho (Nagib Elchmer). Não ouvimos as frases, somente as risadas estridentes da moça e música ambiente. Ele, aparentemente o anfitrião da festa, é interrompido por um empregado (Ugo Giorgetti) quando toca o telefone. Após atender, anuncia aos presentes que terá que sair, pois “o dever o chama”. Num tom de discurso oficialesco, olhando diretamente para a câmera, afirma que deve responder ao chamado da sociedade para acabar com Nenê Bandalho – “esse assassino, estripador, vagabundo, ladrão, crápula” – e “defender nossas mais sagradas tradições” (frase muito em voga na época por defensores do regime e organizações conservadoras). Sua fala eloqüente é saudada por palmas e música operística. No jardim, os convidados se reúnem para falar da novidade com tremenda futilidade. “Quanta emoção!”, “Adoro aventuras!”, “vamos todos ajudar a prender Nenê Bandalho” dizem as mulheres. A preocupação de um dos convidados – “Isso é uma temeridade! Esse Nenê Bandalho atira para matar” – não tira o entusiasmo de outra: “Oba! Vai ser super bacana!”. A madame entediada dá a deixa para todos irem embora – “Vamos logo que a festa está monótona”. Os convidados não esquecem de pegar os pratos de canapés, os copos e garrafas antes de saírem numa caravana de limusines aos gritos e urros, bêbados já à luz do sol. As redondezas do telhado onde o bandido se escondeu virou um circo. Como num alegre e descontraído vídeo-clipe ao som de Yellow River (música de J. Christ e grande sucesso do grupo da jovem guarda The Fevers), vemos diversas pessoas saltarem de dentro de um ônibus para se juntarem à multidão de jovens, velhos e crianças, em meio a vendedores de balão, pipoqueiros, sorveteiros, barracas de churrasquinho e curiosos trepados na s árvores. A banda The Gonk´s continua tocando no próprio local onde o bandido está cercado pela polícia. O anfitrião da festa – uma espécie de secretário de segurança – chega ao local e é recebido com continência pelos policiais militares. Um cordão de isolamento é formado por soldados da tropa de choque, afastando todos de perto, com exceção dos ricaços que, sentados em cima da limusine, podem observar de lugar privilegiado o espetáculo que virou o cerco ao bandido. De repente, um dos grã- finos vê, no alto da casa, Nenê Bandalho, que atira em sua direção. Mas as balas do bandido, inexplicavelmente, caem no chão, inofensivas. Satisfeito por não ser atingido, o figurão diz “Não falei que não tinha perigo”. Esse tom absurdo e quase 255 surrealista remonta claramente à assumida influência de Luis Buñuel, incluindo suas críticas agudas à burguesia decadente em filmes como O anjo exterminador (El àngel exterminador, México, 1962). Se Plínio Marcos afirmou que seu conto era uma história em que pegou “todo o absurdo da realidade do submundo brasileiro”, Fontana cinematograficamente este absurdo, mesmo que fugindo do realismo. procurou traduzir 387 No telhado, o bandido tenta acender um outro baseado, mas acabaram seus fósforos. O som da caixa vazia sendo insistentemente amassada e seu rosto sofrendo anunciam a passagem para outro flashback. Nenê Bandalho, observa, como uma câmera oculta, Ana, sua ex-namorada, saindo de uma loja numa rua movimentada e entrando num carro, com um homem mais velho (aparentemente seu patrão), abrindo a porta para ela. “Até segunda, Senhor Martins”, Ana agradece. Como num passe de mágica, o homem, agora vestido de smoking, entra junto no carro com se estivesse casando. Um plano de uma torcida de futebol explodindo em berros após um gol e Nenê correndo e gritando pelo nome da ex-namorada é, de novo, a deixa para o bandido acordar no presente, novamente em perigo. Nenê está no telhado e um policial espreita atrás dele. Embaixo, curiosos apostam quem irá morrer. O suspense é reforçado pela música orquestral até que Nenê acerta o policial e mais uma vez é seguido por um plano de torcida de futebol aos berros. Na rua, o vencedor da aposta recolhe o dinheiro dos outros. Seguem-se planos retirados de filmes B ou cine-jornais – aviões de guerra, tanques, cavalaria, helicópteros – num processo típico do “cinema do lixo”, aproveitando, literalmente, restos de outros filmes. Em seguida, o tal “secretário de segurança” fala para dezenas de microfones repetindo seu discurso: “não serão poupados esforços...”. Toda a cidade se mobiliza na caçada. Enquanto isso, Nenê, ainda no telhado, vê uma mulher na janela do prédio em frente trocando de roupas e tenta, inutilmente, atirar em sua direção. Sem balas, ocorre a passagem para o último e derradeiro flashback. Com uma aparência mais bem cuidada e barba feita, Nenê entra no apartamento de uma mulher. Aos beijos, começam a se abraçar e tirar a roupa com sofreguidão e quase desespero, mas param subitamente. Ele senta-se na cama, desanimado. Ela o abraça por trás tentando animá- lo: “Vamos tentar de novo. Esquece, vai?” Inserts dos estupradores de sua mãe atormentam Nenê que, frustrado pela impotência, repentinamente se vira e desfere 387 FONTANA, Emílio; MARCOS, Plínio. [s.t.]. Revista Bondinho, São Paulo, 2 a 19 abr. 1971, p.30. Mesa redonda conduzida por Roberto Freire e Humberto Pereira. 256 violentamente várias pancadas na cabeça da mulher. Enquanto escutamos repetidamente as frases da primeira vítima – “Esquece. Vamos tentar de novo? Aconteceu a mesma coisa. Ele estava nervoso e depois passou” –, ela assume novo significado acompanhando as cenas seguintes, em que Nenê mata diferentes mulheres, sempre revoltado por não conseguir consumar o ato sexual após seduzi- las. Seja com um porrete, estrangulando ou apunhalando, o rapaz transforma-se num atormentado serial killer. 388 Sons de tiros interrompem novamente as lembranças. Nenê joga os revólveres fora e se entrega. De volta à rua, o bandido encara uma linha de policiais com armas dos mais diferentes calibres sendo engatilhadas. Nenê está indefeso, como diante de um pelotão (ou o “esquadrão’) de fuzilamento. Num plano em câmera lenta (com rápidas reversões para imagem negativa), ao som de incontáveis tiros e sirenes, Nenê é fuzilado, caindo ensangüentado no chão e envolto em fumaça. Na imagem seguinte, seu corpo no chão é cercado pelos seus algozes, de quem só enxergamos os braços e as mãos segurando as armas. Um deles ainda chuta o bandido para conferir se está realmente morto antes de entrar no camburão. Num longo plano geral, vemos o corpo de Nenê cercado pela multidão que começa, lentamente, a se dispersar com o crescente barulho de carros e buzinas. O bandido morto vai tornando-se apenas um detalhe, parecendo simplesmente que “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Os curiosos vão embora, a banda recolhe os instrumentos, o lixo e os papéis voam e o som do vento substitui o barulho dos automóveis, até, finalmente, o corpo de Nenê, solitário e silencioso, estar sozinho na rua (e na tela). Um plano aéreo a partir do cadáver do bandido ganha altura e amplia a visão da cidade que ocupa, agora, todo o horizonte. A música orquestral volta a ocupar a trilha, com o tema do clássico western com Steve McQueen, Nevada Smith (EUA, dir. Henry Hathaway, 1966), de autoria do maestro Alfred Newman. Teatro pliniano e Cinema Marginal, Plínio e Candeias. 388 Filmado em contra-plongê, os gestos e posição corporal de Nenê quando ele desfere pancadas nas vítimas inocentes se assemelham muito aos macacos da primeira parte de 2001, uma odisséia no espaço (2001, a space odyssey, dir. Stanley Kubrick, 1968), quando eles descobrem o uso de um osso como arma. 257 Como já foi apontado anteriormente, o teatro de Plínio Marcos consagrado entre 19661968 apresentava diversas características que podem ser aproximadas do Cinema marginal, que viveu seu auge no Brasil entre 1968 e 1971, especialmente em relação ao retrato da realidade marginal urbana e à extrema agressividade dessas obras. O mesmo sentimento de impotência e de crise aguda expressa na clássica frase de O bandido da luz vermelha – “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba” – encontra eco nos personagens plinianos, que por também não poderem fazer nada, simplesmente se agridem e se violentam. Pensando na relação de Plínio Marcos com o cinema marginal, diversas semelhanças podem ser apontadas entre a trajetória inicial de sua carreira com a do cineasta Ozualdo Candeias, que estreou no longa-metragem com o polêmico e inovador A margem (1967), do mesmo ano da peça Navalha na carne. Em sintonia com o dramaturgo santista, voltado para os personagens e cenários marginais, Candeias mirava sua câmera para a população desprezada e ignorada que habitava as favelas nas margens do rio-esgoto do Tietê. Além de origens social e econômica distintas dos intelectuais de classe média e de obras que traçavam o retrato de um ambiente e de uma população excluídas das representações usuais das camadas populares, tanto Plínio quanto Candeias apresentavam semelhanças também numa visão do popular que enxergava por debaixo do lixo, a pureza, a moral ou o sublime. Tanto Plínio Marcos, um ex-palhaço de circo, quanto Ozualdo Candeias, um excaminhoneiro, foram considerados “analfabetos” ou “primitivos” que surpreenderam a crítica pela sofisticação e elaboração de suas obras, cuja realização teriam sido verdadeiros “milagres”. Na recepção tanto das peças de um quanto do filme do outro eram ressaltados o “conhecimento íntimo” que tinham daquele universo marginal pela “vivência” pessoal, resultando numa representação extremamente “autêntica”. Ao mesmo tempo, ambos se distinguiam da arte de esquerda politicamente engajada – especialmente o Teatro de Arena, de um lado, o Cinema Novo, de outro – em suas obras nos quais eram apontadas características universais. Em A margem os críticos identificaram influências, por exemplo, da vanguarda francesa dos anos 20 e de Pasolini, enquanto Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne foram comparadas com peças de Albee, Sartre ou Beckett. Estrategicamente, ambos, o cineasta e o dramaturgo, assumiram e incorporaram o papel de “ignorantes”, confirmando o desconhecimento dessas referências, o que pode ser plenamente questionado. 389 389 Daniela Pinto Senador apontou como a consagração de A margem em 1967 também representou uma instrumentalização política do filme de Candeias pela crítica conservadora, que o exaltou para diminuir o 258 Entretanto, a grande diferença que percebemos na obra dos dois artistas é em relação à linguagem. Ozualdo Candeias surpreendeu o meio cinematográfico brasileiro pela liberdade e ousadia de sua câmera, enquanto Plínio Marcos, por outro lado, apesar de características marcantes de sua obra, não foi exatamente um grande inovador em termos formais, se destacando em meio ao movimento de vanguarda do teatro brasileiro sobretudo pela radicalidade de seu realismo. Essas semelhanças foram apontadas numa crítica de A margem, publicada no jornal Correio Braziliense, no qual Reynaldo Ferreira chamava a atenção para a revelação de um novo diretor, Ozualdo Candeias: Cuja importância para o cinema nacional pode vir a ser semelhante à que representa hoje Plínio Marcos para o nosso teatro. Tanto um quanto o outro tratam de temas sociais, focalizando a vida de prostitutas, bandidos e marginais, a gente colocada à margem da civilização, num grande centro industrial, como é São Paulo. Ozualdo Candeias, como o autor de ‘Navalha na carne’, usa de uma linguagem direta, vigorosa e realista para fazer chegar ao público sua mensagem que, nem por ser social e política, deixa de ser também profundamente poética. 390 Mas se A margem pode ser considerado um filme precursor do Cinema Marginal, a obra do então quarentão Candeias – o “marginal entre marginais” (FERREIRA, 1996) – se diferencia em muitos aspectos dos filmes da geração de Sganzerla, Bressane e outros. Da mesma maneira, Plínio Marcos e Emílio Fontana, que apresentavam afinidades de visões, também guardavam distancia desses jovens. Dessa maneira, é igualmente possível perceber como Nenê Bandalho se aproxima de A margem, especialmente por seu retrato do povo, representado pelo protagonista. Emílio Fontana contou que o filme de Candeias serviu de referência para ele quando dirigiu seu longa- metragem, inclusive pela mistura de documentário e ficção e afirmou que “Alberto Shatowski e outros críticos consideraram que Nenê Bandalho, O bandido da luz vermelha e A margem eram uma trilogia. Apresentavam em forma de trilogia o cinema underground”. 391 Por outro lado, além de um interesse comum pela marginalidade urbana, tanto Plínio Marcos quanto Emílio Fontana (que pertenciam a mesma geração, tendo pequena diferença de idade) se preocupavam com um teatro voltado para o povo, que falasse de igual para igual e explicitamente engajado Terra em Transe, lançado no mesmo ano (SENADOR, Daniela Pinto. A margem versus Terra em transe: estudo sobre a ascensão de Ozualdo Candeias no universo cinematográfico. Caligrama, v. 1, n.3, set-dez. 2005. Disponível em: <http://www.eca.usp.br/caligrama/>. Acesso em: 4 jun. 2006). 390 FERREIRA, Reynaldo Domingos. Cinema: A margem. Correio Braziliense, Brasília, 1 dez. 1967. 391 Entrevista com o autor. 259 numa linguagem acessível ao homem comum – preocupação idêntica a de Braz Chediak, por exemplo. 392 Ou seja, se o filme de Fontana se alinhava temática e ideologicamente ao conto de Plínio Marcos (e também aos filmes de Chediak), ele também se aproximava esteticamente dos filmes marginais, resultando assim num equilíbrio precário. Em Nenê Bandalho esse conflito é resultado de um desejo de consonância com as experimentações estéticas no cinema brasileiro e internacional daquela época – ou mais, na cultura como um todo –, mas ainda apresentando resquícios de um pensamento, então questionado, que tendia ao desejo de realismo e a uma visão moralista, romântica e maniqueísta. O filme de Emílio Fontana, estreante como os demais cineastas marginais, mas também já quarentão em meio aos jovens saídos de seus vinte anos, chegou a ser criticado exatamente por ser considerado uma obra “no meio do caminho”. Na verdade, Nenê Bandalho apresenta uma mistura muitas vezes pouco harmoniosa ou coerente de inúmeras influências, mas que são um claro reflexo um momento conturbado e de transição na história política e cultural do país. Plínio e Fontana: choque de estilos O próprio Plínio Marcos comentou no Material de divulgação de Nenê Bandalho, reproduzido na imprensa, as relações entre seu conto e o filme: Escrevi a história do filme como se estivesse escrito um conto. Nessa história não há gente boa ou má. Todos somos produtos das circunstâncias sociais e meus personagens são apenas isso. Para mim a experiência é um tanto distante, porque apenas escrevi a história e nenhuma interferência tenho no filme. Está, porém, dentro do meu estilo e dos problemas do submundo que conheço bem, um mundo que vivi e sobre qual tenho escrito minhas peças (grifo meu). 393 O conto original de Plínio era sobre “as últimas 36 horas de vida de um bandido, cercado pela polícia e por uma multidão de espectadores anônimos”. Segundo Fontana, o conto terminava com o povo assistindo à caçada a Nenê Bandalho, que morria fuzilado pela 392 A afinidades de visão entre o diretor Emílio Fontana e Plínio Marcos foi admitido pelos dois em debate: “Emílio Fontana: (...) eu e o Plínio temos afinidades. Plínio Marcos: Fui seu aluno. Emílio Fontana: Ah, é verdade. Mas aprendi muito com você depois. Plínio Marcos: Deixa de confete! Emílio Fontana: Não é confete, cara! Existem afinidades de estilos e maneiras de pensar, de ver as coisas, inclusive de vivência”. FONTANA, Emílio; MARCOS, Plínio. [s.t.]. Revista Bondinho, São Paulo, 2 a 19 abr. 1971, p.30. Mesa redonda conduzida por Roberto Freire e Humberto Pereira. 393 AS DUAS histórias de Nenê Bandalho, [1971]. Material de divulgação. Mimeografado. 260 polícia. Como num estádio de futebol, após o final de um jogo, a torcida abandonava o local e o corpo do bandido ficava ali, inerte. Nisso, rolos de fenos começam a passar por cima de seu cadáver, como num um conto de faroeste. O processo de adaptação dessa história para o cinema também foi comentada na época por seu diretor: “transformei a reportagem realista numa imagem muito bonita e pessoal, havendo um choque de estilo do conto do Plínio com o meu roteiro. Porém, no fundo, como ele mesmo confirma, ambos identificados” (grifo meu). 394 Comparando Nenê Bandalho com A navalha na carne (filmado exatamente no mesmo ano, 1969) e Dois perdidos numa noite suja (lançado também em 1971), adaptações nas quais se buscou um determinado realismo cinematográfico (filmagens em locações reais, aspecto documental da fotografia, liberdade de improvisação dos atores) que estivesse em sintonia com o realismo da peça, nota-se realmente no filme de Fontana um choque de estilo. Nenê Bandalho é um filme com características que podem ser aproximadas do cinema marginal, mas também é uma adaptação que segue o desenvolvimento linear e a narrativa de causalidade do conto de Plínio Marcos, diferentemente dos filmes “marginalizados”, nos quais, segundo Fernão Ramos (1987a, p.126-127), haveria um abandono completo do filme documentário e o distanciamento “de qualquer parâmetro realista”. Um ponto importante a ser levado em conta é o fato de Nenê Bandalho ser um dos raros filmes considerados marginais assumidos abertamente como uma adaptação de obra literária. Podemos lembrar da visão pessoal de Fernando Cony Campos a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em Viagem ao fim do mundo (1967), ou da curiosa adaptação de Hamlet por Ozualdo Candeias em A herança (1971) que abdicava justamente dos célebres versos de Shakespeare. Essa origem literária pode ser encarada como um dos motivos para Nenê Bandalho manter um (constantemente criticado) “forte vínculo realista” (RAMOS, G.; ARAÚJO, L., 2001, p.62), característica talvez inescapável ao se tratar de um filme baseado numa obra de Plínio Marcos. Ou seja, Nenê Bandalho é um filme no fio da nava lha entre a demanda realista (na intenção de retratar e criticar a realidade social), a linearidade e a causalidade (do argumento no qual se baseou e da inspiração no cinema de gênero), e as características de ruptura da narrativa clássica do cinema marginal, cujo experimentalismo no caso do filme de Emílio Fontana é mais acentuado no tratamento sonoro e na montagem de Luiz Elias. Nesse 394 Ibid. 261 equilíbrio precário de várias influências, o conto de Plínio Marcos é uma peça chave para melhor compreensão do filme. O diretor falou sobre esse aspecto em entrevista: Enquanto Plínio Marcos escreveu uma história realista, lançando mão dos flashbacks, eu optei por acentuar o sonho e a realidade. Jogo com os dois e o espectador não sabe o que é real ou fantasia, passado ou presente. Mas é claro que isso não prejudica o entendimento do filme. O público tira suas conclusões. 395 O aspecto onírico, de tons surrealistas, fica mais acentuado nos dois últimos flashbacks (de Ana com outro homem e dos assassinatos das mulheres), quando a maconha, o trauma do passado e o desespero da perseguição começam a embaralhar memória e realidade, as lembranças se sobrepõem umas às outras e as alucinações parecem se tornar reais. Entretanto, ao longo da história o almejado “entendimento do filme” é também plenamente garantido por uma narrativa linear e causal. Essa duplicidade de Nenê Bandalho viria a ser muito atacada nas análises posteriores do filme, mas teve um julgamento menos severo nas duas críticas escritas na época do lançamento do filme em 1971, que elogiaram tanto a inventividade de linguagem, quanto o retrato “objetivo” da realidade social. Na Folha de São Paulo, Orlando Fassoni afirmou que Fontana fez um filme que “tem o cheiro das coisas experimentais, mas que sabe como romper com os limites da concepção primária”, elogiando as habilidades do diretor em dar ao filme um aspecto despojado, cru e seco, e que mesmo sem “o charme que o espectador deseja, une espetáculo e crítica social”. Por fim, elogiou também a neutralidade e a ausência de paternalismo de Nenê Bandalho ao limitar-se a situar o personagem “dentro de uma realidade social, narrar as situações que geram o marginal e deixar as conclusões a cargo do espectador”. 396 Da mesma forma, Ida Laura, no jornal Estado de São Paulo, afirmou que Nenê Bandalho é um filme que admite três planos: o primeiro com o enredo policial; o segundo com críticas sociais (o mais discutível, pois sujeito a modismos); e o terceiro, o mais importante, em que impõe recursos técnicos variados. Neste plano “traz a biografia, que é a de um criminoso qualquer, através de uma concepção de enquadramento, corte e montagem que despreza os moldes tradicionais, a um quadro dinâmico que pode ser encarada 395 ALENCAR, Miriam. Nenê Bandalho: o anti-herói que passou cinco anos nos corredores da censura consegue chegar às telas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 mar. 1977. 396 FASSONI, Orlando L. Folha de São Paulo, 6 abr. 1971. In: Guia de filmes. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Cinema, n. 32, mar-abr. 1971. 262 simultaneamente como sátira e como tomada humanística da situação”. Dessa maneira, o diretor conseguiu criar “um filme em nível aceitável” (grifo meu). 397 Além do experimentalismo de linguagem, o outro elemento apontado pela crítica que aproxima Nenê Bandalho dos filmes marginais e o distancia radicalmente de A navalha na carne ou Dois perdidos numa noite suja, é o seu indiscutível deboche. Deboche e avacalhação Apesar de Nenê Bandalho não deixar de apresentar um teor realista-dramático, expressando como vários filmes marginais o horror diante da violência e do absurdo da situação social e política do país, o nível de deboche do filme de Fontana não encontra paralelo em nenhuma outra adaptação anterior da obra de Plínio Marcos. Como apontou Rubens Machado Jr. (2001, p.16), o cinema marginal revalorizou a chanchada, desprestigiada intelectualmente pelo Cinema Novo, e, diferentemente desse movimento, demonstrou um interesse pelo humor. Os filmes marginais, marcados pelo deboche e pela curtição, não apresentavam a seriedade dos cinema-novistas, embora fossem igualmente engajados, pelo menos estética e poeticamente. Por outro lado, João Luiz Vieira (2001, p.98) lembrou que tanto nos filme marginais quanto, por exemplo, em Macunaíma – através do qual o Cinema Novo assumiu explicitamente o diálogo com a chanchada – estava presente o “humor corrosivo, às vezes anárquico, expondo um gosto pela crítica social encontrado com freqüência no próprio discurso paródico”. Em Nenê Bandalho, além da já citada cena em que o bandido se esconde dos policiais numa lata de lixo com uma caixa de papelão na cabeça, a própria idéia de um bandido resistindo ao cerco policial de cima do telhado das casas já tem um aspecto ridículo, irônico e non-sense. Na verdade, como já foi dito, trata-se de um retrato do absurdo geral (e muitas vezes real), ao qual, conforme dizia o bandido mais famoso, só restava avacalhar. Definitivamente, uma das características mais significativas de Nenê Bandalho é o humor corrosivo e amargo, expresso especialmente por uma ferina crítica à alta burguesia (fútil, adúltera, devassa e alienada), aos órgãos de repressão policial (violentos, desumanos, burocráticos, demagogos e incompetentes), além dos próprios meios de comunicação de 397 LAURA, Ida. O Estado de São Paulo, 2 abr. 1971. In: Guia de filmes. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Cinema, n. 32, mar-abr. 1971. 263 massa, que transformam num circo (e num produto, a ser consumido pelo povo passivo) um drama pessoal e, essencialmente, social. Em relação à crítica à burguesia, esse é provavelmente o aspecto mais polêmico de Nenê Bandalho. Em mesa redonda com o diretor e o dramaturgo, os entrevistadores apontaram como sendo o tratamento das classes sociais mais elevadas o principal ponto fraco do filme. Fontana replicou que não teve intenção de ridicularizar uma situação, mas de mostrar aquilo da forma que ele via. Mesmo assim, parece ter sido a questão mais controversa, como exemplificada pelo suposto acontecido na exibição do filme na Cinemateca do MAM, em 1971, relatado pelo próprio diretor: A briga que houve – depois da projeção no Rio – entre o Alex Viany e o Gustavo Dahl. O Gustavo Dahl achou ridícula a idéia de a fita inclusive querer acusar a burguesia decadente. Então o Alex Viany disse que era. Então o Gustavo Dahl disse que não era, porque a burguesia está assumindo um papel importante, inclusive nos Estados Unidos, não só no poder como na oposição. Eu não estava presente. Me contaram que aí os dois começaram a brigar justamente por causa da cena da festa. No fim, eu sei que o Alex Viany começou a ficar nervoso, o Gustavo Dahl falou: ‘você cala a boca senão eu lhe quebro a cara’. E o Alex Viany falou: ‘pois quebra!’ Então o Gustavo Dahl não teve dúvida, deu-lhe uma porrada na cara, voou óculos, voou tudo. E o Glauber Rocha, também viu e eu não sei... ele gostou muito, achou que a festa era o episódio mais importante.398 Na entrevista oferecida para este trabalho, Fontana disse ter estado realmente presente no debate na Cinemateca, mas que não se lembrava mais da razão da briga: “Eu sei que eles brigaram. Eu falei um pouco do colonialismo [cultural]... acho que alguém não concordou comigo”. 399 Essa oposição maniqueísta entre as classes populares e a burguesia, implicitamente presente na obra de Plínio Marcos desde pelo menos Os Fantoches e exacerbada na década de 70, também remontava aos filmes da primeira fase do Cinema Novo. Entretanto, a briga entre Alex Viany e Gustavo Dahl é uma mostra exemplar (e melancolicamente literal) do racha que o Cinema Novo – e a arte de esquerda de uma maneira geral – viveu no final dos anos 60 e início dos 70, momento esse marcado pelo furacão tropicalista. O tropicalismo apontava para uma mistura entre o velho e o novo, o estrangeiro e o nacional, a baixa e a alta cultura. Da mesma forma que os músicos da linhagem jobiniana398 FONTANA, Emílio; MARCOS, Plínio. [s.t.]. Revista Bondinho, São Paulo, 2 a 19 abr. 1971, p.33. Mesa redonda conduzida por Roberto Freire e Humberto Pereira. 399 Independente das contradições, o fato é que a sessão de Nenê Bandalho na Cinemateca do MAM, em 18 de janeiro de 1971, dentro da mostra Novos Rumos do Cinema Brasileiro, teve como complemento o curta Museu Nacional de Belas Artes, dirigido por Gustavo Dahl. Além disso, existe ainda um outro relato de que o eterno comunista Alex Viany já tinha levado um soco do cada vez menos comunista (e com fama de violento) Gustavo Dahl na mesma Cinemateca do MAM, por ocasião da estréia do filme O bravo guerreiro (1968, dir. Gustavo Dahl). 264 gilbertiana e da chamada MPB engajada se chocaram com a “geléia geral” de Caetano, Gil, Gal, Betania, Mutantes e outros (seguidos depois por Jorge Ben, Raul Seixas ou Secos e Molhados), os diretores do Cinema Novo, que bebiam na literatura de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Drummond, Mário de Andrade, Lúcio Cardoso e outros, viram surgir jovens cineastas que dialogavam sem pudor com letras muito menos refinadas, como, por exemplo, a das manchetes dos jornais populares. Tropicalismo e imprensa popular Enquanto a principal referência para o Cinema Novo foi a literatura, em especial a dos regionalistas dos anos 30, os cineastas marginais, sob o espectro de influência do tropicalismo, dialogaram de maneira intensa com os “dejetos” da indústria cultural. Como apontou Xavier (2001, p.21), “se no horizonte maior o modelo é Oswald de Andrade, o ‘marginal’ muda os termos da antropofagia; sai de cena o que se extraía do cânone do modernismo e da melhor tradição literária, e entram as formas do imaginário urbano menos prestigiadas”. Ao invés de Graciliano Ramos ou José Lins do Rego, encontram-se em diversos filmes marginais a estética dos quadrinhos e a influência dos gibis, assim como das pulps de R.F. Lucchetti, ambos considerados espécies de subliteratura. Ou seja, podemos localizar no cinema marginal, segundo preceitos tropicalistas (e sua contrapartida antropofágica), um diálogo crítico, mas também incorporador com o mundo industrial e os modernos meios de comunicação. Nesse sentido, elementos estéticos – essencialmente urbanos – desvalorizados pelo cinema de influência nacional-popular como as histórias em quadrinhos, a publicidade, o romance policial, o rádio, a televisão e o jornalismo sensacionalista, adquirem renovada importância. É significativo, entretanto, que mesmo essa cultura massificada mantém nos termos de Jésus Martin-Barbero (1997, passim), alguma forma de relação com uma “autêntica” cultura popular, através de reflexos do que o autor chama de matriz cultural. De acordo com a reavaliação feita por Barbero (ibid, p.246 et seq.) de diversos elementos da cultura de massa, como, por exemplo, da imprensa sensacionalista, de forte presença na América Latina, é possível perceber que “por trás da noção de sensacionalismo, como exploração comercial da reportagem policial, da pornografia e da linguagem grosseira se esconde uma visão purista do popular”, sem falar de uma conexão com a estética 265 melodramática. Essa reflexão revela-se bastante útil numa análise de um filme como Nenê Bandalho, Acredito que o rico diálogo do cinema marginal com a reportagem policial – apesar da busca constante do rompimento do vínculo catártico próprio à narrativa clássica nesses mesmos filmes – é um dos principais responsáveis pelo sucesso popular de algumas produções, além, lo gicamente, do elemento erótico, presente sobretudo na produção paulista ligada à Boca do Lixo. Podemos lembrar que dois dos mais bem sucedidos filmes desse “grupo”, O bandido da luz vermelha e Matou a família e foi ao cinema, buscaram sua principal inspiração na imprensa sensacionalista. O primeiro tomando como protagonista um famoso personagem desse noticiário popular, e o segundo elaborando seus aparentemente independentes núcleos narrativos a partir de manchetes sangrentas retiradas de jornais populares. Além disso, o texto- manifesto Nasce o cinema cafajeste: “Ana”, escrito por João Callegaro e publicado no folheto promocional do filme As libertinas (dir. Carlos Reichenbach, Antonio Lima e João Callegaro, 1968), já propunha, entre outras coisas, a incorporação da “linguagem dos ‘Notícias Populares’ e do ‘Combate Democrático”, principais jornais da chamada “imprensa marrom”. 400 Dessa forma, Nenê Bandalho também evidencia uma ligação com uma matriz cultural através de um diálogo com a imprensa (inspiração para o próprio argumento original) mediado, justamente, por um autor identificado como “repórter de um tempo mau”, e que foi constantemente valorizado precisamente por sua origem genuinamente popular e por dar voz ao “povão”. Grosso modo, o que Sganzerla e Bressane encontraram nas bancas de jornal, Fontana tentou buscar através de Plínio Marcos. Para os cineastas marginais, assim como para os tropicalistas, a imprensa sensacionalista era um das facetas grotescas e arcaicas que formavam o multifacetado retrato do país. Na letra da canção Parque Industrial, de Tom Zé, do disco manifesto Tropicália, esse aspecto surge de forma cristalina: E tem jornal popular, que nunca se espreme porque pode derramar. É um banco de sangue encadernado, já vem pronto e tabelado, é somente folhear e usar, 400 Esse texto, constantemente citado como Manifesto do Cinema Cafajeste, é confundido também com texto semelhante, mas posterior, do folheto promocional de O pornógrafo (dir. João Callegaro, 1970), intitulado Considerações sobre “O PORNÓGRAFO”. 266 é somente folhear e usar, porque é made, made, made, made in brazil Por outro lado, uma questão primordial para uma análise de Nenê Bandalho e que para Barbero é um aspecto essencial da cultura de massa – especialmente do cinema – por tornar visível a matriz cultural que alimenta o reconhecimento popular, são justamente os gêneros. Filme policial: o cowboy na selva de pedra Dentre os detritos da indústria cultural, os cineastas marginais apresentaram especial interesse pelo lixo cultural do primeiro mundo. Nesse momento, o cinema brasileiro culto modificou novamente seu eixo de influência, voltando a incorporar o filme americano, especialmente o cinema de gênero hollywoodiano. O cineasta João Callegaro, (apud RAMOS, F., 1987a, p.68) chegou a afirmar na época que “o público não entende o Cinema Novo porque ele é filiado ao (cinema) europeu.”. Essa mudança refletia também a oposição entre cinema- novistas e marginais. Os primeiros dialogavam explicitamente com o construtivismo russo, o neo-realismo e os novos cinemas, enquanto os marginais, como é claro no já citado texto que ficou conhecido como Manifesto do Cinema Cafajeste, anunciavam, sobretudo em seus primeiros filmes, um “cinema que aproveita a tradição de 50 anos de exibição de ‘mau’ cinema americano, devidamente absorvido pelo espectador e não se perde em elucubrações intelectualizantes, típicas de uma analfabeta classe média” (CALLEGARO, [1968]). No processo de deglutição curtidora do cinema marginal, a tradição norte-americana do cinema de gênero era, sem dúvida, privilegiada, embora numa referência essencialmente atravessado, por exemplo, pela iconoclastia de Jean-Luc Godard em seu diálogo crítico e criativo com Hollywood. Cineastas como Samuel Fuller, Orson Welles, Howard Hawks e Alfred Hitchcock eram anárquica e debochadamente louvados e plagiados, embora o filme B também exercesse especial atração, principalmente pela sua estética e esquema de produção. A aproximação do cinema marginal em sua primeira fase com pequenos produtores da Boca do Lixo, ligados a circuitos populares de exibição, também deve ser encarada como um dos responsáveis pela presença de elementos do filme de gênero, como o policial, além, obviamente, do erotismo. Em Nenê Bandalho, por exemplo, há um significativo “desfile” de seios na parte final do filme. 267 Emílio Fontana contou em entrevista que quando leu o conto de Plínio e preparou-se para escrever o primeiro roteiro de sua vida, lembrou-se de Orson Welles (como ele, um diretor teatral estreando no cinema ), “que antes de fazer seu primeiro filme se sentou na cinemateca e viu muitas vezes muitos filmes, e fiz o mesmo”. 401 Da mesma maneira, Fontana afirmou que além de ter assistido a diversos filmes, também leu roteiros e procurou se informar de questões técnicas. A cinefilia e a profusão de influências e citações também marcam a produção marginal e estão presentes em Nenê Bandalho, a ponto de Sérgio Villela ter julgado que o longa-metragem era, acima de qualquer rótulo, “Um filme de cinéfilo”. Esse aspecto pode ser percebido pelas palavras do próprio diretor, em depoimento à época de lançamento de Nenê Bandalho: É um filme tremendamente irregular. Todos os gêneros existentes caem em cima da fita e a influenciam; ela não tem estilo e esse não ter estilo vem a ser a tentativa de fazer do filme um retrato de nossa realidade cultural, também enquanto massa. Daí sobrevir um tipo de linguagem e um tipo de melodrama que fará do espectador comum a testemunha de tudo quanto a gente quer apontar. 402 Esse desejo de abarcar o máximo possível de influências e referências também está presente no filme de Sganzerla, assim como em Terra em Transe, influência assumida para os tropicalistas. Já O bandido da luz vermelha, por outro lado, foi definido por seu diretor como um faroeste do terceiro mundo ou um filme-soma: faroeste, mas também musical, documentário, policial, comédia ou chanchada e ficção científica. Assim como sugerimos anteriormente o “equilíbrio precário” e o “choque de estilos” na proposta de Nenê Bandalho, a mesma complexidade pode ser sugerida pela diversidade de influências assumidas, de Ingmar Bergman a Os intocáveis, passando por Psicose (Psycho, EUA, dir. Alfred Hitchcock, 1960) e A conquista do Oeste (How the West was won, EUA, dir. John Ford, Henry Hathaway e George Marshall, 1962). Se esse aspecto era recorrente no final dos anos 60 e início de 60, diversas análises posteriores criticaram essa característica, apontando tanto para “tumultuadas influências de Godard, Buñuel e outros” considerando o filme “um apanhado irregular de idéias”. 401 403 quanto 404 PEREIRA, Miguel. “Nenê Bandalho”, cinco anos de censura: a fantástica vida de uma marginal com muita raiva. O Globo, Rio de Janeiro, 27 fev. 1977. 402 CINEMATECA DO MUSEU DE ARTE MODERNA, Rio de Janeiro, [1971]. Programa. Mimeografado. 403 AZEREDO, Ely. Memórias do “andergraundi”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 mar. 1977. Serviço: seu lazer no fim de semana, n.54, p.2. 404 ALPENDRE, Sérgio. Nenê Bandalho e Deseperato. Contracampo, Rio de Janeiro: Associação Cultural Contracampo, n.30, 2001. Disponível em: <http://www.contracampo.he.com.br/30/bandalhodesesperato.htm>. Acesso em: 12 abr. 2005. 268 Sobre a influência do cinema de gênero nos filmes marginais, para Fernão Ramos (1987a, p.129) ocorrem duas formas de apropriação. Uma através da citação, “a inserção dentro da tessitura do filme de trechos inteiros característicos de outras obras” e outra através da reprodução de forma estilizada de traços marcantes do universo do gênero – a fotografia, a trilha musical, cenários, personagens – que passam a existir enquanto elementos estéticos de comunicação intertextual. Como Sganzerla fizera com bastante propriedade em seu primeiro longa- metragem, em Nenê Bandalho igualmente encontramos a inserção recorrente de breves imagens de cine jornais ou filmes de arquivo que se associam a gêneros conhecidos (policial, filme de guerra, faroeste, ficção científica), além de elementos estéticos de imediato reconhecimento, como a trilha musical de western, o personagem clássico do marginal acuado pelo sistema ou a fotografia preto e branca contrastada que remete à influência expressionista no filme noir. Entretanto, ao contrário do que afirma Fernão Ramos (ibid.), quando diz que esta reprodução é “raramente paródica”, o humor e o deboche, como vimos, são elementos fundamentalmente presentes em Nenê Bandalho e em muitos outros filmes marginais. Essa irreverente mistura tropicalista do cinema de gênero com a imprensa popular e sensacionalista resulta num caleidoscópico retrato de uma realidade caótica muito distante da seriedade ou da gravidade do Cinema Novo. Entretanto, influenciado tanto pelo policial americano quanto pelo cinema de Godard e operando uma síntese do fait-divers com o universo pliniano, o horizonte de um filme como Nenê Bandalho continua sendo o retrato crítico da realidade social do país. A vida imita a arte e vice-versa Os dois depoimentos a seguir são significativos de como os filmes marginais, mesmo possivelmente distantes do realismo, não necessariamente se afastam da realidade. Rogério Sganzerla afirmou que o primeiro rascunho de O bandido da luz vermelha surgiu quando viajava pela Europa: Tive a idéia de fazer um filme policial narrado por um comentarista esportivo. Achei que seria uma boa opção para fazer uma análise crítica da nossa realidade . Fui escrevendo o roteiro na viagem de volta, a bordo do navio Eugênio C, mas eu mesmo não acreditava muito na possibilidade de um bandido mascarado assaltando casas, como uma espécie de Zorro subdesenvolvido. Achava muito ficcional. Até 269 que, na volta, deparei com um jornal que mencionava o João Acácio Pereira da Costa, o ‘Bandido da Luz Vermelha’. Aí eu vi que a realidade suplantava a ficção. Tudo o que eu tinha escrito, até alguns diálogos, estava no jornal (grifos meus). 405 O produtor de Nenê Bandalho, Douglas Marques de Sá, também relatou aos jornais como o filme foi moldado ao sabor dos acontecimentos: O final que havíamos planejado para ‘Bandalho’ incluía sua morte, mas de uma maneira mais ‘realista’ em nosso modo de ver, num tiroteio comum com a polícia. Um dia antes de filmarmos a seqüência final abri o jornal e li que um marginal idêntico ao nosso personagem, fugido da polícia, se refugiara num bueiro de esgoto, sem saída e lá ficou durante dois dias, sendo bombardeado e submetido a um verdadeiro dilúvio de balas. Dois dias depois rendeu-se. Ao sair, com mãos para cima, com febre, fome, esquálido e praticamente desmaiado, recebeu nada menos que 80 balaços. Imediatamente dispensei o nosso final e adotei a realidade. Ela era mais forte que tudo que havia pensado (grifo meu). 406 Sobre essa mudança, Plínio Marcos, numa mesa redonda com o próprio Fontana, contou que o final do seu conto era justamente daquela maneira e que o diretor e o produtor é que queriam mudar: “Eles achavam que era muita polícia matando um bandido só”. Segundo o dramaturgo, Fontana “ficou quatro dias discutindo o fim da história. E aconteceu naquela época que a polícia do Rio encurralou aquele bandido Roncador dentro de um bueiro. Vim até te mostrar um recorte de jornal sobre o caso. Daí você achou muita graça e nunca mais discutiu o fim do filme”. 407 Independente da autoria da idéia, o que esse fato evidencia é que em Nenê Bandalho a preferência por certa teatralização não implica em artificialismo, e o experimentalismo não reflete uma recusa do aspecto realista que o coloca em perfeita sintonia, por exemplo, com as adaptações de Chediak. A busca de um retrato “verdadeiro” do (sub)mundo é marcada no filme de Fontana pela veracidade das filmagens totalmente em locações, pelos diálogos crus de Plínio Marcos, pela participação de não-atores ou amadores e na autenticidade das armas, viaturas e no texto ouvido pelas viaturas policiais, genuinamente redigido por um delegado. Mesmo usando o improviso e a falta de recursos como recurso, o cuidado com a veracidade da representação da marginalidade levou Fontana a realizar, por exemplo, um 405 SGANZERLA, Rogério. Meu primeiro filme. Folha de São Paulo, 3 out. 2003. Caderno Mais!. Entrevista. FARIAS, Marcílio. Nenê Bandalho: quinze anos depois de produzido e estigmatizado pela censura, chega no cinema o filme maldito do brasiliense Douglas Marques de Sá. Última Hora, Brasília, 10 fev. 1984. 407 FONTANA, Emílio; MARCOS, Plínio. [s.t.]. Revista Bondinho, São Paulo, 2 a 19 abr. 1971, p.28. Mesa redonda conduzida por Roberto Freire e Humberto Pereira. 406 270 laboratório com o ator Rodrigo Santiago, que visitou penitenciárias para conversar com bandidos e chegou a dormir com um revólver para se acostumar com a arma. 408 Esses fatos geraram, inclusive, diversos casos insólitos, pois o polêmico Nenê Bandalho tinha contado com a presteza da policia paulista e até mesmo com a assessoria do policial Astorige Correia, o “Correinha”, na época acusado de pertencer ao Esquadrão da Morte. Como a imprensa noticiou, Um dos incidentes mais curiosos de ‘Bandalho’ e que aumentou ainda mais o rosário de lendas em torno de sua realização foi o fato de entre os figurantes estarem todos os membros do ‘Esquadrão da Morte’ paulista dos anos 60. Douglas precisava de uma seqüência de tiroteio e, como não tinha dinheiro, procurou o ‘stand’ de tiro da polícia paulista que prontamente cedeu viaturas, homens e armas. Justamente os homens que aparecem como policiais são policiais de fato. E todos do ‘Esquadrão’. Como um detalhe: todos fizeram questão de aparecer. 409 Na elogiada cena final de Nenê Bandalho, sem dinheiro para pagar os figurantes, os produtores conseguiram reunir dezenas de pessoas com o anúncio do sorteio de um gravador (comprado a prestações), além da oportunidade de participação nas filmagens. O toque especial ficou por conta das senhas distribuídas junto com um jornal para serem picados quando as pessoas fossem embora. O lixo acumulado no chão, levado pelo ventou que soprou na hora da filmagem, conferiu o toque fantástico desejado. Curiosamente, a cena foi filmada no antigo Largo do Matadouro, onde hoje é localizada a Cinemateca Brasileira, em São Paulo. O bandido A sinopse de Nenê Bandalho fala de “um homem sem saída, massacrado pelo mundo desde criança, que só encontra caminho no crime e na violência”. Emílio Fontana comentou, depois de encerradas as filmagens, que “desde criança, Nenê já é uma vítima da situação na qual vive e que o gerou. Todas as portas se fecham, inclusive aquelas que talvez pudessem salvá- lo, que é o amo r”. 410 Esses comentários lembram muito diversas obras de Plínio Marcos, mas especialmente Oração para um pé-de-chinelo, peça escrita e censurada em 1969, 408 Segundo Fontana, como Rodrigo Santiago tinha medo de arma de fogo, o cineasta lhe emprestou um revólver calibre 38 que ele tinha e o ator chegou até a usá-la para aprender a atirar. Ainda como laboratório, ambos visitaram o detento “Nelsinho da 45”, que lhe disse que a arma tinha que ficar por baixo da calça, com a camisa solta por cima. “O cano da arma tem que estar junto do pau. Tem que estar próxima, pois as duas coisas se querem bem”, ele teria dito e o ator incorporou isso ao personagem. 409 FARIAS, Marcílio. Nenê Bandalho: quinze anos depois de produzido e estigmatizado pela censura, chega no cinema o filme maldito do brasiliense Douglas Marques de Sá. Última Hora, Brasília, 10 fev. 1984. 410 NENÊ Bandalho, um filme de Plínio Marcos já pronto. O Globo, Rio de Janeiro, p.7, 10 jun. 1969. 271 e o conto Nas quebradas da vida, escrito em 1971, transformado no romance Uma reportagem maldita (Querô), mas antes adaptado no filme Barra pesada (dir. Reginaldo Faria, 1977), que será discutido no capítulo 7. Se o jovem ator de olhos verdes Stepan Nercessian viveu o garoto Querô no filme Barra pesada, para interpretar o contraditório papel-título de Nenê Bandalho (o marginal com cara de bebê), Emílio Fontana convidou Rodrigo Santiago, por possuir “fisionomia de neném e ao mesmo tempo conotar um lado facínora, violento, isto é, cara de garoto e bandido por pressão social”. 411 É talvez em relação à trajetória do personagem principal – condutor da narrativa do filme – que Nenê Bandalho mais se distancie de outros filmes marginais. Ramos (1987a, p.35) procurou definir a produção marginal, dentre outras características, pela ausência de teleologia quanto à ação dos personagens: “Errando sem destino, sem causa e sem objetivos pelo mundo, suas ações são, geralmente direcionadas pelo experimentar, pelo curtir de determinadas experiências que lhe são colocadas por um destino diegeticamente gratuito e inexplicável”. Ao contrário do descrito, no filme de Fontana o protagonista é um personagem sem escapatória, cujas ações são justificadas plenamente pela “pressão social”: a pobreza causou o rompimento da namorada, levando à impotência sexual, e daí aos assassinatos de mulheres e por fim à execução pelos policiais. Na lógica do filme, o destino do bandido é mais do que previsível e seu final, praticamente inevitável. Sobre esse aspecto, um crítico apontou, oportunamente, que numa oposição simplista marginal versus sociedade, Nenê Bandalho redimiria um e condenaria o outro moralmente. O bandido tentaria se integrar à sociedade, mas, não conseguindo, passaria a combatê-la. 412 O aspecto moralista do filme – característica às vezes conferida também à obra de Plínio Marcos – pode ser percebido na condenação simplista da alta sociedade, aproximandose de filmes populistas da década de 50 e do início dos anos 60. A alienação surge ligada ao sexo e ao prazer e os grã- finos são concebidos como devassos imorais, revelando, em oposição, um retrato romantizado do popular. Na cena da festa, um plano isolado mostrando um homem levando a mão ao seio de uma mulher adquire um caráter negativo no contexto da seqüência. Por outro lado, o personagem principal, antes de se tornar bandido, desejava seguir um expediente convencional (o casamento), e segundo uma moral até “careta” – talvez 411 PEREIRA, Miguel. “Nenê Bandalho”, cinco anos de censura: a fantástica vida de uma marginal com muita raiva. O Globo, Rio de Janeiro, 27 fev. 1977. 412 LOPES, Oscar Guilherme. Nenê Bandalho: “Um filme debochado?”. Opinião, Rio de Janeiro, p.21-22, 11 mar. 1977. 272 mesmo para a época –, se revoltava pela namorada topar “dar para ele”, mas não casar. Por trás disso encontra-se, conforme apontou Barbero em relação a aspectos da cultura de massa, uma visão purista do povo. 413 Aliado a isso está também a visão romântica do marginal, que foi assumido como uma figura de revolta na situação de completo horror do país, em sintonia com o Cinema Marginal e à frase-símbolo de Hélio Oiticica: “Seja Marginal, seja Herói.” Entretanto, se a trajetória de Nenê Bandalho pode ser considerada moralista, o bandido da Luz vermelha apresenta uma perspectiva muito mais complexa, devido, principalmente, ao teor altamente irônico, anárquico e debochado do filme. Conforme um crítico, Se o filme de Sganzerla consegue realizar-se nos termos em que se propõe, desarticulando a linguagem e a narrativa fílmica tradicionais, levando às últimas conseqüências as suas atitudes -opções estéticas e políticas – ‘quem não pode fazer nada, avacalha’ –, Fontana, no seu equivocado Nenê Bandalho, fica no meio do caminho”. 414 Ismail Xavier (1993, p.98), analisando Terra em transe e O bandido da luz vermelha, apontou para uma constante temática nas duas obras, ligada ao diagnóstico geral da nação marcado pelo subdesenvolvimento, e à representação de totalidade. No filme de Sganzerla, o bandido recusa um caminho cuja origem ou destino esteja no campo (como no Cinema Novo da primeira fase, de 1962 a 1964), optando por uma trajetória que se encerra na urbanidade, com início e fim na favela. A morte do bandido, aparentemente encarada como cumprimento de desígnio, “sacrifício apto a conferir um sentido a seu trajeto”, seria, assim como os destinos dos personagens plinianos Querô e Nenê, um fim praticamente inevitável. Mas Xavier aponta também para uma sabotagem constante do próprio Sganzerla, num duplo movimento para “tornar o suicido do bandido algo periférico (um dado entre outros numa coleção) e algo fundamental (epicentro do colapso geral da ordem)”. Nesse último aspecto, Nenê Bandalho, em sua cena final, novamente se aproxima de O bandido da luz vermelha quando concebe a morte de Nenê, produto indissociável do universo urbano, como um dado periférico, que se perde, se torna minúsculo até desaparecer quando a 413 Essa aproximação deve-se, provavelmente, ao fato de tanto Plínio Marcos quanto Emílio Fontana terem vivenciado no teatro o clima “altruísta” e “revolucionário” de teor nacional-popular que marcou também o início do movimento cinema -novista. Ambos atuaram em linhas semelhantes a do CPC da UNE, de onde saíram alguns membros do Cinema Novo e um dos filmes seminais do Cinema Novo – Cinco Vezes Favela – no qual se encontra também essa oposição maniqueísta e moralista entre povo e burguesia. 414 LOPES, Oscar Guilherme. Nenê Bandalho: “Um filme debochado?”. Opinião, Rio de Janeiro, p.21-22, 11 mar. 1977. 273 câmera levanta vôo e enquadra a grande cidade (anônima) num plano geral. Trata-se de uma “paráfrase de A conquista do Oeste”, segundo o próprio Fontana. Mas uma outra importante questão na relação entre boa parte da produção margina l e o longa-metragem de Emílio Fontana está na causalidade das ações do seu personagem principal. Bernardet (apud. RAMOS, F., 1987a, p.137), referindo-se a Gamal, o delírio do sexo (dir. João Batista de Andrade, 1968), mas numa análise que pode ser estendida a outras produções marginais, afirmava que “as relações interpersonagens que constroem o arcabouço tendem a se manifestar diretamente, sem passar por situações que as traduzam”. Ramos (ibid, p.137) compreende essa “manifestação direta” de situações dramáticas como decorrente da falta de motivações articuladas através de uma história e aponta para a ausência de evolução dos personagens na intriga. Essa característica chegaria nos exemplos mais radicais realizadas a partir de 1970 na própria ausência de fa la nos filmes. “A partir do momento em que a intriga se estilhaça – e a narrativa sente uma inegável atração pela expressão dramática acentuada, feita através de berros –, a fala acaba por perder sua função e em alguns filmes marginais é praticamente abolida” (ibid. p.138). Mas esse é um passo adiante dos primeiros filmes marginais. Dificilmente a fala seria abolida em O bandido da luz vermelha, pontuado por curiosa narração radiofônica, ou em Nenê Bandalho, que se vangloria, justamente, dos diálogos escritos por Plínio Marcos ou dos comunicados policiais redigidos por um policial de verdade, o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Assim mesmo, podemos notar como o personagem principal do filme de Fontana é silencioso, tratando-se, provavelmente, da adaptação cinematográfica de Plínio Marcos com menos diálogos. O dramaturgo comentou que os bandidos mais duros que ele conheceu geralmente são fechados em si próprios, não gostam de conversar ou falar. As únicas falas de Nenê Bandalho em todo o filme são nas cenas com a namorada, no passado inocente e nostálgico. Depois de enveredar pelo crime, o bandido tornou-se praticamente mudo. O que não quer dizer que o filme seja silencioso, pelo contrário. Como o filme de Sganzerla, em Nenê Bandalho há uma abundância e profusão de músicas, ruídos e sons ao longo de toda a narrativa. Se os personagens não são tagarelas, os “narradores- mundos” das duas obras apontam para a exuberante polifonia de vozes do universo que retratam. Mas além desse aspecto, não é possível deixar de apontar como também estão presentes em Nenê Bandalho, como é característico da produção, não só marginal, da época, o desespero e o horror expresso através de berros e gritos (como em A navalha na carne) e 274 corridas desabaladas (como na cena final de Dois perdidos numa noite suja). Entretanto, nesse filme, ao contrário de outras obras marginais, a representação do horror é plenamente justificada, com suas motivações facilmente localizadas na própria intriga. *** Quando Plínio Marcos escreveu o conto Nenê Bandalho em 1968, o dramaturgo investia na literatura para tentar escapar da perseguição da censura ao seu teatro e pretendia ainda chegar à televisão. Com a adaptação do texto para o cinema, Plínio passou a ver, em 1971, um novo caminho que se abria para sua obra: “Depois do Nenê Bandalho é que vou escrever para cinema. Escrevi para o Roberto Faria uma história que se chama Nas quebradas da vida, escrevi uma para o Fontoura [...] que se chama A rainha diaba”. 415 Por diversos fatores, a carreira de Plínio como argumentista de cinema não teve continuidade naquele momento e depois dos três longas- metragens filmados entre 1968 e 1970, o nome de Plínio Marcos desapareceu das telas durante três anos, talvez como reflexo da própria dificuldade profissional do dramaturgo naquele momento em que sua carreira como ator também declinava e quando quase todas as suas peças estavam proibidas. Roberto Farias engavetou Nas quebradas da vida, pois como contou depois, não seria possível filmála naqueles anos em que a censura chegou ao máximo de voracidade. Já A rainha diaba seria filmado em 1973 e embora trazendo inegáveis resquícios do Cinema Marginal, já seria um filme de transição e tropicalisticamente ambíguo. 415 FONTANA, Emílio; MARCOS, Plínio. [s.t.]. Revista Bondinho, São Paulo, 2 a 19 abr. 1971, p.30. Mesa redonda conduzida por Roberto Freire e Humberto Pereira. 275 O cinema brasileiro parou em 1970 [...]. Em 1968, havia um bom nível de produção. Em 1970 acabou tudo, só filmando um ou outro mais bem endossado. Então, deu-se o festival esbaldante da mediocridade dominante [...] em que o navio da cultura brasileira foi pro fundo e os ratos – como sempre – subiram à tona, satisfeitíssimos. Rogério Sganzerla. 416 Estou convencido de que forças superiores ao movimento udigrúdi, à censura e a grupos intelectuais agiram para destruir o Movimento, inclusive porque a Revolução de 1964 não fechou o diálogo, antes o abriu, daí o Ministro da Educação e da Cultura de Médici, Jarbas Passarinho, ter iniciado contatos com o Cinema Novo que resultaram não só nas grandes medidas legislativas de proteção do mercado, quanto na constituição da Embrafilme. Glauber Rocha. 417 Bruno Barreto reconciliou o cinema brasileiro com o seu público, reconciliou a nação cinematográfica. [...] Ele ensinou, a um cinema acostumado a celebrar fracassos, a gostar das vitórias. [...] Assim como não existe democracia sem povo, não pode existir cinema democrático sem público. Cacá Diegues. 418 Anos 70: ditadura e indústria. No início da década de 1970 já eram visíveis os novos rumos do cinema brasileiro, fossem temáticos, estéticos ou econô micos, sobretudo numa relação industrial intermediada pelo Estado em seu processo de “modernização conservadora”. Em 1969 a ditadura criou a Embrafilme que já em seu segundo ano de existência concedeu seus primeiros financiamentos. No mesmo período, o questionamento político se tornava cada vez mais difícil com o acirramento da censura e da repressão no governo Médici (1969-1974), enquanto a pesquisa e a sofisticação de linguagem emergiam como empecilhos para o desenvolvimento do cinema brasileiro em bases industriais e para a ampliação da comunicação com o grande público. O Cinema Marginal, preocupado com a problematização mais radical do sentido e cada vez menos comprometido com o mercado, se radicalizaria até se afastar totalmente do circuito exibidor comercial, resultando em filmes censurados, diretores exilados e carreiras interrompidas. O Cinema Novo, por outro lado, ao tentar alcançar maior comunicação popular no final da década de 60, vinha se deparando com resultados irregulares. No início dos anos 416 SGANZERLA, Rogério. Joaçaba, Novembro de 1976. ROGÉRIO SGANZERLA, CINEMA DO CAOS, 2005, Rio de Janeiro. Catálogo... Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, out-nov. 2005. 417 ROCHA, Glauber. Embrafilme em ritmo de aventura. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 fev. 1978. 418 AMOR BANDID0, de Bruno Barreto, Rio de Janeiro, 1976. Material de divulgação. Mimeografado. 276 70, a coesão do grupo se esfacelaria, sendo notada uma desorientação geral com filmes que apontavam para os caminhos diversos de seus principais expoentes (RAMOS, J., 1983, p.). 419 Ao mesmo tempo, a partir do grande sucesso de um filme como Os paqueras em sintonia com a re-atualização da comédia carioca urbana, da influência das comédias “apimentadas” francesas e italianas e de filmes de tons eróticos realizados por pequenos produtores paulistas da chamada Boca do Lixo (como o marginal As libertinas), começaria a se esboçar uma produção crescente que viria a ser chamada genericamente de pornochanchada. A questão da industria lização do cinema brasileiro e a conquista do mercado estavam na pauta do dia, sobretudo com o aumento dos custos de produção, entre outros motivos, pela consolidação do filme colorido. As contradições se acirrariam, por exemplo, na Difilm, distribuidora criada em 1965 congregando, principalmente, os realizadores do Cinema Novo, que se cindiria no final da década. Em 1971, após a proibição de Nenê Bandalho e o fracasso de público de Dois perdidos numa noite suja, duas formas de pressão – da censura da ditadura militar e a econômica e estética da ditadura de mercado e dos novos rumos dos produtos audiovisuais brasileiros – sinalizavam que a trajetória das adaptações plinianas seguiria outro rumo, assim como tomariam dois caminhos diferentes os elementos que alavancaram a realização destes filmes. De Valadão e Chediak a Fontana e o Cinema Marginal, não sobrava muito espaço para Plínio Marcos. O Caso Valadão Na época de lançamento de A navalha na carne, Jece Valadão, junto com os produtores Roberto Farias e Jarbas Barbosa, criou a Ipanema Filmes, que segundo o último, “deve ter sido a distribuidora que melhor faturou de 1970 a 1974”. 419 Após experiências com estratégias alegóricas no sentido de totalização e aproximações momentâneas com uma “estética marginal” no final da década de 60, alguns diretores seguiram para a Europa (Glauber Rocha e Ruy Guerra), enquanto outros fizeram filmes de passagem (Quando o carnaval chegar, 1972, e Joana Francesa, 1975, ambos de Cacá Diegues) ou herméticos (Pindorama, dir. Arnaldo Jabor, 1970, O Capitão Bandeira Contra o Doutor Moura Brazil, dir. Antônio Calmon, 1971). Por outro lado, driblando adversidades no auge da repressão da ditadura e no seio da produção estatal, alguns realizadores conseguiram ainda embutir acentuado teor crítico, político e poético em certas obras, sobretudo a partir de metáforas da situação atual do país nas adaptações de clássicos da literatura São Bernardo (dir. Leon Hirszman, 1971) e Os Inconfidentes (dir. Joaquim Pedro de Andrade), 1972. 277 Como contou Jarbas Barbosa: Foi uma coincidência que juntou o Roberto e o Jece Valadão, que nesse momento estava desenvolvendo um projeto muito importante para produzir obras de Plínio Marcos. Eles me propuseram montar uma distribuidora. Essa eu fiz. Foi a Ipanema Filmes [...]. O segundo filme de Roberto Carlos foi lançado pela Ipanema Filmes. Foi uma distribuição maravilhosa. Tínhamos feito um acordo de não aceitar filmes de ninguém a não ser que nós quatro concordássemos em distribuí-lo. Tínhamos Roberto Carlos, Os Trapalhões, e Jece com A navalha na carne e O enterro da cafetina, que foram grandes sucessos. [...] A distribuidora funcionou até que Roberto foi diretor da Embrafilme e decidimos fechá-la e vendêla, para se transformar na rede de distribuição da Embrafilme (OROZ, 1993, p.66). No início dos anos 70 Jece Valadão já era um dos principais nomes da nova geração de produtores cariocas, ao lado, principalmente, de seu sócio Roberto Farias. Na década de 60 alguns dos principais produtores do cinema brasileiro, profissionais com carreiras iniciadas nas décadas anteriores, apresentavam como característica certa alternância entre produções explicitamente comerciais e filmes com maiores pretensões artísticas e prestígio internacional e que abarcavam, por outro lado, uma parcela diferenciada do mercado. Jarbas Barbosa, por exemplo, produziu, entre outros, Deus e o diabo na terra do sol e Os fuzis, Herbert Richers, Vidas secas e Fome de amor, e Oswaldo Massaini, O pagador de promessas. O próprio Valadão tinha se iniciado na carreira de produtor com Os cafajestes, claramente influenciado pela Nouvelle Vague e considerado um filme importante do Cinema Novo, enquanto Roberto Farias, como realizador, dirigiu pelo menos um filme mais claramente alinhado ao movimento, Selva trágica, de 1963. Valadão seguiria uma carreira fértil nessa década, produzindo mais de uma dezena de filmes nos anos 60, passando por gêneros diversos, como o filme de aventuras, o infantil, o policial e o musical jovem. A maneira como ele contou a origem da sua produtora, a Magnus Filmes, criada para a produção de Os cafajestes, insinuava que ele fora o único a manter-se no caminho originalmente pretendido: Em 1962 nos reunimos para fazer nosso cinema. Eu, [José] Oliosi, Daniel Filho, Ruy Guerra e Miguel Torres. Daniel descambou para a televisão, Ruy Guerra para o cinema novo e Miguel Torres faleceu, para a tristeza de todos nós. Sobramos eu e o Oliosi que fizemos a Magnus. 420 Nos primeiros anos da década de 70, os produtores brasileiros estavam diante de uma nova configuração do país, do cinema brasileiro e da relação do meio cinematográfico com o Estado. Se antes a concessão dos prêmios de qualidade e de percentual sobre a renda ficava dividida entre os grupos “universalistas” e “nacionalistas”, a partir de 1972 eles passaram a simplesmente “privilegiar os filmes de grande penetração no público” (RAMOS, J. 1983, p. 420 Magnus filmes em revista, Rio de Janeiro, s.n., [1972]. 278 74). Nesse mesmo período, a Embrafilme concedia financiamentos obedecendo a critérios artísticos menos rígidos, sendo o valor econômico a principal medida para dimensionar os solicitantes. Surgida inicialmente como uma reivindicação dos produtores ligados ao cinema comercial (inclusive Valadão), apenas numa segunda fase, a partir de 1974, a empresa passou a privilegiar os realizadores, sobretudo o grupo político ligado ao cinema novo (AMÂNCIO, 2000). 421 Ou seja, nos primeiros anos da Embrafilme a empresa financiava qualquer filme, até pornochanchada, uma vez que no começo da década de 70 a pauta era conquistar o “nosso mercado” e o discurso de Valadão era um dos que mais evidenciava essa meta. Durante o lançamento de A navalha na carne, Jece Valadão declarou aos jornais sua concepção do cinema: “Cinema é indústria muito rendosa. Se não der muito dinheiro, alguma coisa está errada”. Com muita clareza, o produtor definia sua estratégia, visando o mercado interno e pretendendo adotar fórmulas e modelos consagrados: O nosso negócio é formar indústria sólida de cinema. É conquistar o público natural – o brasileiro. Para depois partir para o cinema de arte, para uns poucos. Veja os Estados Unidos. Lá eles fazem mil westerns por ano, mil comédias etc., para poder fazer um Midnight Cowboy, arrriscando-se a um grande fracasso. Porque filme de arte, e que ao mesmo tempo dê dinheiro, é como loteria (grifo meu). 422 Curiosamente, A navalha na carne parece ter sido um bilhete premiado, legitimandose como “filme de arte” e ao mesmo tempo gerando lucro. Entretanto, com o fracasso financeiro de Dois Perdidos numa noite suja, o filme anterior acabou assumindo o caráter de exceção e o cinema de arte foi ficando cada vez mais “para depois” na estratégia da Magnus Filmes. Passados os conturbados anos finais da década de 60, os crápulas e cafajestes foram cedendo seus lugares aos paqueras e donzelas, ao mesmo tempo em que os produtores se confrontavam com um novo padrão do cinema brasileiro. A marginalização no mercado. 421 O capital social da Embrafilme em sua fundação era dividido entre a União e o INC, sendo que uma parcela de 0,6% pertencia a sete produtores, entre eles Jece Valadão (RAMOS, J., 1983, p.90). Coerentemente, Valadão também estava incluído dentre os produtores que eram os principais favorecidos pelas verbas da estatal na primeira fase da empresa, até 1973 (AMÂNCIO, 2000). 422 FCF. Jece: a navalha. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 mar. 1970 279 Na época de lançamento de Dois perdidos numa noite suja, Chediak afirmava que quando fez A navalha na carne não tinha nem certeza se o filme seria realmente exibido: “Isso prova que não fiz concessão nenhuma”, disse seu diretor em 1971. 423 Por outro lado, grande parte dos primeiros filmes marginais – todos eles produções de baixíssimo orçamento – foram financiados por pequenos produtores da Boca do Lixo que de maneira alguma ignoravam a necessidade de comunicação com o grande público e de retorno financeiro. Os próprios cineastas pretendiam inicialmente realizar filmes populares, mas sem abrir mão da sofisticação e do experimentalismo. Rogério Sganzerla, por exemplo, afirmou que seu longametragem de estréia foi lançado em 42 salas de cinema em São Paulo, tendo se pago em uma semana. 424 Tanto O bandido da luz vermelha quanto seu filme seguinte, A mulher de todos, foram realizado “com produção final e distribuição garantida pelos produtores da Boca” (RAMOS, F., op. cit., p.38). Gradativamente, outros filmes marginais passaram a ser realizados através de esquemas alternativos que permitiam total liberdade: parcos recursos, filmagens em poucos dias, equipe e atores amigos. A criação da produtora Belair, entre janeiro e março de 1970, ponto de inflexão da radicalização marginal, foi descrita da seguinte maneira por Julio Bressane: “Ele [Sganzerla] tinha algum dinheiro, eu também tinha, o Severiano Ribeiro abriu um crédito para fazermos quatro filmes, dois em preto e branco e dois em cor. Deu negativo, laboratório, finalização, tudo. [...] e nós então realizamos seis filmes... sete filmes”. O crédito do Severiano Ribeiro teria sido possibilitado, principalmente, pelo lucro dos onze dias em que Matou a família e foi ao cinema foi exibido com sucesso “espetacular” antes de ser retirado de cartaz pela censura (BRESSANE, 2003, p.13). Ou seja, diante do recrudescimento do regime militar e do desejo de radicalização estética é como se os primeiros filmes dos cineastas marginais tivessem possibilitado (e financiado) a posterior e total liberdade. Desse modo, a produção marginal foi se afastando progressivamente do mercado exibidor enquanto optava por uma radicalização estética indissociavelmente ligada, entre outros fatores, “às determinações que a ausência da perspectiva e da necessidade de exibição exerce sobre a narrativa do filme” (RAMOS, F., op. cit. p.38-39). Os diversos filmes realizados pelos cineastas marginais em exílio no exterior entre 1970 e 1973 – quase todos inéditos comercialmente, inconclusos ou perdidos –, foram 423 424 “DOIS perdidos” só depende da censura. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1 mar. 1971. FRANCISCO, Severino. A luz do bandido. Jornal de Brasília, Brasília, 1 ago. 1990. 280 justamente o suspiro final e mais radical do cinema marginal enquanto grupo com alguma coesão. Assim como a ousadia de Chediak na dita despretensão comercial de A navalha na carne, o filme Nenê Bandalho – produzido com um dinheiro que o produtor Douglas Marques de Sá “não contava mais” – também foi um exemplo da liberdade estética proporcionada pela ausência de determinações comerciais. Emílio Fontana afirmou que “como o filme foi muito barato [...] eu me dei ao luxo, por assim dizer, de fazer com a linguagem que me deu na telha fazer” (FONTANA, [1977], p.48). A excepcionalidade das oportunidades que permitiram a realização dos diversos longas- metragens por jovens cineastas na passagem dos anos 60 para os anos 70, sem dúvida, situações especiais localizadas em um contexto particular, garantiu a uma nova geração de diretores uma ânsia pela experimentação e pela ousadia. Esse aspecto é evidente numa situação relatada por Fontana, na qual um amigo lhe dizia: “você tinha que fazer um troço comercial, depois você vai fazer teu filme; eu falei: ó cara, eu não sei se vou ter outra chance. Quem me garante?” (ibid, p.48). Ao mesmo tempo, o pequeno porte das produções comportava também uma maior pesquisa por uma sofisticação da linguagem. Em Nenê Bandalho, por exemplo, o baixo custo do negativo 16 mm permitiu que a cena da morte do personagem principal fosse filmada onze vezes (ibid, p.49). De maneira semelhante, foi também a película preto e branca que possibilitou em A navalha na carne a realização dos longos planos seqüências do filme. Entretanto, em relação ao contexto de liberdade e ousadia crescentes, Fernão Ramos (op. cit., p.39) comentou apropriadamente: Para alguns cineastas (e não são poucos) este progressivo aprofundamento num modo de produção marcado pela marginalidade dificulta, após o esgotamento de seu período mais fecundo, a continuidade da carreira desviando-os para atividades paralelas à criação cinematográfica (propaganda, crítica) e criando, dentro do Cinema Marginal, um enorme número de cineastas de um filme só. Quando por volta de 1972-1973 o auge do boom marginal começa a declinar e estas condições específicas de produção deixam de existir, poucos são os que conseguem manter uma atividade cinematográfica voltada para a narrativa ficcional. As conseqüências dessa radicalização encontram na carreira de Emílio Fontana um claro exemplo. Se o diretor justificou sua ousadia e liberdade, entre outros motivos, pela possibilidade que aquele pudesse ser “o único filme de sua vida”, seu temor quase foi concretizado. 281 E Fontana? Depois do episódio da proibição de Nenê Bandalho, Emílio Fontana voltou às aulas de interpretação e ao teatro, trab. Dirigiu peças, documentários promocionais, teleteatro na TV Cultura, além de mais de vinte curtas- metragens abordando temas da cultura popular como o circo e o samba. Filmes como Lasar Segall: uma memória viva [1978], Plante que o futuro é verde [1978], Vai, Vai (1979), Memórias de um Povo (1979), Bumba meu boi (1979), Os criadores da alegria (1979) e Picadeiro Eterno (1979), aproveitaram a demanda decorrente da exibição obrigatória dos complementos exigida pela chamada Lei do Curta. Por volta de 1975, Fontana decidiu tentar no vamente solucionar a questão do seu filme proibido e entregou o caso a uma firma especializada – “como num passe de mágica, tudo foi resolvido”. 425 De fato, Nenê Bandalho recebeu um novo Certificado de Censura, emitido em 31 de outubro de 1974 e válido até 1979. O filme foi liberado com a classificação de proibido para menores de 18 anos e com alguns cortes. 426 Nenê Bandalho passou a ser exibido em mostras, cineclubes e faculdades. Em março de 1977 foi relançado comercialmente com oito cópias, podendo finalmente ser visto livremente pelo público e pela imprensa. As críticas escritas nessa ocasião, um olhar sobre um passado então recente, evidenciam claramente o novo contexto no qual elas foram produzidas. No auge da “grife Embrafilme” e do cinemão que produzira, então, seu maior sucesso (Dona flor e seus dois maridos, dir. Bruno Barreto, 1976), o crítico Sérvulo Siqueira escrevia que o Cinema Marginal, ao qual Nenê Bandalho teria sido alinhado, foi um “ciclo de filmes constituído de filmes baratos rodados em preto-e-branco [que] não sobreviveu à precariedade de suas próprias condições de produção”. 427 Nenê Bandalho era chamado de um “frustrado acossado tupiniquim”, referindo-se ao longa- metragem de estréia de Godard (Acossado / À bout de souffle, 1960) e o seu deboche representaria “gratuidade e falta de seriedade”. Nesse sentido, o filme, como as demais produções marginais “rústicas e mal acabadas”, devia ser 425 ALENCAR, Miriam. Nenê Bandalho: o anti-herói que passou cinco anos nos corredores da censura consegue chegar às telas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 mar. 1977. 426 Em 1972, uma nota da imprensa afirmava que o filme tinha sido liberado pela censura, mas com cortes, proibido para exibição na televisão e sem a chancela de boa qualidade. Embora não tenhamos encontrado nenhuma outra evidência dessa liberação (como cartelas de censura, por exemplo), a ausência da chancela de boa qualidade ao qual estava vinculada a exibição obrigatória pela lei de reserva de mercado para filmes brasileiros, de qualquer maneira, praticamente inviabilizaria seu lançamento comercial, ainda mais passado o auge do chamado Cinema Marginal. 427 SIQUEIRA, Sérvulo. Nenê Bandalho. O Globo, Rio de Janeiro, 9 mar. 1977. 282 visto para que “quem sabe olhando para o passado não cometeremos os mesmo erros no presente”. O crítico Ely Azeredo também se mostrava extremamente severo ao considerar Nenê Bandalho “uma chanchada de erros que seus perseguidores empreenderam com total gratuidade” que fica no meio do caminho entre “experimentalismo pessoal e pot-pourri de clichês do cinema de vanguarda dos anos 60”. 428 Ou seja, no contexto da segunda metade da década de 70, Nenê Bandalho chamava a atenção para o crítico Paulo Perdigão, pela “inépcia e borrões”, pelo resultado canhestro que lembrava “o amadorismo dos mais denodados curtas- metragens dos festivais do Jornal do Brasil” ou, ainda, os clichês dos filmes em super 8. 429 Mas essa reavaliação do passado também seria feita pelo próprio cineasta. Fontana retornou ao longa- metragem de ficção somente em 1982, com o policial O último vôo do condor, produzido através de um prêmio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. No press-book do filme o próprio diretor afirmava que Nenê Bandalho lhe deu grandes satisfações, mas, por sua “linguagem metafórica”, não foi “bem entendido pelo homem do povo”. Já O último vôo do condor teria “temática semelhante, mas tratado de maneira mais acessível, menos pretensiosa” 430 – no caso, uma narrativa clássica mal articulada e que não alcançou repercussão de crítica ou sucesso de público. 431 E Chediak? Após Dois perdidos numa noite suja e As confissões de frei Abóbora e seus amores, a carreira de Chediak tomou um novo rumo a partir de 1971, menos “sério” e mais bem sucedido comercialmente. Em seguida ao relativo fracasso dos filmes produzidos por Jece Valadão e Herbert Richers, Braz Chediak começou a trabalhar para a Sincrofilmes de Pedro Carlos Rovai, dirigindo o último dos três episódios da comédia Os mansos, intitulado O homem dos quatro chifres, em 1973. Mesmo com as inúmeras exigências de cortes feitas pela 428 AZEREDO, Ely. Memórias do “andergraundi”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 mar. 1977. PERDIGÃO, Paulo. Inépcia e borrões. Veja, Rio de Janeiro: Abril, p.70, 16 mar. 1977. 430 O ÚLTIMO vôo do Condor, [1982]. Mimeografado. 431 O último vôo do condor alcançou um público de apenas 24.244 espectadores entre dezembro de 1983 e dezembro de 1986 (MEWES, 1992). 429 283 censura, o filme tornou-se um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema brasileiro, com mais de dois milhões de espectadores. No ano seguinte Chediak dirigiu Banana mecânica (ou Como abater uma lebre), também produzido pela Sincrofilmes, além da Cipal, do protagonista Carlos Imperial, que conquistara as platéias como o Coronel Alexandrão no mega-sucesso A viúva virgem (dir. Pedro Carlos Rovai, 1972). Também com Banana mecânica, o sucesso de bilheteria só não foi maior que o desprezo da crítica. 432 Uma situação curiosa ocorreu em 1974, quando A navalha na carne foi exibido no circuito de cinemas de arte de Nova Iorque, sendo bem recebido pela imprensa norteamericana. Causou repercussão no Brasil os elogios dedicados ao filme pelo crítico Vincent Canby, editor chefe do The New York Times, “quando em geral até Macunaíma foi comentado por um imbecil de segundo time”. 433 Canby classificou a obra como um filme respeitável, elogiando a fotografia e chegando a comparar Glauce Rocha a Jeanne Moreau e Jece Valadão a Richard Burton (cf. Anexo). Naquele momento a situação era curiosa, como apontou um jornalista: “Quando exibido aqui, o filme brasileiro Navalha na carne (filmagem quase integral da peça de Plínio Marcos) não demonstrou maiores atenções da crítica especializada [...] Agora exibido em Nova York com o título Razor in the flesh, despertou o interesse de respeitáveis críticos norte-americanos, principalmente os do The New York Times, do New York Post e do Daily News. [...] E agora, como é que fica? Braz Chediak, o diretor do filme, vai continuar sendo chamado para fazer chanchadas?” 434 Aparentemente foi o que aconteceu, pois em 1975, Chediak dirigiu o episódio que deu título ao filme O roubo das calcinhas, mais uma produção da Sincrofilmes. No mesmo ano criou a Braz Chediak Produções Cinematográfica, com a qual co-produziu e dirigiu Eu dou o que ela gosta (Seduzida pelo amor), em 1976. 432 435 Banana mecânica aproveitava em seu título a polêmica em torno de Laranja mecânica (A clockwork orange, Inglaterra, 1971), embora sem apresentar qualquer semelhança com o filme de Stanley Kubrick. 433 FRANCIS, Paulo. Guilhotina na carne. Tribuna da imprensa, Rio de Janeiro, 29 jan. 1974. 434 SANTO de Casa já faz milagre. Última Hora, Rio de Janeiro, 19 fev. 1970. 435 Em 1978, Chediak dirigiu um filme mais pessoal, distinto da produção da pornochanchada: O grande desbun..., uma adaptação da peça de Martins Pena, As desgraças de uma criança, que foi um retumbante fracasso. No contexto do enorme sucesso de A dama da lotação (1978, dir. Neville D’Almeida), baseado em crônica de Nelson Rodrigues, Chediak dirigiu Bonitinha, mas ordinária (1980), também produzido pela Sincrocine. Em seqüência, Chediak dirigiu outras duas versões cinematográficas de peças de Nelson Rodrigues, Álbum de família (1981) e Perdoa-me por me traíres (1983). Depois dessa trilogia de rodriguiana, Chediak não voltou a dirigir outro longa-metragem de ficção, mas seguiu realizando documentários, filmes institucionais e programas de televisão, além de colaborar como roteiristas em outras produções. A partir do final da década de 80 suas atividades se voltaram, sobretudo, para o teatro, como diretor e professor, e para a música, afastando-se do cinema. 284 Ou seja, ao longo dos anos 70, tanto Emílio Fontana quanto Chediak e Valadão se afastaram de qualquer rumo que os aproximasse novamente da possibilidade de novamente adaptar uma obra de Plínio Marcos para o cinema. É necessário, entretanto, comentarmos brevemente alguns aspectos do cinema brasileiro desse mesmo período responsáveis pela nova conjuntura. 285 Parênteses sobre o mercado interno e qualidade. Em 1972, em meio ao sucesso da Ipanema Filmes e das produções de seus sócios, Jarbas Barbosa, Roberto Farias e Jece Valadão, a distribuidora publicou a revista Ipanema: cinema em revista. Em seu segundo número, o diretor responsável pela publicação – o próprio Valadão – assinou um artigo intitulado “Deus está comigo. Quem está contra nós?”. No primeiro parágrafo, o produtor traçava um panorama otimista da situação do cinema brasileiro naquele momento – marcado pelo milagre econômico promovido pela ditadura – apontando para uma “evolução”: Em dois anos, o cinema brasileiro deu um salto formidável. Do empirismo e improvisação de ‘cinema novo’ – que lhe valeu um lugar de destaque ao lado dos cinemas jovens de todo o mundo – passou a lançar as bases de uma indústria estável e de sucesso, que se propõe a conquistar, a prazo curto, o que os Gláubers, Diegues, Guerras e Jabors não puderam ou não quiseram: o mercado nacional. O mesmo tema – a conquista do mercado interno para o filme brasileiro – encerrava o mesmo artigo com um tom patriótico, ufanista e heróico, além de irreal na avaliação do próprio mercado nacional: Apesar de tudo a fé dos homens que fazem cinema neste País é inabalável. Eles sabem, e tem sofrido por isto, que nada se conquista sem luta, mas acima de tudo acreditam no seu cinema, no nosso cinema, no Cinema Brasileiro, e não vão desistir agora que se aproxima, cada vez mais, a hora da conquista definitiva do segundo mercado cinematográfico do mundo: o Brasil. Um fato interessante é que no mesmo número da revista se encontra também um artigo do cinema-novista Carlos Diegues, intitulado “Para onde caminha o cinema brasileiro?”. Diante do difícil momento que o cinema brasileiro enfrentava com a ameaça da volta da hegemonia americana frente à re-estruturação de Hollywood, o cineasta refletia criticamente sobre a posição do Cinema Novo no passado, mesmo reconhecendo seus méritos pela conquista de destaque no exterior: “Acontece que a revolução cinematográfica dos anos 60, não sensibilizou o público. Aqueles que acreditavam estar inventando um novo cinema, estavam apenas trabalhando num laboratório experimental, longe do público e da indústria”. Frente às dificuldades imediatas – a nova explosão de Hollywood e a rápida mudança nos gostos do público – Carlos Diegues encerrava seu artigo curiosamente se unindo ao pensamento de Valadão no ideal de conquista do mercado interno para os filmes brasileiros: Por isso creio que o mercado externo não deve contar como um elemento importante na produção de um filme brasileiro. Aliás, nunca contou. Os confetes da imprensa internacional não nos devem iludir; com 286 pouca experiência e tradição, só fortalecendo o nosso próprio mercado, conquistando definitivamente o nosso público interno, é que poderemos ser uma cinematografia sólida. Neste momento, então, o mercado externo virá como uma conseqüência natural. Segundo José Mario Ortiz Ramos (op. cit.), entre 1970 e 1972 começaram a confluir os interesses propagados pelo Cinema Novo e a ação cultural do governo militar em sua postura aparentemente neutra. Com os órgãos estatais cinematográficos colocando o caráter industrial do cinema acima das aversões ideológicas, deu-se lugar à contraditória união entre um governo conservador e cineastas ditos de esquerda. O antigo projeto unificador nacional e a proposta “nacionalista cultural” passaram a ser embarcados pela ditadura, possibilitando a identificação e a convergência política entre os interesses do Estado e dos produtores, ambos colocando em primeiro lugar a “luta contra a penetração econômica americana” e a “conquista do mercado nacional”. Como esclareceu Artur Autran Sá Neto (2004), a questão do mercado interno não foi ponto pacífico no pensamento industrial cinematográfico brasileiro, sendo contestada em diversos momentos, sobretudo em relação ao mal-definido critério de “qualidade” que deveria balizar a produção cinematográfica nacional. 436 Nos anos 70, tanto a questão do “mercado interno” (na defesa de uma legislação protecionista) quanto da “qualidade” (com o fenômeno das pornochanchadas) vão balizar as discussões no meio cinematográfico brasileiro. Nos filmes dos grandes produtores cinematográficos brasileiros do início dos anos 70, a questão da qualidade é de fato salientada. No mesmo número de Ipanema: cinema em revista, o slogan no anúncio da Magnus Filmes ressalta esse aspecto, novamente não definido com clareza: “Magnus Filmes – símbolo de qualidade em cinema”. Já no anúncio da R.F. Farias, a noção do que significava essa qualidade talvez seja mais claro: “a melhor técnica do cinema brasileiro”. A idéia de Valadão do que seria a qualidade de seus filmes pode ser indicada pela exaltação (provavelmente exagerada) dos valores de produção e condições industriais das novas produtoras, além do conhecimento do público que inclusive determinaria o conteúdo das produções: 436 Segundo Autran (2004, p.190), “a crise aguda e a falência da Vera Cruz acarretaram o refluxo da idéia do mercado externo como saída econômica para a indústria, mas ela continuou a pairar sobre o cinema brasileiro de forma fantasmagórica”. O cinema independente dos anos 50, se contrapondo à Vera Cruz, defendeu a importância do mercado interno para a consolidação da indústria. Já o Cinema Novo, com a boa acolhida nos festivais internacionais e a problemática recepção do público nacional, novamente voltou-se para o exterior. Entretanto, continuou persistindo a crença na “qualidade” como instrumento para resolver os problemas do cinema brasileiro, embora os critérios (artísticos, técnicos ou morais) para defini-la nunca tenham sido muito claros, encaminhando-se para uma imposição de valores. 287 As grandes produtoras nacionais têm condição de oferecer mercado de trabalho o ano inteiro para seus artistas e técnicos. Há um fluxo contínuo de produções, com uma ampla margem de previsibilidade para sua colocação. Um cronograma determina quando serão lançadas tais e tais filmes, visando atingir este ou aquele público. O filme é todo produzido em relação à realidade do consumidor nacional e as 437 características locais, religiosas, morais etc. O produtor valorizava ainda o sistema de produção industrial dos grandes estúdios, na linha de Hollywood, reafirmando a necessidade de obediência a formulas e esquemas consagrados, contrários à liberdade do cinema de autor que marcara o cinema brasileiro na década anterior: O ‘script’ é submetido a várias fases de consultas entre os diversos departamentos – e que pode ser modificado até o último instante, para obedecer a exigências ou sugestões para o consumo. Desenhistas, redatores, técnicos de som, circulam sob o olhar atento do relógio de ponto. [...] Como é que pode esperar uma reação favorável do público um diretor que, sistematicamente, rejeita se submeter a um código comum com este público? Para o cinema brasileiro atual, não tem a menor significação que 20, 30 ou 50 mil pessoas se decidem a filmar alucinadamente e que depois se vejam impedidas de comercializar as loucuras que cometeram. Entretanto, essa tentativa de industrialização de um cinema popular de massa foi permeada de contradições, convivendo com “um processo cultural que se sofisticava tecnicamente, a televisão se modernizando, a publicidade se complexificando”. (RAMOS, J, 2004, p. 25). Um cinema popular de massa – que ao longo dos anos 70 foi representado mais claramente pelos produtores da Boca do Lixo ou pelos filmes de Mazzaropi e dos Trapalhões – procurou se adequar a um processo de modernização, sofrendo com a concorrência da “qualidade” televisiva. Por outro lado, um novo padrão de produção também surgiu em setores que não se inseriam na moldura de um cinema assumidamente comercial e popular e que em sua maioria tiveram que se articular com o Estado, através da Embrafilme, ou através de produtores de companhias mais estruturadas. Se a Magnus Filmes de Valadão flertou com diversas tendências ao longo dos anos 70, sem conseguir grandes sucessos em nenhuma delas 437 438 , foi através realmente de uma Nesse sentido, pelo menos na intenção senão em resultados práticos, a idéia da necessidade de conhecimento do gosto do público se aproximava do que a própria TV Globo começava a fazer a partir da criação de seu Departamento de Pesquisas em 1971. 438 Depois de Dois perdidos numa noite suja, Valadão ainda produziu outro “filme artístico”, Mãos vazias (dir. Luiz Carlos Lacerda, 1971), produção cercada de brigas. Lacerda disse jamais ter conhecido “sujeito mais sujo e desonesto” que Valadão, o acusando de utilizar parte do financiamento da Embrafilme para Mãos vazias em outra produção sua (O enterro da Cafetina). Já o produtor, afirmou que “Lacerda se enchia de maconha e ficava todo mundo nu para dar mais clima ao filme”, tendo sido obrigado a resgatar a equipe em Paraty para não serem presos. Depois de investir em bem-sucedidos filmes que ele chamava de “pornocafajestadas”, o produtor 288 “companhia mais estruturada”, a Produções Cinematográficas R. F. Farias, de Roberto Farias, que o nome de Plínio Marcos voltou ao cinema brasileiro após as adaptações de Chediak e de Fontana, em filmes marcados pela qualidade técnica e pela modernização tecnológica. afirmava que “seus seguidores” engrossaram muito na comédia erótica e preferiu seguir a trilha de filmes policiais, ainda assim com alto teor erótico. Nessas produções buscou construir uma serialização em torno de sua figura, um “Clint Eastwood nacional”, se voltando para o público masculino e popular. Depois do oportunista e bem-sucedido Eu matei Lúcio Flávio (dir. Antonio Calmon, 1979), o fracasso de O torturador (dir. Antonio Calmon, 1980) praticamente encerrou o projeto. Mesmo sem ter se aproximado assumidamente da pornochanchada na década de 70, em 1981 chegou a produzir um pornô explícito (Viagem ao céu da boca, dir. Roberto Mauro), embora seus nomes não tenham aparecido nos créditos. Um de seus últimos trabalhos como produtor foi a adaptação da peça de Nelson Rodrigues A serpente (1980), dirigida por seu filho, Alberto Magno, filme que permaneceu inédito comercialmente até 1990. Se chegou a ser vice-presidente do Sindicato dos Produtores e do Sindicato da Indústria Cinematográfica, sendo até mesmo cogitado como candidato à direção da Embrafilme e da Concine em 1979, ao longo da década de 80 se afastou do cinema, fazendo somente participações como ator em novelas e programas de televisão, até se converter ao protestantismo em 1995. Recentemente têm sido “redescoberto” pelas gerações mais novas. 289 4. PLÍNIO-POP-GAY-BLACK Fontoura: do teatro ao cinema, da cultura popular à cultura pop. 439 Antônio Carlos Fontoura (hoje assinando Antônio Carlos da Fontoura), nasceu em São Paulo em 1939, mas foi criado no Rio de Janeiro, para onde se mudou aos 9 anos de idade. Formou-se em geologia, mas logo largou a profissão para se envolver, como grande parte de sua geração, com arte, política e cultura popular. Por volta de 1961 ingressou no CPC da UNE, e até meados daquela década, apesar de algumas experiências com cinema, esteve mais envolvido com a atividade teatral. 440 Em 1965, já disposta a se dedicar principalmente ao cinema, Fontoura foi técnico de som do curta- metragem O Circo de Arnaldo Jabor e partiu para a produção de seu primeiro filme. O amigo David Neves o apresentou ao diplomata Arnaldo Carrilho, chefe da missão cultural do Itamaraty, que lhe apoiou com oito latas de negativo. Três delas foram usadas e cinco vendidas para custear a produção do primeiro curta-metragem de Fontoura, Heitor dos Prazeres (1966), sobre o pintor e sambista carioca. Em seguida, dirigiu Ver Ouvir (1967), inspirado na obra de três artistas plásticos, Roberto Magalhães, Antônio Dias e Rubens Gerchman. Com fotografia do americano David Drew Zingg, o filme foi realizado com sobras de negativo das produções estrangeiras Tarzan e o grande rio (Tarzan and the great river, 439 As citações de Fontoura, quando não assinaladas em notas, foram retiradas de seus comentários no dvd de A rainha diaba e de um de seus extras, o documentário Uma rainha chamada Diaba (direção de Ana Moreira, 2004, produção CTAv / SAV), assim como de entrevista realizada para esta dissertação, em abril de 2006. 440 Nas palavras do próprio Fontoura: “Descobri a cultura no CPC, como autor e ator, sob a égide do Vianinha”. A primeira peça na qual atuou foi A estória do Formiguinho ou Deus ajuda os bão, de Arnaldo Jabor, tendo posteriormente escrito textos como Pátria o muerte, em parceria com Oduvaldo Vianna Filho e Armando Costa. Em 1962, depois de trabalhar alguns meses como geólogo no interior da Bahia e antes de retornar ao CPC, participou do histórico Seminário de Cinema com o documentarista sueco Arne Sucksdorf, realizado no Rio de Janeiro. Se pelo envolvimento com o teatro, Fontoura não participou da primeira produção cinematográfica do CPC da UNE, o filme em episódios Cinco vezes favela (1962), no ano seguinte fez parte da equipe de Cabra marcado para morrer, filmado na cidade de Galiléia, no interior de Pernambuco. Fontoura fazia a claquete e foi assistente do diretor Eduardo Coutinho, aproveitando sua experiência no trabalho do CPC com operários para ajudar a dirigir os camponeses e a redigir os diálogos adicionais. Este teria sido o segundo filme realizado com o patrocínio da UNE se as filmagens não tivessem sido interrompidas pelo golpe de 1º de abril de 1964, que significou também o fim dos Centros Populares de Cultura. Entretanto, antes mesmo do golpe, Fontoura já pensara em se afastar do CPC, planejando continuar em Recife para fazer um filme sobre a implantação do salário mínimo entre os camponeses. 290 EUA, dir. Robert Day, 1967) e Tarzan e o menino da selva (Tarzan and the jungle boy, EUA, dir. Robert Gordon, 1968), ambos filmados no Brasil em 1965. Em meio a diversas outras atividades 442 441 , depois dos seus dois primeiros curtas- metragens terem sido elogiados pela crítica, ganho diversos prêmios e rendido algum dinheiro, Fontoura decidiu partir para seu primeiro longa-metragem. Em 1968, com uma produção caseira, filmou “no quarteirão da sua casa” Copacabana me engana. 443 O filme contava “sem pretensões intelectuais nem clichês sociológicos as aventuras e desventuras de um garotão de Copacabana”, o superbacana Marquinhos (Carlo Mossy). Ele sai com os amigos, entre eles Macalé (Joel Barcelos), mantêm um caso com uma vizinha mais velha, Irene (Odete Lara) – que possui um ex-amante rico, Alfeu (Paulo Gracindo) – e atura a família, especialmente o irmão mais velho, Hugo (Claudio Marzo). Fontoura quis fazer um filme “sobre o pessoal do outro lado”, a classe média de Copacabana, pois se grande parte dos filmes daquela época era sobre intelectuais de esquerda, Copacabana me engana falava de um “burro de direita”. O longa- metragem era reflexo de um processo mais amplo que outros filmes também exemplificam. Conforme o diretor: “Já ‘táva meio de saco cheio daquele negócio de cultura popular, já tava achando que aquilo não ia chegar a nada [...]. Depois de 64, acabou. Falei: deixa eu cuidar da minha vida, porque mudar o Brasil já tentei e não vai ser assim”. Significativamente, o filme inicialmente se chamava Corpo fora e os evidentes traços autobiográficos são talvez responsáveis pela grande empatia que o filme provocou. 444 Além disso, o primeiro longa- metragem de Fontoura também era claramente marcado pela influência do tropicalismo e pelo espírito pop. A trilha sonora de Copacabana me engana 441 Os bastidores dessa filmagem são retratados de forma irônica no documentário Rio, Capital Mundial do Cinema (dir. Arnaldo Jabor) sobre o Festival Internacional do Filme, realizado no Rio de Janeiro em 1966. 442 Depois do fim do CPC da UNE, Fontoura participou do histórico espetáculo Opinião, em dezembro de 1964, fazendo a seleção musical de canções estrangeiras; fez roteiros para programas de TV com Oduvaldo Vianna Filho e Armando Costa; também em parceria com Vianinha assinou um roteiro – jamais filmado – para Ruy Guerra intitulado O adultério; e foi um dos organizadores do primeiro show de Chico Buarque no Rio de Janeiro, em 1966. Para o Grupo Opinião, Fontoura também escreveu com Ferreira Gullar e Armando Costa a peça A Saída? Onde Fica a Saída?, uma revisão do Estado militarista sob a ameaça nuclear. Estreando em 21 de março de 1967, foi “talvez o mais complexo espetáculo montado pelo grupo” (MORAES, 2000, p.238), com direção de João das Neves que nele empregou o sistema coringa de Augusto Boal. 443 O filme foi bancado por recursos do próprio Fontoura, pela conhecida bailarina Dalal Achcar (pela primeira vez investindo em cinema) e por verba proveniente do CAIC (Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica). A equipe comia sanduíche na lanchonete da esquina, sendo composta por “9 ou 10 pessoas”. A atriz principal (Odete Lara) era mulher do diretor e o fotógrafo (Afonso Beato), o mesmo de Heitor dos Prazeres, era seu vizinho. O filme não contava com maquiador, cenógrafo ou figurinista e Fontoura falava para os atores: “Como é que seu personagem se veste? Arruma tuas roupas e veste”. 444 ALENCAR, Miriam. Copacabana e o mundo de Antonio Carlos Fontoura. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 out. 1968. O filme recebeu os prêmios INC de melhor roteiro, ator, atriz e ator coadjuvante de 1968. 291 era atravessada de grandes sucessos tropicalistas: os personagens ouvem na vitrola músicas dos Mutantes (Batmacumba e Minha menina), enquanto Baby, cantada por Gal Costa e Caetano Veloso, é quase uma canção-tema, abrindo e fechando o filme. Na banda sonora passam ainda “Nora Ney, Beatles, canções bregas, diálogos de novela, Chacrinha, musical americano, locutores de rádio e a sonoridade das ruas, numa primorosa edição guiada pela colagem, com cortes bruscos e combinação de contrários”. 445 O próprio título definitivo do filme foi retirado da letra de Superbacana, uma das canções mais pop de Caetano Veloso: [...] O mundo explode longe muito longe O sol responde o tempo esconde E o vento espalha e as migalhas Caem todas sobre Copacabana me engana, Esconde o superamendoim E o espinafre biotônico No comando do avião supersônico Do parque eletrônico, do poder atômico Do avanço econômico [...]. 446 Sintonizado com uma mudança de rumos no cinema brasileiro, que já a partir de meados dos anos 60 se voltava para o personagem urbano, de classe média e suas problemáticas individualistas, o filme de Fontoura também aliava diversas influências, de Godard a Nelson Rodrigues, sinais da cinefilia da época, e se revelava marcado pela emergência da cultura jovem em escala mundial. No Brasil, tanto o Tropicalismo e a Jovem Guarda na música, assim como Copacabana me engana ou Roberto Carlos em ritmo de aventura no cinema, expunham uma nova sintonia com a situação internacionalizada e modernizada das camadas mais jovens (RAMOS, J., op. cit., p. 197). 447 Com argumento de Leopoldo Serran, Armando Costa e do próprio diretor, Copacabana me engana foi um enorme sucesso de crítica e público, fazendo, segundo 445 ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Copacabana me engana. In: NELSON RODRIGUES E O CINEMA, 2004, Rio de janeiro. Catálogo... Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001. 446 Caetano estreara em disco em 1967 com Domingo, dele e de Gal Costa, ainda marcado pela filiação do artista à bossa nova. No texto na contracapa, porém, ele avisava: “Minha inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos que segui até aqui”. Naquele mesmo ano, junto com Gilberto Gil, ele provocaria a explosão do tropicalismo, lançando canções como Alegria, alegria e Tropicália, incluídas no disco Caetano Veloso, seu primeiro LP individual, gravado em janeiro de 1968 e do qual também fazia parte Superbacana. 447 Numa elogiosa crítica da época é possível perceber essa tendência, numa referência a outros filmes de 1968/1969, como A noite do meu bem (dir. Jece Valadão), Como vai, vai bem? (dir. Grupo Câmara) e As amorosas (dir. Walter Hugo Khoury): “o processo de Antonio Carlos Fontoura é o que marca, nos últimos anos, o jovem cinema brasileiro: para contar uma história urbana brasileira não é necessário descer aos cafajetismos do meu bem, à caricatura popularesca do vai não vai, aos incêndios existenciais das amorosas vazias” (LEITE, Maurício Gomes. O tônico Fontoura. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 mar. 1969). 292 Fontoura, cerca de um milhão de espectadores e rendendo aos produtores quatro vezes o que eles tinham investido. Foi uma virada em sua carreira: “comprei apartamento, fui para Europa, Estados Unidos, à África e passei dois anos sem saber o que fazer da minha vida”. Esse êxito foi auxiliado por um “lançamento esperto” 448 no Art-Palácio Copacabana e elogios de personalidades convidadas à estréia por Odete Lara e pelo casal Baby Bocayuva Cunha e Dalal Achcar, e cujos comentários foram usados na divulgação do filme. 449 Depois de Copacabana me engana, o projeto seguinte de Fontoura chamava-se A cangaceira eletrônica, um ousado e radicalmente tropicalista “musical pop, misturando cangaço e ficção cie ntífica, com música de Macalé e cenografia de Hélio Oiticica.”. 450 Como foi dito no capítulo anterior em relação ao Cinema Marginal, o sucesso do primeiro longametragem de Fontoura iria viabilizar uma maior ousadia e experimentação em seguida. 451 A cangaceira eletrônica seria bancado pelo empresário César Thedim, marido da atriz Tônia Carrero, que começava a investir em cinema num filme de sucesso garantido. Era só aguardar o êxito certo de É Simonal, dirigido pelo cineasta revelação Domingos de Oliveira, cuja produção já estava em andamento, para realizarem o segundo longa de Fontoura. O roteiro já tinha sido em escrito, Hélio Oiticica fora pago pelos seus desenhos e Fontoura procurava ol cações em Brasília quando ocorreu algo imprevisto: Wilson Simonal, a maior estrela da música brasileira, era acusado de ser informante do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Conforme Nelson Mota (2000, p.211-213), além do fato de que no clima de paranóia geral, a delação era o pior crime, Simonal tinha adversários poderosos nos negócios, a antipatia de boa parte da imprensa e da esquerda, e inúmeros desafetos movidos pela inveja, pelo racismo ou pela inimizade decorrente de sua arrogância. Sem trabalho, condenado como dedo-duro sem julgamento e processado por seqüestro, Simonal foi liquidado. O mesmo aconteceu como o filme É Simonal, um estrondoso fracasso, e com a super-produção A Cangaceira Eletrônica, que ficou sem produtor. 448 SIMÕES, Eduardo. O talentoso Mr. Fontoura. O Globo, Rio de Janeiro, 3 fev. 2005 Nelson Rodrigues: “Uma excepcional fatia da vida de Copacabana”. Clarice Lispector: “Mas a mim também Copacabana enganava. Ver o filme e andar por Copacabana depois foi uma experiência inesquecível”. Glauber Rocha: “Um filme corajoso, porque desnuda um bairro, suas famílias e seus jovens de maneira real, sem apresentar desculpas ‘cômodas’ para o comportamento de cada um”. 450 NEPOMUCENO. Rosa. Uma rainha muito endiabrada. Diário de notícias, Rio de Janeiro, 30 mar. 1974. 451 A cangaceira eletrônica aparentemente se aproximava, por exemplo, de Brasil ano 2000 (dir. Walter Lima Jr.), também um ficção científica passada no Brasil. Sobre os projetos seguintes após Copacabana me engana, Fontoura contou na época: “Quanto a próximos trabalhos, tenho quatro ou cinco roteiros. Um deles se chama O Cavaleiro do Apocalipse, a história de um bancário (que poderá ser Marquinhos daqui a alguns anos) que mata operários, porque, frustrado, não gosta de gente pobre. Porém o roteiro mais adiantado é de um musical cujo título provisório é Retrato Falado, e lembra o retrato falado dos noticiários policiais. É sobre crime” (ALENCAR, Míriam. Copacabana me engana. A nudez de um bairro. Jornal do Brasil. 9 e 10 mar. 1969). 449 293 Como seu segundo longa- metragem não saiu do papel, Fontoura dirigiu nos anos seguintes diversos curtas com temas variados, todos eles imbuídos do espírito pop. The last and first man (O último homem) (1969), co-dirigido por Antônio Calmon, era falado em inglês e legendado em português, tendo como tema os escritores de ficção-científica Arthur Clarke, Alfred Bester e Robert Sheckley, presentes no 1º Simpósio de Ficção Científica realizado no Rio de Janeiro. 452 Ouro Preto e Scliar (1970) abordava a obra do pintor Carlos Scliar inspirada na cidade mineira e Wanda Pimentel (1972) tratava do relacionamento do trabalho da artista plástica com o seu meio ambiente, ambos dando seqüência ao diálogo de Fontoura com as artes plásticas iniciado nos dois primeiros curtas. A bolsa (1971) foi um filme de encomenda para a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, enquanto Gal (1970) e Mutantes (1970) faziam parte de um projeto desenvolvido por André Midani da gravadora Philips e pela produtora fundada por Fontoura e David Neves chamada justamente Pop Filmes. 453 É curioso que com o aborto do projeto de A cangaceira eletrônica, após o sucesso de Copacabana me engana Fontoura não tenha dirigido outro longa- metragem até 1973, sendo este intervalo justamente o período em que emergiu o Cinema Marginal. 454 Embora fosse vizinho e amigo de Neville D’Almeida, por exemplo, Fontoura disse nunca ter tido vontade “de fazer filmes como os do Julinho [Bressane]: juntar as pessoas muito loucas e filmar”. Entretanto, naquela época o diretor comprou uma câmera Super 8 mm de David Neves e passou três anos registrando em película sua vida. 452 455 O filme não tinha música e a banda sonora era composta apenas de ruídos: “No Rio de Janeiro o filme foi classificado por Gustavo Dahl como um jornal de autoridades psicodélicas” (O ÚLTIMO HOMEM, material de divulgação, [1971]. Mimeografado) 453 Os curtas Gal e Mutantes eram colagens de imagens dos artistas com suas músicas seguindo o estilo “prévideoclipe” e o humor visual e pop de Richard Lester – diretor de Os reis do ié-ié-ié (A Hard Day´s Night, 1964) e Socorro! (Help!, 1965), ambos com os Beatles –, mesma influência para um filme como Roberto Carlos em ritmo de aventura e suas seqüências. Mas se José Mário Ortiz Ramos (op.cit.,p.203) afirma que “o ritmo lento da primeira produção de Farias com Roberto Carlos está longe da agilidade dos filmes de Lester”, os curtas de Fontoura, misturando bitolas 35 mm e Super 8, sem créditos ou letreiros ou uma linha narrativa propriamente dita, revelam mais semelhanças com o dinamismo dos filmes estrelados pelo fab four, além da ousadia do filmes experimentais brasileiros daquela mesma época. Segundo Fontoura, através do mesmo projeto também foi produzido um curta-metragem sobre o cantor Jorge Ben, dirigido por Paulo Veríssimo. 454 Copacabana me engana foi premiado com o Candango de melhor argumento no IV Festival de Brasília de 1968, justamente a edição em que o grande vencedor foi o seminal O bandido da luz vermelha, que recebeu os prêmios de melhor filme, diretor, diálogos, figurino e montagem. 455 O surgimento do Super 8 mm que começou a ser comercializado a partir de 1965, chegando ao Brasil em 1970 e se popularizando nos anos seguintes, também foi uma marca significativa do desejo de alguns cineastas por possibilidades de experiências radicais a baixíssimos custos. O cinema marginal chegou a realizar experiências nessa bitola – como o longa-metragem A miss e o dinossauro (1970), produção da Belair, além dos primeiros filmes de Ivan Cardoso – e sua influência é latente no ativo movimento superoitista dos anos 70. Nesse 294 Ou seja, na passagem da década de 60 para 70, Fontoura realizou curtas-metragens, viajou pelo mundo, filmou em Super 8 mm e mergulhou na contracultura, no universo pop e tropicalista e nas drogas. Foi desse turbilhão que surgiu A rainha diaba. “Vai pintar breve nas telas um filme muito louco” 456 No início dos anos 70, artistas e intelectuais descobriram a maconha e o Rio de Janeiro viveu o auge das “dunas do barato” em Ipanema, o local de encontro da chamada “geração desbunde”. Naquela mesma época, Fontoura teve outra idéia para um longa- metragem. Nas palavras do cineasta, como ele e seus amigos fumavam muita maconha e a droga estava bastante presente na vida dos jovens da época, sobretudo no meio artístico, o cineasta começou a refletir sobre como a droga chegava até ele, o consumidor. Pensando no “sangue que está por trás do meu barato”, decidiu faze r um filme sobre o tráfico da erva e batizou o projeto de A guerra da maconha. 457 Como pertencia ao mundo pequeno-burguês da zona sul carioca – justamente o universo que ele retratara em Copacabana me engana – e não conhecia o “outro lado do Rio”, o diretor pensou no nome de Plínio Marcos – “um cara que entendia de marginal” – para ajudá-lo no argumento. Plínio ainda gozava da fama decorrente de suas peças A navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, então proibidas, mas que Fontoura tinha assistido no Rio de Janeiro alguns anos antes. A atriz Odete Lara, então ex- mulher de Fontoura e amiga de Plínio, o apresentou ao dramaturgo e o cineasta lhe pediu que desenvolvesse a idéia de um filme “de barra” de uma “uma batalha nas bocas”. 458 O dramaturgo teria lhe perguntado “Você tem um dinheirinho aí?”. Com a resposta afirmativa de Fontoura, Plínio emendou: “Você pode esperar quatro dias?”. Quatro dias mais tarde, Fontoura recebeu um conto chamado A rainha diaba. Disposto a tirar A guerra da maconha (já baseada em A rainha diaba) do papel, Fontoura procurou imediatamente o produtor Roberto Farias. Assim que Copacabana me engana se tornara um grande sucesso, ele teria dito a Fontoura que quando ele quisesse fazer sentido, Fontoura esteve em sintonia com as realizações marginais, embora sua produção em Super 8 mm jamais tenha sido exibida comercialmente ou em mostras e festivais. 456 “Vai pintar breve nas telas um filme muito louco. Trata-se de A rainha diaba, produção nacional meio na base do underground” (O Globo, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974). 457 Entrevista emUma Rainha Chamada Diaba (dir. Ana Moreira, 2004). 458 FONTOURA e as emoções que se liberam e voam. O Globo, Rio de Janeiro, 29 mai. 1974. 295 “outro filme de jovens na Zona Sul” ele produziria. Nada mais natural para o diretor e produtor que vinha investindo com enorme êxito nessa linha desde a segunda metade dos anos 60. Se na época Fontoura não se interessou em repetir o universo que já tinha abordado em seu primeiro filme, em 1972 Fontoura procurou a R. F. Farias para produzir A guerra da maconha em busca da “sólida estrutura técnico-administrativa que o filme precisava”. Como naquele momento a trilogia de filmes com Roberto Carlos já tinha superado em renda e em número de espectadores tanto os filmes do Mazzaropi quanto comédias eróticas como Os paqueras, parecia um bom investimento para Roberto Farias dar crédito a um diretor que já tinha se mostrado muito eficiente num outro “filme jovem”. Enquanto Fontoura fazia o tratamento do roteiro e a pesquisa para o filme – incluindo uma visita ao amigo Hélio Oiticica em Nova Iorque – Roberto Farias viabilizava a produção. Do mesmo modo que em Toda nudez será castigada (dir. Arnaldo Jabor, 1973), a R. F. Farias se associou a Ventania Filmes, do produtor e ator Paulo Porto. Outra metade dos recursos veio do próprio Fontoura e de seu amigo Ricardo de Souza (da Filmes de Lírio) cujo “pai deixou ele vender uma Mercedes das várias que ele tinha para botar no filme”. Embora não fosse uma das maiores produções de Roberto Farias, o segundo longametragem de Fontoura teve uma equipe bem maior do que a de Copacabana me engana e o diretor chegou a comentar o receio que teve ao chegar ao set do já renomeado A rainha diaba e encontrar cerca de quarenta pessoas, diversos refletores e inúmeros equipamentos. 459 Todo esse esquema de produção foi alardeado no material de divulgação do filme: Organizando-se em torno da estrutura técnico-administrativa da Produções Cinematográficas R.F.Farias, os quatro produtores mobilizaram os recursos necessários que levaram A rainha diaba ao seu término no início de 1974, depois de 8 semanas de preparação, 9 semanas de filmagem e 12 semanas de acabamento, período em que cerca de 500 pessoas prestaram serviços técnicos e artísticos 460 para a produção do filme. A rainha diaba foi filmado entre maio e junho de 1973, em estúdio e locações. As cenas externas foram rodadas na Lapa, Estácio, Praça Mauá, Morro de São Carlos e no 459 Conforme José Mario Ortiz Ramos (2004, p.196-205), se é perceptível uma indisfarçável precariedade nos problemas de produção de Roberto Carlos em ritmo de aventuras, a procura pela modernização em consonância com o desejo de contemporaneidade na busca do espectador juvenil se desdobraria nos filmes seguintes de Roberto Farias. Em Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa (1970) já há, por exemplo, uma “internacionalização de cenários”, com filmagens no Japão e Israel, enquanto o terceiro filme da série, A 300 km por hora (1971) é recheado de cenas de corridas de automóveis, universo que também seria explorado em O Fabuloso Fittipaldi (1973). 460 QUEM PRODUZIU A RAINHA DIABA? Mimeografado, [1974]. 296 Catumbi, enquanto que alguns cenários foram construídos no próprio estúdio da R.F. Farias. O prostíbulo, o quarto da Diaba e o de Isa foram filmados num velho hotel em Laranjeiras, perto da produtora. Finalizado em março de 1974, o filme estreou no Rio de Janeiro dia 29 de maio daquele ano, com distribuição da Ipanema Filmes do próprio Roberto Farias, “em circuito lançador, reduzido na segunda semana e prosseguindo em salas de bairro”. Recebendo muitos elogios da crítica e diversos prêmios 462 461 , o filme também se saiu bem nas bilheterias, mesmo com a censura estabelecendo a proibição para menores de 18 anos. Levando em consideração o orçamento divulgado na imprensa (de 800 mil cruzeiros), A rainha diaba aparentemente teve bons resultados já nos primeiros meses de exibição nos cinemas. Segundo dados oficiais, até dezembro de 1974, ainda em começo de carreira, o filme já tinha alcançado a renda de Cr$ 970.890,80 e público de 236.805 espectadores, se estabelecendo como a 17º maior bilheteria dos 74 filmes nacionais lançados naquele ano. Outro documento da Embrafilme assinala que, até junho de 1979, A rainha diaba já chegara a um público de 441.237 espectadores e renda de Cr$ 1.816.212, sucesso semelhante ao de A navalha na carne, sendo um resultado bastante significativo para um filme com uma temática e estética bastante arrojadas. 463 Fontoura afirmou em entrevista que achava que o filme tinha tido público “de uns 700 mil espectadores, pouco menos que Copacabana me engana”. Em relação à recepção internacional do filme, A rainha diaba foi exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 1974, onde, segundo a imprensa brasileira, recebeu elogios significativos. 464 Foi comentado em jornais da época que o filme só não participou da mostra competitiva por causa de falhas na alfândega (ou de uma retenção proposital do Itamaraty) que não permitiram que a cópia fosse enviada a tempo para a seleção. 461 465 O filme GUIA DE FILMES. Rio de Janeiro: Embrafilme, n.49-51, jan-jun. 1974. Em sua primeira semana em cartaz no Rio de Janeiro A rainha diaba foi exibido nos cinemas São Luís, Palácio, Pirajá, Copacabana, Veneza, Carioca, Imperator e Madureira 1. 462 No VIII Festival de Brasília, em julho de 1975, A rainha diaba era o favorito do público para o Candango de melhor filme, que acabou sendo dado para Guerra conjugal (dir. Joaquim Pedro de Andrade). Esta foi a primeira edição do Festival após a interrupção em 1971, quando Nenê Bandalho tinha sido censurado, e não foi oferecido prêmio do público, apenas do júri oficial. 463 INFORMAÇÕES até junho de 1979, Embrafilme, [1979]. Mimeografado. 464 Reportagem da época destacou trecho dos despachos telegráficos enviados de Cannes para o Brasil com comentários da crítica internacional: “A rainha diaba é um filme angustiante, em cores brilhantes – as mesmas, com as quais gostam de vestir-se os travestis do Rio de Janeiro, onde transcorre a ação.” (CAVALCANTI, José Armando. Cannes aplaudiu A rainha diaba. Diário da Noite, São Paulo, 23 mai. 1978). 465 BRASIL Fora de Cannes. O Globo, Rio de Janeiro, 9 mai. 1974. BRASIL proibido em Cannes. Última Hora, Rio de Janeiro, 9 mai. 1974. 297 foi exibido também no festival de San Sebastiá n, na Espanha, em 1975, onde teria agradado parcela do público e crítica, mas também provocado protestos pela sua violência. 466 É importante ainda analisar a recepção de A rainha diaba pela crítica cinematográfica brasileira e tentar perceber como o filme foi compreendido no contexto do cinema nacional na época. De um modo geral, todos os críticos consideraram o segundo longa- metragem de Fontoura um “bom filme”. Salvyano Cavalcanti Paiva colocou o bonequinho sentado batendo palmas para o longa- metragem 467 , enquanto Ely Azeredo, que já apostava que A rainha diaba seria “um dos lançamentos mais importantes do ano” 468 , em sua crítica após a estréia, afirmou: “em poucas palavras: A rainha diaba é um bom filme” 469 . Luiz Alípio de Barros, lembrando que o filme vinha recebendo elogios incondicionais ou a negação total e absoluta, ponderou: “Se não é uma obra-prima, possui inegáveis qualidades e está, sem dúvida alguma, entre as mais bem cuidadas e mais curiosas produções do cinema nacional, nos últimos tempos”. 470 Já José Álvaro considerou A rainha diaba o “melhor filme brasileiro do ano”. 471 Além dos aspectos técnicos (a fotografia, o figurino, a trilha sonora), sempre ressaltados, as interpretações do elenco foram talvez os pontos mais lembrados. Salvyano Cavalcanti Paiva elogiou as atuações de Nelson Xavier (“excelente!”), Milton Gonçalves (“grande, fantástico desempenho”), Odete Lara e Stepan Nercessian. Ely Azeredo ressaltou o “trabalho impecável” de Odete Lara e o Bereco “seguro” de Stepan Nercessian, enquanto Wilson Grey entre os coadjuvantes, seria o equilíbrio em pessoa. O crítico da Última Hora teceu elogios sobretudo para os desempenhos de Odete Lara, Stepan Nercessian e Yara Cortes. Não só o elenco principal, como também os coadjuvantes receberam elogios de José Álvaro: “[ A rainha diaba alcança] uma proeza rara no cinema caboclo: um homogêneo rendimento interpretativo dos coadjuvantes mesmo os de rápida aparição”. Através da crítica, podemos perceber também as características do novo contexto do cinema brasileiro apontado anteriormente. A “qualidade técnica” de A rainha diaba é sempre elogiada, tendo “um acabamento, um cuidado nos detalhes técnicos, um alto nível profissional que só encontra paralelo em Vai trabalhar, vagabundo! [dir. Hugo Carvana, 1973]”. 472 Mas o filme de Fontoura era ressaltado também por aliar essa técnica com uma “linguagem popular 466 ESPANHÓIS repelem A rainha diaba. A Notícia, Rio de Janeiro, 22 set. 1975. PAIVA, Salvyano Cavalcanti. A rainha diaba: Sangue e Lantejoulas. O Globo, Rio de Janeiro., 29 mai. 1974. 468 AZEREDO, Ely. Rainha diaba. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 mai. 1974. 469 AZEREDO, Ely. As artes da “Diaba”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 mai. 1974. 470 BARROS, Luiz Alípio de. A rainha diaba e dois extremos. Última Hora, Rio de Janeiro, 4 jun. 1974. 471 ÁLVARO, José. A RAINHA Diaba. A Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 1 jul. 1974. 472 A RAINHA Diaba. A Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 1 jul. 1974. 467 298 utilizada com talento e sem concessões”. 473 Anos mais tarde, uma reportagem chegou a afirmar que A rainha diaba abriu o caminho do cinema popular junto com o paradigmático O amuleto de Ogum (1974. dir. Nelson Pereira dos Santos), considerado pela historiografia como o marco de uma virada dos cineastas cinema-novistas. 474 Outra reportagem citou uma crítica que dizia que o longa- metragem de Fontoura era o filme “mais barroco, ousado e delirante realizado no cinema brasileiro depois de Macunaíma”475 , tecendo comparações, dessa vez, com o filme que representou a mais bem sucedida experiência de comunicação com o grande público do Cinema Novo. Ou seja, diversos críticos elogiavam em A rainha diaba o diálogo mais direto com o grande público, em contraponto ao hermetismo que caracterizaria outros filmes nacionais. Esses mesmos artigos revelam a visão de que filmes como A rainha diaba estariam apontando certo caminho para o cinema brasileiro. O primeiro parágrafo da crítica de Salvyano Cavalcanti de Paiva de A rainha diaba é uma amo stra exemplar dessa tendência, expressando essa opinião quase como um manifesto e resumindo, segundo esse ponto de vista, as últimas décadas do cinema brasileiro: Desfeito o reino da chanchada; sepultado o cinemanovismo delirante; punido por sua indigência o cinema-da-boca-do-lixo, eis o cinema autônomo, sem rótulos, a atingir um plano de forma e conteúdo de comunicação universal e a explorar temas, costumes e caracteres nitidamente nacionais. E agora com o apuro técnico que já se buscava nos tempo da Vera Cruz, mas dentro de proposições realistas, lúcidas (grifo meu). O filme de Fontoura seria, então, esse produto inominável, universal, resultado de uma evolução e fruto dos erros e acertos das últimas décadas do cinema brasileiro. Ely Azeredo, em sua crítica, também se refere a esse aspecto de mudança, utilizando metáforas geológicas: A superação do cinemanovismo não se realizará sem um esfriamento: depois do movimento sísmico, a acomodação das camadas do solo, o endurecimento da lava. A sabedoria de A rainha diaba e de outros filmes da fase atual (como Vai Trabalhar, Vagabundo!, para citar exemplo novo) está em compreender a mutação, em pesquisar soluções de comportamento mais produtivas para a consistência do terreno. Os dois críticos expressam certo otimismo que marcou um período de filmes que se diferenciavam da crescente produção da pornochanchada, mas ainda assim se mostravam bem 473 A RAINHA Diaba ou A outra margem do Rio. Correio Braziliense, Brasília, 13/ nov. 1982. A RAINHA diaba volta a Brasília com sua polêmica. Correio Braziliense, Brasília, 10 nov. 1982. 475 AMARAL, Hélio F. Experiência de sociologia urbana: A Rainha diaba. O Popular, Brasília, [1982]. 474 299 sucedidos em sua relação com o público, como Vai Trabalhar, Vagabundo!, Toda Nudez Será Castigada, O amuleto de Ogum e o próprio A rainha diaba. 300 Do quarto dos fundos de um prostíbulo, o sanguinário bandido conhecido como Rainha diaba controla, com mão de ferro, o tráfico de drogas na cidade. Para evitar a prisão de um de seus comparsas, ela decide criar um “bode expiatório”, forjar um perigoso bandido para depois entregá-lo para a polícia. Mas nem tudo sai como planejado...476 Uma guerra das bocas. A rainha diaba (Milton Gonçalves) é um marginal homossexual que domina o submundo do crime, principalmente o tráfico de maconha. Acompanhada pelos seus capangas – chamados de “trunfos” –, cada um responsável por uma parte do mercado da droga, a Diaba descobre que um deles, pode ser preso. Trata-se justamente de Robertinho (Arnaldo Moniz Freire), jovem, branco, bonito e de cabelos compridos, responsável pela venda junto aos “estudantes”. Ele tinha sido denunciado e conforme um informante, estava na mira da polícia, pressionada pela repercussão do caso. Com receio de que ele possa entregar os outros, além de atraída pela beleza do rapaz, a Diaba manda seu homem de confiança, Catitu (Nelson Xavier), encontrar um “bucha” para levar a culpa e atrair a atenção da imprensa e da polícia. O escolhido acaba sendo Bereco (Stepan Nercessian), “garotão” sustentado pela amante mais velha, a cantora de cabaré Isa (Odete Lara). Ele é seduzido pela lábia de Catitu a tomar parte em assaltos e no tráfico para ser incriminado mais tarde. Após ser armado o plano, Bereco, consegue escapar da polícia na emboscada planejada por Catitu. O malandro decide aproveitar essa oportunidade para, em complô com os demais trunfos, tomar o poder da Diaba. Apoiado por Catitu e os outros, Bereco começa a “arrochar as bocas” de venda de drogas da Diaba, substituindo os antigos “passadores de fumo” por Isa e suas colegas. Suspeitando da traição de seus capangas e percebendo o enfraquecimento do seu poder, a Diaba, com a ajuda de seus amigos homossexuais e travestis – as “diabetes” –, tenta descobrir o que está acontecendo. Após seqüestrarem e torturarem Isa, chegam ao nome de Bereco. Quando são finalmente confrontados, Bereco, seguindo as ordens do grupo liderado por Catitu e aproveitando a distração da Diaba, corta sua garganta com uma navalha. Mas ao sair do quarto, ele é imediatamente metralhado pelos capangas. O grupo comemora a tomada do tráfico com a morte da Diaba e de Bereco, mas Violeta (Yara Cortes), aproveitando a festa, envenena os demais para assumir sozinha o 476 A RAINHA DIABA. Material de divulgação, [1975]. Mimeografado. 301 poder. Quando todos já estão mortos, a Diaba surge do quarto se esvaindo em sangue e atira em Violeta. Ambos caem finalmente sobre a montanha de corpos amontoados no chão do bordel. Sangue e Lantejoulas No começo do filme, os letreiros dos créditos iniciais, de autoria de Angelo de Aquino e Renato Landim, já anunciam o visual de A rainha diaba: cartelas de colorido berrante, com postais antigos de retratos de mulheres em preto e branco, letras desenhadas com purpurina, fundo de veludo e ornamentadas com desenhos infantis de flores, frutas, corações e bichinhos. Esses diversos elementos evidenciam, desde o primeiro momento, a fusão tropicalista entre o kitsch e o pop que está presente em todos os aspectos do filme. Segundo o diretor, as cartelas são “como se a própria Diaba as tivesse feito”, revelando que essa ambigüidade também é uma característica essencial tanto do próprio protagonista quanto do filme que leva seu nome. Anunciado como um filme de “sangue e lantejoulas” e um thriller-pop-gay-black, tudo em A rainha diaba aponta para a mistura de elementos díspares, revelando uma obra marcada profundamente pelos conceitos do Tropicalismo. De forma evidente e consistente, a fotografia, a cenografia, o figurino e a trilha sonora do longa-metragem de Fontoura ressaltam a fusão de contrastes, quase de opostos, que é a própria essência da história e de seus personagens. Em sintonia com as intenções tropicalistas, através do exagero e de uma visão delirante, o filme de Fontoura, segundo o crítico Luiz Carlos Merten, procurou “captar, em termos de arte dramática, a extravagância que somos” e “aproximar sua linguagem das verdadeiras contradições e do verdadeiro quadro político-social-brasileiro”. 477 Fontoura revelou que sua primeira opção para assumir direção de arte do filme era seu amigo, o artista plástico Hélio Oiticica, cujas obras neoconcretistas e suas posteriores manifestações ambientais tiveram grande influência para o cinema brasileiro na década de 60 e 70. A própria música Tropicália, que batizou o disco homônimo e o movimento, foi 477 MERTEN, Luiz Carlos. Na tela, o submundo está em transe. Antonio Carlos Fontoura em busca do inconsciente brasileiro. Folha da manhã, Porto Alegre, nov. 1974 (In: MERTEN, 2004, p.272). 302 sugerida por Luiz Carlos Barreto a Caetano Veloso, num almoço em São Paulo, em 1967, aproveitando o nome de uma obra de Oiticica. 478 Mas como Oiticica estava morando em Nova Iorque na época, o convite para a direção de arte de A rainha diaba foi feito ao também artista plástico Angelo de Aquino. 479 Recém- chegado de Milão, Aquino não tinha experiência alguma em cinema, com exceção de uma participação como fotógrafo de cena no filme Vai trabalhar, vagabundo! 480 Em seu trabalho de direção de arte de A rainha diaba, Aquino usou essencialmente cores berrantes, vibrantes e cruas, buscando o tempo todo o contraste das roupas e dos objetos de cena (em primeiro plano) com o cenário (no fundo). O figurino, também de Aquino e igualmente colorido, utilizou abundantemente tecidos brilhantes ou reluzentes, como lycra, lantejoulas e seda. A maquiagem de Carlos Prieto, seguindo a mesma orientação, também procurou ressaltar as cores (batons e sombras de tons fortes) e o brilho (bastante purpurina), sobretudo nas personagens das prostitutas e travestis. A maquiagem é especialmente importante para a personagem da Diaba, uma vez que assume função dramática ao acentuar a interpretação de Milton Gonçalves, marcada por mudanças intensas e súbitas de expressão. 481 Figuras e desenhos geométricos (toalha de mesa quadriculada, roupa xadrez, lençol imitando pele de onça, calças listradas, camisas de bolinha) também são largamente utilizados no filme, surgindo sempre em contraste com outras superfícies lisas e coloridas. Na seqüência em que Isa canta o samba Molambo, no cabaré O leite da mulher amada 482 , a parede xadrez 478 Nas palavras de Caetano: “o disco já estava praticamente pronto, e a música já estava gravada, mas não tinha título. Luiz Carlos pediu pra cantar as músicas novas - naquela época se cantava muito com violão em reuniões assim. Quando eu cantei essa, ficou maravilhado. Achou parecida com o filme Terra em transe e com a obra de um artista do Rio, Hélio Oiticica, chamada Tropicália. Dizia que eu devia dar esse título à música. Respondi que não conhecia nem a pessoa nem a obra, e que não ia botar o título de uma coisa de outra pessoa na minha música. A pessoa podia não gostar. Manoel Barenbein, produtor do disco, adorou e escreveu na lata: Tropicália. Era provisório, mas ficou lá” (VELOSO, Caetano. Entrevista concedida a Ana de Oliveira, Rio de Janeiro, 27 out. 1999. In: TROPICÁLIA. São Paulo, Itaú Cultural. Desenvolvido por Ana de Oliveira. Disponível em: <http://www.tropicalia.com.br>. Acesso em: 20 abr. 2006). 479 Aquino tinha tido uma importante atuação no cenário das artes plásticas brasileiras, participando das exposições coletivas Propostas 65, na FAAP, em São Paulo, e das históricas Opinião 65 e Opinião 66, no MAM, do Rio de Janeiro. A exposição Opinião 65, uma das primeiras grandes exposições coletivas pós-64 e inspirada no espetáculo musical Opinião, reuniu jovens artistas estrangeiros e brasileiros (centre eles os próprios Oiticica e Aquino) e propunha uma ruptura com a arte do passado. Tendo como exemplos a pop art americana e o novo realismo europeu, exaltava a postura crítica dos artistas e renegava o abstracionismo, constituindo-se como um dos momentos precursores da nova figuração brasileira. 480 O interesse de Fontoura pelas artes plásticas, assim como por artistas da geração de Oiticica e Aquino, pode ser verificado pelos seus próprios curtas anteriores. 481 A androgenia do personagem maquiado se assemelha a dos integrantes da banca Secos & Molhados, especialmente o vocalista Ney Matogrosso, cujo primeiro disco, lançado em 1973, bateu recordes de venda. 482 Nos comentários do dvd do filme, Fontoura diz que o nome do cabaré foi sua invenção, tratando-se da tradução para português do nome do conhecido vinho Liebfraumilch. Entretanto esse nome já está no argumento de A rainha diaba escrito por Plínio Marcos, tendo sido, inclusive, reaproveitado pelo dramaturgo justamente na 303 preta e branca (numa das poucas cenas em que o cenário não é de uma cor berrante) é o fundo para a personagem que usa roupa azul de lantejoulas, peruca verde, unhas e batom vermelho, e é iluminada por luzes coloridas de show. Em todo o filme notamos esse colorido intenso, seja no prostíbulo e quartel-general da Diaba, onde as paredes são azuis e as janelas e as portas laranjas, ou no sobrado de Isa, com paredes amarelas e porta verde. Freqüentemente as cenas são completamente tomadas por esse arco- íris, como na primeira seqüência do filme quando a câmera entra pela porta do bordel atravessando uma cortina de fitas coloridas. Os objetos cênicos também abusam das cores fortes e vivas, como os carros (azuis e roxos), as flores de plástico, as fotos e pôsteres nas paredes e as estantes cobertas de garrafas no boteco. Em conjunto com a direção de arte, a iluminação de José Medeiros, responsável também pela câmera, buscou acentuar a textura, o brilho e o colorido das imagens. Essa profusão de cores e elementos, responsável por um dinamismo dos cenários e do próprio filme, está de acordo com a mise-en-scène desejada por Fontoura e alcançada também através da eficiente montagem de Rafael Valverde. 483 Até mesmo por insegurança, antes de rodar o diretor coreografava com os atores todas as cenas com uma câmera Super 8 mm na mão, com a qual já estava muito acostumado, buscando sempre uma movimentação intensa. Em seguida, mostrava no visor as marcações para o assistente de câmera, que ensaiava os movimentos com a câmera 35 mm, antes de passar as instruções para o diretor de fotografia José Medeiros. Segundo Fontana, A rainha diaba “é um Super 8 ampliado na hora da filmagem”. Essa dinâmica era conseguida também através do uso de um Crap Dolly pertencente à R.F. Farias. Usando esse carrinho sem trilhos com rodas de borracha e dispondo de interiores bastante espaçosos, foi conseguida uma liberdade de movimento próxima à da câmera na mão. Além disso, como Fontoura ressaltou, José Medeiros trabalhava com a câmera destravada, ou seja, sem estar fixa no tripé, permitindo que ela “respirasse”, podendo fazer pequenas correções de quadro e resultando numa “linguagem mais solta”. versão teatral de Querô, cuja primeira cena se passa exatamente em “um cabaré de baixa categoria, O leite da mulher amada”. 483 Rafael Justo Valverde (1924 – 1986) começou sua carreira nas chanchadas dos anos 40. Nas décadas seguintes montou clássicos do Cinema Novo, como Vidas secas e Deus e o diabo na terra do sol, assim como trabalhou com produtores como Herbert Richers e Jece Valadão (foi o montador de A navalha na carne, por exemplo). Estabeleceu grande parceria com Roberto Farias, montando diversos filmes produzidos ou dirigidos por ele. Transitando por diversos gêneros e estilos, foi um dos mais requisitados montadores do cinema brasileiro nos anos 60 e 70. 304 Ou seja, a fotografia de A rainha diaba proporciona ao filme uma intensa dinâmica visual através tanto da movimentação do plano (com travellings, carrinhos, panorâmicas e câmera na mão) quanto dentro do plano (com intenso movimento dos atores e figurantes, além do zoom e repetidas mudanças de foco). Segundo Fontoura, a escolha de Medeiros para a fotografia foi indicação do produtor Roberto Farias, a única que ele teria feito ao longo do filme, mas que foi aceita de bom grado pelo diretor. O fotógrafo priorizava as luzes naturais e utilizava poucos refletores. Nas críticas do filme, a fotografia de José Medeiros, premiada no VIII Festival de Brasília, foi bastante elogiada, sendo ressaltada como “equilibrada”, “seca”, “sensível” e “sem sofisticação”. 484 Da mesma forma, o dinamismo da fotografia e da cenografia do filme se encontra também no plano sonoro. Diferentemente de A navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, que privilegiavam o silêncio, mas assim como Nenê Bandalho, em A rainha diaba canções, diálogos e ruídos perpassam quase ininterruptamente o filme. Servindo inclusive como fundo sonoro para os diálogos das personagens, se escuta a todo o momento uma música tocando (geralmente em vitrolas ou rádios localizados diegeticamente), o som da televisão ligada ou alguém cantando. 485 O contraste e o excesso desse universo marginal de bordéis e cabarés da Lapa que a fotografia, a edição de som e a direção de arte buscaram ressaltar, também estão presentes nos personagens e na interpretação dos atores. O jogo de opostos é a principal característica da personalidade do próprio protagonista. A rainha diaba de Milton Gonçalves alterna momentos de doçura e ira, meiguice e dureza, fragilidade e grandeza. Além disso, ainda havia o impacto do personagem ser negro e homossexual o homem mais poderoso, forte e violento daquele universo. Algumas cartelas dos créditos iniciais que ficaram de fora da montagem final do 484 O fotógrafo de Copacabana me engana, Affonso Beato,também se mudara para Nova Iorque, dando início a bem sucedida carreira internacional. José Medeiros (1921 – 1990), que foi durante 16 anos fotógrafo da revista O cruzeiro, começou sua carreira no cinema em A falecida, trabalhando posteriormente em filmes de diretores ligados, de maneira geral, ao Cinema Novo. No final da década de 60 iniciou longa parceria com o produtor Roberto Farias, para quem fotografou, entre outros, a trilogia de Roberto Carlos. A partir justamente do primeiro filme da série, Roberto Carlos em ritmo de aventura, Medeiros passou a trabalhar exclusivamente com fotografia colorida. 485 Em momentos dramáticos do filme, como no seqüestro de Isa pelos travestis ou quando Bereco vê a navalha esquecida no criado mudo da Diaba, um som agudo como uma sirene ou uma campainha provoca um desconforto e um sentimento de perigo próximo. O músico Guilherme Vaz, autor da trilha sonora, explicou que esse efeito era conseguido ao se puxar os dedos na guitarra em um movimento chamado “glissar” o instrumento. 305 filme também já procuravam antecipar o caráter dúbio da personagem, através de adjetivos contrastantes como “delicado”, “violento”, “chocante” e “boneca”. 486 Ora com uma voz grossa e impositiva, ora com voz de falsete e olhos baixos, seja assumindo um tom de machão ou exibindo trejeitos efeminados, Milton construiu uma personalidade rica e complexa para a personagem, que lhe rendeu os quatro mais importantes prêmios de interpretação do cinema brasileiro: o VIII Prêmio Air France de Cinema, a Coruja de Ouro do Instituto Nacional de Cinema, o Prêmio Governador do Estado de São Paulo e o Candango de Ouro do VIII Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. No documentário Uma rainha chamada Diaba, Fontoura lembra que Milton Gonçalves não foi sua primeira opção para o papel. Pensando em rostos menos conhecidos no cinema, ele convidou antes o cantor Agnaldo Timóteo e o ator Procópio Mariano, que acabou interpretando o policial aliado da Diaba. Ambos recusaram a personagem por receio de ficarem estigmatizados pela figura marcante do homossexual e bandido. O próprio Milton contou que primeiro consultou sua família antes de aceitar o papel. Não apenas a ousadia, mas também a ambigüidade, a contradição e o deboche do filme estão refletidos na interpretação de Milton Gonçalves, e também na de Nelson Xavier. Apesar de vários elogios a suas atuações, certo exagero (em sintonia com o espírito do filme), gerou algumas restrições. Para Luiz Alípio de Barros, apesar de bons, os dois atores ser mais contidos. 487 Ely Azeredo criticou um “semi-tom de gaiatice (presente também em excesso, na galeria de bonecas) que nega ao filme a efervescência trágica desejável”, além do “excesso” de Nelson Xavier, como se “tivesse necessidade de garantir o aplauso”. Na opinião do crítico, “na margem carioca de sangue e lantejoulas de A rainha diaba as últimas, às vezes, levam a melhor. E esta não era a melhor opção”. O próprio ator Nelson Xavier se mostrou um pouco crítico em relação a sua interpretação de Catitu, onde teria adotado um tom “meio exibicionista”. 488 Entretanto, é a exagerada malícia nos seus gestos lentos e na sua voz macia que garantem uma atuação mais saborosa e mais adequada do que no realista Dois perdidos numa noite suja, por exemplo, e 486 Essas cartelas estão depositadas no setor de documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 487 BARROS, Luis Alípio de. A rainha diaba e dois extremos. Última Hora, Rio de Janeiro, 4 jun. 1974. 488 Uma rainha chamada diaba. 306 próxima a do malandro arrependido Babalu do filme Vai trabalhar, vagabundo!, filmado na mesma época que A rainha diaba. 489 A Rainha é pop A rainha diaba foi anunciado como um thriller-pop e assumia diversas influências de uma “cultura pop” e de uma “cultura jovem” que o cinema brasileiro já incorporava com vigor desde o final da década de 60. Conforme já apontamos, o primeiro longa- metragem de Fontoura, Copacabana me engana era um claro exemplo da influência de uma “cultura jovem” em um cinema feito por jovem e para jovens que surgiu na segunda metade dos anos 60 e permeou, por exemplo, tanto os primeiros filmes de Domingos de Oliveira ou as comédias musicais com astros da Jovem Guarda, quanto também o Cinema Marginal. Podemos localizar em muitos filmes marginais, segundo preceitos tropicalistas (e sua contrapartida antropofágica), um diálogo crítico, mas também incorporador do mundo industrial e dos modernos meios de comunicação que marcavam o universo dessa cultura pop. Nesse sentido, elementos estéticos – essencialmente urbanos – desvalorizados pelo cinema de influência nacional-popular, como as história s em quadrinhos, a publicidade, o romance policial, o rádio, a televisão e o jornalismo sensacionalista, adquiriram renovada importância, como muito bem exemplifica O bandido da luz vermelha. Além disso, os cineastas marginais também dialogavam critica e irreverentemente com elementos estrangeiros inseridos numa cultura internacional, como o filme de gênero americano ou o rock e a música pop. Entretanto, é notável uma surpreendente ousadia no visual pop do filme para o panorama cinematográfico brasileiro de 1974. Um dos motivos talvez seja o fato de que durante a feitura do roteiro de A rainha diaba, Fontoura tenha viajado para Nova Iorque para visitar seu amigo Hélio Oiticica, que vivia lá com uma bolsa de estudos, passando um mês em seu loft. O apartamento do artista plástico era localizado na “2º avenida com a rua 4”, um dos locais mais “barra pesada” da cidade, ponto de encontro dos travestis porto-riquenhos. 489 Fontoura afirmou que inicialmente Wilson Grey interpretaria o Catitu, mas após os primeiros ensaios, insatisfeito com o resultado, conversou com Grey que, como foi regra ao longo de sua extensa carreira, acabou brilhando em papel coadjuvante. Nelson Xavier foi convidado para o papel dias antes do início das filmagens e um dos motivos para o diretor ter pensado em seu nome foi por seu histórico no Teatro de Arena e pelo entrosamento que já tinha com Milton Gonçalves, com que contracenaria. 307 Durante esse período, Fontoura contou ter recebido uma verdadeira “aula de travestis” e ter respirado a intensa atmosfera pop do local, freqüentando shows e discotecas: “Colhi muito material que era muito mais rico do que eu podia fazer. Fiz uma versão mais pop do roteiro e incorporei muitos elementos de coisas que eu tinha visto lá”. Desse modo, o cineasta conferiu ao filme traços de uma “vanguarda” da marginalidade pop da cidade mais cosmopolita do mundo, berço das mais radicais experiências artísticas americanas. Nesse sentido, é importante pensar a relação que A rainha diaba estabelece, por exemplo, com a pop art. Vindo a ser considerada um dos mais importantes movimentos artísticos da segunda metade do século XX, a pop art surgiu na Inglaterra como uma contestação ao expressionismo abstrato, mas adquiriu seus contornos nos EUA, principalmente em Nova Iorque, alcançando mais popularidade do que qualquer outro “movimento” da arte moderna. A pop art ajudou a tornar ainda mais tênue a linha que separava obra de arte e mercadoria ou alta e baixa cultura, incorporando o mundo do consumo no circuito de arte de galerias. Conforme Roy Lichtenstein, o que marcou a arte pop foi antes de tudo o uso que ela fez do que antes era desprezado. 490 Desse modo, foi exacerbada uma tendência que marca toda uma expansão da arte moderna conquistada graças à incorporação de elementos da dita cultura de massa, como a imprensa, o graffiti, a caricatura, os quadrinhos e a publicidade (cf. VARNEDOE; GOPNIK, 1990). Além disso, segundo Cacilda Teixeira da Costa, a pop art também marcou um retorno à figuração, tendência dominante na história da arte, mas que ressurgia naquele momento como inédita, já que as imagens não eram mais criadas a partir da realidade e sim recriadas a partir de ícones pré-codificados pelos meios de comunicação. É questionável apontar a existência de uma pop art no Brasil, embora a chamada Nova Figuração Brasileira, lançada pela mostra Opinião 65 (da qual o diretor de arte de A rainha diaba fez parte), tenha correspondido à retomada geral do figurativismo no país. Sobre os reflexos desse movimento no Brasil, Cacilda Teixeira da Costa refletiu: A questão é que a Pop, em sua origem novaiorquina, enfocava o imaginário popular no cotidiano da vida da classe média norte-americana, tomando seus temas das imagens produzidas nesse contexto sendo natural que não tenha existido entre nós um movimento igual ao de lá já que se tratava da revelação crítica daquela sociedade. Mas, por ser uma idéia, um espírito adaptável a diferentes 490 OSORIO, Luiz Camillo. Rigor e despretensão com o que é desprezado. O Globo, 20 abr. 2006. 308 situações, é perfeitamente compreensível que os artistas tenham se tornado ‘antropofágicos’ e aproveitado criativamente a experiência pop, sem perder a identidade ou autonomia . 491 É justamente esse “espírito pop” que marca profundamente A rainha diaba, por exemplo, em seu diálogo com a publicidade. A presença constante de anúncios e marcas no filme não era merchandising, mas se constituía num elemento estético. Depois de Andy Warhol ter transformado em arte imagens como as latas de sopa Campbell ou garrafas de Coca-Cola, mostrar com destaque os logotipos da Esso (no posto de gasolina assaltado), Pepsi (no caminhão roubado), Carlton (em pôster no boteco) ou Minister (num outdoor) era mais um ingrediente do visual pop do filme de Fontoura. Da mesma maneira, um diálogo semelhante também se estabelece com o universo das histórias em quadrinhos. O personage m Bereco em determinado momento de A rainha diaba aparece lendo histórias em quadrinhos, enquanto em outra cena, o mesmo personagem está vestido com uma camiseta dos Freak Brothers, personagens de Gilbert Shelton. Embora isso possa ser encarado como associado ao caráter adolescente da personagem, as histórias em quadrinhos são outro elemento significativo desse universo jovem. A estética dos quadrinhos vai estar ainda mais presente no filme seguinte de Fontoura, o fracassado Cordão de ouro (1977), justamente uma adaptação de uma história em quadrinhos que era uma tentativa de criar um herói popular brasileiro, negro e lutador de capoeira. 492 Nesse sentido, A rainha diaba se alinha ao Cinema Marginal na superação do nacionalismo organicista e ao igualmente enveredar pelo jogo de contaminação tropicalista, do nacional e estrangeiro, alto e baixo, vanguarda e kitsch, arcaico e moderno (XAVIER, 1993, p.19). Como em vários filmes marginais, mas talvez de forma até mais acentuada, A rainha diaba mistura num liqüidificador tropicalista elementos de uma cultura jovem, pop e moderna com características estilizadas do universo do kistch, popular e arcaico. 491 COSTA, Cacilda Teixeira da. Aproximações do espírito pop. In: APROXIMAÇÕES DO ESPÍRITO POP: 1963-1968. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2003, p. 20. 492 Depois da idade do ouro das histórias em quadrinhos americanas na década de 20, do comercialismo dos heróis nos anos 30 e 40, do moralismo e da crise na década de 50 – marcada pelo livro The seduction of innocent, de Fredric Werthman, publicado em 1954 – e do surgimento da “tira intelectual” de um Charles Schulz ou Jules Feiffer, os quadrinhos passaram por uma revolução criativa. A ironia ácida da revista Mad, os comics alternativos de um Robert Crumb, o surgimento de heróis críticos nas grandes editoras – como O demolidor e O homem-aranha, de Stan Lee – e os novos artistas europeus faziam parte de um universo que interessou, por exemplo, aos cineastas marginais. Sinal mais evidente disso é o fato de Rogério Sganzerla, junto com Álvaro de Moya, ter dirigido em 1969 os curtas-metragens Histórias em quadrinhos (comics) e Quadrinhos no Brasil. 309 Esse apelo ao brega já apontado nos cenários e figurinos493 , encontra sua principal expressão provavelmente na seleção musical de A rainha diaba. De autoria de Guilherme Vaz e premiada no VIII Festival de Brasília, a trilha sonora do filme reflete de forma cristalina a mistura tropicalista de elementos populares e modernos. O músico que já tinha composto trilhas semelhantes em filmes como Fome de Amor (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1969), fez para o longa- metragem de Fontoura um acompanhamento musical com elementos dissonantes, que em alguns momentos lembra uma jam session pop, próximo ao virtuosismo do rock progressivo ou às tentativas daquela época de unir o jazz ao pop. Segundo Vaz, as partituras da trilha não tinham notas, mas gráficos e pulsões, além de contar com muito improviso, para compor um “fundo de música pop nervoso, vibrante”. 494 Por outro lado, junto a black music então moderníssima Get Up (I Feel Like Being a) Sex Machine, de James Brown, uma parte brega ou popular da trilha sonora – da qual Guilherme Vaz chegou a reclamar na época – está presente em todo o filme, da canção de abertura às músicas diegéticas do rádio da Diaba, com marchinhas de carnaval ou “uma música americana de quinta”. Os créditos iniciais surgem ao som da guarânia Índia, na versão brasileira cantada por Paulo Sérgio, verdadeiro ícone do “estilo brega” e um dos maiores ídolos da música romântica nacional. A mesma música tinha sido regravada com sucesso em 1973 por Gal Costa, na releitura tropicalista do disco homônimo. Assim como em outros momentos do filme, a música de abertura se revela localizada na diegese, quando na primeira cena, no prostíbulo, Vitória tira a agulha de um disco da vitrola e a canção é interrompida. Ou seja, a canção popular caracteriza o próprio ambiente da Rainha. O mesmo ocorre nos números musicais da personagem Isa, interpretada pela atriz e também cantora Odete Lara, como o do bolero La Mujer que no se Asoma, próximo do excesso melodramático tratado com ironia em O bandido da luz vermelha quando o bandido canta Mi corazón te llama, ou da inserção de Nelson Rodrigues numa chave melodramática no então recente Toda nudez será castigada, atravessado pela marcante trilha de Astor Piazzola. 493 495 A cena da festa que a Diaba é representada como uma “festinha de aniversário suburbana”, com decoração infantil, bolas na parede, bebidas coloridas e outros elementos aparentemente “populares”. 494 A trilha sonora do filme foi executada por bateria (Robertinho Silva), percussão (Paulinho e Chico Batera), baixo amplificado (Bruce Henry), guitarra (Jaime Shields), piano elétrico (Fender Thodhes) e um sintetizador (Guilherme Vaz) (A RAINHA Diaba: sangue lantejoulas na outra margem do Rio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 mai. 1974). 495 Da mesma forma que a Isa de A rainha diaba, a prostituta Geni (Darlene Glória) também interpreta um bolero num número musical do filme de Arnaldo Jabor. No conto de Plínio Marcos, a amante de Bereco era uma garçonete de cabaré, e não uma cantora. Essa modificação, além de diminuir o teor decadente da personagem, 310 A música também serve como elemento de contraste e crítica, num expediente muito próximo também ao ut ilizado em filmes marginais, especificamente em Matou a família e foi ao cinema. 496 Quando Bereco invade o barraco de Bigode para matá-lo por acreditar equivocadamente que foi ele quem o “dedurou” para os policiais, a música que embala a violenta cena é a alegre Estrada do sol, composta por Dolores Duran e Tom Jobim, na versão da banda de Jovem Guarda Os incríveis. Por terem composto no momento de maior repressão da ditadura a ufanista Eu te amo, meu Brasil, o grupo ficou identificada com o regime militar, e o fato de ser exatamente a voz de Os Incríveis a acompanhar planos do rosto do personagem coberto de sangue, de olhos esbugalhados para câmera e com a cabeça caída no próprio prato de comida, prova as possibilidades críticas desse tipo de colagem tropicalista. 497 A mistura estilizada de narrativa de filme policial americano, traficante de maconha brasileiro e canções românticas latinas, faz de A rainha diaba quase uma versão cinematográfica de letras de músicas tropicalistas. É interessante compará- lo com a canção El justiceiro – mesmo nome do filme de Nelson Pereira dos Santos – incluída no disco Jardim elétrico (1971) dos Mutantes Rita Lee, Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, que embaralhava anarquicamente melodia de western spaghetti e a letra de extrema e debochada violência em inglês, italiano, castelhano e português: Once upon a time when the hot sun faded behind the mountains The shadow of a strong man, with a gun in his hand, raised to protect the poor people of the haciendas They called him: "El Justiciero"! […] El Justiciero, yo tengo treinta hijos con hombre La guerra, la guerra me ay strupatto tanto bene Socuerro, El Justiciero, ajuda-me por favor! Mas um dos elementos principais utilizados na geléia geral de A rainha diaba foi justamente o conto homônimo de Plínio Marcos. provavelmente se adequava mais à atriz Odete Lara, que também desenvolveu uma carreira paralela como cantora, tendo gravado dois discos nos anos 60. 496 Uma referência imediata é a cena do filme de Julio Bressane em que a personagem de Márcia Rodrigues espanca violentamente a própria mãe, com a amiga (Renata Sorrah) lixando as unhas ao seu lado, enquanto câmera permanece imóvel até começar de repente uma alegre marchinha de carnaval. 497 O grupo foi formado em 1962 como The clevers, mudando de nome dois anos depois para Os incríveis e iniciando a fase de maior sucesso da banda, que chegou a estrelar o filme Os Incríveis neste mundo louco (1966), dirigido por seu empresário Paulino Brancato Jr. Após se separarem no início dos anos 70, seus integrantes se reuniram novamente pela primeira vez para gravar o disco Os incríveis Mingo, Nené e Risonho (1973), do qual faz parte a música Estrada do sol. 311 Rainha e Plínio Na pesquisa para esse trabalho, foi possível o acesso ao argumento original de Plínio Marcos vendido para Fontoura. Trata-se de um conto jamais publicado com 55 páginas datilografadas e corrigidas à mão pelo próprio dramaturgo. Esse conto já se chamava A rainha diaba e apresentava toda a estrutura dramática e narrativa que o filme viria a ter. Os diálogos e os personagens (incluindo seus nomes) foram mantidos praticamente sem mudanças na adaptação para o cinema. 498 Numa página em anexo, datilografada pelo próprio Fontoura com a ordem das seqüências do filme – cujo título, como aparece no alto da folha, era ainda A guerra da maconha – percebemos algumas das poucas mudanças feita pelo diretor e roteirista. A primeira seqüência (e primeira página) do conto de Plínio, resumida por Fontoura como “Bereco na leve: acorda e vai para o Leite”, foi cortada do roteiro. O início do texto em que Plínio descrevia o personagem começava da seguinte maneira: “Bereco era um garotão sacudido, mas ainda só pesava na balança dos pivetes. Entre a turma da pesada não tinha vez. Não era considerado. Mas, tinha jeito para todo tipo de trambique. E muita gente levava fé nele. O próprio se acreditava bem. Nos quás -quás -quás compridos que os pixotes esticavam, todas as tardinhas, nas quebradas do mundaréu, era ele quem cortava e jogava de mão. No papo, fazia e acontecia. E, se alguém mais folgado duvidava, o pivete bom se jurava: – Quando tocar para mim, podem crer. Me garanto. Só tou na boca de espera. Não vão me estranhar quando eu piar nas cabeceiras, que é na ponta o meu destino”. A segunda seqüê ncia do conto (“Catitu enrola Bereco”) permaneceu nessa ordem e o que era a terceira seqüência (“Trunfos se reúnem com Diaba e tira”) virou o início do filme. Essa nova ordem assinalada nessa lista de seqüências, reformulada em relação ao conto original, corresponde efetivamente ao encadeamento das cenas que A rainha diaba recebeu em sua versão final. 499 Como Fontoura contou, ele pediu a Plínio Marcos uma história “com muito sangue” que envolvesse uma guerra das bocas no tráfico de drogas. Diante dessa proposta, o dramaturgo lhe entregou um conto no qual ousou colocar livremente traços característicos de sua obra (personagens cruéis e egoístas, abuso de poder, gírias, palavrões e xingamentos, brigas violentas), mas numa história com traços de tragédia shakespeariana, com traições 498 MARCOS, Plínio. A rainha diaba, [1971]. Depositado no setor de documentação do CTAv Rio de Janeiro. Alguns trechos do conto foram suprimidos. O desfile da diaba e suas diabetes pelas ruas da cidade chegou a ser filmado, mas foi descartado durante a montagem. Algumas dessas imagens filmadas por Fontoura em Super 8 estão no dvd do filme como “cenas inéditas”. 499 312 covardes, paixões não correspondidas e desfechos trágicos. O próprio fato de ser uma história passada numa espécie de “reino distante e desconhecido” (o submundo marginal), envolvendo uma rainha tirânica, seu traiçoeiro braço-direito, súditos fiéis e um jovem “plebeu” bravo e tolo, também conferia esse tom ao filme. 500 A força de A rainha diaba talvez se dê por caminhar numa linha tênue entre uma denúncia realista, cruel e violenta de problemas sociais (o crime organizado, o tráfico de drogas, a corrupção policial) e uma moldura irônica, debochada e irreverente de filiação tropicalista. O conto de Plínio se articula dos dois modos, conferindo a autenticidade e o realismo almejado através principalmente dos diálogos e da crueza das situações, mas também colaborando com o deboche e a ironia igualmente característicos de sua obra, da mesma forma que em Nenê Bandalho. Segundo Fontoura, as muitas gírias do conto original não apenas foram mantidas, como algumas (poucas) até reescritas por um amigo de Hélio Oiticica que freqüentava as bocas de fumo do morro do Estácio, com o intuito de conferir um tom menos paulista e mais carioca ao filme. A busca de uma linguagem “autêntica” do submundo foi bastante elogiada pela crítica na época. O crítico Ely Azeredo, embora afirmasse que o filme não tinha a força trágica ou a explosão das peças do dramaturgo (e da primeira adaptação de Chediak) ressaltou a contribuição de Plínio na “dialogação extremamente veraz, rica de um conhecimento que não se aprende na escola, e no embasamento das caracterizações dos personagens. Jamais se enfatizará em demasia como esse tipo de trabalho é importante para nosso cinema. A fala dos personagens de A rainha diaba reforçam a variada gama de sua galeria humana”. 501 Entretanto, mesmo essa autenticidade dos diálogos era alvo da ambigüidade do filme. O apelo às gírias foi tão exacerbado, inclusive na interpretação num certo overacting dos atores, principalmente Nelson Xavier, que adquirem um tom reflexivo que o filme exibe em diversos momentos. 502 Fontoura revelou que inspirado em Accattone (1961, dir. Pier Paolo Pasolini), queria que o público não entendesse 50% do que os personagens falavam. Segundo José Carlos Avellar, em sua análise crítica do filme, as gírias em A rainha diaba funcionam como uma 500 Catitu, por exemplo, é uma espécie de Iago, o “falso amigo” do rei negro Othelo. Plínio já tinha feito duas adaptações de peças de Shakespeare antes, transformando Macbeth em Macabô e Romeu e Julieta em Balbina de Iansã. 501 AZEREDO, Ely. As artes da “Diaba”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 mai. 1974. 502 Reflexividade também ligados ao mundo marginal de Plínio Marcos. Em uma seqüência do filme de Fontoura, a personagem de Nelson Xavier, Catitu, passa em frente a um pôster de Roberto Carlos (onde se pode ler “super pop”, ao lado do nome do cantor) e, em seguida, pára em frente a um espelho, ajeitando seu cabelo que tem o mesmo penteado que o ídolo na foto. 313 espécie de código entre os personagens, servindo para expressar o tipo de pessoa, sua postura e intenções. Para o espectador, não é preciso necessariamente entender tudo para compreender o que é dito. Mas essa dubiedade já tinha sido apontada em reportagem da época: “[Se Fontoura e Plínio são] sócios no argumento final, os diálogos são basicamente de Plínio e sua riqueza quase excessiva no uso da gíria serve afinal a dois objetivos: entranha os personagens em seu meio marginal e delirante, de um lado, e se casa perfeitamente com o tratamento paródico pretendido pelo cineasta”. 503 Por outro lado, Salvyano Cavalcanti de Paiva criticou essa mesma característica, aparentemente insatisfeito com o tratamento debochado do filme: “O único reparo ao filme de Fontoura, o exagero, o derramamento no emprego do jargão criminal, a parecer, até, que Plínio Marcos começa a cunhar palavras, a inventar termos de gíria e a transferir de São Paulo para o Rio, o calão das bocas: é uma saída, mas caricatura ao invés de retratar o ambiente”. 504 Entretanto, a ironia também é uma característica da obra de Plínio Marcos e no conto A rainha diaba isso pode ser claramente percebido, por exemplo, nos apelidos dos personagens. Em seus nomes há um deboche ao mesmo tempo engraçado e cruel, geralmente apontando para defeitos e fraquezas das personagens, como o Anão (o baixinho) ou Manco (aleijado pela própria Diaba). Essa característica seria ainda mais evidente no personagem Querô, cujo apelido é um diminutivo relacionado ao suicídio de sua própria mãe ao beber querosene (no romance de Plínio) ou atear fogo às próprias vestes encharcadas desse líquido (na adaptação de Reginaldo Farias). 505 Além da humilhação e a violência pela linguagem, um outro traço dos mais característicos da obra pliniana, presente em certo nível também em A rainha diaba, é o personagem homossexual. Rainhas, viados e bichas. 503 A RAINHA Diaba: sangue lantejoulas na outra margem do Rio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 mai. 1974. 504 PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Sangue e Lantejoulas. O Globo, Rio de Janeiro, 29 mai. 1974. 505 Já os apelidos de alguns dos travestis do filme de Fontoura (como Decidida e Duvidosa) têm mais a ver com suas posturas e comportamento. Em relação a protagonista, se pela frente a chamam de “Rainha” – e as diabetes, mais intimamente, de “Diaba” – por trás, seus asseclas, incentivados por Catitu, só a tratam por “boneca” ou “perobo”. 314 No livro de Antônio Moreno A personagem homossexual no cinema brasileiro (2001), publicado a partir de sua dissertação de mestrado (1995), o autor inaugurou no Brasil os “estudos queer”, investindo numa análise da representação dessa personagem na história do cinema nacional. Moreno elaborou uma listagem de filmes brasileiros na qual apontou a presença do personagem homossexual e a partir de um “modelo de análise fílmica estrutural / significativa”, buscando apoio na semiótica, redigiu pareceres sob o teor do discurso dos filmes acerca dessa personagem, os enquadrando em três categorias: pejorativo, nãopejorativo e dúbio. Como apontou com perspicácia Robert Stam (2004, p.303), os estudos que propõem a abordagem de estereótipos no cinema comportam uma séria de armadilhas do ponto de vista teórico- metodológico, como o de enveredar pelo essencialismo, com simplificações reducionistas que correm o risco de reproduzir o próprio racismo que tentavam combater: Esse essencialismo termina por gerar um a-historicismo; a análise tende a ser estática, a não permitir mutações, metamorfoses, mudanças de valência, funções alteradas; ignora a instabilidade histórica do estereótipo e mesmo da linguagem. As análises de estereótipos são, também, dissimuladamente fundadas no individualismo, pois a personagem individual, mais do que categorias sociais mais amplas (raça, classe, gênero, nação, orientação sexual), permanece sendo o ponto de referência. Moreno (2001, p.29) não escapa dessa armadilha, como seu próprio texto revela ao justificar a opção por um modelo padrão e rígido de análise, “necessário para que se pudesse aplicar igualmente, a todos os filmes estudados, o mesmo tipo de questionamento dirigido a determinados aspectos comportamentais concernentes ao ser em sociedade, tendo em foco principal os atribuídos às personagens homossexuais” (grifo meu). Esse debate é justificado pela inclusão por Moreno dos filmes A navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja na categoria dos que apresentam gestualidade estereotipadas. Se não se aprofunda sobre o segundo filme, em relação à primeira adaptação dirigida por Chediak, o autor afirma que Veludo, a personagem gay, “é faxineiro, pobre, submisso ao cafetão de quem apanha, é medroso e ardiloso” (Ibid, p.92). Em relação ao que já foi discutido no capítulo 3 sobre o filme e a peça de Plínio Marcos, é evidente como a análise de Moreno se revela rasteira e superficial. Já na análise sobre o personagem homossexual em A rainha diaba, Moreno (op.cit., p.256-257) fez um julgamento ainda mais severo, afirmando que “o filme não faz concessão a nenhuma personagem homossexual. Estas convive m com uma realidade extremamente 315 violenta, são obsessivas, estereotipadas e sádicas”. O autor conclui de forma enfática: “A rainha diaba é uma alegoria das mais violentas e sádicas do homossexualismo”. Ignorando todas as especificidades do filme, os problemas da crítica de Moreno ficam ainda mais evidentes quando relacionamos o filme ao universo de Plínio Marcos. Na época de lançamento de A rainha diaba, um jornalista já apontava para uma ligação da homossexualidade no longa- metragem de Fontoura com a obra do dramaturgo: “A visão dura do mundo marginal, com sua macheza ostensiva na verdade escondendo tendências femininas, já tinham aparecido em algumas peças fundamentais de Plínio: Dois perdidos numa noite suja, Navalha na carne (ambas adaptadas ao cinema sem nenhuma grandeza) e Barrela”. 506 Ainda apelando para reportagens de época, podemos chamar a atenção para o contexto de extremo e radical preconceito exemplificado pelo comentário de um outro crítico que reclamava do “travestinismo de determinadas seqüências, excessivamente realistas como aquelas que se desenvolvem no antro dos travestis”. 507 Assim como a prostituta ou o cafetão, também é recorrente na obra de Plínio Marcos a presença do personagem homossexual, geralmente exercendo sub-empregos como faxineiros de pensões baratas ou garçons de prostíbulos. No universo marginal de Plínio Marcos, onde os personagens vivem segundo o lema “cada um, cada um” – fala do garoto Querô de Uma reportagem maldita – e estão sempre na balança entre a auto-afirmação perante o outro ou a humilhação pelo outro, a homossexualidade é clara, óbvia, berrante. Os personagens plinianos procuram (e encontram) nos outros, fatos ou características que sirvam para se impor cruelmente sobre eles – como a idade de Neusa Sueli em Navalha na carne –, mas dificilmente a homossexualidade serve como ponto fraco a ser explorado, como mostra o personagem Veludo na mesma peça. Por trás do excesso, do exagero ou até do aparentemente estereotipado, está uma atitude afirmativa, marcada, por exemplo, pelo uso do gênero feminino quando os personagens se referem a si próprios. 508 A homossexualidade dos personagens plinianos dificilmente é questionada ou discutida – porquê, como ou quando assumiram esse condição – se revelando, nesse sentido, muito “bem resolvidos”. Ou seja, não se abatendo ou se acabrunhando ao serem chamados de “viados” ou “bonecas”, eles expressam uma clara 506 A RAINHA Diaba: sangue lantejoulas na outra margem do Rio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 mai. 1974. 507 F.A.S. A rainha diaba, um filme sério. Voz do Paraná, Curitiba, 22 set. 1974. 508 No conto A rainha diaba há também uma personagem feminina homossexual, com se nota por seu nome, Dilma Grelo. No filme de Fontoura, a personagem aparece brevemente no cabaré Leite da Mulher Amada abraçada com outra mulher. 316 convicção em suas opções sexuais – que a roupa e os trejeitos reafirmam, mesmo que grotescamente. Além do mais, a homossexualidade deve ser encarada dentro do grupo social bastante particular do universo em que Plínio Marcos transitou, regido por regras e normas diferentes das que ditam o comportamento da classe média brasileira, por exemplo. Se em outras obras de Plínio Marcos os personagens homossexuais, em geral, só são subjugados quando se apela para a força física (e às vezes, mesmo assim conseguem se impor, como, mais uma vez, o Veludo), em A rainha diaba o protagonista, mesmo homossexual, também tem a violência física a seu favor e, não à toa, comanda o (sub)mundo. O mesmo pode-se dizer dos personagens coadjuvantes, “as diabetes”. Segundo Fontoura, alguns deles nem eram atores profissionais, mas cabeleireiros, costureiros e maquiadores convidados. Por outro lado, podemos perceber na personagem da Rainha diaba que sua fraqueza talvez seja justamente o seu lado feminino, seus sentimentos e sua vaidade. Entre outros motivos, é pela beleza de Robertinho que Diaba decide criar um bode expiatório para ser preso no lugar do assecla – mote inicial do filme que será justamente o começo de sua ruína. É também pelo charme de Catitu que a Diaba não percebe seu complô, assim como é pelo encanto por Bereco que ela comete a distração que vai resultar em sua morte. Ou seja, o amor e o desejo é que são justamente o ponto fraco do marginal, o mesmo que de muitos outros personagens plinianos, mulheres ou gays. 509 Na primeira cena de A rainha diaba os capangas chegam ao prostíbulo aonde vão se encontrar com a Diaba para uma reunião. Um a um, entram o Anão (Lutero Luiz), Manco (Wilson Grey), Peludo (Paulo Sacramento / Banzo Negro), Gravata (Perfeito Fortuna), “trunfo” (Quim Negro) e Robertinho (Arnaldo Moniz Freire), além de Violeta (Yara Cortes), dona do bordel. Cada um deles é responsável por uma boca de fumo diferente (no cais do porto, no jockey, junto aos estudantes etc.), numa distinção evidenciada pela aparência, tipo físico e roupas. Quando entra em cena o policial Coisa Ruim (Procópio Mariano), vestido com terno preto e ostentando além de uma enorme barriga, um revólver bem à vista, todos os trunfos também revelam estarem armados. Cria-se assim uma expectativa pela visão da protagonista, o chefe de todos eles e que vai se revelar uma mistura heterogênea de todas as 509 Por outro lado, numa diferente interpretação do filme, podemos enxergar a tentativa de sedução de Bereco pela Diaba não motivada por simples vaidade, mas por pura necessidade da Rainha manter seu reinado do tráfico. Traída pelos seus antigos aliados, a Rainha diaba só poderia sobreviver se atraísse o garoto para o seu lado. Caso ela conseguisse a aliança de Bereco – que já despontava como um novo líder (possível substituto do próprio Catitu) – a Diaba poderia perfeitamente dispensar (e, provavelmente, eliminar) os trunfos traidores. Possivelmente, esse outro aspecto, mais frio e calculista da personagem, também pode ser identificado na rica personalidade do protagonista. 317 características de seus capangas. Aquino (2002, p. 150) chama atenção para a fala de Violeta “A Rainha já vai recebê- los”, que teria “a intenção protocolar de estabelecer um ritual que distancia liderança e liderado, fundando uma hierarquia rígida que guia o bando. Diaba os recebe em seu quarto, deitado em sua cama/trono como uma verdadeira rainha do submundo”. Nessa sua primeira aparição no filme, a protagonista surge depilando as pernas com uma navalha, utilizando a lâmina com fins meramente estéticos, marca de sua vaidade “feminina”. O mesmo objeto é também o símbolo de seu poder e com o qual ameaça os outros, chegando mesmo a cortar o rosto de Robertinho e Isa, os personagens mais bonitos como ela própria, invejosa, admite. Esquecida sobre o criado-mudo, será justamente com essa mesma navalha – e, talvez, por essa mesma vaidade, ao acreditar ter seduzido Bereco – que a Diaba será morta. 510 O protagonista de A rainha diaba, assim como outros personagens homossexuais de Plínio Marcos, na verdade, não se diferenciam muito das fortes, sofridas e trágicas mulheres plinianas, sejam as prostitutas e seus cafetões, as mulheres de malandros ou as amantes traídas. Não à toa, a ruína tanto da Diaba quanto de Isa tem origem no mesmo garotão, Bereco. Ambas, assim como os demais personagens das obras plinianas, são movidas por emoções fortes e pulsões, em vidas de brilhos intensos e curtos. O amor incondicional de Isa por Bereco pode ser imediatamente relacionado à prostituta Neusa Sueli, de Navalha na carne, também envolvida com um homem mais novo que a maltrata e explora. A atriz Odete Lara, assim como Tônia Carreiro, conquistou entusiasmados elogios ao interpretar uma personagem feminina de Plínio Marcos que sofre com a insegurança da velhice a lhe apagar a beleza. Mas o elemento trágico também está presente nesta personagem, sendo ela a própria responsável por condenar Bereco à morte ao dar seu nome à Diaba, após ser torturada cruelmente, na encruzilhada típica da dramaturgia pliniana. No momento em que parecia ter finalmente alcançado a felicidade, através de um relacionamento estável com Bereco, e da auto-estima elevada pelo respeito das demais mulheres por ser a responsável pela boca de fumo, Isa vai perder de uma vez só tudo que tem de mais importante: seu amor, com o assassinato de Bereco; sua posição de destaque no 510 A navalha, objeto invariavelmente associado a tipos como o malandro ou à prostituta de rua, é imagem recorrente e quase simbólica da obra de Plínio Marcos, presente inclusive no título de uma de suas peças mais famosas. A navalha é também usada constantemente como substantivo adjetivado em caracterizações da própria linguagem do autor – de diálogos e falas “afiadas” e “cortantes” com uma lâmina. A expressão “levar a vida no fio da navalha” serve também para retratar exemplarmente o universo trágico dos personagens da dramaturgia pliniana. 318 tráfico, com o desmantelamento da gangue; e sua própria beleza (e instrumento de trabalho) com as navalhadas no rosto dadas pela Diaba. Discutindo as características do protagonista de A rainha diaba é imprescindível apontar suas relações com um personagem real, o famoso marginal homossexual da Lapa João Francisco dos Santos, ou melhor, Madame Satã. Diaba e Satã Conforme Fontoura, para criar a personagem principal de A rainha diaba, Plínio Marcos teria se inspirado numa “boneca” que comandava o tráfico em Santos – chamada “Barrão”, mas apelidada de Rainha diaba. É comum, entretanto, ser sugerida uma ligação da personagem fictícia com o famoso Madame Satã, figura quase mítica da Lapa e que foi retratado pelo cinema brasileiro contemporâneo em Madame Satã (dir. Karim Ainouz, 2002). Aquino (2002, p.133-134) apontou alguns traços em comum entre a personagem e lendário bandido: “o fato de ambos serem negros, homossexuais e terem nomes que enunciam campos semânticos idênticos”. Entretanto, essa relação aparentemente óbvia e imediata se tornou um clichê repetido ad nauseam, desde o lançamento do filme até os dias de hoje. 511 Milton Gonçalves, em entrevista à época do lançamento do filme, disse acreditar ser possível fazer um paralelo entre os dois personage ns, embora admita que por Plínio Marcos ser paulista, teria sido mais provável ele ter se inspirado em marginais que conheceu em São Paulo. Mas o ator afirmou ainda: “Particularmente eu me interessei muito pela história de Madame Satã. Inclusive conversei com pessoas que participaram da vida na Lapa, na época em que ele fazia suas proezas. Ou seja, pensei bastante nas coincidências entre ele e a Diaba. Só que não tenho consciência em que medida a figura de Madame Satã influiu sobre o meu personagem.” 512 Por outro lado, o mesmo Milton Gonçalves dizia em outra entrevista que teria se fixado numa certa “Dedeca” que o ator teria conhecido em sua mocidade em Ponte Grande, 511 Em recente matéria de jornal comentando o lançamento do dvd de A rainha diaba, o jornalista Jaime Biaggio afirmava que o título do filme “já entrega totalmente a conexão entre o personagem da vida real e o da ficção” (BAGGIO, Jaime. Madame Satã da ficção na Cinelândia. O Globo. Rio de Janeiro, 9 set. 2004). 512 A HISTÓRIA de um ator. Opinião, Rio de Janeiro, 10 jun.1974. 319 interior de São Paulo, para compor a personagem. Essa “versão inversa da Diaba”, não era homem, mas mulher, e controlava as bocas de fumo em sua cidade. 513 Ou seja, uma influência de uma figura real no filme (seja Madame Satã ou Dedeca) pode ser sugerida numa outra chave, mesmo que ela não tenha partido necessariamente do argumentista Plínio ou do diretor e roteirista Fontoura, que afirmou inúmeras vezes: “Meu filme nada tem a ver com Madame Satã”. 514 A constante e equivocada visão de A rainha diaba como uma biografia disfarçada de Madame Satã nos chama atenção para uma questão importante do filme, que é certa atemporalidade, ou uma temporalidade confusa. Podemos notar essa característica pelas palavras de Odete Lara, em reportagem antes do lançamento do filme: “Não há pretensão de retratar uma realidade, pois é impossível se falar da Lapa de hoje, por exemplo. As boates só tocam música pop e a meninada de lá ostenta com orgulho a camiseta ‘Alice Cooper’”. 515 De fato, no filme se misturam elementos de um Rio de Janeiro das décadas de 30 e 40, auge da Lapa de Satã, como vitrolas, navalhas, cabarés ou ternos de linho, com outros da mais moderna década de 70, como televisão, metralhadora, postos de gasolina ou roupas de lycra. A rainha diaba se aproxima de uma história da malandragem do passado, com sua valentia e seus códigos de honra, com a criminalidade então contemporânea, com armamentos pesados e o narcotráfico estabelecido num grande esquema de transporte, distribuição e venda em toda a cidade, incluindo zona sul, escolas e portas de boates. Como grande parte da obra pliniana, construída com referências ao universo marginal que ele conheceu em sua juventude em Santos, o argumento de A rainha diaba, embora escrito por volta de 1971 e não exatamente localizado no espaço e no tempo, também remonta a esse universo de valentes e otários. Entretanto, ao ser adaptado para o Rio de Janeiro, o conto escrito por Plínio se transformou num filme que, em sintonia com a articulação tropicalista entre o velho e o novo, misturava a figura do malandro, da navalha e da astúcia (idealizações da marginalidade do passado), com o universo do marginal, das metralhadoras e da violência (impressões da criminalidade do presente). Do malandro ao marginal 513 BARROS, Luiz Alípio de. Brasil proibido em Cannes. Última Hora, Rio de Janeiro, 9 mai. 1974. NO CINEMA, Rainha diaba nada tem com Madame Satã. Ultima hora, Rio de Janeiro, 1 jul. 1974. 515 RAINHA Diaba: Odete Lara é cantora de boate num policial cheio de violência. O Globo, Rio de Janeiro, 10 mar. 1974. 514 320 O malandro é um tipo existente desde, pelo menos, o início do século XX, associado ao desocupado, vagabundo ou vadio, de certa forma herdeiro dos capoeiras e próximo aos valentes. 516 Posteriormente, um “sub tipo do malandro”, se fundindo com o boêmio, passou a ser folclorizado e adquiriu prestígio: o malandro do morro. Este podia ser associado ao jogo do bicho, à contravenção e à desordem, mas dificilmente era estigmatizado como bandido. Conforme o antropólogo Michel Misse (1999, p.260), entre os anos 30 e 50 ocorreu, especialmente no Rio de Janeiro, uma lenta passagem “do gatuno para o assaltante armado, do malandro e do valente tradicionais para o marginal, da arma branca para a arma de fogo, a ação em grupo substituindo a ação individual, o nervosismo e o revólver substituindo a astúcia e a navalha”. Nessa época, começou a se estabelecer uma clara oposição entre o marginal, ligado à violência, e o malandro, associado à astúcia e ao ardil. Entretanto, a representação da violência urbana ainda permanecia restrita a determinadas regiões da cidade e as classes médias e as elites apenas “ouviam falar”, mas não se viam ainda envolvidas diretamente pela violência nos morros. Na década de 50, com a fixação do tipo do marginal ligado ao crime e à violência, a representação do malandro, uma figura em vias de desaparecimento, passou a ser crescentemente idealizada e, em oposição ao marginal, romanticamente se despiu de qualquer traço ou representação de violência. Nesse antagonismo que se estabeleceu, o malando era inteligente, astucioso e controlado, enquanto o marginal era ignorante, agressivo, antipático e descontrolado. O malandro era individualista e evitava o enfrentamento direto, já o marginal, desprezado pela comunidade e quadrilheiro, buscava sempre o enfrentamento com arma de fogo. Numa época marcada pelo nacionalismo e pelo crescente interesse e valorização da cultura popular, deve ainda ser ressaltada a aceitação do malandro como um importante símbolo e manifestação cultural do povo. Foi justamente nos anos 60 que a separação entre a representação do malandro e do marginal se completou, quanto praticamente desapareceu da 516 Como um dos herdeiros dos capoeiras, o malandro assumiu um caráter de desordeiro, mas também de valente, embora este se diferencie pelo uso da força – “o malandro não é sempre valente, vale-se principalmente de ardis; o valente não é necessariamente malandro, depende de produzir o ‘medo’ no outro, mas respeita os iguais e as mulheres e crianças”. Os malandros e os valentes eram enquadrados pela polícia principalmente através do artigo legal “vadiagem” ou acusados de “desordem pública”. Todos esses tipos – tanto o capoeira quanto os valentes e os primeiros malandros – são anteriores ao desenvolvimento das favelas nos anos 30-40, e estão ligados ao universo dos cortiços, cabarés e cabeças de porco do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX (Misse, 1999, p.256). 321 imprensa a denominação malandro para designar bandidos, como fora comum nas décadas anteriores. Nesse sentido, é importante lembrar que Madame Satã teria entrado para a obscuridade histórica se não tivesse sido ressuscitado pelos intelectuais boêmios cariocas, sobretudo por sua célebre entrevista para o jornal alternativo Pasquim, em 1971, que o transformou em símbolo da contracultura. Na década de 70, foi comum o tom nostálgico com que a figura romantizada do malandro era tratada, fosse em filmes como Vai trabalhar, vagabundo! ou O último malandro (dir. Miguel Borges, 1974) ou na peça de Chico Buarque A ópera do malandro (1978). A nostalgia é um traço forte inclusive da pop art, que debruçava um olhar nostálgico para o passado. Quando Andy Warhol utilizou na década de 60 imagens de embalagens ou personagens de histórias em quadrinhos (Dick Tracy, Popeye, Superman), ele escolheu imagens de quadrinhos e de propagandas de sua juventude (VARNEDOE; GOPNIK, op. cit., p.193). De forma semelhante, essa inspiração no passado também está presente na reapropriação de clichês do cinema clássico americano por A rainha diaba que, como Fontoura admitiu, teve origem em todos os filems que o diretor viu quando menino: “nos ‘poeiras’ de Ipanema, nos policiais, nas aventuras, nos piratas e nos musicais, nesse cinema que ficou em mim”. 517 Mas essa característica também pode ser encontrada tanto nos jovens cineastas brasileiros surgidos no final da década de 60 – dialogando também com a chanchada, por exemplo – como na nova geração de diretores americanos do começo dos anos 70. 518 Nesse contexto, A rainha diaba também traça um retrato com traços de nostalgia e romantismo do malandro astucioso e armado de navalha, embora, por outro lado, também insinue a figura cada vez mais presente do marginal quadrilheiro e de metralhadora em punho. No universo de Plínio Marcos no qual o filme se inspira, a violência e crueldade envolvem 517 FONTOURA e as emoções que se liberam e voam. O Globo, Rio de Janeiro, 29 mai. 1974. O filme Loucuras de verão (American Graffiti, EUA, dir. George Lucas, 1973), por exemplo, é considerado um dos marcos desse boom da nostalgia, ao lado de Houve uma vez um verão (Summer of 42, EUA, dir. Robert Mulligan, 1971) ou A última sessão de cinema (The last picture show, EUA, dir. Peter Bogdanovich, 1971). Loucuras de verão foi o segundo longa-metragem de George Lucas – uma produção muito barata e que se tornou um grande sucesso – e abordava jovens recém saídos da high school e que se deparavam com a dúvida de entrarem na faculdade ou permanecerem em sua cidadezinha. O filme se passava dez anos antes, em 1962 (a “chamada” do trailer era Where were you in ’62?), e seus jovens personagens falam com saudade do “ano passado” ou como “há cinco anos atrás era tudo diferente”. O filme de George Lucas aborda o “fim de uma era”, marcada pelo desfile de carros pelas ruas das cidadezinhas e pelo rock and roll americano dos anos 50, e que era confrontada com um presente melancólico (o destino dos personagens anos depois teria sido a morte na Guerra do Vietnã, como aparece nos letreiros finais). 518 322 todos os personagens, não deixando espaço para idealizações. O Vado de Navalha na carne já era uma espécie de malandro nada romântico, pois é covarde, violento e cruel. Simultaneamente à idealização do universo da marginalidade dos anos 20 e 30, Plínio mostrava o mesmo universo do cais do porto, de prostitutas e cafetões sem o menor traço de romantismo. Em A rainha diaba, Catitu e a própria Diaba são os personagens com traços mais fortes do malandro e que, talvez por isso, causem maior empatia. A Rainha incorpora sobretudo características do valente, que se impõe pelo medo e é respeitado e temido pelo grupo, enquanto Catitu, seu braço-direito, é justamente o elemento mais astucioso, que consegue o que quer sem sujar as mãos. Entretanto, o filme de Fontoura, como o conto de Plínio, traz também a sensação de violência crescente que marcou os anos 70 e a emergência da figura do marginal. A rainha diaba termina com uma sentença cruel: os malandros estão acabando, assim como os otários. Num universo de extrema violência onde existem apenas os marginais, todos estão condenados a serem vítimas. Além disso, Fontoura percebeu com certo pioneirismo no meio cinematográfico brasileiro as conseqüências do aumento do tráfico de maconha no final dos anos 60, ao elaborar o projeto do filme A guerra da maconha. Conforme Michel Miss (op. cit., p.338), desde o final da década de cinqüenta já eram publicadas manchetes nos jornais populares cariocas anunciando “a batalha da maconha”, em referência ao tráfico e uso de drogas no Rio de Janeiro. Entretanto, naquele momento o “movimento” ainda se restringia à venda e consumo de maconha e, em menor quantidade, de cocaína, nas favelas, presídios e em alguns pontos principais. Em meados dos anos sessenta, esse movimento se espraiou crescentemente, baseado principalmente no comércio da maconha, com a chegada da clientela da classe média, na sua maioria jovem, e o alargamento local pelo incremento do consumo da erva. 519 519 Conforme Misse, em 1966 uma reportagem do jornal O dia revelava que a maconha e a cocaína já estavam sendo consumidas (e vendidas) por adolescentes da classe média da Zona Sul. Em 1970 o mesmo jornal noticiava a apreensão de “setenta e um cigarros de maconha destinados à venda a estudantes”. É importante lembrar que para parte da juventude da década de 60, especialmente a parcela politizada e ligada ao movimento estudantil de esquerda, o uso da maconha era considerado um hábito “burguês”, sendo seu uso muito mais comum dentre os jovens ditos “alienados”. A partir de meados dos anos 60, diante de uma nova conjuntura – a desilusão de uma geração com o fim das utopias, a influência do movimento hippie, a popularização da contracultura – e no contexto do que ficou conhecido como o “desbunde”, o uso da drogas se tornou cada vez mais freqüente dentre os jovens, especialmente junto ao meio artístico e intelectual. Mesmo em meio à ainda existente “intolerância de esquerda” em relação à experimentação de drogas, o cineasta Luiz Carlos Lacerda, perseguido por ser usuário de maconha desde meados da década, afirmou ter sido o introdutor da maconha para diversos amigos por volta de 1968. Glauber Rocha, por exemplo, teria fumado seu primeiro baseado oferecido por Antonio Calmon no início daquele ano (VENTURA, 1988, p.38-42). Já o centrado e politizado Vianinha 323 Desse modo, desde o final da década de 50 já se configurava uma escalada da violência na cidade, não apenas pelo crescimento do tráfico de maconha, mas também com o incremento dos roubos e assaltos com violência. Na passagem dos anos 60 para os 70, já era cada vez mais comum os jornais estamparem manche tes como “guerra pelo domínio do trafico” ou “guerra entre traficantes de maconha”. 520 A percepção desse fato e sua representação expressiva sob forma de ficção talvez seja um dos motivos do impacto de A rainha diaba na época e a relativa “surpresa” com que o filme costuma ser encarado contemporaneamente por retratar, já em 1974, uma situação considerada ainda extremamente “atual” nos dias de hoje. Isso provavelment e se deve também ao fato de que para a percepção social e para a maioria das análises o divisor de águas na “história” da violência no Rio de Janeiro ter sido a entrada da cocaína nas antigas bocas de fumo cariocas na segunda metade dos anos 70. Foi justamente nesse período que o cinema brasileiro se envolveu ainda mais com o tema, geralmente através de um filão que já vinha se desenvolvendo com vigor desde os anos 60 e que cresceu ainda mais: o do filme policial. Depois de A rainha diaba, a adaptação seguinte de uma obra de Plínio Marcos para o cinema combinava uma mais evidente estrutura de filme policial com uma abordagem contundente do tráfico de drogas e da corrupção policial no Rio de Janeiro. O título do filme de Reginaldo Farias de 1977 espelhava a impressão de um aumento incontrolável da violência: a barra estava realmente ficando pesada. experimentou maconha pela primeira vez em fins de 1969, durante as filmagens de um filme do então hippie Domingos de Oliveira, para nunca mais voltar a usar (MORAES, op.cit., p.187-188). 520 Manchetes publicadas pelo jornal O dia, no ano de 1969 (citado por MISSE, op. cit., p.340). 324 7. A BARRA PESOU PARA VALER O filme policial brasileiro. Em seu livro Crime Film (2002), Thomas Leitch questiona se o termo “filmes criminais” definiria um gê nero ou serviria apenas de “guarda-chuva” para diversos outros gêneros, como o filme de gangster, o suspense, o filme de detetive ou o filme noir. Vendo como objeto principal do filme criminal uma “cultura do crime” – cujo paradoxo fundamental seria as contínuas rupturas e restabelecimentos das fronteiras entre os criminosos, as vítimas e aqueles que solucionam os crimes –, Leitch aponta que a questão mais importante não é definir se determinado filme pertence ou não a um gênero em particular, mas o quão recompensador pode ser discuti- lo como se fosse. Nesta pequena introdução à análise do filme Barra pesada, optei por substituir o termo “filme criminal”, utilizado por Leitch, por “filme policial”, expressão de uso mais corrente no Brasil, para designar o conjunto de filmes ao qual me refiro, mas ainda compartilhando da premissa do autor. Apesar das dificuldades em apontar a existência de um cinema de gêneros no Brasil, pode ser muito recompensador tentar identificar uma tradição do filme policial na história do cinema brasileiro. 521 José Mário Ortiz Ramos já apontou as dificuldades de se pensar a questão do cinema de gêneros no Brasil, buscando retomar a discussão e tendo como um dos pontos de partida a reavaliação da cultura de massa empreendida por autores como Jesus Martín-Barbero. Segundo o autor, seria necessário superar preconceitos como o expresso na contraposição usual entre o “filme de gênero” e o “filme de autor”: Ocorre, então, a depreciação do primeiro, acusado de ser o reino do ‘sempre -igual’ – para seguir uma formulação frankfurtiana – da repetição do estereótipo, produtos da avidez comercial. Já a ‘obra’ de 521 No livro Cinema Brasileiro: propostas para uma história, Bernardet (1979, p.91) afirmava que excetuando-se os primórdios, no cinema brasileiro somente a comédia teria tido uma produção regular e receptividade por parte do grande público. “Nenhum outro gênero, dramático, de aventura, seja lá o que for, com exceção do relativamente escasso surto de filmes de cangaço, conheceram uma produção sistemática. [...] Quer dizer que o relacionamento do público com os gêneros dramáticos e ‘nobres’ continuou a se fazer através do cinema estrangeiro”. 325 qualquer cineasta-autor é sempre valorada como um conquistado espaço mágico da criatividade, da 522 expressão individual. Como o autor apontou, “um gênero de forte apelo como o policial, [...] gerou o desinteresse analítico ou, ao lado da produção, o artifício de aparecer embalado com o manto protetor de alguma ‘mensagem social’ para conseguir algum reconhecimento”. O próprio José Mário já tinha contornado esse desinteresse em sua tese de doutorado, publicada em forma de livro em 1995, no qual abordou, entre outros gêneros, os filmes policiais brasileiros produzidos principalmente na segunda metade da década de 70. Trata-se de um trabalho pioneiro e louvável, mas como seria de se esperar, sujeito a lacunas e omissões. Um filme como Barra pesada, por exemplo, não é sequer mencionado em Cinema, televisão e publicidade: cultura popular de massa no Brasil nos anos 1970-1980. Anteriormente, entretanto, outras tentativas de enquadrar o cinema brasileiro sob a perspectiva do gênero também já tinham sido feitas. Em 1980, Alex Viany classificou a produção cinematográfica brasileira desde 1960 em diferentes gêneros, enfrentando alguns dos diversos problemas da análise genérica, como o de categorias excessivamente amplas ou demasiadamente restritas e de filmes que não se enquadram em somente um gênero. Além disso, como classificar filmes que se opunham justamente contra o cinema clássico narrativo hollywoodiano que consagrou o próprio cinema de gêneros? 523 Se Viany demonstrou o já apontado preconceito ao classificar a maior parte das “obras autorais” cinema- novistas somente no indefinido e mais prestigiado gênero “social”, no artigo Apontamentos para uma história do thriller tropical Sérgio Augusto adotou um outro extremo. Ao traçar um breve histórico do filme policial brasileiro, o jornalista não hesitou em enquadrar como filmes policiais A grande cidade, O bandido da luz vermelha, O amuleto de 522 RAMOS, José Mário Ortiz. A questão do gênero no cinema brasileiro. Revista USP, São Paulo, n.19, set-nov 1993, p. 110-113. 523 Viany fez essa listagem – encontrada no acervo Alex Viany, depositado na Cinemateca do MAM – justamente com o objetivo de oferecer filmes brasileiros para compradores estrangeiros, através da Superintendência de Comercialização Externa (Sucex) da Embrafilme, durante a I Cinex – Feira Internacional do Cinema Brasileiro, realizado em Brasília, de 30 de outubro a 9 de novembro de 1980, sob os auspícios da Embrafilme e da Embratur. Os filmes foram separados nas seguintes categorias: drama, erótico, esportivo/infantil, documentário, musical, policial, comédia, aventura e social. Para citar algumas dificuldades dessa categorização, uma categoria excessivamente ampla, como “drama” acabou tendo que ser subdividida em muitas outras (político, histórico, melodrama, horror, ficção científica, experimental, religioso etc.) enquanto “comédia” abarcava filmes os mais diferentes como Em cada coração um punhal, O homem nu ou os estrelados por Mazzaropi. Da mesma forma, outros gêneros terminavam por ser demasiadamente restritos, e os filmes de “aventura”, por exemplo, praticamente só incluíam os filmes de cangaço dos anos 60 e os “faroestes” da Boca do Lixo dos anos 70. 326 Ogum e A lira do delírio, numa postura que sob um olhar rigoroso, revela-se igualmente questionável. Segundo Andrew Tudor (In: GRANT, 2003, p.3-11), não é produtivo definir um gênero simplesmente por seus atributos como personagens, cenários ou dramas recorrentes (o que assumiria uma função simplesmente classificatória) nem por suas intenções (algo sempre difícil de ser averiguado) – um gênero seria definido por suas convenções culturais. 524 De qualquer forma, ainda não foi feito no país um estudo decisivo sobre uma tradição do filme policial na história do cinema brasileiro, que poderia remontar ao pioneiro Os Estranguladores (1908) – primeiro recorde de público e de bilheteria da produção cinematográfica nacional. 525 Nesse sentido, uma questão levantada por Jean-Claude Bernardet (1995, p.91) a respeito desses “filmes criminais” produzidos entre 1908 e 1911 também deve ser pensada para uma análise genérica em qualquer outro período na história do cinema brasileiro. Quando Bernardet afirma que os filmes criminais brasileiros não podem ser tomados como fatos isolados, podendo ser enquadrados num gênero cinematográfico consolidado e de sucesso em outros países, ele se questiona se os espectadores brasileiros diferenciavam os filmes brasileiros (criminais ou não) dos filmes estrangeiros ou se o público “dominava o gênero criminal, dentro do qual se podia operar diferenciações (inclusive de nacionalidade), porém secundárias em relação à categoria dominante que seria o gênero?”. 526 Do mesmo modo, José Mário Ortiz Ramos igualmente questionou “as possibilidades de um cinema de gênero em países que não conseguiram construir uma indústria de cinema 524 Como apontou Leitch, gêneros costumam ainda ser freqüentemente definidos por outros critérios, como o cenário (o oeste americano no século XIX no western), um estilo visual bem definido (como o do filme noir) ou por suas intenções assumidas (o filme infantil, feito para crianças). 525 Produção da Foto-Cinematografia Brasileira de Antônio Leal, o filme abordava o famoso crime cometido por Roca e Carleto, adaptando a peça teatral A quadrilha da morte, escrita pelo jornalista Figueiredo Pimentel e pelo jornalista e teatrólogo Rafael Pinheiro. Os Estranguladores foi exibido em 830 apresentações contínuas, alcançando 20 mil espectadores somente no primeiro mês. Tendo custado quase 4 contos de réis e um mês de trabalho, rendeu somente no Cinema Palace 57 contos nos 45 dias de exibição contínua (SOUZA, J., op. cit., p.236). Os filmes criminais eram inspirados em conhecidos crimes ocorridos no Rio de Janeiro e em São Paulo e se constituíram um filão de sucesso. Pela mobilização pública dos crimes, os filmes conseguiam boas audiências e sua inspiração na imprensa ou no teatro revelavam o fascínio pela violência que percorria a representação do crime em diversos meios, sendo difícil isolar a representação cinematográfica de sua representação jornalística e teatral. 526 Sobre o cinema dos primórdios e partindo de muitas questões do livro de Bernardet, José Inácio de Melo Souza afirmou que a produção cinematográfica nacional sempre esteve em foco marginal, uma vez que havia uma oferta abundante de títulos estrangeiros e, possivelmente a preço baixo. A temática nacional era buscada menos por uma oposição ideológica em relação ao cinema estrangeiro ou pela procura de imigrantes por um reconhecimento social da comunidade, do que pela lógica de aplicação de uma narrativa conhecida e consagrada entre o público. 327 estável”. Nesse caso, se as principais análises genéricas – essencialmente sobre o cinema americano – afirmam que os gêneros devem ser pensados nas relações entre os filmes e os espectadores, no caso do cinema brasileiro – marginalizado em seu próprio mercado dominado pelo produto estrangeiro –, a relação do filme nacional com o modelo hollywoodiano também deve ser levada em conta. Limitando o foco desta análise, nota-se uma investida do cinema brasileiro sobre o gênero policial a partir especialmente da década de 50, ocorrida em meio ao crescimento do número de filmes marcados por temas e abordagens “sérias” e quando diversos diretores das lucrativas chanchadas tentaram investir em projetos pessoais que freqüentemente se aproximavam do cinema policial. 527 Buscando inspiração no realismo do cinema americano do pós-guerra, no filme noir e nas obras de Alfred Hitchcock, o filme policial aos poucos se tornou um filão. Houve investidas nesse gênero tanto por parte da Vera Cruz já em crise – com Na senda do crime (dir. Flaminio Bolini Cerri, 1954) –, quanto da Cinelândia Filmes – com Assassinato em Copacabana (dir. Eurídes Ramos, 1961) –, após a decadência da chanchada e pouco antes da produtora dos irmãos Ramos encerrar suas atividades. O aumento da criminalidade nas grandes cidades brasileiras a partir dos anos 50 e a busca de um retrato crítico e autêntico da “realidade nacional” marcou a investida no filme policial brasileiro na década de 60. Crimes e marginais reais, conhecidos pelo público através da imprensa, do rádio e, cada vez mais, também da televisão, ganharam retratos em diversos filmes. Depois de assinar duas chanchadas de sucesso, o jovem cineasta Roberto Farias dirigiu sob encomenda para o produtor Herbert Richers o filme Cidade Ameaçada, cujo protagonista, chamado Passarinho, era inspirado no marginal paulista Promessinha. Depois do bom resultado do filme, além de mais uma encomenda de Herbert Richers (dessa vez uma comédia), Roberto Farias partiu para sua primeira produção, justamente outro filme policial. O assalto ao trem pagador (1962) era inspirado no crime do bandido Tião Medonho e foi um enorme sucesso do que na época era chamado do “novo cinema brasileiro”. Nos anos 527 José Carlos Burle, em Também Somos Irmãos (1949) tratou do tema do racismo numa trama sobre dois irmãos negros (Aguinaldo Camargo e Grande Otelo) que seguiam caminhos diferentes perante a lei, um como advogado e o outro marginal. A trajetória de dois amigos separados pelos descaminhos da vida também foi o tema de Maior que o Ódio (1951), do mesmo diretor estrelado por Jorge Dória e Anselmo Duarte. Outra produção da Atlântida, Amei um bicheiro (dir. Jorge Ileli, 1952) foi elogiado na época ao tratar de um personagem tipicamente brasileiro (o bicheiro), na história de um homem (Cyll Farney) que tenta escapar da vida no crime. O diretor Jorge Ileli voltaria mais uma vez ao policial em seu filme seguinte, Mulheres e Milhões (1960). 328 seguintes, diversos outros crimes reais foram levados às telas: o “crime da machadinha” em Porto das caixas (1962) o caso da “Fera da Penha” em Crime de Amor (dir. Rex Endsleigh, 1965), o bandido José Rosa de Miranda em Mineirinho Vivo ou Morto (dir. Aurélio Teixeira, 1967), o assalto ao supermercado Peg-Pag em Massacre no supermercado (dir. J. B. Tanko, 1967), o célebre João Acácio Pereira da Costa em O bandido da luz vermelha (1968). O marginal era o protagonista de quase todos esses filmes, geralmente acuado pela sociedade, marginalizado pelo sistema e tendo a morte como destino inevitável, como ilustram os finais de Tocaia no asfalto (dir. Roberto Pires, 1962), Gimba, presidente dos valentes (dir. Flávio Rangel, 1963), Na mira do assassino (dir. Mário Latini, 1967) ou Nenê Bandalho (dir. Emílio Fontana, 1971), entre outros. Mesmo que o incorruptível policial Perpétuo de Freitas desse título ao filme de Miguel Borges, o bandido Cara de Cavalo é quem protagonizava de fato Perpétuo contra o esquadrão da morte (1967). Entretanto, o moralismo que marcou os filmes mais conservadores das décadas de 40 e 50 – como o paulista Cais do Vício (dir. Francisco José Ferreira, 1953) – ainda manteve algum espaço e o detetive Lincoln Monteiro é que m era o herói de Sete homens vivos ou mortos (1969). Dirigido por Leovegildo “Radar” Cordeiro, montador e policial – apontado como membro do Esquadrão da Morte e que faz uma ponta nesse “papel” em Barra pesada –, seu longa- metragem conquistou a fama de “filme mais fascista já filmado no país”. 528 Ainda na década de 60, alguns profissionais se aprofundaram especialmente nessa linha do policial, percebendo um filão ao mesmo tempo lucrativo e que atendia às suas intenções ou características pessoais, como o já citado Roberto Farias, o cineasta baiano Roberto Pires ou ainda o astro, produtor e diretor Jece Valadão. 529 Tendo a imprensa sensacionalista como grande divulgadora dos crimes, os repórteres eram presenças comuns nesses filmes. Se esse personagem já vinha ganhando um retrato crítico nas peças de Nelson Rodrigues, consequentemente surgiu com força nas adaptações rodriguianas para o cinema, a partir do inaugural Boca de Ouro, em 1962. O repórter policial Amado Ribeiro que trabalhava junto com Nelson Rodrigues no jornal Última Hora e deu seu nome ao inescrupuloso personagem da peça O beijo no asfalto, escrita em 1960 e levada às 528 REICHENBACH, Carlos. In: CINEMA BRASILEIRO: A VERGONHA DE UMA NAÇÃO, 2004, São Paulo. Programa... São Paulo, Cinemateca Brasileira, dez. 2004. 529 O filme policial também foi o gênero em que muitas co-produções ou produções estrangeiras filmadas no Brasil se enquadravam, tendo a exó tica paisagem brasileira como cenário para crimes, como em Sócio de Alcova (Carnival of Crime, 1962, dir. George Cahan). 329 telas pela primeira vez em O beijo (dir. Flávio Tambellini, 1965), foi quem escreveu em 1969, junto com Pinheiro Jr., o livro Esquadrão da morte. Segundo o sociólogo Michel Misse, essa foi justamente a obra que marcou o início do filão dos chamados romances-reportagens, um tipo de literatura policial, de grande vendagem, escrita principalmente por jornalistas, que reunia ficção e romance documentário. De uma constatação realista e de um viés sociológico nos 60, para a fugaz rebeldia avacalhada e iconoclasta do final dessa década, o filme policial vai ganhar um novo fôlego sobretudo na segunda metade da década de 70, já não tanto com a força da imprensa popular, mas sobretudo da literatura. Alguns romances-reportagens de sucesso foram adaptados para o cinema pelos próprios autores, geralmente jornalistas, que também atuavam como roteiristas, como foi o caso de Aguinaldo Silva ou José Louzeiro. Além desses livros que se aproximavam da linguagem jornalística, também serviram de inspiração obras de ficção que chocavam pelo realismo, como foi o caso de Uma reportagem maldita (Querô), de Plínio Marcos. 530 Segundo Misse (op. cit., p.265), nesse momento a temática do banditismo urbano saiu dos jornais populares, onde estivera contida até os anos 60, e invadiu as publicações lidas pela elite – além das telas dos cinemas de todo o país. Embora grupos de extermínio como o Esquadrão da Morte tenham surgido no final da década de 50, seu retrato mais expressivo no cinema brasileiro só ocorreu na segunda metade dos anos 70. 531 Do mesmo modo, embora o tráfico de drogas viesse crescendo desde os anos 60 com o aumento da demanda de maconha, para a percepção social e para a maioria das análises o divisor de águas na “história” da violência no Rio de Janeiro foi a entrada da cocaína nas antigas bocas de fumo cariocas no final dos anos 70. Nesse momento também que as drogas ganharam grande destaque no cinema, em filmes como Terror e êxtase (dir. Antonio Calmon, 1979) ou O último vôo do condor (dir. Emílio Fontana, 1982). O roteiro deste último foi escrito pelo cineasta em parceria com o já então roteirista profissional José Louzeiro e o repórter policial Antonio Carlos Fon e tinha como título original Cocaína, a rota do brilho. 530 Publicado apenas um ano antes de Querô, a coletânea de contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, também chocou por sua violência, especialmente a do conto que dava nome à obra. Assim como a peça O abajur lilás, de Plínio Marcos, o livro de Rubem Fonseca também foi proibido pela ditadura militar em 1975. 531 Em 1958, em São Paulo, o general Amaury Kruel criou o “Grupo de Diligências Especiais”, sob o comando do detetive Le Cocq, transferido do Esquadrão Motorizado, que a imprensa passou a chamar de Esquadrão da Morte. Diversos grupos de extermínio surgiram na década de 60 em outras cidades, como os Homens de Ouro de Mariel Mariscott, a Scuderie Le Cocq, a Polícia Mineira ou as truculentas incursões da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). 330 Assim, é possível estabelecer certo pioneirismo no tratamento de temas específicos na obra de Plínio Marcos e, consequentemente, em suas adaptações para o cinema. A denúncia da atuação do Esquadrão da Morte já estava presente em sua peça Oração para um pé-dechinelo, sobre um marginal que se refugia num barraco da favela antes de ser executado pelos policiais, que foi censurada em 1969, permanecendo proibida até 1979. De certo modo, a história foi adaptada no texto que deu origem ao filme Nenê Bandalho, também proibido em 1971. 532 Em seus contos e crônicas publicadas ao longo dos anos 70, Plínio denunciava constantemente os freqüentes extermínios por policiais ocorridos, sobretudo, na Baixada Fluminense. Desse modo, um filme como A rainha diaba, através de Plínio Marcos, ainda se revelava ousado em 1974 por sua abordagem violenta do mundo do tráfico e do crime. Depois de uma “onda” do filme policial brasileiro nos anos 60 – a partir do sucesso de O assalto ao trem pagador até o final da década, quando um novo panorama surge após o AI5 –, uma nova voga do gênero vai ter lugar na segunda metade dos anos 70 e não só no cinema, mas também na televisão. Por outro lado, a matriz do gênero hollywoodiano, com o qual inúmeros filmes brasileiros vão retomar o diálogo ao longo dos anos 70, também passou por mudanças significativas. Com a crise dos filmes de orçamento astronômico nos anos 60, uma nova geração de cineastas estreantes e alguns sucessos surpreendentes promoveram mudanças através do que ficou conhecido como New Hollywood ou de forma mais crítica, como a “industrialização do cinema de autor”. O grande sucesso de público de produções de baixo orçamento como Bonnie & Clyde: uma rajada de balas (Bonnie & Clyde, dir. Arthur Penn, 1967), A primeira noite de um homem (The Graduate, dir. Mike Nichols, 1967) e Sem destino (Easy Rider, dir. Dennis Hopper, 1969), ou o reconhecimento da crítica para filmes ácidos e contundentes como Perdidos na Noite (Midnight Cowboy, dir. John Schlesinger, 1969) – premiado com o Oscar – ou MASH (dir. Robert Altman, 1970) – Palma de Ouro em Cannes – , conferiram um renovado prestígio a novos diretores americanos. Em meio a filmes caracterizados pela complexidade narrativa, pelo hibridismo de gênero e pelo investimento em temas tabus (sexo, drogas, violência, contracultura), o filme policial norte-americano também mudou, incorporando, de forma mais ampla, estratégias realistas, crítica social e maior ambigüidade dos personagens. 532 Em O Filho da Televisão, de João Batista de Andrade, episódio do longa-metragem Em Cada Coração um Punhal (1969), há uma menção explícita, mas também em um tom debochado, ao Esquadrão da Morte. 331 Com o aumento generalizado da criminalidade em grandes cidades como Nova Iorque ou São Francisco, a violência assumiu em diversos filmes uma forma mais alarmante por ser arbitrária e gratuita. Segundo Hossent (1974, p.74) “a imagem chave da violência urbana é talvez a do franco-atirador (sniper)” – o homem que com motivos ou não, atira a esmo em pessoas completamente estranhas. 533 Sendo as grandes metrópoles representadas como terras sem lei, dominadas por gangues e marginais, é possível verificar uma proximidade das convenções genéricas do western com esse filme policial. A violência de um faroeste tardio como Meu ódio será tua herança (The wild bunch, EUA, dir. Sam Peckinpah, 1969) passou a estar presente em diversos filmes estrelados não mais pelo cowboy solitário, mas por vigilantes urbanos que passam por cima da lei para manter a ordem. Não à toa, atores consagrados em faroestes, como Clint Eastwood e Charles Bronson, se transformaram em dois vingativos personagens: o Inspetor Harry Calahan em Perseguidor implacável (Dirty Harry, EUA, dir. Don Siegel, 1971) e o pacífico arquiteto que se transforma em “juiz, júri e executor” em Desejo de matar (Death wish, EUA, dir. Michael Winner, 1974). O motorista de táxi de Taxi driver (EUA, dir. Martin Scorcese, 1976) é talvez o maior exemplo do complexo cowboy urbano, num filme com direito, inclusive, a um sanguinolento duelo final. 534 O conservadorismo – e até certo fascismo – presente em alguns desses personagens que faziam “justiça com as próprias mãos” também pode ser notado numa outra vertente do filme policial brasileiro, que na década de 70 teria como marco Eu matei Lúcio Flávio (dir. Antonio Calmon, 1979), realizado a partir do ponto de vista do policial Mariel Mariscott como contraponto ao fenômeno Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (dir. Hector Babenco, 1978). De uma forma ou de outra, o sangue abundante e de vermelho vivo e as armas cada vez mais potentes dos filmes americanos dos anos 70 foram uma influência importante nos policiais brasileiros realizados da mesma época. Durante a preparação de A rainha diaba, 533 É importante lembrar que em 1968 o senador Bob Kennedy e o pastor Martin Luther King foram assassinados dessa forma, da mesma maneira que o então presidente Kennedy em 1963. 534 De forma mais crítica, Lawrence Hammond (1974, p. 146) afirmou que Dirty Harry passou a ser o arquétipo do policial no cinema americano na década de 70: “incapaz tanto de um pensamento quanto de qualquer sentimento humano, resolvendo qualquer problema com um revólver tão pesado que ele precisa das duas mãos para mirar”. O personagem de Clint Eastwood teria suplantado o suspense por ação, tensão por brutalidade, personagens por armas maiores e mais potentes. Tanto esse personagem quanto o de Desejo de matar retornariam em diversas seqüências na década de 80, quando ocorreu “uma virada para a direita” no governo do EUA e de grande parte da Europa. Foi essa a época de séries estreladas por policiais como os de Duro de matar (Die hard, EUA, dir. John McTiernan, 1988) e Máquina mortífera (Lethal weapon, EUA, dir. Richard Donner, 1987). 332 Fontoura contou que pediu ao diretor de fotografia José Medeiros que fizesse para seu filme uma fotografia como a de Operação França (French connection, EUA, dir. William Friedkin, 1971) – premiado com Oscar de melhor filme, diretor, ator, roteiro e montagem em 1971 e considerado um dos renovadores do cinema policial ao introduzir elementos da estética do documentário, além de personagens com tons ambíguos e uma linguagem mais crua. 535 Desse modo, sob o viés do filme policial brasileiro, ao se pensar numa trajetória de dez anos entre a ruptura de O bandido da luz vermelha (1968) e a consagração de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1978) é possível identificar um percurso semelhante das adaptações de Plínio Marcos, de Nenê Bandalho a Barra pesada, tendo A rainha diaba “no meio do caminho”. Elementos já presentes nos filmes de Emílio Fontana e de Antonio Carlos Fontoura, como a narrativa policial e o teor de denúncia, surgiriam de forma ainda mais incisiva no filme de Reginaldo Faria. Desse modo, no auge do “cinemão” da Embrafilme, pela primeira vez uma obra pliniana ganhava uma adaptação cinematográfica com tão altos valores de produção, mas novamente atendendo aos desejos de um cineasta em tratar com realismo e autenticidade uma realidade que poucos conseguiam expressar com a mesma crueza e contundência que Plínio Marcos. Depois do filme de Antonio Carlos Fontoura foi novamente a produtora do então presidente da Embrafilme quem levou Plínio novamente para as telas. Mas desta vez era um projeto literalmente concebido de dentro da R.F. Faria, dirigido por um de seus próprios sócios. “Reginaldo Faria: do riso ao compromisso”. Nascido em Nova Friburgo em 1937, Reginaldo Faria morava no Rio de Janeiro, trabalhava num banco e sonhava em ser músico quando ingressou no mundo do cinema através do irmão Roberto Farias. 536 Foi assistente de câmera no primeiro filme do irmão (Rico Ri à toa, 1957), estreando como ator no filme seguinte de Roberto (No mundo da lua, 535 Conforme Fontoura, depois de ver o filme, Medeiros teria dito que a fotografia de Operação França – crua, ágil, dinâmica – ele já tinha feito em seu primeiro filme, A falecida, e que os americanos é que o tinham copiado. É curioso que em A rainha diaba a influência de elementos estéticos que marcaram os novos cinemas dos anos 60 podem vir tanto através do Cinema Novo (e de uma personagem importante daquele movimento, como José Medeiros) quanto dos filmes americanos que também se apropriaram desses mesmos elementos. 536 Por um erro de cartório, o sobrenome de Roberto foi registrado como Farias, enquanto o dos seus irmãos Reginaldo e Rivanides é somente Faria. 333 1958) e já protagonista em Cidade Ameaçada (1960), pelo qual recebeu elogios da crítica e o prêmio de melhor intérprete no Festival de Cinema de Marília. Como ator tornou-se um rosto bastante conhecido no cinema brasileiro, trabalhando em diversos filmes do começo dos anos 60. Além de intérprete nos primeiros projetos mais “autorais” de seu irmão – O assalto ao trem pagador (1962) e Selva trágica (1963) –, atuou tanto em projetos bastantes diferentes, seja com Paulo César Saraceni (Porto das caixas, 1962), diretor carioca identificado com o Cinema Novo, ou Flávio Tambellini (O beijo, 1965), cineasta paulista do dito grupo “universalista”. 537 Em 1966, estrelou a comédia de Roberto Farias Toda donzela tem um pai que é uma fera e ganhou espaço como ator das novas comédias românticas “classe média”, fazendo, em seguida, par romântico com Vera Viana em O pacto (dir. Eduardo Coutinho), episódio da coprodução estrangeira ABC do Amor (1967), e com Regina Duarte em Lance maior (dir. Silvio Back, 1968). 538 Na direção, Reginaldo estreou justamente com a comédia Os paqueras, com roteiro seu, de Xavier de Oliveira e André José Adler, acumulando também a função de ator principal. Com uma história sobre jovens de Copacabana atrás de garotas, o filme se tornou um extraordinário e inesperado sucesso, sendo o segundo longa- metragem mais visto no Brasil em 1969, entre produções nacionais e estrangeiras. Segundo Reginaldo, “o filme entrou em cartaz na semana do carnaval. Ninguém na fila, muito menos na bilheteria. A gente passava de carro pelos cinemas, olhava e nada. Como era carnaval, o Lívio Bruni deu um desconto e dobrou a semana. Quatro pessoas, oito pessoas, dezesseis, e o filme foi pegando. E permaneceu semanas em cartaz” (ASSIS, 2004, p.93). Enquanto Roberto explorava outro recém-descoberto filão de sucesso, o dos filmes com Roberto Carlos, Reginaldo seguiu o rumo das comédias românticas, dirigindo em seqüência Pra quem fica, tchau (1970), Os machões (1972), Quem tem medo de lobisomem? (1973) e O flagrante (1975), todos eles também estrelados pelo ator. Se Os paqueras foi considerado um dos precursores das pornochanchadas, Reginaldo, como diversos outros diretores e produtores que investiram nesse tipo de filme numa “primeira fase”, viria a criticar 537 Nesse período, Reginaldo atuou também na co-produção internacional Morte para um covarde (dir. Diego Santillan, 1964). 538 Em 1965 estreou na televisão, fazendo par romântico com Leila Diniz no “novelão” Paixão de Outuno, da cubana Glória Magadan, na então recém inaugurada TV Globo. 334 um excesso de “grosseria” que tomaria conta da produção crescente de comédias eróticas realizadas posteriormente. 539 De fato, na seqüência da carreira de Reginaldo como diretor pode ser encontrada uma sofisticação crescente em seus filmes, assim como uma diminuição das bilheterias. Pra quem fica, tchau alcançou um número de espectadores razoável, mas decepcionante na comparação com o estrondoso sucesso do filme anterior. Os machões, com Reginaldo, Flávio Migliaccio e o “tremendão” Erasmo Carlos travestidos de mulheres, se saiu melhor, enquanto Quem tem medo de lobisomem?, “um filme de terror com bom humor” que investia em lendas do folclore brasileiro, teve um desempenho muito frustrante nas bilheterias. Já a comédia amarga O flagrante (1975), talvez por suas maiores pretensões foi considerada pelo diretor como seu “maior fracasso”. 540 Após esse filme, a carreira de Reginaldo iria tomar outro rumo: como ator, estrelando o estrondoso sucesso Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (dir. Hector Babenco, 1978) e como cineasta, dirigindo Barra pesada (1977). Mesmo tendo preferência por histórias originais, em seu sexto filme, o diretor adaptou o argumento de Plínio Marcos Nas quebradas da vida, abandonando as comédias e partindo para um violento filme policial. “A senda do crime, por solicitações sucessivas arrasta numa ladeira escorregadia a quem nela ingressa. A regeneração é quase impossível, pois o vício é ciumento como o mar. Nossa história se inicia num cais...” 541 “No universo maldito de marginais e prostitutas, os adolescentes não tem opção para sobreviver. A adesão ao crime é compulsória”. 542 539 Nuno César Abreu fala em um “primeiro bloco de produção” de pornochanchadas entre 1969 e 1972, marcado pela “entrada em cena de produtores e diretores mais tarimbados”, com filmes de maior elaboração do roteiro e na escolha de elenco, além de eficiente trabalho de direção (In: RAMOS; MIRANDA, 2000, P.431433). 540 Segundo dados do INC e da Embrafilme, Pra quem fica, tchau alcançou público de 644.227 espectadores; Os machões, 1.109.555; Quem tem medo de lobisomem? apenas 173.549; e O flagrante, 591.084. O protagonista de O flagrante era um homem que descobria estar sendo traído pela mulher e que junto com os amigos armava um flagrante, mas se arrependia, perdoava a mulher e voltava para ela. Segundo o ator e diretor, “o filme mostra a história desse retorno. Mas não bateu porque a moral machista brasileira não aprovou. Rejeitaram o filme, rejeitaram o perdão” (ASSIS, op.cit., p.115). Por outro lado, Jean-Claude Bernardet, num artigo à época do lançamento, afirmou que em relação à abordagem do relacionamento entre homens e mulheres, “sob seus ares liberais, O flagrante é moralmente reacionário, profundamente reacionário” (BERNARDET, Jean-Claude. Perdoar é divino? Movimento. 2 jul. 1976). 541 Cartelas iniciais de Cais do vício (dir. Francisco José Ferreira, 1953). 542 BARRA PESADA, [1977], material de divulgação. Mimeografado. 335 Beco sem saída Barra pesada retrata a trajetória final da vida de Querô (Stepan Nercessian), pivete que sobrevive de pequenos golpes com seu amigo mais novo Negritinho (Cosme dos Santos) e cuja mãe, uma prostituta (Ítala Nandi), se suicidou ateando fogo ao próprio corpo coberto de querosene. No começo do filme, depois de perderem uma aposta num jogo de sinuca para o malandro Brandão (Marcus Vinícius), Querô e Negritinho partem para pequenos roubos nas ruas do Rio de Janeiro para pagar a dívida. Porém, passam a ser achacados pelos vigaristas Teleco (Wilson Grey) e Nelsão (Banzo Africano) e, além de serem surrados, são obrigados a dar todo o dinheiro dos assaltos para a dupla para não serem entregues para a polícia. Após tentar outros golpes e sem conseguir fugir da extorsão de Teleco e Nelsão, Querô não vê outra saída além de conseguir uma arma para matá- los. Por acaso, encontra um conhecido, Chupim (Haroldo de Oliveira), que está trabalhando no tráfico. Ao ver o revólver do colega, Querô rouba sua arma e o mata. Por ter assassinado um “passador de fumo” e roubado a droga, Querô passa a ser caçado por um chefão do tráfico, o Dr. Florindo (Milton Morais), e seus capangas. Enquanto isso, com arma em punho, Querô enfrenta e mata Teleco e Nelsão, passando a ser perseguido também pela polícia, comandada por um obstinado comissário (Ivan Cândido). Em meio a essa caçada, Querô conhece a prostituta Ana (Kátia D’Ângelo) e depois de livrá- la de seu violento cafetão (Newton Couto), o casal de jovens vive um arrebatador romance enquanto se escondem dos policiais e dos traficantes. A caçada se intensifica e, após encontrarem Ana e Negritinho, Querô é descoberto escondido no terreiro de um Pai de Santo (Rui Polanah), sendo finalmente capturado, espancado e executado por policiais e bandidos. “A Barra está tão pesada que a violência do mundo real até pare ce cena de filme”. Barra pesada teve seu roteiro – de autoria do próprio diretor – extraído de um conto de Plínio Marcos intitulado Nas quebradas da vida, vendido em 1971 para a R.F. Farias. Reginaldo, que não conhecia Plínio pessoalmente, disse ter encontrado o dramaturgo apenas naquela ocasião, “quando ele foi vender o argumento dele ao meu irmão, Roberto Farias, que 336 estava interessado na história e pretendia dirigir o filme”. 543 Entretanto, no começo dos anos 70, apesar da preocupação com uma produção diversificada – a R.F. Farias estava mais envolvida com a série do Roberto Carlos e as comédias no rastro de Os paqueras –, o projeto não teve prosseguimento. Além disso, conforme Reginaldo, Nas quebradas da vida ficou na gaveta “pois não teria sido possível filmá- lo e exibi- lo quando o Plínio o fez, isto é, por volta de 1971-72”. 544 De fato, no auge da repressão do governo Médici não teria sido muito “fácil” adaptar uma história como a de Plínio Marcos, um dos autores mais perseguidos pela ditadura. Ao mesmo tempo se valorizando e se justificando, Reginaldo Faria chegou a dizer que “se tivéssemos realizado Barra pesada [...] naquela época, teríamos sido presos”. 545 Por outro lado, em pleno milagre econômico, a trágica e cruel história do pivete Querô não parecia um projeto com muito potencial para ser um sucesso de público. Já na segunda metade da década de 70, após as duas últimas comédias de Reginaldo terem fracassado nas bilheterias, a história de Nas quebradas da vida ressuscitou. 546 Ao voltar de uma viagem ao Festival de Cannes de 1976, impressionado com os filmes estrangeiros exibidos, Reginaldo ambicionou realizar algo com o mesmo impacto das obras que tinha visto na França: Na época fiquei muito indignado em pertencer a um país tão grande como o Brasil e não poder realizar filmes como aqueles produzidos em países tão pequenos na Europa. Achei, então, que deveria fazer uma fita que fosse mais fiel à nossa realidade. Conversei com Roberto e disse a ele que não admitia mais dirigir filmes no esquema de Os paqueras. Na mesma hora ele me ofereceu a história do Plínio 547 Marcos. Eu entrei de sola porque a minha vontade de fazer esse filme era imensa. Enfim, o conto de Plínio podia sair da gaveta, pois, nas palavras do diretor em 1978, “o Brasil havia mudado, e as coisas, hoje, estão mais claras”. 543 548 FASSONI, Orlando L. Reginaldo Farias, do riso ao compromisso. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 ago. 1978. 544 REGINALDO Faria: Em Barra pesada a violência é uma forma de sacudir o espectador. Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mai. 1978. 545 COSTA, Ruth. A violência do dia-a-dia, a realidade de “Barra pesada”. Diário Popular, São Paulo, 16 mar. 1978. 546 No documentário Uma rainha chamada Diaba, o ator Stepan Nercessian conta que antes de ser convidado para atuar em A rainha diaba, já tinha sido sondado para trabalhar no projeto, depois abortado, que viria a se tornar o filme Barra pesada. O ator foi indicado para interpretar o Bereco do filme de Fontoura pelo produtor Roberto Farias, com quem já vinha trabalhando desde pelo menos Pra quem fica, tchau, de 1970. 547 FARIA, Reginaldo. Ele já foi Lúcio Flávio. Mas aqui ele é o cineasta Reginaldo Faria. Estado de Minas, Belo Horizonte, 30 nov. 1978. Entrevista a Ricardo Gomes Leite. 548 REGINALDO Faria: Em Barra pesada a violência é uma forma de sacudir o espectador. Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mai. 1978. 337 De fato, muito mudou no país entre 1971 e 1976. Além da ditadura militar já se encaminhar para o processo de “distensão lenta, gradual e segura” durante o governo Geisel, na nova fase da Embrafilme iniciada sob a direção do próprio Roberto Farias em 1974, houve uma ascensão do grupo político do Cinema Novo sobre a estatal e sobre as diretrizes do cinema nacional. Conforme Tunico Amâncio (2000), no período entre 1974 e 1978 houve uma desvalorização do produtor pela Embrafilme – as pessoas físicas substituindo as produtoras no encaminhamento dos projetos – e o fortalecimento da figura do realizador. Diante da renovada força dos “cineastas autorais”, Reginaldo partiu para a realização do filme que viria a ser considerado como seu “grito de autor”. Além disso, ao longo da primeira metade da década de 70, Reginaldo não tinha conseguido repetir o mesmo êxito que seu primeiro filme alcançara em 1969, pois o filão da “comédia urbana picante” – ou da pornochanchada, da qual ele foi considerado, sempre muito a contragosto, um precursor – passou a ser dominado por outros nomes, como o dos produtores Pedro Carlos Rovai, Aníbal Massaini Neto e Antônio Polo Galante, dos astros David Cardoso e Carlo Mossy ou dos diretores Braz Chediak e Alberto Pieralisi. O notável crescimento dessa produção ao longo dos anos 70, especialmente na Boca do Lixo paulistana, e as grandes bilheterias alcançadas por alguns desses filmes, teve como uma de suas conseqüência uma forte campanha promovida pelos meios de comunicação, organizações sociais e por uma própria parcela do meio cinematográfico contra o “baixo nível” do cinema brasileiro. Desse modo, principalmente após a boa recepção de Barra pesada, Reginaldo passou a reavaliar sua carreira até aquele momento: “Meu primeiro sucesso como ator e diretor foi com Os paqueras e fez com que eu me afastasse da realidade, procurando descobrir formas para me superar em sucesso, repetir a dose, e parti para o estereótipo como os de fazer rir, com fórmulas certas para ser bem sucedido, o que me esvaziou muito”. 549 Segundo o diretor, “a pornochanchada foi válida, mas tinha que desaparecer. Aliás, é isto que está acontecendo”. 550 Ou seja, foi resolvido a dar uma “guinada” em sua carreira que Reginaldo deu início em junho de 1976 às filmagens de Barra pesada. Estreando no Rio de Janeiro em 31 de 549 Qual é a sua... Reginaldo Faria. Última Hora, Rio de Janeiro, 12-13 ago. 1978. COSTA, Ruth. A violência do dia-a-dia, a realidade de “Barra pesada”. Diário Popular, São Paulo, 16 mar. 1978. 550 338 outubro de 1977, com distribuição da Ipanema Filmes, o filme foi lançado em “grande circuito encabeçado por seis salas lançadoras”. 551 Barra pesada teve uma boa recepção do público em seu lançamento no Rio de Janeiro. Jornais da época reproduzem dados onde se exalta que o filme “faturou na primeira semana Cr$ 1.300.000,00 em 23 cinemas da cidade” 552 e que “já na sexta semana de exibição, segundo cálculos de seus produtores, foi visto por 500 mil pessoas. Sua aceitação popular abrange todas as faixas do público, da zona sul à zona norte e no grande Rio”. 553 Com exceção de São Paulo, após a estréia no Rio a distribuição de Barra pesada passou às mãos da Embrafilme. Em março de 1978, o filme foi lançado em Salvador (onde em sua primeira semana de exibição “rendeu Cr$ 234.000,00, o que é considerado bom índice para o cinema nacional nas telas baianas”554 ); em maio de 1978, em Porto Alegre (lançado inicialmente em quatro, e depois oito cinemas da capital, enquanto no Estado todo chegava ao “circuito recorde de 34 salas”); em agosto de 1978, em São Paulo 555 e somente em maio de 1979, chegou à Brasília (sendo lançado também em quatro salas da capital federal). Ainda em carreira, comentários de Reginaldo Faria na imprensa apregoavam que o filme tinha rendido cerca de 6 milhões de cruzeiros no Rio de Janeiro e 1,5 milhões em Salvador, se constituindo, sem dúvida, num grande sucesso. Documento da Embrafilme informa que até junho de 1979, Barra pesada alcançou público de 1.174.812 espectadores e renda de Cr$ 15.211.419,00, a maior bilheteria do diretor desde Os paqueras. 556 Entretanto, a boa carreira de Barra pesada parece ter sido eclipsada pelo estrondoso sucesso de outros filmes, como Dona Flor e seus dois maridos, A dama da lotação e, especialmente, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia. 551 GUIA DE FILMES. Rio de Janeiro: Embrafilme, n.70-72, jul-dez. 1977. As salas lançadoras foram Studio Paissandu (Flamengo), Roma Bruni, (Ipanema), Bruni Copacabana, Bruni Tijuca, Studio Tijuca e Pathé (Centro). O circuito de Barra pesada incluía ainda os cinemas Matilde (Bangu), Paratodos (Méier), Regência (Cascadura), Trindade, Fluminense, Vaz-Lobo, Vista Alegre, Guadalupe, Tamoio, Neves, Irajá e Realengo, além das salas Glória (S.J. de Meriti), Verde (Nova Iguaçu), Caxias, Nilópolis, Rio Branco e Cinema 1 (ambas em Niterói). 552 BARRA Pesada fatura mais de um milhão. Luta democrática, Rio de Janeiro, 10 nov. 1977. 553 PEREIRA, Miguel. Barra pesada, Radiografia de um sucesso. O Globo, Rio de Janeiro, 8 dez 1977. 554 “BARRA Pesada” é sucesso de público nos cinemas baianos. Jornal da Bahia, Salvador, 14 abr. 1978. 555 Antes de seu lançamento comercial, Barra pesada foi exibido na capital paulista em fevereiro de 1978, dentro da mostra Perspectivas do Cinema Brasileiro, realizada no MASP. 556 Em relação ao orçamento do filme os dados fornecidos pelos jornais são imprecisos: Barra pesada teria custado entre Cr$ 1.800,00 e Cr$ 3 milhões. Mas em qualquer um dos casos, com a bilheteria alcançada o filme obteve um saldo bastante positivo. 339 Quando decidiu enveredar por um novo caminho como cineasta, Reginaldo Faria tentou comprar os direitos do livro-reportagem de José Louzeiro, um grande best-seller lançado em 1975, mas o cineasta Hector Babenco foi quem acabou os adquirindo. 557 Os astros da TV Globo Francisco Cuoco e Tarcísio Meira chegaram a ser convidados por Babenco para interpretar o bandido Lúcio Flávio Lírio, mas ambos recusaram e o personagem chegou às mãos de Reginaldo. O ator entrou no set de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia apenas cinco dias depois de encerradas as filmagens de Barra pesada. Estreando somente no Rio de Janeiro no final de 1977, Barra pesada seguiu a estratégia então comum de percorrer paulatinamente as demais praças do país nos meses seguintes, ao longo de 1978 e 1979. Enquanto isso, em fevereiro de 1978, quando o filme de Reginaldo Faria só tinha sido visto pelo público carioca, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia quebrou recordes ao ser lançado com mais de cem cópias em São Paulo e em outros quatro estados do país, no que era o “mais maciço lançamento de um filme que se tem história no país”. 558 Esse modelo de grandes lançamentos – os blockbusters ou “arrasa-quarteirões”–, acompanhados de gigantesca campanha publicitária, já vinha sendo aplicado nos Estados Unidos em “filmes de verão” como Tubarão (Jaws, EUA, dir. Steven Spielberg, 1975) e Guerra nas estrelas (Star wars, EUA, dir. George Lucas, 1977) e veio a se tornar posteriormente a estratégia comum do mercado. 559 O filme de Babenco fez um estrondoso sucesso, alcançando mais de 5 milhões de espectadores (indiscutivelmente uma das dez maiores bilheterias da história do cinema brasileiro) e estampou o rosto de Reginaldo Faria em todo o país. Embora possa se pensar que tamanho êxito talvez tenha ofuscado a carreira comercial de Barra pesada, lembrando que ambos os filmes foram distribuído pela mesma Ipanema Filmes, é mais razoável pensar numa estratégia conjunta em que o enorme sucesso de um filme pode ter ajudado o desempenho do outro. 557 560 Conforme reportagem da época, Roberto Farias e Luiz Carlos Barreto já haviam apresentado propostas para Louzeiro, “quando Babenco entrou com a sua – na verdade, seu trunfo era apenas uma maior disposição para o trabalho”. O escritor participou da feitura do roteiro do filme, junto com Jorge Durán e o próprio diretor (A REALIDADE em cena. Veja, n.496, 9 mar. 1978.) 558 A REALIDADE em cena. Veja, n.496, 9 mar. 1978. 559 Na época, alguns cineastas criticaram a Embrafilme por concentrar seus recursos na divulgação de poucos filmes que com suas bem-sucedidas carreiras ocupavam praticamente todos os dias reservados a exibição de filmes brasileiros nas salas de cinema, enquanto outras produções ficariam acumuladas nas prateleiras sem conseguir distribuição. 560 É fundamental salientar que no começo dos anos 70 a diretoria da Ipanema Filmes passou a ser composta por Roberto Farias, Riva Faria e Herbert Richers. 340 Como escreveu Alfredo Sternheim num jornal paulista, embora Barra pesada tenha sido considerado por muitos como superior ao filme sobre Lúcio Flávio, o filme, “dentro dessa linha, provavelmente vai se beneficiar do grande êxito alcançado por essa fita”. 561 Reginaldo não reclamou, pois se Barra pesada “não fez o sucesso estrondoso de Lúcio Flávio”, o diretor afirmou que seu filme estaria “fazendo uma excelente carreira”. Pronto desde pelo menos novembro de 1977 – quando participou da Mostra Internacional de São Paulo –, Lúcio Flávio foi lançado em São Paulo em fevereiro de 1978 e no Rio de Janeiro somente dois meses depois, em abril de 1978. Já Barra pesada fez o circuito inverso, estreando primeiro no Rio em outubro de 1977, e bem depois na capital paulista – em agosto de 1978, seis meses depois do filme de Babenco. Não sendo lançados comercialmente exatamente ao mesmo tempo nas principais praças do país, Barra pesada e Lúcio Flávio se “enfrentaram”, de fato, no VI Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, realizado de 20 a 25 de fevereiro de 1978. Mas o grande vencedor daquela edição acabou sendo Doramundo, eleito pelo júri como melhor filme e diretor (João Batista de Andrade). Barra pesada recebeu os Kikitos de melhor atriz coadjuvante (Kátia D’Angelo) e música (Edu Lobo), enquanto o longa-metragem de Babenco foi premiado pela edição (Silvio Renoldi), fotografia (Lauro Escorel) e melhor ator, justamente Reginaldo Faria. 562 Essa imbricação se deu ainda mais com o prêmio de melhor ator coadjuvante, conferido a Ivan Când ido por seu trabalho nos dois filmes (em ambos interpretando um violento policial), empatado com Milton Gonçalves por Lúcio Flávio. Barra pesada ainda foi eleito o melhor filme do Festival de Gramado segundo votação entre os jornalistas (troféu Imprensa), recebeu o Prêmio Centenário do Jornal O Fluminense no Festival de Cinema de Cabo Frio, e o de melhor edição (Waldemar Noya) da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 1979. No exterior, o filme de Reginaldo Faria participou da mostra competitiva do VI Festival Internacional de Cinema de Figueira da Foz, Portugal, em 1977, foi exibido no México, na Semana del Cine Brasileño, em novembro de 1978, e chegou a ser distribuído comercialmente em alguns países estrangeiros (como o Japão) pela Embrafilme. 561 STERNHEIM, Alfredo Sternheim. Novo filme de Reginaldo Faria. Folha da Tarde, São Paulo, 12 jul. 1978. 562 Por Lúcio Flávio, Reginaldo conquistou também o único prêmio internacional de sua carreira de ator, no Festival de Taormina, na Itália. 341 Um filme policial, mas sério. Ao contrário da maior parte da produção da R.F. Farias – as comédias e os filmes com Roberto Carlos – que desde o final dos anos 60 alcançava grande sucesso com o público, mas não com a crítica, Barra pesada era como seu próprio diretor afirmava, um filme mais “autoral”, comprometido com a “realidade nacional” e que recebeu elogios dos críticos cinematográficos. Ao invés do nome dos astros, um anúncio do filme de Reginaldo mostrava com destaque críticas positivas que o filme recebera: Barra pesada constitui não só o vôo artístico mais ambicioso de Reginaldo Faria como o melhor filme brasileiro de 1977 (Justino Martins, Fatos e Fotos) É um filme forte, muito bem realizado, duro, cruel em certas cenas, mas que mostra que o cinema brasileiro hoje é adulto (Luiz Augusto, U. Hora). A crítica cinematográfica realmente demonstrou boa receptividade ao filme, que foi apontado como um dos melhores do ano. 563 José Carlos Avellar conferiu três estrelas (muito bom) ao filme, ressaltando o desabafo do diretor, que convida o espectador a sentir a violência contida no dia-a-dia e, desse modo, “jogar pra fora” a pressão. 564 A mesma “função” foi apontada por Ivo Egon Stigger, ao afirmar que o “grande mérito e força maior de Barra pesada é sua lucidez, sua consciência”, sobretudo ao apontar o “câncer” da sociedade e procurar retirar o espectador de sua letargia. 565 O sexto filme de Reginaldo Faria foi considerado de maneira geral como seu “melhor trabalho”, uma filme “coerente, conciso, sem falhas” realização”. 567 566 , sua “melhor e mais consciente Em muitas críticas surgiu a comparação com Lúcio Flávio, o passageiro da agonia e um alerta foi dado por Rubens Ewald Filho: “Chegando depois e com menos alarde comercial, Barra pesada pode sofrer uma comparação negativa com Lúcio Flávio”. Orlando Fassoni, da Folha de São Paulo, afirmou que as semelhanças entre os dois filmes “não são mera coincidências. Vão do tema à habilidade de tratamento das situações”. Entretanto, se Ewald comparou ambos – “o filme de Babenco era mais corajoso e polêmico, Barra pesada é 563 Um crítico mineiro mais entusiasmado chegou a considerar o filme “uma as mais belas obras que o cinema brasileiro moderno já produziu” (MILAGRES, Breno. Barra pesada, retrato da sociedade alternativa. Estado de Minas, Belo Horizonte. 22 set. 1979). 564 AVELLAR, José Carlos. Coexistência pacífica. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 nov. 1977. 565 STIGGER, Ivo Egon. Discussão de um câncer. Folha da tarde, Porto Alegre. In: FILME CULTURA. Rio de Janeiro: Embrafilme , n.32, fev. 1979, p.112-113. 566 EWALD FILHO, Rubens. O policial brasileiro. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 ago. 1978. 567 FASSONI, Orlando. O poder no cano de um revólver. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 ago. 1978. 342 melhor realizado” 568 – Fassoni colocou os dois longas- metragens no mesmo nível de qualidade e impacto: “Lúcio Flávio revirou estômagos, Barra pesada é o vômito que vem depois da pancada”. 569 Algo semelhante ocorreu no Rio, onde o filme de Reginaldo foi exibido antes do de Babenco. Em sua crítica sobre Lúcio Flávio, mesmo sem deixar de conferir elogios, Míriam Alencar afirmou que o filme estava longe de superar o clássico O assalto ao trem pagador. Dizia ainda: “E para citarmos exemplo mais recente, Barra pesada oferece uma denúncia social muito mais contundente e de elaboração impecável”. 570 A proximidade entre os dois filmes ganhou um exemplo claro em Porto Alegre, onde a direção do cinema Cacique “inteligentemente” projetava os dois filmes na mesma sessão. 571 Desse modo, se Barra pesada foi considerado um filme autoral, se constituindo como um projeto pessoal do cineasta, diferente dos que dirigira até aquele momento, ele se encaixava do mesmo modo que suas comédias anteriores num filão de sucesso, mas seguindo as convenções de outro gênero: o do filme policial brasileiro. Entretanto, o “autor” Reginaldo Faria – que significativamente faz apenas uma figuração no filme, justamente como o violento e anônimo pai do personagem principal – não considerava Barra pesada um filme policial: “É basicamente uma fita com uma problemática urbana e social muito séria e a polícia está ali tão humana quanto os marginais, ou tão marginais quanto.” 572 O objetivo do cineasta “era que o espectador que visse esse filme não o encarasse como um policial americano de violência, com herói bonzinho e bandido mau. Aqui não tem isso. Todo mundo faz parte do mesmo contexto e todo mundo é produto de um esquema social distorcido”. 573 A denúncia da realidade em Barra pesada, com a clareza, a secura e o realismo elogiados pela crítica, num filme que “não comenta fatos” e onde “ninguém, de fato, é bonzinho” 574 o diferenciaria de ser um simples e desprezado “filme de gênero” e o afastaria da matriz “maniqueísta” de Hollywood. Por outro lado, o filme de Reginaldo estaria alinhado 568 EDWALD FILHO, Rubens. Tiroteios em estilo internacional. Estado de São Paulo, São Paulo, 19 ago. 1978. 569 FASSONI, Orlando. O poder no cano de um revólver. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 ago. 1978. 570 ALENCAR, Míriam. Filme em questão: Lúcio Flávio, o passageiro da agonia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 abr. 1978. 571 BARRA Pesada: retrato fiel. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 jun. 1978. 572 ABREU, Ana Maria de Abreu. A violência nossa de cada dia. Última Hora, São Paulo. 14 ago. 1978. 573 AVELLAR, José Carlos. A Barra está tão pesada que a violência do mundo real até parece cena de filme. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 nov. 1977. 574 FASSONI, Orlando. O poder no cano de um revólver. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 ago. 1978. 343 a diversos filmes brasileiros da mesma época que procuravam compartilhar dessa característica de denúncia social, como o próprio Lúcio Flávio, entre outros. Entretanto, muitos críticos coerentemente analisaram o filme segundo as convenções narrativas e visuais do gênero policial, especificamente da produção dos anos 70, lembrando da “mutabilidade das convenções genéricas” apontada por Leitch. Para Valério Andrade, crítico do jornal O Globo que deixou seu bonequinho sentado observando o filme, o problema de Barra pesada estava no ritmo e na tensão do roteiro, além da artificialidade na encenação da violência física. 575 Alfredo Sternheim também criticou a falta de dramaticidade e de envolvimento emocional, a montagem sem ritmo, a artificialidade das interpretações de alguns atores e a falta de verossimilhança da trama. 576 Nessa mesma linha, o jornalista mexicano Nelson Carro afirmou que o problema de Barra pesada era justamente parecer demais com os modelos do filme policial americano, utilizando recursos muito convenciona is, como o flashback. 577 Outros críticos elogiaram uma capacidade brasileira em copiar, reproduzindo com propriedade as convenções da matriz norte-americana, mas com a necessária cor local – seja o ambiente, a língua ou a realidade social brasileira. Para alguns, Barra pesada conseguia realizar a difícil síntese de ser “um filme de Clint Eastwood, no estilo e na forma, com temática genuinamente nacional”. 578 O próprio Valério de Andrade afirmou que “o principal mérito de Barra pesada é o de não haver procurado copiar a fórmula do filme policial americano ou francês. Tendo como base o argumento de Plínio Marcos, [...] Reginaldo Faria ambientou o filme no submundo carioca. Denuncia os policiais ao invés de moldá- los à semelhança de um Kojak”. 579 Rubens Ewald afirmou, sem disfarçar um tom ufanista, que “o filme desmente aquela famosa afirmação de que ‘brasileiro não sabe fazer filme policial”, e que, “pela primeira vez não ficamos constrangidos de assistir a tiroteios [...] e perseguições”. 580 As cenas de perseguições de automóveis, aliás, teriam em Barra pesada, “uma seqüência admiravelmente trabalhada”, segundo José Haroldo Pereira, da revista Manchete. 581 575 ANDRADE, Valério. O Globo, 2 nov. 1977. STERNHEIM, Alfredo. Folha da Tarde, São Paulo, 30 ago. 1978. 577 CARRO, Nelson. Barra pesada. Uno mas Uno, México, nov. 1978. 578 EDWALD FILHO, Rubens. .Policial e Brasileiro. A Tribuna, Santos, 20 ago. 1978. 579 ANDRADE, Valério. O Globo, 2 nov. 1977. 580 EDWALD FILHO, Rubens. .Policial e Brasileiro. A Tribuna, Santos, 20 ago. 1978. 581 As perseguições de carros ganharam um novo destaque no cinema policial a partir de filmes como Bullit (EUA, dir. Peter Yates, 1968), quando pela primeira vez uma cena desse tipo chamou a atenção da crítica e se tornou “quase obrigatório ter uma cena de perseguição de carros em filme com policiais e ladrões [...] embora nem sempre com o mesmo êxito” (HOSSENT, 1974, p. 108). Filmes como Operação França passaram a utilizar estratégias do cinema documentário aliadas a uma edição ágil para causarem um maior efeito realista nas cenas 576 344 Além do reconhecimento por parte da crítica da importância da denúncia de Barra pesada e de sua excelência técnica e narrativa (que poderia ser constatada também pelo sucesso de público), havia a questão da defesa nacionalista do mercado. Na década de 70 era muito contestada, por exemplo, uma “invasão da televisão brasileira” pelos “enlatados americanos” e o próprio Plínio Marcos foi um dos mais veementes críticos dessa “importação cultural”. Dentre os seriados americanos mais bem sucedidos na televisão brasileira estavam diversas séries policiais como Dragnet, S.W.A.T., Kojak, Baretta, Starsky & Huich (Justiça em dobro), Rockford files (Arquivo confidencial) ou CHiPs (California highway patrols). A própria Embrafilme tentou entrar nesse mercado desenvolvendo 22 projetos de pilotos para seriados em 1977. Dentre eles, estava, por exemplo, Homem de aluguel, com roteiro de José Louzeiro, estrelado e dirigido por Jece Valadão para ser um substituto nacional para Kojak. 582 Entretanto, as emissoras de televisão que seriam parceiras desses projetos não concretizaram essa aliança e a Rede Globo, por exemplo, passou a produzir seus próprios seriados, como Plantão de polícia (1979-1981), tendo entre seus diretores Antonio Carlos Fontoura, além das mini- séries Bandido da falange (1983), de autoria de Doc Comparato e Aguinaldo Silva, e Mandrake (1983), dirigida por Roberto Farias e adaptada de Rubem Fonseca. 583 Ou seja, foi também num contexto de concorrência com o produto americano e de crítica à “importação da cultura de consumo” que “amesquinha nosso mercado de trabalho” (nas expressões do próprio Plínio Marcos) – onde se incluía a “luta do seriado nacional contra o enlatado” – que também se inseriu a produção e a recepção de um filme como Barra pesada. Desse modo, se um gênero é definido nas intercessões entre público e os filmes, se torna possível perceber a criação de um imaginário do filme policial brasileiros nos anos 70 através da constelação de artistas identificados com personagens bandidos ou marginais que orbitaram em torno dessas produções e também do universo de Plínio Marcos. Vários atores atuaram tanto em A rainha diaba quanto em Barra pesada, como o eterno “pivete” Stepan de perseguição de automóveis, que se fizeram presentes, inclusive, nos filmes policiais brasileiros, como O amuleto de Ogum ou A rainha diaba, assim como em Barra pesada e Lúcio Flávio. 582 O homem de aluguel era de um “super-herói místico”, cujos super-poderes teriam sido descobertos por um pai de santo, num terreiro de candomblé. O projeto se assemelhava a uma exploração da idéia já presente no marcante O amuleto de Ogum. 583 Outra mini-série baseada nas mesmas histórias de Rubem Fonseca foi realizada recentemente: Mandrake, com direção-geral de José Henrique Fonseca (filho do escritor), produção da Conspiração Filmes e exibida no canal de TV a cabo HBO. O papel do detetive particular carioca que fora interpretado por Nuno Leal Maia, nessa segunda adaptação ficou a cargo de Marcos Palmeira. 345 Nercessian, os marginais “pés-de-chinelo” Quim Negro, Lutero Luiz, Wilson Grey, Haroldo de Oliveira, Paulo Roberto, ou ainda o travesti Fábio Camargo. 584 Paulo Sacramento (também creditado como Banzo Negro ou Banzo Africano), alé m do trunfo Peludo do filme de Fontoura, interpretou também o Nelsão de Barra pesada e o Negrão de Dois perdidos numa noite suja. Negro, alto, forte, inexpressivo e monossilábico, o ator foi o rosto que o cinema brasileiro deu ao pesadelo pliniano que atormenta os personagens dos dois filmes. 585 Além desses atores, os astros e anônimos dos policiais eróticos da Boca do Lixo como Tony Vieira e David Cardoso e outros atores como Jece Valadão, Milton Gonçalves e Milton Morais, ora interpretando bandidos, ora policiais, também se consagraram como “tipos” reconhecíveis e identificados pela memória do público. 586 “No cinema brasileiro, ninguém quer ser mais Goda rd e isso é bom”. 587 De um modo geral, Barra pesada recebeu elogios por ser um filme que aliava uma ligação com a realidade brasileira, a seriedade na abordagem de uma importante questão social e um elevado nível técnico de realização. Ou seja, um filme nacional no tema, consciente nas intenções e de qualidade na forma. Além disso, se tratava também de um filme “popular”, sendo o termo utilizado para caracterizar sua capacidade de estabelecer uma ampla comunicação com o grande público. Armando da seriedade e do compromisso como o dos filmes do Cinema Novo, dentro do ideal de construção de uma indústria cinematográfica brasileira nos “anos Embrafilme”, Barra pesada tinha como meta ser também um produto comercial bem sucedido. Segundo um crítico, essa meta – apontada à época como o caminho mais viável para o cinema brasileiro – teria sido plenamente alcançada em Barra pesada que chegou a ser visto 584 Fábio Camargo, aliás, faz praticamente o mesmo papel de “bicha pobre” em A rainha diaba, Barra pesada e também numa ponta em Perdida (dir. Carlos Alberto Prates Correia, 1976). 585 Numa crítica de Barra pesada essa coincidência foi notada: “Para o Tonho, existe o Negrão que descobrindo sua fraqueza o explora, para Querô, o Nelsão, que juntamente com seu comparsa alcagüete retira toda a sua féria de pequenos furtos”(JESUS, José Luiz. Barra pesada: chegou a hora do lumpem? Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 13 nov. 1977). 586 Além de Reginaldo, os nomes de Marcus Vinícius, Stepan Nercessian e Mário Petraglia estavam tanto em Barra pesada quanto em Lúcio Flávio. Ivan Cândido se consagrou como o policial violento, fazendo papeis muito semelhantes nos filmes de Babenco e de Reginaldo. 587 FARIA, Reginaldo. Barra pesada. Última Hora, São Paulo, 19 ago. 1978. Entrevista. 346 como “um modelo de filme brasileiro, na medida em que sabe conciliar com perfeição o apelo popular com a seriedade de propósitos. E que promete ser, muito merecidamente, um grande sucesso de bilheteria”. 588 O próprio Reginaldo Faria também ponderou sobre o difícil equilíbrio entre a seriedade (da expressão artística) e a necessidade comercial (do produto industrial): Na verdade não estou interessado em manter uma atividade comercial tão grande, mas tentar fazer um cinema melhor. É evidente que o retorno é necessário, inclusive para assegurar uma continuidade de trabalho. E acho que consegui isso em Barra pesada, um filme comercial e que tem uma força crítica 589 muito forte, uma denúncia muito importante. Nesse contexto, um cineasta como Glauber Rocha era considerado “elitista” pelo diretor, uma vez que o Cinema Novo – do qual Glauber se intitulava e era considerado o principal representante – teria sido inacessível ao povo, repetindo um debate que remontava ao início dos anos 60 e que teve como um de seus principais pomos de discórdia justamente o filme O assalto ao trem pagador. Mas com o mesmo otimismo expressado por Valadão em 1972, para Reginaldo em 1978 o cinema brasileiro amadurecia, buscando uma “linguagem nossa” e podendo ser observada uma diversificação temática muito grande. 590 Ao contrário de Glauber, um diretor como Nelson Pereira dos Santos, que demonstrou ao longo das décadas de 50, 60 e 70 uma incrível capacidade de adaptação a novas conjunturas, permanecia sendo uma referência positiva e, não à toa, um comentário dele com elogios a Barra pesada era transcrito no material de divulgação do longa- metragem. Assim como A rainha diaba, o filme de Reginaldo Faria também chegou a ser alinhado a O amuleto de Ogum numa crítica da época, por ser considerado uma obra que abordava temas populares sem uma postura intelectual elitista ou “pirotecnias da câmera”, realizado por um diretor “que não procura, através de obras de artes, dar lições de sociologia.” 591 A barra de Plínio 588 PEREIRA, José Haroldo. Barra pesada. Manchete, Rio de Janeiro, 19 nov. 1977. ABREU, Ana Maria de. A violência nossa de cada dia. Última Hora, São Paulo, 14 ago. 1978. 590 BARRA pesada. Última Hora, São Paulo, 19 ago. 1978. 591 JESUS, José Luiz. Barra pesada: chegou a hora do lumpem? Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 13 nov. 1977. 589 347 Apesar de Barra pesada ser “um filme de” Reginaldo Faria, a ênfase na importância do argumento de Plínio Marcos fez com que o dramaturgo fosse algumas vezes alçado praticamente ao mesmo patamar de responsabilidade que o diretor pelo sucesso do filme, como um verdadeiro “co-autor”. Marcos Farias, por exemplo, afirmou que “o trabalho de Plínio Marcos e Reginaldo Faria constitui um dos melhores filmes nacionais dos últimos anos”. 592 Nelson Pereira dos Santos creditou o bom resultado do filme à soma da “vivência de Plínio Marcos” com a “sabedoria cinematográfica de Reginaldo Faria”. Assim como nas demais adaptações da obra pliniana, o “conhecimento de causa” do autor maldito com o universo marginal era considerado um dos principais responsáveis pelo “implacável realismo” ou elogiado por conferir uma “garantia de autenticidade” ao filme. Enquanto o conto Nas quebradas da vida ficava na gaveta da R. F. Farias, o mesmo texto foi reescrito e ampliado por Plínio Marcos, se transformando no romance Uma reportagem maldita (Querô), publicado em 1976. Novamente investindo na literatura para escapar da censura – no ano anterior, mesmo empreendendo uma grande luta judicial, a inédita peça O abajur lilás continuou interditada –, Plínio recebeu elogios da crítica pelo livro e foi premiado como melhor autor de romance do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Entretanto, o dramaturgo não teve participação alguma no filme de Reginaldo Faria quando ele foi realizado. Seu texto simplesmente se adequou às aspirações do diretor surgidas cinco anos depois da elaboração do argumento. Como afirmou o cineasta, na época em que o conto foi vendido “[Roberto Farias] me apresentou o Plínio rapidamente e eu nunca mais falei com ele, nem o vi”. 593 O romance Uma reportagem maldita (Querô) foi publicado antes de Barra pesada ser lançado, mas já depois de Reginaldo Faria ter feito o roteiro, baseado unicamente no conto Nas quebradas da vida. 594 Plínio Marcos, que já tinha defendido o seu título original no caso da adaptação de Nenê Bandalho, não gostou da mudança de título e chegou a escrever num artigo que não entendia o porquê da troca do nome. 592 595 O próprio Reginaldo chegou a comentar o fato: “Acho que o FARIAS, Marcos. Luta democrática, Rio de Janeiro, [1977]. FASSONI, Orlando L. Reginaldo Farias, do riso ao compromisso. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 ago. 1978. 594 Dessa forma, no começo do filme os créditos indicam apenas “Original de Plínio Marcos”, enquanto no material de divulgação do filme Plínio é citado como responsável pelo argumento, com a indicação, entre parênteses: “inspirado no argumento cinematográfico de “Nas Quebradas da Vida”. 595 MARCOS, Plínio. Plínio Marcos e a violência. Psicologia atual, v.1, n.6, [1978], p.50-51. 593 348 Plínio não gostou da modificação porque isso é próprio dele, um autor perseguido, proibido, que não pode fazer nada. E quando modificam alguma coisa, ele fica doido”. 596 Na verdade, o cineasta decidiu não aproveitar o título Nas quebradas da vida por considerá- lo muito “poético”, trocando por Barra pesada. Coincidentemente, quando o filme já estava no laboratório, com letreiros e publicidade feita, foi lançado o livro de reportagens policiais de Octavio Ribeiro com exatamente o mesmo nome. Reginaldo então “procurou o pessoal do Pasquim [que editou o livro pela Codecri] e o Ziraldo autorizou utilizar o título, desde que na publicidade do filme citassem o nome do Octávio” 597 . Esse foi o motivo de se encontrar no material de divulgação de Barra pesada o seguinte texto: A semelhança do título do filme de Reginaldo Faria com o título do livro do repórter Octávio Ribeiro é mais do que uma coincidência: é uma identificação de propósitos. Ao expor as mazelas da sociedade – Octavio Ribeiro na imprensa, Reginaldo Faria no cinema -, tanto o jornalista como o cineasta estão agitando um problema social que ninguém deve ignorar. Se não apontam soluções, porque isso não faz parte do “mettier” de nenhum dos dois, sabem ambos como agitar esse problema. Mesmo que por casualidade, esse fato expressa também a ligação do cineasta com o jornalista, elemento com forte presença no filme policial brasileiro e que ganhou força nos exemplares desse gênero realizados na segunda metade da década de 70 e pautados por denúncias “realistas” e “objetivas”. Nesse contexto marcado também pela emergência dos romances-reportagens, o filme Lúcio Flávio, o passageiro da agonia adaptava o livro homônimo de José Louzeiro escrito a partir dos depoimentos que o bandido Lúcio Flávio Lírio deu ao jornalista antes de ser assassinado na cadeia – como é retratado no próprio filme. Exatamente a mesma coisa ocorre com o personagem fictício Querô, no romance de Plínio Marcos – intitulado justamente Uma reportagem maldita –, que conta sua vida a um jornalista antes da polícia encontrá- lo e executá- lo. Como Plínio se intitulava um “repórter de um tempo mau” e foi a atividade jornalística que o ocupou primordialmente ao longo dos anos 70, é no personagem do jornalista que o autor se coloca. 596 598 FASSONI, Orlando L. Reginaldo Farias, do riso ao compromisso. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 ago. 1978. 597 FASSONI, Orlando L. Reginaldo Farias, do riso ao compromisso. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 ago. 1978. 598 A mesma estrutura estava presente no argumento Nas Quebradas da Vida, como pode ser percebido pela declaração de Reginaldo Faria: “Quando li o argumento do Plínio pela primeira vez, imaginei uma solução fantasiosa. Pensei em começar a história com Querô ferido no barraco do morro, e contar tudo como um delírio 349 Sem ter sido possível o acesso ao argumento original, esta análise parte do livro Uma reportagem maldita (Querô) para uma reflexão comparativa com o filme Barra pesada. Apesar de personagens, diálogos e do desenrolar dos eventos serem bastante parecidos, o romance de Plínio Marcos e o roteiro / filme de Reginaldo Faria, ambos realizados na mesma época a partir do conto escrito cinco anos antes, apresentam algumas diferenças significativas entre si além do título. Barra pesada, seguindo uma ordem linear e cronológica dos acontecimentos, acompanha o personagem Querô apenas em sua trajetória final e descendente, a partir da aposta perdida na sinuca com o Brandão – quando passa a ser achacado por Teleco e Nelsão – , passando por seu envolvimento com o tráfico e o romance com a prostituta, até terminar com o seu assassinato num casebre em um terreiro em uma favela Esse desenrolar trágico de eventos, que ocupa somente a segunda metade do romance, no filme se constitui como o núcleo principal de acontecimentos. Já no romance Uma reportagem maldita (Querô), o próprio personagem principal conta sua vida, sendo a narrativa em primeira pessoa – nem um pouco distanciada ou objetiva – entremeada de inúmeros adjetivos e comentários sobre os acontecimentos e os demais personagens. Filho de uma prostituta chamada Alzira da Piedade expulsa do bordel por estar grávida, Querô é abandonado recém- nascido por sua mãe, que se suicida bebendo querosene. “Foi pras picas. Mas devagar. Devagarinho [...] Ficou um cacetão de tempo no chão se contorcendo como uma minhoca” relata o garoto a partir das histórias que ouviu depois. O narrador conta que passou a ser criado pela cafetina da mãe, Violeta, que o batizou de Jerônimo da Piedade, mas cruelmente só o chamava de “Querosone” – “não foi por boazinha, nem por remorso que a velha cafetina nojenta me pegou na rua [...] ela me catou por medo dos bochichos”. Maltratado pela “mãe” adotiva, depois de revidar os constantes espancamentos, Querosene foge e passa a se virar nas ruas do cais do porto, se juntando à “curriola” de Tainha, um garoto mais velho que “já estava quase deixando de ser menor” e que se torna praticamente o irmão que nunca teve. Esse que foi “o melhor tempo” de sua vida – quando passou a não ser mais chamado de Querosone, mas somente Querô – acaba um dia, depois de um assalto a um “gringo do Querô. No delírio ele misturava tudo, a polícia e os bandidos. Mas logo abandonei essa idéia” (AVELLAR, José Carlos. A Barra está tão pesada que a violência do mundo real até parece cena de filme. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 nov. 1977). A ausência do jornalista em Barra pesada é significativa, pois mesmo que não haja no filme nenhum sinal de reflexividade que coloque o cineasta como esse papel, a opção pela “linguagem universal” ou pela invisibilidade da narrativa clássica já conferem ao diretor do filme o papel do narrador objetivo daquela história. 350 bichona”, quando Tainha o entrega para os “canas” para “livrar sua cara”. Na cadeia é acusado pelo roubo e apanha dos policiais, sendo depois enviado ao Juizado de Menores e, finalmente, ao reformatório. Lá, Querô se envolve numa briga assim que chega e acaba na solitária. Logo que sai do castigo, passa a se ameaçado de curra pelos demais garotos num dos trechos mais impactantes do livro: Quando um vigia cismou, desligou a televisão. Foi uma zorra. A curriola fez um escarcéu. Vaiou. Mas, logo começaram a me olhar e a rir. Foram saindo devagarzinho. E assobiando para mim. Fiquei parado. Um vigia, quando me viu sozinho ali, me empurrou para fora, dizendo: – Vai, vai lá, que é tu mesmo que eles querem. Não esperneia que é pior. Me levou para o alojamento, mostrou uma cama vazia e disse: – É aí o teu lugar. Virou as costas e saiu. Logo a luz se apagou. Eu não tive tempo de me mexer. Todos pularam em cima de mim. Me agarraram pelo pescoço e me taparam a boca com um travesseiro para eu não gritar. Me deram pontapé e socos. Me derrubaram no chão e rasgaram a minha calça, nem mexer as pernas eu podia. Estava preso pelos braços e pelas pernas. Eles me pisavam. E me enrabaram. Quantos foram, não sei. Mas, foram quantos quiseram. Depois de se recuperar na enfermaria, devido à vergonha e à raiva Querô se isola dos outros e passa mais de um ano só no “come-e-dorme”. Certo dia, depois de descobrir que o cozinheiro Seu Edgar – “um papacu velho, porco, nojento” – passou a “cobiçá- lo”, Querô aproveita uma oportunidade para o esfaquear, provocando uma fuga em massa e conseguindo também escapar do reformatório. De volta ao cais do porto, molhado, com fome e sem nenhum dinheiro ou alternativa, Querô procura Naná, um “veado” que o azucrinava antes. Já endurecido pela vida e com “raiva de tudo”, o garoto se aproveita da gama dele e espanca e rouba a “bichona nojenta”. Desse jeito, Querô consegue se arrumar num quartinho e voltar à antiga vida de biscates. Por sorte, uma vizinha “negrona”, Gina de Obá, o leva ao pai de santo Bilu de Angola, onde se envolve com as atividades e festas do terreiro, e chega a se apaixonar por uma menina de lá, chamada Lica. Nessa maré boa, fica quase dois anos “sem se meter em salseiro”, mas “por causa de uma besteira de merda” sua vida “se bagunçou de novo”. É nesse momento da história do personagem que começa o roteiro de Reginaldo Faria, no qual episódios que no romance ocorrem antes e em outras circunstâncias (o assalto ao gringo, o encontro com Naná, a paixão por Lica), são modificados e encaixados no filme seguindo essa nova ordenação da narrativa. No romance de Plínio Marcos, para conseguir dinheiro para pagar a passagem de ônibus até o terreiro do pai Bilu, Querô se envolve numa aposta de sinuca com um “crioulão” chamado Brandão. Após perder o jogo e sem ter como pagar a dívida, Querô passa a ser 351 achacado por dois policiais – Sarará e Nelsão – que “livram sua barra” com Brandão. Desesperado pelo medo de se tornar “esparro de cana”, a pior coisa que poderia acontecer, e já disposto a matar os “ratos”, Querô encontra Zulu, um “crioulinho enjoado” do reformatório. “Tirando onda” por ter virado “passador de fumo”, Zilu se vangloria: tem grana, mulher e um revólver. Aproveitando a vaidade e a distração do “crioulinho”, Querô rouba sua arma e o mata, para em seguida, “com a cabeça cheia da erva”, assassinar também os dois policiais. Ferido no tiroteio, Querô se refugia no terreiro de pai Bilu. No penúltimo capítulo de Uma reportagem maldita (Querô), revela-se que Querô está contando sua história para um jornalista chamado pelo pai de santo. O garoto delira com a febre por causa dos ferimentos e a linguagem se torna truncada, desconexa, como se toda sua vida passasse diante dos seus olhos já turvos. O último capítulo, que ocupa apenas duas páginas, é narrado também em primeira pessoa, dessa vez pelo jornalista, relatando sob seu ponto de vista, em tom seco e distanciado, o assassinato de Querô pelos policiais que chegam ao local após terem obrigado Pai Bilu e a nega Gina a revelarem o esconderijo. Plínio na barra O roteiro de Barra pesada se prendeu apenas ao relato de uma ação contínua na vida de Querô – da aposta com Brandão à execução final –, abdicando da parte inicial de seu relato. Esse passado do personagem compreendia outros acontecimentos entremeados por pelo menos quatro grandes elipses temporais, localizados entre o suicídio da mãe e a fuga de casa (sua infância com Violeta); entre a fuga e o assalto ao gringo (sua criação na malandragem com Tainha); entre a curra e a fuga do reformatório (um ano só no “come-edorme”); e entre o restabelecimento no cais e a amizade com a Nega Gina até a aposta com Brandão (dois anos sem se meter em salseiro). O que poderiam ser tempos mortos ou passagens longas de tempo foi suprimido. Em Barra pesada as lembranças da mãe de Querô surgem como flashbacks, interrompendo a ação e sendo justificados geralmente como sonhos do protagonista (quando ele está dormindo) ou como delírios (quando é espancado). Essas lembranças, além de comentar, chegam a influenciar o desenrolar dos acontecimentos. Quando todos riem de 352 Querô no prostíbulo onde ele foi procurar ajuda do travesti Naná (Fábio Camargo), diante do sentimento de humilhação do personagem surge na tela a imagem de sua mãe dizendo “bundar com bicha não dá futuro, não, meu filho”. Em outra seqüência, Querô dorme num quarto de pensão fugindo da polícia e lembra-se da mãe sendo espancada e roubada por seu cafetão (Reginaldo Faria). Nesse flashback, o personagem, ainda criança, está presente à cena. De volta à realidade, ele acorda com gritos de uma mulher (em continuidade com os gritos da mãe no sonho) e encontra no quarto ao lado uma prostituta – Ana – sendo espancada pelo cafetão. Querô afugenta o homem, justificando-se para Ana: “Eu tenho bronca de cafetão”. Os dois tornam-se amantes e moça acompanha Querô em sua fuga. Também em Barra pesada, o assassinato de Chupim parece ser motivado somente pela necessidade de Querô do revólver. Não existe um passado desse personagem na trama, como acontece com o “crioulinho enjoado” Zilu no livro, que espezinhava Querô quanto ele estava “na pior” no reformatório. No romance de Plínio Marcos, Querô rouba a arma de Zilu, mas depois não sabe ao certo o que fazer. Não deixa de aproveitar o “poder” que sente ao estar em vantagem em relação ao outro (“nunca me senti tão legal em toda a minha vida”, pensa), que o leva logo a se aproveitar de sua posição em relação àquele que logo antes o menosprezava, se afirmando (“Pra ti, seu veadinho nojento, é Seu Querô!”) e o ameaçando (“Antes de te deixar ir, eu vou te fazer chupar meu pau.”). Entretanto, como o Bereco de A rainha diaba, ele também revela a insegurança que sente em seu “batismo”: “Aquela ali era a hora da verdade. Eu, que sempre acreditei que de arma na mão ia fazer muita miséria, estava vacilando. E não podia”. Querô continua xingando Zilu “pra ver se pegava raiva dele”, até que finalmente a brutalidade toma o personagem e o nervosismo é substituído pela completa frieza e crueldade: Eu sentia os olhos ardidos. Era só o que eu sentia. O frio no saco, o vazio na barriga, tudo tinha passado. Só meus olhos ardiam. Dei uma olhada pro revólver e depois disse baixinho: – Tu já atirou com essa merda? – Não. É novinha. – Então vou tirar o cabaço. E mandei ver. Dei no gatilho.” Em Barra pesada, Querô também aproveita uma distração de Chupim para pegar a arma das suas mãos. Embora mostrando a mesma hesitação e nervosismo que o personagem do romance, no filme o garoto não aproveita da sua situação para se impor ou humilhar o anteriormente falastrão Chupim. No filme, esta seqüência é muito mais curta, sendo o disparo 353 de Querô movido mais pela imediata pressão que Chupim impõe, gritando “Me dá! Me dá, por favor!”, enquanto caminha lenta e ameaçadoramente na direção de Querô que se vê, literalmente, contra a parede. O assassinato não é calculado, mas fruto de um impulso, o que, de certa maneira, absolve em parte Querô. Por outro lado, o personagem do filme se aproxima mais do tom do livro quando se aproxima do cadáver e diz: “Poxa Criolo, isso é um jogo. Era eu ou tu. Melhor que foi tu.” De uma forma geral, enquanto o romance tenta mostrar a longa trajetória da infância e adolescência de Querô até o estado de brutalidade em que chega ao final, no filme o personagem se revela desde o início sem possibilidades, condenado, chorando sua fraqueza e impotência diante do mundo – “Tive medo, tive nojo de mim. Tive até vergonha [...] desde o começo sempre fui o esparro. Nunca fui o mais forte ou o mais bonito”. Esse aspecto de Querô, encontrado na obra de Plínio e bem retratado no filme de Reginaldo, encontra ressonâncias, por exemplo, como a Neusa Sueli de Navalha na carne que chega a se perguntar: “Será que eu sou gente?”. É interessante que algumas traduções do título de Barra pesada em inglês tenham sido Dead end street – “beco sem saída” – ou Fish in a barrel – da gíria shooting fish in a barrel, literalmente “pescando num barril”, que significa “ridiculamente fácil”, embora “peixe no barril” também pode ser algo como “presa fácil”. Essa falta de saídas ou alternativas, ligada exemplarmente ao universo pliniano, também se encontra no texto de Nelson Pereira dos Santos sobre o filme: “Barra pesada é um depoimento sobre o comportamento humano submetido a pressões no beco sem saída desta sociedade, onde se assiste ao duelo final – de um lado, o ser humano (o mocinho), e de outro, as forças organizadas da sociedade (os bandidos)”. 599 Nesse sentido, o filme de Reginaldo Faria se aproxima de outra adaptação pliniana. Segundo José Carlos Avellar, A rainha diaba não provoca no espectador identificação com nenhum personagem, não faz o público ter especialmente raiva ou pena de nenhum deles. Catitu é sedutor e “fala macio”, mas se revela o grande traidor da história; Diaba será vítima de seus próprios aliados, mas é extremamente cruel com os outros, principalmente Isa (movida mais por inveja do que por justiça); mesmo Bereco, envolvido ingenuamente na história, aproveita-se da paixão sincera da amante para subir na carreira do crime. 599 Curiosamente, o roteiro de Lúcio Flávio tinha o título de Encurralado e o filme foi todo rodado com esse nome. 354 Com Querô acontece o mesmo. Apesar de grande vítima do mundo, gerando identificação do personagem com o espectador por pena, compaixão ou solidariedade, algumas de suas reações provocam uma ambigüidade desses sentimentos. Além da cena do assassinato de Chupim, o caráter ambíguo de Querô pode ser ainda mais notado numa seqüência inexistente nos textos de Plínio, em que o personagem seqüestra um carro, tomando o motorista (Mário Petraglia) como refém. A postura argumentativa, corajosa e inadvertidamente até engraçada do dono do carro provoca empatia do público com ele. Retratado como um “garotão” carioca, em meio ao seqüestro ele diz frases como “Pô, logo hoje” ou “Eu entro em cada fria”. Nessa situação, ao não libertar o motorista e mandar a toda hora que ele cale a boca, Querô aparece do lado “negativo”, o que é ainda mais acentuado pelo fato do refém acabar morto por tiros dos traficantes endereçados a ele próprio. Nesse contexto, outro episódio significativo para o protagonista é seu encontro com o travesti Naná, cuja ação e diálogos no filme são praticamente idênticos aos do romance. A violência e crueldade de Querô emergem quando ele direciona seu ódio gigantesco para aquele ao seu lado que se revela mais fraco e vulnerável no momento. Quando o garoto espanca e rouba o travesti para quem pedira ajuda – tanto no livro quanto no filme – surge o questionamento de quem é bom, que m é mal; quem é a vítima, quem é o carrasco; ou se na ficção como no mundo real, essa divisão de papéis não é simplesmente fruto das circunstâncias. 600 Outros personagens de Barra pesada também carregam exemplarmente características plinianas. Como a Isa de A rainha diaba, o amor de Ana por Querô é acompanhado do elemento trágico. Se a prostituta foi salva do cafetão por Querô, por quem se apaixona, por causa dessa paixão ela é brutalmente torturada – tendo sua língua cortada – e estuprada pelos traficantes para contar o esconderijo do garoto. Ao contrário da cantora de cabaré do filme de Fontoura, Ana sofre barbaramente, mas não conta nada – até porque não sabia mesmo. É o garoto Negritinho, espécie de irmão mais novo de Querô, quem acaba revelando o esconderijo do personagem após ser ameaçado, agora pelos policiais, de sofrer a mesma violência que a gangue do Dr. Florindo tinha infligido à Ana. 600 601 Na mesma cena, Querô soca sua própria imagem no espelho, revelando como a raiva se direciona também e ele mesmo ou ainda que ele percebe – e por isso, se enfurece – que estava se tornando igual aos outros que o exploram. 601 Enquanto no romance de Plínio, Querô é preso pela primeira vez ao ser traído por aquele que ele considerava seu irmão mais velho, em Barra pesada a “ traição” vem daquele que era como um irmão mais novo. 355 Ao contrário das obras de Plínio Marcos, em Barra pesada, se a amizade não suporta a ameaça de violência, o amor ainda é romanticamente capaz de resistir a tudo – mesmo que não adiante nada. Desse modo, com Ana totalmente destroçada, a última e melancólica cena do filme mostra Negritinho, agora totalmente sozinho no mundo, chorando a morte de Querô, e tentando se conformar ao dizer para si próprio: “eu não tive escolha ”. Ou seja, se o protagonista de Lúcio Flávio ganha contornos de mártir ou herói, a partir da ambigüidade moral dos personagens de Plínio Marcos, Barra pesada se revela um filme menos maniqueísta do que o do filme de Babenco. “O tempo do valente forte e no braço já passou”. Outra questão interessante que pode ser notada em Barra pesada diz respeito à mistura de elementos de uma marginalidade do passado com a criminalidade alarmante do presente, como apontada em A rainha diaba. No filme de Reginaldo Faria, o personagem Brandão que ganha a aposta na sinuca com Querô é retratado como um típico malandro. Sua roupa (chapéu, camisa aberta no peito, cordão de ouro) e seu jeito (movimenta-se devagar, sorriso irônico, mastiga palito de dente) não deixam dúvidas sobre sua figura, reforçada pela trilha sonora – um samba levado apenas por uma caixa de fósforos – que abre o filme e atravessa a seqüência, se aproximando da cena do desafio de sinuca em Vai trabalhar, vagabundo!, assim como do filme O jogo da vida. No romance de Plínio Marcos, Brandão era um “crioulão grande, metido a valente”, “muito forte” e que quase matava Querô de pancada quando o garoto revelava não ter dinheiro para pagá- lo. Já no filme, o personagem é interpretado pelo ator Marcus Vinícius, magro e aparentemente fraco, mas que na hora da briga salta rapidamente para cima do garoto manejando habilmente justamente uma navalha. Tanto o valente de Plínio Marcos, quanto o malandro de Reginaldo Faria – o único que encontramos no filme – se dão mal. No romance, conforme relatado pelo dono do bar, Brandão é preso (sem motivo algum) pelos policiais que “limpam a barra” do garoto para que Querô pague pedágio a eles. Em Barra pesada esse destino é enfatizado ao mostrar em uma cena em que Brandão é preso por policiais depois de ser incriminado por Teleco, que coloca um pacote suspeito no casaco do malandro – que acaba sendo o “otário” da história. 356 Essa mudança se deve também ao fato de, no filme, a dupla Teleco e Nelsão (e não Sarará e Nelsão) ser identificada – segundo o material de divulgação do filme – simplesmente como “cáftens de pivetes”. Enquanto o Sarará e Nelsão do livro eram os mesmos policiais que tinham prendido Querô depois do assalto ao gringo, no filme os dois não são “canas” corruptos, mas sim um par de vagabundos, que se viram como cafetões ou “olheiros” da polícia e encontram no “talento” de batedor de carteiras de Querô e Negritinho uma “grande chance”. Desse modo, além de não retratar a dupla de personagens mais cruéis do filme como policiais (poupando graves problemas com a censura), em Barra pesada, Teleco e Nelsão também apresentam traços de decadência que caracteriza esse universo dos malandros e cafetões e que permeia todo o filme de Reginaldo Faria, atravessado por personagens e cenário decrépitos, ilustrado por imagens de prédios em demolição, casas em ruínas e canteiros de obras. No livro de Plínio Marcos, os dois policiais vestem “camisa florida, calça bacana e sapato branco” e o outro de “de terno e gravata e tudo”. No filme, Teleco e Nelsão são feios, sujos, pobres e andam de ônibus. No romance Uma reportagem maldita (Querô), o parceiro de Nelsão diz que ele foi boxeador peso pesado antes de entrar para a polícia, e o “pedágio” de Querô era necessário porque “tira ganha pouco” e a grana não garantia o “bom trato” que ele estava acostumado. Em Barra pesada, Sarará comenta que Nelsão era do telecatch da TV Rio, mas a decadência da dupla é explícita, expressa especialmente por uma cena em particular. Num bar, Nelsão – aparentemente bêbado, com uma garrafa de cerveja vazia a sua frente – é visto sentado ao lado de uma parede na qual estão pregados quadros com fotos de seu passado glorioso de lutador. Essas imagens antigas, em preto e branco, dignas e vitoriosas, contrastam com a aparência trôpega dele no bar e acentuam o aspecto decadente no personagem, reforçado pela própria situação de sobreviver exclusivamente à custa da extorsão de um pivete. O próprio Querô, quando confronta os dois de arma em punho, percebe o ponto fraco de Nelsão e o provoca gritando: “o coitado ficou lelé de tanto levar porrada na cachola”. Desse modo, o policial surge em Barra pesada como um outro personagem, que não existe no livro de Plínio Marcos, que é o comissário frio, calculista e sem nome, interpretado por Ivan Cândido. Se em Uma reportagem maldita (Querô), o garoto é morto por policias que vingam o assassinato dos dois colegas, no filme o comissário é movido por um desejo de eliminar o marginal que aparentemente não tem a mesma motivação. 357 Quando os policiais chegam ao local em que Querô armou a emboscada para a dupla que o explorava e o comissário ainda encontra Teleco respirando, é curioso notar o enorme desprezo que ele manifesta pelo “cáften de pivete”. Enquanto Teleco, em seu último suspiro, diz: “Foi o Querô. Pega ele”, o comissário responde friamente ao seu “olheiro” à beira da morte: “A gente pega ele, mas não por sua causa”. Nesse sentido, Barra pesada se aproxima muito de Lúcio Flávio no contexto de denúncia da atuação do Esquadrão da Morte que ocupava as manchetes dos jornais naqueles anos. O filme de Hector Babenco mostrava a história de um marginal que decidia não mais compactuar com a polícia corrupta, simbolizada pelo personagem Moretti (Paulo Cesar Pereiro), que era representado justamente como um malandro: vestindo camisa colorida aberta no peito e cordão de ouro, abusando de ginga e malícia e prometendo sempre “dar um jeito” em tudo com sua esperteza. Mas Lúcio Flávio e o próprio Moretti – que chega a dizer que os dois “jogam no mesmo time, só que com camisas diferentes”, – acabam sendo confrontados por um novo elemento: a “organização”, representada pelo sóbrio e frio policial Bechara (interpretado pelo mesmo Ivan Cândido), permanentemente vestido de terno preto. Bechara chega a dizer para Moretti que seu “tempo passou” e empreende uma perseguição implacável a Lúcio Flávio e sua quadrilha, eliminando os bandidos um por um. A denúncia à atuação da polícia corrupta é um tema muito comum nas obras plinianas, que já pode ser notado em A navalha na carne, peça e filme, quando a prostituta Neusa Sueli diz que a situação está ruim porque “o novo delegado que está aí está querendo fazer média. Toda hora passa o rapa. Até os tiras andam apavorados, não pegam caixinha nem nada” (MARCOS, 2003, p. 162). Na adaptação de Braz Chediak para a peça Dois perdidos numa noite suja, o tema surge a partir de um diálogo inexistente no texto de Plínio Marcos, quando Tonho questiona Paco sobre a vida que ele levava antes deles se conhecerem: Tonho: Onde está sua flauta? Paco: Você é tira? Tonho: Deus me livre. Paco: Faz tanta pergunta! Tonho: Só táva querendo conversar... 602 602 Como era no texto da peça de Plínio Marcos: “Tonho: Onde foi parar a sua flauta? / Paco: Passaram a mão nela” (MARCOS, 2003, p. 91). 358 Uma das poucas falas acrescidas no filme ao diálogo da obra “original” apontava justamente para uma visão negativa do policial, como o que de mais indesejável poderia haver para os dois personagens daquele universo. Já o filme Nenê Bandalho faz uma crítica mais acentuada, pois além de ridicularizar os personagens policiais, denuncia sua atuação ao mostrá- la a execução sumária de um marginal já rendido e desarmado. Entretanto, o deboche e irreverência possivelmente minimizavam o caráter de seriedade da denúncia. Em A rainha diaba, o policial corrupto que compactua com a Diaba se chama significativamente “Coisa Ruim”. Mas além do personagem interpretado por Procópio Mariano, a polícia não tem um papel importante no filme de Fontoura, surgindo novamente apenas na cilada para Bereco armada por Catitu a mando da Diaba. De fato, no argumento original escrito por Plínio Marcos e vendido para Antônio Carlos da Fontoura, após Bereco matar a Diaba e ser fuzilado ao sair do quarto, a história acabava com a comemoração dos trunfos. Mas embora o conto terminasse com a frase “Eram os novos reis do fumo”, Plínio escreveu em seguida: FIM (CASO QUEIRA CONTINUAR O FILME) E a ação continuava no conto exatamente como Fontoura reproduziu no filme: enquanto o grupo comemorava a vitória, Violeta colocava veneno no champagne, matando todos os outros trunfos. No momento em que a cafetina festejava sozinha, a Diaba surgia do quarto ensangüentada atirando nela antes de cair também. Entretanto, enquanto o filme de Fontoura terminava aí, o conto de Plínio continuava: Nesse momento estouram a porta da rua e bombas são atiradas pra dentro da sala, que fica toda cheia de fumaça. Escuta-se uma enorme artilharia e vultos se mexem no meio da neblina artificial. Um dos vultos cai com a mão no peito e é grande a confusão. Mas, aos poucos, a fumaça vai se dissolvendo. E quem está em cena é a polícia. O chefe examina tudo, daí grita pra fora com euforia: – Tudo dominado. Acabamos com o tráfego [sic] de maconha. Um praça se apresenta e informa: – O Waldemar morreu. O chefe faz cara de triste e ameaça um discurso: – Morreu cumprindo o dever. Mas, um herói que tomba em defesa da família, da... De estalo, o chefe se manca. Pára, olha ao seu redor e ordena: – Mande entrar os repórteres. O praça sai e uma multidão de fotógrafos invade a sala. O chefe então prossegue: – Morreu para que as famílias possam dormir em paz etc... 359 FIM Ou seja, Fontoura escolheu não incluir um(a parte do) final que o próprio Plínio Marcos afirmava ser opcional, mas no qual uma crítica aos policias – não somente corruptos, como incompetentes e manipuladores – surgia ainda mais acentuada. Como aparece no filme A rainha diaba, a polícia não teria controle ou influência sobre os marginais, mas o final do conto mostrava como os policiais ainda tentavam, inútil e desastradamente, fazer alguma coisa, principalmente para se promover com isso. Mas como em Nenê Bandalho, essa denúncia era feita com avacalho e deboche. Podemos imaginar que Fontoura preferiu concentrar seus personagens unicamente no universo dos marginais, fugindo de uma polarização com o contraste com figuras que representassem o Estado. Não se pode subestimar ainda a questão da censura, que inibia os cineastas de traçar qualquer retrato mais crítico das instituições públicas, incentivando-os a apelar para alegorias e metáforas. Desse modo, o diretor de A rainha diaba chegou até mesmo a ser acusado de ter se submetido “ao mais gritante caso de auto-censura até hoje dado a conhecer no cinema brasileiro” em reportagem da época de lançamento do filme: Em seu roteiro original, o desfecho era marcado pela invasão do sub-mundo pela polícia, que após eliminar os contendores, passaria então a gerenciar as bocas. Seria no mínimo ingenuidade, deve ter refletido, apresentar semelhante situação e submetê-la à apreciação soberana da própria polícia (através do Departamento de Censura). Ou ainda, uma decisão de catastróficas conseqüências para quem ocupou-se durante oito semanas preparando um trabalho artístico [...] Fontoura não pronunciou-se a 603 respeito. Sobre esse fato, Aquino (2002, p.147) afirmou que: Nos debates ocorridos na Universidade de Brasília, quando do lançamento do filme, brotou a idéia de que este final havia sido acrescentado por pressão da censura ou por pura opção, para ludibriá -la, amenizando a violência e ousadia do filme com um final do tipo o crime não compensa. Alguns anos depois, numa entrevista ao Correio Brasiliense (DF, 10/11/82), Fontoura esclareceu que o final do filme foi proposital: ‘Eu não queria heróis. Se eu tiver ideologia, ela está mais para anarquista. Por isso fiz aquele final catastrófico. Não fiz concessão nenhuma, foi uma opção criativa. Realmente, o final do tipo “o crime não compensa” foi criticado por alguns jornalistas, independente da confirmação de ter sido um caso de auto-censura ou não. Para José Álvaro, “Se se abstrair a seqüência final, A rainha diaba pode ser considerado um dos melhores 603 NUNES, G.T. Um caso de auto-censura. Correio Braziliense, Brasília, 23 set. 1974. 360 filmes brasileiros da temporada.” Desconfiando que o final teria sido imposto, o que, de qualquer maneira seria um desrespeito ao publico, o crítico diz que Fontoura, “se tinha que dar esse final, então resolveu bagunçar o coreto”. 604 Análises contemporâneas de A rainha diaba identificam no filme um “estado de violência latente” devido talvez ao fato do filme ter sido realizado num dos períodos mais duros do regime militar 605 , e o crítico Inácio Araújo chegou a afirmar que o “filme revela as contradições do regime militar sem se referir a ele”, captando “muito bem o estado de coisas de um Estado que, por ditatorial, se constitui como organização criminosa”. 606 De fato, a cena da tortura de Isa pela Diaba e suas “diabetes” nos remete claramente para o que estava acontecendo naquele momento nos porões da ditadura. As próprias técnicas da Diaba – enfiar agulha embaixo da unha e botar ferro de queimar entre as pernas da vítima – são muito mais condizentes com os procedimentos dos torturadores profissionais do que com marginais, além de serem diferentes em relação ao texto de Plínio Marcos. 607 O texto do programa de exibição de A rainha diaba no Cineclube Macunaíma durante o segundo mês do cinema brasileiro, por volta de 1984, já sugeria: A rainha diaba atinge esse fim [estabelecer ligação com o público] – ficou várias semanas em cartaz no Rio –, sem prejuízo de outro nível de leitura visível a espectadores mais atentos, como na seqüência do salão de cabeleireiros. ‘Não vou entregar meu filme’, disse Antônio Carlos da Fontoura para a apresentação de Copacabana me engana, que coincidiu com o lançamento comercial da Diaba. Para 608 quem sabe ler, um pingo é letra. Um aspecto semelhante também pode ser notado em Barra pesada, cujo retrato da violência do dia-a-dia da população e da criminalidade urbana está indissociavelmente ligado à atmosfera de violência que o país vivia, ainda mergulhado na ditadura. Desse modo, a “falta de saídas” do pivete Querô, violentado por todos os lados, também refletia um posicionamento perante a situação política do Brasil, como o próprio cineasta apontou em entrevista: 604 ÁLVARO, José. A rainha diaba. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 2 out. 1974. AVELLAR, José Carlos. Análise crítica. Direção de Ana Moreira. Rio de Janeiro: CTAv, 2004. 606 ARAÚJO, Inácio. Filme revela as contradições do regime militar sem se referir a ele. Folha de São Paulo, São Paulo, 8 out. 2004 607 No conto de Plínio, a Diaba e suas diabetes, além de baterem e queimarem Isa com o cigarro, apelavam “apenas” para os característicos espetões com facas ou beliscões. 608 CINECLUBE MACUNAÍMA. II mês do cinema brasileiro, Cinema & realidade, n.93. Rio de janeiro: [1984?]. 605 361 Pressionam até na nossa linguagem, até na nossa forma de se expressar. A gente nem pode dizer as coisas direito. A violência que estamos sofrendo dá medo. É uma violência mais calada, muito mais sutil, mais requintada. Ela não se manifesta tão declaradamente na realidade. Numa ficção podemos 609 tornar as coisas mais visíveis . Essa violência encontra-se canalizada em Barra pesada para o que talvez seja a crítica mais clara e contundente dos personagens policiais de todas as adaptações plinianas, rearticulando o que era expresso no texto de Plínio Marcos. Se no romance, os “ratos”, como Querô os chama, são torturadores, corruptos, chantagistas e cruéis, no filme, essa crítica procede, embora os personagens Teleco e Nelsão não sejam mais caracterizados como “tiras”. Por outro lado, os policiais que empreendem a caçada à Querô – que no livro aparecem apenas como pano de fundo –, no filme ganham muito mais visibilidade, mostrando um interesse maior numa atuação “à la Esquadrão da Morte”. O comissário líder da caçado ganha inclusive um destaque maior ou igual aos que recebem os próprios personagens que extorquem Querô. Mas nesse sentido, o elemento novo e surpreendente de Barra pesada é a denúncia de uma clara aliança apontada entre os policiais e os traficantes. O “distribuidor de narcóticos na zona sul” (Milton Morais), chama-se doutor Florindo, adotando um pronome de tratamento sem justificativa estrita. Enquanto a maioria dos seus capangas é negro, ele é branco – assim como outro “chefão”, o Serafim, para quem ele liga, e o próprio comissário de polícia – e aparenta um nível de formação maior que os demais, sem fazer uso, por exemplo, de tantas gírias. Na caçada à Querô, os traficantes e os policias agem paralelamente e praticamente não é possível fazer distinção alguma entre uns e outros – seja pela aparência, comportamento ou mesmo vestuário. Desse modo, o elemento mais significativo que Reginaldo Faria introduz na história é justamente o crescimento industrial do tráfico. No livro de Plínio, Zilu repassa maconha para uns “meninos” venderem no cais do porto. Já em Barra pesada, Chupim “passa fumo na Zona Sul”, vendendo a droga no calçadão de Copacabana para diversas pessoas, principalmente jovens aparentemente de classe média. Enquanto no romance, Querô fuma toda a maconha que ele pegara de Zilu – o que o faz ficar mais “braseado” ou corajoso –, no filme, ao tentar vender a droga ao barqueiro Guegué (Lutero Luiz), ele acaba sendo denunciado ao Dr. 609 AVELLAR, José Carlos. A Barra está tão pesada que a violência do mundo real até parece cena de filme. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 nov. 1977. 362 Florindo, dando início a sua perseguição. Não há como escapar do tráfico, que tem suas ramificações espalhadas por toda a cidade. Da mesma forma que em Barra pesada, a promiscuidade entre o aparelho repressivo estatal e o crime é igualmente a principal crítica do filme de Babenco. Se o policial Moretti dizia a Lúcio Flávio que “polícia e bandido é tudo a mesma coisa, tudo no mesmo barco”, o bandido, ao perceber como a situação estava mudando e que era ele quem estava sofrendo as principais conseqüências, decidia romper com o esquema. Ao sustentar que “bandido é bandido, polícia é polícia”, a atitude ousada e corajosa de Lúcio Flávio, movida à revolta e indignação, acarreta justamente em sua morte. Também em Uma reportagem maldita (Querô) – mais até que no filme Barra pesada – é a recusa indignada de Querô em ser “esparro de tiras” que o leva a um revolta violenta e, da mesma forma, à sua morte. Desse modo, foi justamente o retrato dos policiais que acarretou em interferência da censura no filme de Reginaldo Faria – diferentemente de A rainha diaba, que não teve nenhum problema desse tipo. Censura policial Com proibição para menores de 18 anos, mas lançado normalmente nas salas de cinema, Reginaldo Faria considerou que Barra pesada teve “pouca” censura, por ter sido cortada apenas uma cena “em que a violência, segunda a censura, era exagerada e teve de ser atenuada. É no final, quando massacram o Querô”. 610 Em outra circunstância, Reginaldo novamente não deu muita importância ao fa to, afirmando que foram apenas pequenos cortes na cena final que amenizaram a brutalidade. Ainda segundo o diretor, “Isto não prejudicou. Pelo contrário, foi até providencial”. 611 Analisando diversas cópias do filme depositadas na Cinemateca do MAM, foi possível identificar exatamente qual foi o corte exigido pela censura na parte final de Barra pesada. Após ser ameaçado pelo comissário, Negritinho leva os policiais ao terreiro do Pai de Santo onde Querô está escondido. Eles entram na casa onde está ocorrendo uma cerimônia e Negritinho faz, disfarçadamente, um sinal para um rapaz avisar Querô da chegada de seus 610 FASSONI, Orlando L. Reginaldo Faria, do riso ao compromisso. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 ago. 1978. 611 COSTA, Ruth. A violência do dia-a-dia, a realidade de “Barra pesada”. Diário Popular, São Paulo, 16 mar. 1978. 363 perseguidores. O Comissário percebe o gesto e manda um dos policiais seguí- lo até o barraco onde o garoto está escondido. Ao ser alertado para a presença dos “homens”, Querô, mesmo ferido, recebe os policiais a tiros, acertando um primeiro no pé e um segundo no ombro. Depois dessa recepção, os demais policiais começam a fuzilar o barraco. Nesse momento chega outro carro com o “reforço” dos traficantes que se juntam ao tiroteio. O comissário grita em meio aos tiros: “Mata esse pilantra!”, enquanto descarrega o revólver lado a lado com o Dr. Florindo. Querô joga-se no chão com a camisa ensangüentada e coberto por cacos de vidros das janelas despedaçadas. Finalmente os policias e traficantes entram no barraco e encontram Querô deitado e ferido. Começa então o massacre: chutes, socos e coronhadas são desferidos inclementemente no garoto. O Comissário e Dr. Florindo, assim como seus respectivos subalternos, participam juntos do linchamento. Eles levantam o pivete do chão e o carregam nos ombros para fora do barraco, com os braços abertos e coberto de sangue. Em meio à histeria do linchamento são ouvidos gritos de ordem: “Arrasta esse pilantra!”, “racha esse pilantra!”. A montagem torna-se acelerada, com planos cada vez mais curtos de murros e pontapés. Os corpos dos agressores são decompostos em punhos, pés e braços anônimos que se sucedem ininterruptamente. Ao mesmo tempo, a câmera assume o ponto de vista de Querô – praticamente soterrado debaixo de seus agressores – e o espectador sente como se as pancadas fossem direcionadas diretamente a ele próprio. 612 A música também acelerada, sobreposta aos ruídos do espancamento, reforça a sensação de um gozo crescente. No clímax do linchamento, há um insert de uma moça dançando dentro do terreiro. A música se mistura com os cantos religiosos e o som dos socos é substituído pelas palmas, estabelecendo nessa seqüência uma relação entre sexo, religião e violência como práticas orgásticas. Finalmente um tiro de misericórdia – partindo da arma de um braço não identificado – silencia a seqüência e põe fim ao linchamento. Articula-se o campo e contracampo: Querô, coberto de sangue e com um buraco de bala no peito, e Dr. Florindo encarando o cadáver em silêncio, finalmente dizendo com escárnio: “Esse não tira mais meleca do nariz”. 612 Uma decupagem desse tipo, com a própria câmera sendo “espancada” e “socada” também fora feita na seqüência de abertura da super-produção estrelada por Tarcísio Meira O marginal (dir. Carlos Manga, 1974), marcada pelo virtuosismo do operador de câmera Antônio Meliande e do fotógrafo Oswaldo de Oliveira. 364 No plano seguinte os policia is e traficantes descem o morro carregando o corpo de Querô. Eles largam o cadáver no chão, logo cercado pelas rezas das mulheres do terreiro e pelos olhares dos curiosos. Negritinho, desolado, observa mais afastado a cena. O comissário também desce o morro e Dr. Florindo se despede dele com um tapinha amigável no ombro. O policial tranqüiliza o garoto – “trato é trato”, ele diz, confirmando que por ter delatado o amigo, não seria importunado – e ainda tenta consolá- lo pela morte de Querô: “ele não sofreu muito não”. A ironia cruel o acompanha até a última fala. Essa é a descrição da seqüência completa, como na montagem final de Barra pesada. Analisando uma cópia exibida na época do lançamento do filme, foi possível identificar o corte exato da censura, que se dá justamente no momento em que os traficantes e policiais fuzilam o barraco de Querô. Do plano em que vemos Querô deitado no chão e seus algozes atirando do lado de fora, segue-se diretamente o plano em que os policias e traficantes descem o morro carregando juntos o corpo de Querô, sob o olhar de Negritinho. Foi suprimida toda a seqüência do espancamento e da execução sumária – cerca de quarenta segundos do filme foram cortados. Com a elipse forçada, tornou-se plausível, por exemplo, que Querô tenha morrido no tiroteio, possivelmente por acidente durante a troca de tiros – iniciada após a resistência inicial do bandido. Ao mesmo tempo, a morte sem sofrimento de Querô, como afirmou o comissário a Negritinho, torna-se plenamente crível. 613 No final do filme os traficantes entram no carro, que segue pela esquerda, enquanto a viatura va i logo atrás, mas tomando outra direção. Dezenas de crianças cercam o carro da polícia imitando o som da sirene, mas com barulhos que se assemelham a vaias (que em algumas sessões, segundo os jornais, eram repetidas também pelos espectadores). O último plano mostra Negritinho só e inconsolável, andando melancolicamente até sumir no horizonte todo ocupado pela favela ao fundo, como que a apontar a existência de muitos outros iguais a ele. Surge, então, a seguinte mensagem sobre a imagem do morro coberto de barracos: Dias depois as autoridades fecharam o cerco a fim de desbaratar as quadrilhas de traficantes e aprisionar os policiais corruptos. 613 No caso de Barra pesada, o corte da censura deu-se nas próprias cópias de exibição, e não nos negativos originais, como acontecia em casos extremos de intervenção. Na cópia examinada, o corte brusco nem sequer foi feito entre um plano e outro, pois podemos perceber poucos segundos do close imediatamente anterior de Dr. Florindo antes do plano do corpo de Querô sendo carregado. 365 Como afirmou Reginaldo Faria, foi a Polícia Federal quem fez uma ressalva para a colocação dessa cartela no final do filme. A mensagem, querendo conferir o aspecto de exceção ao retrato dos policias do filme, por ser “manjada” pelos espectadores acabava assumindo outro tom. Segundo o diretor, a cartela dava um “sentido irônico e moralizador, claramente percebido pelo público atento”. 614 É curioso que a colocação de uma cartela em Barra pesada – um filme de ficção –, eximindo os policiais de qualquer julgamento ne gativo, também tenha sido exigida em Lúcio Flávio, filme baseado num romance-reportagem sobre um personagem real e conhecido. Conforme documentação oficial, o filme de Babenco recebeu uma “notificação de inserções no último rolo para salvaguardar a figura do policial”, exigindo “em reconhecimento [?] da árdua e eficiente tarefa da Polícia, reprimindo o crime e seus autores”, a introdução de uma cartela com os dizeres: Os policiais que participaram desta ocorrência já não pertencem mais aos quadros policiais e já 615 sofreram as sanções penais adequadas. Se os cineastas buscavam a realidade, a censura federal vivia cada vez mais longe dela. Denúncia Em depoimento a um jornal, Reginaldo Faria apontava para o aspecto documental de Barra pesada, realizado como uma reportagem filmada: Em Barra pesada eu quis fazer assim como se a gente estivesse na rua e, de repente, visse um acidente. Como se uma câmera de reportagem visse um acidente. A gente vê daquele momento. É impossível para um repórter colocar a câmera no ponto de vista ideal, num local estratégico para ver idealmente um momento que ele não sabe o que vai ser [...] Procurei fazer o filme assim, como se pegasse uma coisa na hora em que ela acontece. Não marquei no roteiro como seriam as imagens. Escolhi os cenários. Lá ensaiávamos e depois de levantadas as emoções jogava a câmera no meio da cena, como um 616 repórter. 614 FARIA, Reginaldo. Barra pesada. Última Hora, São Paulo, 19 ago. 1978. Entrevista. BRASIL, Serviço de Censura de Diversões Públicas, Polícia Federal, Ministério da Justiça. Notificação de inserções no último rolo para salvaguardar a figura do policial. Notificação. Brasília, 18 out. 1977. Censora: Deusdeth Burlamaqui. 616 AVELLAR, José Carlos. A Barra está tão pesada que a violência do mundo real até parece cena de filme. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 nov. 1977. 615 366 Em diversas entrevistas sobre o filme, Reginaldo usou o verbo “jogar” (“jogava a câmera no meio da cena”, “eu procurei jogar isso na imagem”), o que parece reforçar a idéia de uma ausência de formalismo ou cuidado excessivo com o quadro. A primazia do conteúdo sobre a forma foi confirmada pelo diretor em depoimento: “Me pareceu que nessa história o mais importante era cuidar da história mesmo, e não de como filmar a história”. 617 Nessa busca pelo realismo, fazendo uso de câmera na mão, filmagens nas ruas com luz natural, atores misturados a transeuntes, fica patente a influência de uma estética documentária, assumida pelo diretor: “Joguei com o documental, tendo a linha central da dramaturgia atravessando tudo isso”. 618 Fernando Duarte, diretor de fotografia do filme, tinha uma ligação estreita com o cinema documentário, o que se tornaria evidente mesmo em seu trabalho posterior em ficção. Mas segundo Reginaldo, o fotógrafo, como outros membros da equipe, abandonou o filme no meio por não agüentar a “barra” das filmagens. José Medeiros, o mesmo fotógrafo de A rainha diaba, teria sido convocado para substituí- lo, sendo creditado no filme como responsável pela “fotografia adicional”. 619 Ao mesmo tempo, Barra pesada tem uma mise-en-scène simples e eficiente, na linha da invisibilidade da narrativa clássica. A montagem ágil de Waldemar Noya, proporciona dinamismo ao filme, além de suspense e humor nas ações paralelas – como na perseguição dos traficantes a Querô nos motéis e pensões, enquanto ele e Ana estão escondidos em um sobrado distante. 620 Por outro lado, além da fotografia, podemos perceber a busca de um realismo documental em Barra pesada em outros elementos, como na utilização do som direto – nas palavras do diretor, “a gente consegue extrair mais verdades do ator com o som direto” – à escolha de locações reais. 617 621 Nesse sentido, o filme de Reginaldo Faria já se aproxima de Ibid. ABREU, Ana Maria de. A violência nossa de cada dia. Última Hora, São Paulo, 14 ago. 1978. 619 Fernando Duarte começou sua carreira cinematográfica no cinema novo, trabalhando com Mário Carneiro como assistente de câmera em Porto das caixas (1965) e câmera em O Padre e a moça (dir. Joaquim Pedro de Andrade, 1965) e mais tarde fotografando filmes como Ganga Zumba (1963) e A grande cidade (1966), ambos de Carlos Diegues. Assim como José Medeiros, Fernando Duarte também iniciou sua carreira como repórter fotográfico, trabalhando para o jornal Metropolitano da União Nacional dos Estudantes. 620 Waldemar Noya, falecido em 1986, era um montador veterano da Atlântida com mais de 80 filmes no currículo. Barra pesada foi seu penúltimo trabalho em cinema. Antes dele, já tinha montado Quem tem medo de lobisomem?, de Reginaldo Faria, e outros filmes dirigidos por Roberto Farias ou produzido pela R.F.Farias. 621 AVELLAR, José Carlos. A Barra está tão pesada que a violência do mundo real até parece cena de filme. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 nov. 1977. 618 367 questões bastante atuais de cineastas que são obrigados a negociar com traficantes para realizar filmagens nas favelas cariocas, por exemplo. No final da década de 70, o cineasta contava: Durante as filmagens, fomos muitas vezes ameaçados pelos moradores dos próprios locais, que não admitiam que fôssemos para lá. Tínhamos que usar uma certa habilidade política para penetrar no 622 ambiente deles, explicar que se tratava de um filme em defesa deles, e não contra eles. De fato, cenas estritamente documentais realizadas em locações reais permeiam Barra pesada, sobretudo em sua parte inicial. Planos gerais mostram prostitutas nas ruelas da Lapa, operários nas obras, multidões de pedestres nas ruas do centro do Rio Esse aspecto, na verdade, está presente em outros filmes policiais como o próprio Lúcio Flávio, no qual Reginaldo Faria chegou a ser filmado por uma câmera escondida dentro de um presídio verdadeiro sem que os demais detentos soubessem que aquilo era um filme. Essa busca de um realismo da marginalidade urbana teria prosseguimento com mais intensidade ainda no filme seguinte de Babenco, também baseado num livro de José Louzeiro, A infância dos Mortos. Em Pixote - A lei do mais fraco (dir. Hector Babenco, 1981), Fernando Ramos praticamente interpretou a si mesmo no papel de um pivete de rua e os notórios acontecimentos que se sucederam ao filme – abordados em Quem matou Pixote? (dir. José Joffily, 1996) – revelaram os limites muitas vezes estreitos entre a ficção e a realidade. Nesse sentido, é curioso que as cenas em que os pivetes Querô e Negritinho assaltam pedestres nas ruas do Saara, no centro do Rio – filmadas com câmera na mão e com os atores se misturando às pessoas normais nas ruas lotadas – sejam bastante próximas das imagens dos roubos dos pivetes nas passarelas do centro de São Paulo em Pixote. 623 Barra pesada denunciava antes ainda de Pixote a vida dos “meninos de rua”, que embora já fossem retratados no cinema brasileiro desde a década de 50 em diversos filmes, 622 FARIA, Reginaldo. Ele já foi Lúcio Flávio. Mas aqui ele é o cineasta Reginaldo Faria. Estado de Minas, Belo Horizonte, 30 nov. 1978. Entrevista a Ricardo Gomes Leite. 623 A questão da delinqüência juvenil já fora abordado quase que como uma epidemia urbana em Os Trombadinhas (1978), filme que Reginaldo Faria chegou a anunciar que seria seu projeto seguinte após Barra pesada. Originalmente chamado Pelé joga contra o crime, apesar de produzido pela R.F. Farias, o filme acabou sendo dirigido por Anselmo Duarte. Em Os Trombadinhas, o rei do futebol – que dedicara o milésimo gol de sua carreira às crianças carentes em 1969, – se disfarça de detetive policial para investigar uma gangue de trombadinhas que assaltam as ruas de São Paulo. Com a ajuda de um empresário consciente e aliado ao tira Bira (Paulo Villaça) e a uma polícia que embora com uma potencial vocação para violência, é honesta, eficiente e cumpridora das leis, Pelé descobre os “maiores” por trás dos “menores” e desbarata a quadrilha de um traficante internacional de cocaína, abusando de elaboradas cenas de brigas e de perseguição de carros. 368 como o seminal Rio 40 graus, o francês Orfeu do carnaval (Orphée Noir, dir. Marcel Camus, 1959) o curta- metragem Couro de gato (dir. Joaquim Pedro de Andrade, 1960) e, especia lmente, no extraordinário Fábula, vinham ganhando mais repercussão, inclusive com o incremento do número de furtos por pivetes nas ruas das grandes cidades brasileiras. 624 Mas em relação ao esse retorno a um realismo – possivelmente uma tendência no cinema brasileiro na passagem dos anos 70 para 80 –, esse mesmo aspecto está visceralmente presente num filme como A queda (dir. Ruy Guerra e Nelson Xavier, 1976), filmado em 16 mm e posteriormente ampliado para 35 mm, que retomava os personagens de Os Fuzis (1964), obra fundamental do Cinema Novo. Outro filme que restabeleceu um diálogo com a cultura brasileira pré-golpe através de uma moldura realista, foi Eles não usam black-tie (dir. Leon Hirszman, 1981), adaptação da histórica peça do Teatro de Arena. 625 É curioso que tanto no filme de Ruy Guerra quanto no de Leon Hirszman – diretores egressos do Cinema Novo – podia ser notada a presença do operário, um personagem então emergente no cinema brasileiro e que também estava presente em Barra pesada. 626 Como apontou Jean-Claude Bernardet, esse personagem surgia no filme de Reginaldo Faria na cena em que Querô mata seu algoz Teleco num prédio em demolição: Silenciosos, operários se aproximam, constatam e não intervêm. Aquele não é o mundo deles, eles olham de fora, se diferenciam dos marginais, funcionam como uma espécie de referência a um outro sistema de relações sociais, de opressão e violência. Trata-se de uma referência breve e pouco explícita, e é bom que Reginaldo Faria tenha deixado vaga a significação do aparecimento dos operários. Em sua análise, Bernardet também usou como comparação o livro Uma reportagem maldita (Querô): No romance de Plínio Marcos, o assassinato do personagem de Wilson Grey ocorre num meio marginal [no Broadway, “um cabaré de merda”], ninguém de fora assistindo. Mas o romancista, em outro 624 Entretanto, a escalação de Stepan Nercessian, que estreara no cinema com 16 anos, mas que já tinha 23 quando fez o papel do “menor de idade” Querô, talvez tenha diminuído o impacto de Barra pesada nas telas. Embora apenas 3 anos mais novo que Stepan, Cosme dos Santos, com seu corpo miúdo alcançou mais força no papel do indefeso Negritinho. O ator, aliás, começou sua carreira ainda criança, participando justamente dos filmes O assalto ao trem pagador e Couro de gato e co-protagonizando Fábula. É curioso que ao se candidatar ao papel de Negritinho em Barra pesada, Reginaldo Faria inicialmente não o reconheceu como sendo o mesmo menino que interpretara um dos filhos de Tião Medonho no filme em que ele atuara e seu irmão dirigira em 1962. 625 Os filmes de Ruy Guerra e Leon Hirszman foram aclamados pela crítica e premiados internacionalmente, recebendo, respectivamente, o Urso de Prata do Festival de Berlin e o Leão de Ouro do Festival de Veneza. 626 Um jornalista chegou a dizer que “ao lado de A queda, Barra pesada parece retomar os caminhos iniciais do Cinema Novo, em que a realidade era o grande personagem dos filmes” (FARIA, Reginaldo. Ele já foi Lúcio Flávio. Mas aqui ele é o cineasta Reginaldo Faria. Estado de Minas, Belo Horizonte, 30 nov. 1978. Entrevista a Ricardo Gomes Leite). 369 momento do enredo, criou uma outra testemunha, um olhar de fora, uma referência a um outro sistema de relações sociais: é o jornalista que entrevista Querô no final do livro e que tem a última palavra. Os roteiristas provavelmente não tiveram a intenção clara de substituir o jornalista por operários. Mas, de fato, deixou de ser o jornalista que confessa a sua impotência diante de Querô, mas se envolve emocional e é no fundo o próprio autor, e passou a ser operários sem envolvimento emocional. Esse deslocamento me parece significativo 627 . Para Bernardet, assim como o mundo marginal seria utilizado para expressar as relações de opressão da sociedade global na qual o forte subjuga o fraco, os operários também seriam representados como símbolos dessa mesma opressão. Se o bandido teria maior tradição no cinema brasileiro, o operário estaria aparecendo insistentemente naquele momento, o que seria uma amostra de uma nova interpretação da sociedade brasileira, como também dos cineastas nessa sociedade. Mas algo que Bernardet não aponta em sua análise é que enquanto no romance de Plínio Marcos, o personagem Querô é assassinado por policiais em seu esconderijo num barraco distante, no “cú do mundo”, tendo apenas Pai Bilu, Nega Gina e o jornalista como testemunhas impotentes; no filme de Reginaldo Faria a execução do garoto ocorre no meio de uma favela à luz do dia. A violência não surpreende aqueles moradores, que incapazes de reagir, só podem acender velas ao redor do corpo de Querô e rezar logo apos ele ser executado. No final dos anos 60, depois de uma série de filmes que tinham o intelectual de esquerda como protagonista, ocorreu um processo de identificação dos cineastas com o marginal, então visto como uma figura de revolta tal qual a frase de Oiticica “Seja Marginal, seja Herói”. Em filmes como Nenê Bandalho, O Marginal ou Lúcio Flávio, o bandido permaneceu sendo retratado como vítima de uma sociedade injusta e que tenta se enquadrar à sociedade, sobretudo através da formação de uma família burguesa. Não sendo permitido se redimir de seus pecados ou escapar de seu trágico destino, a revolta desse personagem- mártir contra a injustiça social acabava sendo frequentemente romantizada, embora invariavelmente terminando com sua morte. Entretanto, se no contexto de crescente criminalidade e violência urbana no final dos anos 70, talvez a identificação maior dos cineastas deixasse de ser com a revolta ou o martírio dos marginais, mas sim com as testemunhas mudas, aqueles que somente podem observar, tão atônitos quanto conformados, tão revoltados quanto impotentes, sejam operários – 627 BERNARDET, Jean Claude. Barra Pesado, o grito contra a podridão total. Última Hora, São Paulo, 31 ago. 1978. 370 trabalhadores como os cineastas – ou simplesmente os moradores da favela – familiarizados com violência assim como a classe média também viria a ser. 371 8. A RETOMADA A retomada do (Plínio Marcos pelo) cinema brasileiro Depois de Barra pesada e Lúcio Flávio, Reginaldo Faria conquistou ainda mais sucesso como astro de televisão, atuando nas telenovelas da Rede Globo Dancing days (1978) e Água viva (1980). Embora tenha chegado a anunciar outros projetos de longas- metragens, inclusive policiais na linha de seu último filme, sua única investida nesse sentido se deu como ator, no projeto “autoral” de seu irmão, o igualmente polêmico, “consciente” e policialesco Pra frente, Brasil (dir. Roberto Farias, 1981). Reginaldo só voltaria à direção de um longametragem com Agüenta, coração (1983), crônica de costumes sobre relacionamentos maduros, seu último filme até o momento. Com a crise do cinema brasileiro ao longo da década de 80, Reginaldo Faria, Roberto Farias e diversos outros profissionais de cinema encontraram na televisão, especialmente na TV Globo, seu principal mercado de trabalho e diminuíram gradativamente suas participações em filmes. 628 A década de 80 também não seria uma boa época para o teatro brasileiro e nem para Plínio Marcos. No final dos anos 70, durante a chamada “abertura”, o autor maldito voltou à cena com diversas peças, tanto seus grandes sucessos interditados, quanto textos que permaneciam inéditos por força da censura. Em 1979 escreveu uma peça inspirada no seu romance publicado três anos antes. Entre o livro Uma reportagem maldita (Querô) e sua 628 Reginaldo participou de praticamente uma telenovela por ano na Rede Globo até os anos 90, quando passou a se dedicar também ao teatro. Em meio à retomada do cinema brasileiro, tentou viabilizar sua volta à direção de um filme com a cinebiografia de Leonardo Pareja – bandido de classe média que enganou a polícia diversas vezes e morreu executado na prisão em 1995, aos 21 anos – num projeto assumidamente influenciado por Lúcio Flávio e Barra pesada. O filme jamais foi realizado: “De certa forma, Pareja teve coragem de denunciar alguma coisa corrupta dentro do sistema carcerário — diz Reginaldo. — Abandonei o projeto. A dificuldade era grande quando se tocava no nome de Pareja. Todos diziam que era um marginal e tinha que morrer, ninguém via o filme como algo que pudesse contribuir para a sociedade, achavam que iríamos mitificar um marginal” (BIAGGIO, Jaime. Reginaldo Faria: 13 anos depois, novamente um homem de cinema. O Globo, Rio de Janeiro, 18 ago. 2001). 372 versão teatral, o filme Barra pesada tinha sido lançado. Entretanto, a peça não foi montada na época, permanecendo inédita até 1993. 629 Entretanto, mesmo alçado à condição de “um dos maiores dramaturgos do teatro brasileiro”, ao longo dos anos 80 Plínio Marcos viu suas novas peças – que apresentavam significativas mudanças formais e temáticas – ficarem restrita ao teatro alternativo paulistano. Se para alguns críticos seus antigos sucessos passaram a ser “clássicos incontestáveis”, outros afirmavam que essas primeiras obras tinha se tornado datadas e as mais recentes careciam da força das mais antigas. Sem marcar presença nos grandes veículos de comunicação, com sua atuação restrita principalmente as suas palestras-shows, à atividade de “camelô da cultura” e ao tarô, o autor maldito aos poucos se transformou num persona gem folclórico da metrópole paulistana. Se Plínio perdeu espaço no panorama do teatro brasileiro ao longo dos anos 80, o cinema também não se interessou por suas obras no mesmo período. Embora a produção cinematográfica brasileira desta década ainda não tenha sido estudada com o devido rigor, algumas de suas tendências, como as comédias jovens cariocas ou o cinema paulista da Vila Madalena, seguiam caminhos muito distantes do universo pliniano que despertara o interesse de outros cineastas nos anos anteriores. 630 Ao mesmo tempo, a grave recessão econômica que o país atravessou na chamada “década perdida” não deixou de atingir o cinema brasileiro. Se a Embrafilme sofreu um processo de esvaziamento político e financeiro, o cinema popular da Boca do Lixo, depois de enveredar pelo sexo explícito, também se enfraqueceu com o aniquilamento desse mercado, 629 Como o filme de Reginaldo Faria, a peça é mais concentrada na derrocada final de Querô, com seu passado sendo mostrado através de inserções (ou flashbacks). Além de modificações na estrutura narrativa e em alguns personagens, uma das principais mudanças na versão para os palcos foi a presença mais vigorosa do caráter religioso-simbólico. O nome de Querô, de Jerônimo da Piedade passou a ser Jerônimo da Paixão, com sua vida seguindo um martírio como o de Jesus Cristo – algo que o próprio Plínio Marcos levou aos palcos em 1981 com a peça Jesus-homem. A inserção de canções também foi uma influência dos musicais que Plínio vinha escrevendo e de sua participação em shows e discos ao longo dos anos 70. Por fim, um detalhe interessante é que na peça de 1979 a droga vendida pelo colega que Querô encontra e depois mata não é mais maconha, mas cocaína. 630 Assim como ocorrera dez anos antes, na passagem dos anos 70 para 80 ocorreu um “surto juvenil” no cinema e televisão. Mesmo tendo exemplares produzidos na Boca do Lixo, essa produção que abordava o universo do jovem e mantinha estreita ligação coma música e a cultura pop encontrou seus resultados mais bem sucedidos nos filmes cariocas de Antonio Calmon e Lael Rodrigues na primeira metade dos anos 80, assim como na série Armação ilimitada, de Guel Arraes, levada ao ar pela TV Globo. Na mesma época em São Paulo, diversos cineastas egressos da ECA-USP se aglutinaram em torno de produtoras localizadas especialmente no bairro Vila Madalena e consolidaram uma produção sintonizada com um “cinema pós-moderno”, restabelecendo um diálogo com o cinema de gêneros hollywoodiano e reavaliando questões como “identidade nacional” ou “cultura popular”. Na exibição de A dama do Cine Shangai (dir. Guilherme de Almeida Prado) no Festival de Gramado de 1988, a respeito da fotografia de Cláudio Portioli, o jornalista da Folha de São Paulo Maurício Stycer cunhou a expressão “néon realista”, que passou a ser utilizada também para denominar essa produção paulista. 373 entre outros fatores, pelo advento do videocassete e pela concorrência com o filme pornô estrangeiro. Não apenas a produção de filmes brasileiros, mas o mercado cinematográfico no país de um modo geral passou por uma grave crise nos anos 80, com a enorme redução do número de salas de cinema no Brasil, especialmente no interior do país, e pelo crescimento maciço do mercado de vídeo doméstico. 631 Entretanto, mesmo distante da força das bilheterias da década de 70, ainda assim o cinema brasileiro conseguiu manter um volume relativamente constante de produção, alcançando algumas grandes bilheterias e repercussão com alguns filmes. Além disso, nos anos 80 uma nova geração de jovens cineastas mostrou sinais de renovação estética numa vigorosa produção de curtas- metragens. Por outro lado, uma grave crise estrutural já vinha se esboçando nos últimos anos da década, assim como a popularização de tendências neo- liberais no país e no meio cinematográfico. 632 Mas mesmo assim, uma ruptura de dimensões até hoje não avaliadas totalmente ocorreu com o desmantelamento dos órgãos federais de cultura pelo presidente Fernando Collor de Melo, através da reforma administrativa de 16 de março de 1990. As conseqüências do fechamento da Embrafilme e da Fundação do Cinema Brasileiro representaram não somente o declínio do volume de produção – que nem foi tão acentuado quanto se alarde até hoje –, mas, sobretudo, uma desmobilização dos profissionais do meio e um enfraquecimento das relações entre os filmes brasileiros e seu público, deixando a produção audiovisual brasileira ainda mais identificada quase que exclusivamente à produção televisiva. Com a perda de referências, sobretudo para uma nova geração de espectadores, o público se “desacostumou” com o cinema brasileiro que voltou a se tornar refém de antigos preconceitos como o de “baixo nível” moral e técnico. 631 Em menos de dez anos, o número de salas no país caiu para menos da metade, indo de 3.276 em 1975 (auge da década de 70) para 1.372 em 1986 (pior momento nos anos 80) (BRASIL. Ministério da Cultura. Secretaria do Audiovisual. Cinema Brasileiro: um balanço dos 5 anos da retomada do cinema nacional, Brasília, 1999. Pesquisa de Helena Salem). 632 Em reportagem do jornal O Globo de fevereiro de 1989, intitulada A hora de virar a mesa: sem o generoso dinheiro do Estado, os cineastas descobrem que estão vivos e vão à luta, diversos cineastas falavam sobre suas relações mais independentes com o Es tado em meio à crise do cinema brasileiro. Dodô Brandão reclamava de dificuldades, mas se orgulhava de nunca ter pedido dinheiro à Embrafilme. Arnaldo Jabor dizia que o país estava passando por um novo momento de sua produção cultural, feita em “bases mais reais, modernas”. Dizia o cineasta: “Neste caso, graças a Deus que o Estado brasileiro, com a Embrafilme, faliu”. Ivan Cardoso, gozando dos lucros de As sete vampiras (1986) afirmava que o cinema era um ótimo negócio e que o problema estava com os filmes de arte. É muito significativo desse momento que naquela época o diretor Antonio Calmon passasse a trabalhar exclusivamente na TV, enquanto Flávio Tambellini abandonasse a carreira de economista para se tornar produtor de cinema, como fora seu pai. 374 O filme Barrela, adaptação da peça homônima de Plínio Marcos, é uma obra significativa da encruzilhada que o cinema brasileiro vivia antes ainda da “canetada maldita” de Collor. Em 1989, sem conseguir viabilizar a produção de Casa grande, senzala & cia. depois da morte do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, que encabeçava o grandioso projeto de adaptação do livro de Gilberto Freyre, o produtor Marcelo França decidiu que sua saída era fazer um filme mais barato possível. Na época dividindo apartamento com o montador Marco Antônio Cury, ambos decidiram levar às telas a peça de Plínio Marcos. Além do prestígio de clássico do teatro e da fama de peça maldita – proibida por mais de vinte anos e que passara a ser encenada livremente somente no começo dos anos 80 –, Barrela era, acima de tudo, uma peça de cenário único e que necessitava de no máximo onze atores. Ou seja, um texto ideal para uma adaptação o mais barata possível. Assim como ocorreu com Plínio Marcos ao escrever Dois perdidos numa noite suja em 1966, eram motivações de ordem econômica que encaminhavam o filme para a estrutura narrativa que consagrou o teatro pliniano. Uma reportagem escrita na época de realização de Barrela afirmou que Marcelo França teria reinaugurado a cooperativa no cinema brasileiro, uma vez que parte do orçamento de Crz$ 700 mil foi pago através de doze cotas divididas entre os atores e membros da equipe. Eram produtores associados de Barrela o diretor de fotografia Antonio Penido, o diretor de arte Marcos Flaksman, além de todo o elenco principal do filme: Claudio Mamberti, Marcos Palmeira, Paulo Cesar Pereio, Chico Diaz, Cosme dos Santos e Marcos Palmeira. 633 Significativamente, o filme também contou com verba da Embrafilme do último lote de financiamentos concedidos pela empresa antes de seu fechamento. 634 Entre a idéia de filmar Barrela e a cópia final, se passaram apenas seis meses, sendo somente quatorze dias de filmagem. Finalizado em 1990, o filme de estréia de Marco Antonio Cury participou do 27º Festival de Gramado, no qual o então novato Marcos Palmeira recebeu o Kikito de melhor ator, enquanto o ator Claudio Mamberti recebeu um prêmio especial no 2º Festival de Cinema de Natal e no Festival de Havana. 633 635 MOCARZEL, Evaldo. França tenta vender Plínio Marcos em Berlim. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 jan. 1990. 634 Produzido pela Nádia Filmes de Marcelo França, o filme teve co-produção ainda do investidor Armando Conde, do Banco Nacional, da produtora Blec-Berd Produções Artísticas e da Cinédia – que cedeu os estúdios e equipamentos de iluminação. 635 Cláudio Mamberti recebeu o Prêmio Coral de Actuación Masculina (ex-aequo) empatado com o ator mexicano Eduardo López Rojas, no 13º Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, em 1991. 375 Marcelo França tentou vender Barrela para o exterior, mas o filme não emplacou. Para piorar, além do golpe de misericódia dado por Fernando Collor no cinema brasileiro naquele ano, a única cópia do filme (legendada em inglês) foi roubada. Desse modo, como tantos outros filmes brasileiros que conseguiram ser realizados nos primeiros anos da década de 90, Barrela não foi lançado comercialmente, permanecendo na prateleira até que o panorama do cinema brasileiro mudasse. Depois da crise do cinema brasileiro atingir seu ponto mais agudo em 1992, algumas iniciativas governamentais mais firmes foram tomadas para tentar contornar a situação, como o aprimoramento de uma legislação que possibilitava o investimento em cinema por empresas privadas e estatais a partir do instrumento de renúncia fiscal. O Governo Federal, já encabeçado pelo presidente Itamar Franco, atuou ainda mais diretamente com a criação do significativamente chamado Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro. Em dois editais lançados em 1994, a dotação orçamentária da extinta Embrafilme foi distribuída entre 24 filmes que viriam a movimentar novamente a produção cinematográfica nacional. 636 Naquele mesmo ano, o filme Lamarca (dir. Sérgio Rezende), foi recebido como um sinal de mudança de ventos, tanto pelos elogios recebidos (inclusive por sua qualidade técnica) quanto por ter conseguido uma bilheteria então considerada expressiva de 123.683 espectadores. No mesmo ano, o filme Menino maluquinho, a aventura (dir. Helvécio Ratton) alcançou um público ainda maior, chegando a 397.023 espectadores. Nesse sentido, uma outra iniciativa importante, pois não investia somente na produção, foi a criação da distribuidora RioFilme pelo governo do município do Rio de Janeiro em 1991, responsável justamente pelo lançamento de Lamarca e Menino maluquinho, a aventura. Entretanto, em 1994 o então diretor da empresa, Paulo Sérgio de Almeida, reclamava que não tinha títulos suficientes para montar um catálogo de peso. Desse modo, uma das estratégias 636 Depois da crise, um cineasta como Arnaldo Jabor defendeu veementemente a nova estrutura, como num artigo publicado na Folha de São Paulo em junho de 1993: “Nos anos 90 Collor chegou e exterminou o que sobrava da recessão. Há apenas três anos o cinema no Brasil é apenas uma peregrinação por gabinetes, na tentativa de criar uma nova legislação que não dependa do Estado. Fizemos a lei do audiovisual, aprovada pelo Congresso. É a nova Carta Magna do Cinema, moderna, sem dependência do Estado. É a única solução”. Em sua coluna do jornal O Globo, em 13 de agosto de 1996, continuava afirmando que “a nova lei do audiovisual pode ser uma revolução cultural no país”. Jabor ainda tentou voltar ao cinema, mas seu projeto não foi aprovado em nenhum dos dois editais do Prêmio Resgate e hoje continua se dedicando ao trabalho de jornalista e articulista de TV. 376 foi distribuir alguns dos muitos filmes realizados nos difíceis anos do começo da década que permaneciam esquecidos nas prateleiras. 637 Foi justamente através da distribuição da RioFilme que Barrela foi finalmente lançado comercialmente no Rio e em São Paulo, com uma cópia em cada cidade, agora acompanhado do subtítulo: Escola de crimes. Apesar das críticas ao seu caráter teatral, os cronistas cinematográficos se mostraram complacentes com o filme, freqüentemente apontando a importância de seu lançamento naquele momento em que o cinema brasileiro tentava sair da crise. 638 No ano seguinte, em 1995, o filme Carlota Joaquina, princesa do Brasil (dir. Carla Camurati) estabeleceu um marco ao atingir mais de um milhão de espectadores, resultando também alcançado por O quatrilho (dir. Fábio Barreto) no ano seguinte, filme que ainda provocou uma onda patriótica ao ser indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Apesar de uma maior ocupação do mercado ser verificada entre 1994 e 1997, o incremento maior foi no número de filmes lançados. Depois de anos de crise, passou a se viver uma euforia com o que já era chamada de “retomada do cinema brasileiro”. Esse otimismo fez com que diversos diretores voltassem à atividade, incluindo aqueles que não tinham conseguido receber prêmios ou vencer concursos promovidos pelo governo. Antonio Carlos Fontoura se envolveu com a produção de O cangaceiro (dir. Aníbal Massaini Neto, 1997) e dirigiu o fracassado Uma aventura do Zico (1998). Em 1996, Emílio Fontana também tentou voltar ao cinema, do qual estava afastado desde a década de 80 (como Fontoura), com uma adaptação da peça Quando as máquinas param, escrita por Plínio Marcos em 1967. Entretanto, por não conseguir captar os recursos através da legislação, o filme nunca foi realizado. 637 639 Em 1994 Luiz Felipe Miranda listou 51 filmes produzidos desde 1990 que aguardavam lançamento comercial nas salas de ciema, entre eles Barrela (ANGRIMANI, Danilo. Falta exibidor para 51 filmes nacionais. Diário do Grande ABC, Santo André, 14 jun 1994). 638 Além de Barrela, diversos outros filmes realizados anos antes chegaram ao circuito exibidor tardiamente, como O corpo (dir. José Antônio Garcia, 1991-1994) ou Beijo 2348/72 (dir. Walter Rogério, 1991-1994) – ambos também do último lote de financiamento da Embrafilme, como o filme de Marco Antonio Cury. Praticamente todos eles foram totalmente rejeitados pelo público e crítico pela evidente defasagem em relação a um novo padrão que veio a se estabelecer. É significativa a avaliação do “crítico de cinema” Tom Leão sobre o filme O circo das qualidades humanas (dir. Jorge Moreno, Milton Alencar Jr., Paulo Augusto Gomes e Geraldo Veloso, 2000-2004) ao dizer que tudo nele tudo soava antiquado, “como naqueles filmes que passam de madrugada no Canal Brasil”. Por outro lado, o mercado de vídeo também foi uma alternativa para esses filmes esquecidos, e Barrela foi lançado nesse formato ainda em novembro de 1994 pela Sagres. 639 Na material de apresentação do filme estava anunciado seu perfil: “Este projeto não pretende em absoluto incluir um elenco de nomes conhecidos, muito menos de estrelas. Segue a filosofia da produção independente norte-americana. Este filme não procurará o mercado brasileiro, mas sim o mercado externo para sua 377 O cineasta Neville D’Almeida também foi outro que tentou voltar aos cinemas anos depois de seu último filme ter sido lançado (Matou a família e foi ao cinema, 1991). Seu projeto O testamento da rainha louca tinha sido rejeitado no Prêmio Resgate em 1994 e ficara de lado. Em 1995, o cineasta deu início à pré-produção de seu novo filme: uma adaptação da peça Navalha na carne. 640 Depois de quase dois anos captando recursos através das leis de incentivo, em janeiro de 1997 finalmente começaram as filmagens de Navalha na carne. De Barrela, produção de ínfimos US$ 20 mil, Plínio Marcos finalmente voltava ao cinema na década de 90 num filme com orçamento de US$ 2,5 milhões. Chegava-se ao auge de um processo: 1997 foi o ano recorde de captação de recursos através da lei do audiovisual, com mais de 75 milhões de reais sendo investidos no cinema brasileiro naquele ano. 641 A produção do filme de Neville D’Almeida foi cercada de expectativas, principalmente pelo retorno ao cinema da polêmica estrela Vera Fisher no papel de uma prostituta, provocando furor semelhante ao que cercou a decisão de Tônia Carrero interpretar o mesmo papel na estréia da peça no Rio de Janeiro em 1967. 642 Além disso, no papel do cafetão Vado estava uma estrela internacional, o ator cubano Jorge Perugorria, protagonista comercialização. Deverá terminar pago e deixando ainda, recursos para cobrir as despesas para negociações no exterior”. Seu orçamento em 1997 era de US$ 841.000. 640 Neville D’Almeida, nascido em Belo Horizonte em 1941, fez parte da geração do Cinema Marginal e seu primeiro longa-metragem, Jardim de Guerra (1968) foi considerado uma obra importante desse período. No início dos anos 70, realizou filmes experimentais em d iferentes partes do mundo. Voltando ao Brasil, conseguiu financiamento da Embrafilme para produzir A dama da lotação (1975), com produção de Nelson Pereira dos Santos. O sucesso deste filme fez com que seguisse no caminho de adaptações de Nelson Rodrigues (Os sete gatinhos, 1977) ou de filmes que tinham a nudez como forte atrativo (Rio Babilônia, 1982). Seu último filme tinha sido Matou a família e foi ao cinema, remake do “clássico” marginal de Julio Bressane. Esse longametragem recebeu em 1991 a “mais estrondosa vaia” da história do Festival de Brasília, acusado de entrar “pela janela” na competição e pelo fato da atriz principal do filme, Cláudia Raia, ter sido a estrela da campanha presidencial de Fernando Collor de Melo. 641 Em 1996 esse valor tinha sido de R$ 51.033.000 e em 1998 foi de R$ 35.256.000. O total captado por mecanismos de incentivo em 1997 só foi ligeiramente superado em 2004, mas agregando os valores divididos entre os captados através de diversas outras leis e instrumentos além da lei do Audiovisual que, individualmente, jamais repetiu o pico de 1997. É importante lembrar que depois de 1997 explodiram os escândalos envolvendo irregularidades na produção de O guarani (dir. Norma Bengell, 1996) e Chatô, o rei do Brasil (dir. Guilherme Fontes), ainda “em finalização”. 642 Ex-miss Brasil e estrela de pornochanchadas no começo de sua carreira, Vera Fischer se tornara estrela das telenovelas da Rede Globo e sua turbulenta vida pessoal conquistava o público tanto quanto suas personagens. Longe das telas desde Doida demais (dir. Sérgio Rezende, 1989) e Forever (dir. Walter Hugo Khouri,1991), ambos filmes que exploravam sua nudez, a atriz foi contratada por um altíssimo cachê de 100 mil dólares e participação nas bilheterias. Pouco antes do lançamento de Navalha na carne, a atriz saíra de uma clínica de reabilitação de drogas, o que gerou ainda mais expectativas para o lançamento do filme. Prova da permanência de sua beleza e fama, foi o fato de que em 2000, aos 48 anos, a atriz ter novamente sido convidada para posar nua para a revista Playboy. 378 do internacionalmente premiado Morango e chocolate (Fresa y chocolate, Cuba, 1993, dir. Tomás Gutierrez Alea e Juan Carlos Tabio), lançado no Brasil em 1995. 643 Neville D’Almeida, diretor de A dama da lotação (1978), uma das maiores bilheterias da história do cinema brasileiro, anunciava que com Navalha na carne seria novamente “consagrado pelo público”, mesmo sem abrir mão da originalidade e do experimentalismo. A nova adaptação cinematográfica da mais famosa peça de Plínio Marcos chegou às salas de cinema do Brasil inteiro no dia 21 de novembro de 1997, com mais de 100 cópias distribuídas por Severiano Ribeiro no maior lançamento nacional do ano, acompanhado de intensa campanha de promoção em diversas capitais brasileiras capitaneada pela estrela Vera Fischer. Entretanto, o filme foi mal recebido pela crítica – alguns adjetivos foram “risível”, “ridículo”, “desastrado” ou “inacreditável” – e também pelo público. Em sua primeira semana de exibição, Navalha na carne alcançou uma decepcionante bilheteria de 89.536 espectadores. O número de salas foi bastante reduzido nas semanas seguintes e o filme finalizou sua carreira com 170.929 espectadores, em 5º lugar no ranking de filmes nacionais de 1997. Apesar do número bem abaixo das expectativas, até 1998 A navalha na carne era o 12º filme de maior bilheteria dos anos 90. Quatro anos depois passou para o 38º lugar. Em seu filme, Neville respeitou fielmente o texto de Plínio Marcos, dialogou com a versão de Chediak criando também uma “introdução”, mas fez diversas modificações (cf. FREIRE, 2002; LUNA, 2005). 644 Além da atualização da história e da transferência da trama para um Rio de Janeiro de cartão-postal, na adaptação de Navalha na carne de 1997 a eclética trilha musical assumia grande importância, no que seria, nas palavras do diretor, uma “ópera-samba”. Mais o principal diferencial era o fato do filme assumidamente se propor a ficar num meio caminho entre o realismo e o surrealismo, com a inserção de estranhas “seqüências oníricas” no meio da história. 643 645 Morango e Chocolate – 1995 e Guantanamera em 1996. Graças ao ator, o filme já teria sido vendido para Espanha e o pagamento pelos direitos de exibição da obra teriam ajudado no pagamento do chachê. Diversos filmes tem atores e personagens estrangeiros (personagens estrangeiros surgem em diversas obras, como O Quatrilho, Como nascem os anjos, Jenipapo, Baile Perfumado, O que é isso companheiro, Amélia, For All e Bossa Nova. . Deve-se lembrar ainda da valorização da moeda frente ao dólar. 644 Em 1997, diversas reportagens comparam os dois filmes e adaptação de Chediak foi oportunamente lançada em vídeo em fevereiro de 1998, na mesma semana que o filme de Neville também chegava às locadoras. 645 Assim como a frustrada adaptação de Boca de Ouro, de Walter Avancini, anunciado como um enorme sucesso ao ser a primeira investida do consgrado diretor de televisão no cinema, juntando estrelas da Tv como Tarcísio Meira, a nudez da estonteante Luma de Oliveira e a atualização da marinalidade da peça (o bicheiro 379 Alguns poucos críticos elogiaram o filme por ser “diferente” da produção bemcomportada e pelo aproveitamento do “mau gosto” como elemento fundamentalmente autoral, num diálogo que pode ser estabelecido com o Cinema Marginal e, obviamente, com A rainha diaba. 646 Mas o desempenho frustrante de Navalha na carne mostrava que o conceito de “cinema popular” tinha mudado, assim como o perfil do público dos filmes. A nudez de Vera Fisher não era mais um atrativo essencial para lotar as salas de cinema, cada vez mais restritas aos shopping-centers, com ingressos caros e um público elitizado. Nesse sentido, apesar de não deixar de investir na qualidade técnica, Navalha na carne ia contra a corrente da produção cinematográfica brasileira pautada pelo recato e pelo bomgosto. Bastante significativo foi o fato da pré-estréia do filme de Neville no Rio de Janeiro ter ocorrido numa enorme “sala de rua” da Cinelândia: o Cinema Palácio “cheirando a mofo”, segundo uma repórter. 647 Depois do otimismo dos primeiros anos da “retomada”, sobretudo com as grandes produções, diversos fracassos revelaram o tamanho real do mer