O DESAFIO DE CONCILIAR EFICIÊNCIA E EQÜIDADE NOS SISTEMAS PÚBLICOS DE SAÚDE MODERNOS Marcus Vinicius Machado MELO NUGES – Núcleo de Estudos de Gestão e Saúde, Meio Ambiente e Negócios Sustentáveis UCAM - Universidade Candido Mendes - Campos - RJ O desafio de conciliar eficiência e eqüidade nos sistemas públicos de saúde modernos A estruturação dos sistemas de saúde públicos e privados no mundo, em todos os momentos ao longo da história, tem como um de seus elementos fundamentais a dinâmica dos conflitos na relação entre compradores (governos e planos e seguros de saúde) e vendedores de serviços de saúde (profissionais de saúde, hospitais). Na segunda metade do século XX, esses conflitos amplificaram-se em razão da incorporação de novos usuários aos sistemas, com a universalização no acesso, seguida da diminuição no financiamento dos serviços; como fator agravante, a forte incorporação tecnológica no campo da saúde inflacionou os custos dos serviços e trouxe a medicina definitivamente para dentro dos hospitais. Agrega-se a isso as especificidades da assistência médica – particularmente os limites de sua abordagem como um bem privado, em função de seus impactos humanos e sociais - e o resultado são organizações e sistemas complexos e de difícil avaliação de resultados. Palavras – Chave : eqüidade - eficiência - planejamento em saúde - gestão em saúde - políticas públicas de saúde O desenvolvimento dos sistemas de saúde fundamentou-se historicamente no debate entre o público e o privado, ou seja, entre o Estado e o mercado, particularmente na dinâmica da intervenção estatal no campo da saúde e seus conflitos com a prática médica de natureza liberal (IMMERGUT, 1992). Embora a intensidade desses conflitos varie de intensidade fundamentalmente em função do grau de interferência governamental no setor, o fato é que, em qualquer tempo e qualquer que seja o nível de desenvolvimento da nação, a tensão entre compradores e vendedores de serviços de saúde é um elemento central na estruturação dos sistemas de saúde em todo o mundo. O progressivo aumento do financiamento por parte do Estado, se por um lado expandiu intensamente o mercado para a prática médica, proporcionando acesso à saúde a indivíduos que não poderiam comprar os serviços, por outro passou a ser, paradoxalmente, objeto de intensos e importantes conflitos políticos e econômicos entre compradores e vendedores desses serviços. As associações médicas, sobretudo as da Europa Ocidental, temiam que a ampliação do financiamento dos serviços por parte do governo, poderia dar a este força suficiente para impor o controle de preços e outras formas de regulação, tendendo, no limite, a exercer um poder monopsônico – ou seja, o governo ser o único comprador de serviços - (IMMERGUT, 1992), confrontando com igualdade a força monopolista dos médicos, na medida em que eles são, por sua vez, os principais fornecedores de serviços de saúde1. A política de saúde de um país e, conseqüentemente, a estruturação de seu sistema de saúde, refletem e dependem dos antecedentes históricos e culturais, dos valores sociais, bem como dos resultados das forças políticas em ação (HSIAO,1992). Isso significa que a organização dos serviços se dá de maneira diferenciada de um país para outro - ou até em um mesmo país, em diferentes espaços temporais –, não havendo dessa maneira um modelo igual a outro. Apesar disso, alguns modelos assistenciais tornaram-se paradigmáticos na estruturação dos mais diferentes sistemas de saúde no mundo. No que se refere à interferência estatal, os primeiros programas governamentais para a área de saúde foram as caixas de assistência ou fundos de saúde. Nesse modelo assistencial, tanto o financiamento quanto, por conseqüência, o poder de regulação de Estado eram bastante restritos. Além disso essas organizações negociavam seus próprios arranjos com os médicos para prover os cuidados com a saúde de seus membros, sem que o governo interferisse na remuneração dos profissionais ou nos contratos assinados entre estes e os fundos de saúde, ficando assim limitada a sua capacidade de regulação e fiscalização (IMMERGUT, 1992) . O segundo tipo de programa, o Seguro Nacional de Saúde, criado na Alemanha, em 1883, implicou um papel mais ativo do governo no setor de saúde e marcou o primeiro grande momento de inflexão nos paradigmas da estruturação dos serviços. Nesse modelo, mais do que subsidiar arranjos privados, o governo criou programas públicos de seguro, nos quais a adesão não mais era facultativa, mas compulsória, visto que, nesse sistema composto por categorias profissionais, os trabalhadores são obrigados a contribuir com um percentual de seus salários, sendo também obrigatória a participação dos empregadores no financiamento do sistema. Nesse modelo assistencial, “o progressivo aumento da intervenção estatal no setor criou pressões para controlar os custos dos serviços dos provedores, tais como médicos, 1 Considerando os médicos, nesse caso, como os principais vendedores de serviços - passíveis, portanto, de exercer poder monopólico – porque, de algum modo, qualquer outro fornecedor de serviços de saúde depende desse profissional, embora existam teorias que defendam a diminuição da centralidade do poder do médico nas organizações e sistemas de saúde. hospitais, indústrias farmacêuticas e de tecnologia médica, principalmente porque o Seguro Nacional de Saúde introduziu o pagamento coletivo para serviços de saúde, incrementando o papel do governo como principal comprador” (IMMERGUT, 1992). O terceiro modelo paradigmático de programa governamental, que marcou o segundo momento de inflexão no desenvolvimento dos sistemas de saúde, teve como paradigma o NHS inglês, criado em 1948. No Sistema Nacional de Saúde, em lugar de subsidiar o seguro privado ou introduzir o seguro público, o Estado provê diretamente a assistência médica para todos os cidadãos, através de hospitais e médicos próprios ou contratados e pagos por ele. Esse modelo personifica o ideal de que a proteção social deve ser um direito de cidadania e de que esses benefícios sociais devem ser distribuídos de forma igual, independentemente da possibilidade de pagamento pelo indivíduo ou mesmo de sua categoria ou status profissional; ou seja, o NHS tem como objetivo central a universalização do acesso ao sistema de saúde. A diferença fundamental entre o Seguro Nacional de Saúde e o Sistema Nacional de Saúde está na forma de financiamento: no primeiro modelo, ele é feito através de contribuições de empregados e empregadores, além de subsídios estatais; e no último, o financiamento é solidário, feito por orçamento global, através de impostos gerais. O Sistema Nacional de Saúde foi o modelo que mais desagradou aos médicos, não por contestarem a propriedade pública em si, mas por afetar, segundo eles, seus supostos direitos à prática privada, visto que nesse sistema o governo se torna definitivamente o principal comprador dos serviços de saúde, além de fortalecer e intensificar o papel do Estado como empregador, direto ou indireto. O assalariamento dos médicos, aliás, tem sido a tendência dominante como forma de pagamento nos sistemas de saúde, atualmente. No caso brasileiro, esse assalariamento2, no setor público ou privado, é uma modalidade consolidada e representa hoje a mais importante forma de inserção no mercado de serviços médicos (MACHADO, 1997). TABELA 1 - Médicos Distribuídos por Formas de Inserção Segundo Tempo no Mercado de Trabalho. Brasil – 1995 Formas as s alariadas Formas Liberais Formas múltiplas T empo de ins erção no Público Cons ultóri Mercado Só Liberal + Liberal+ o + Múltiplo* (em anos ) S ó público privado (c. conv.) público privado privado (s / conv.) (c/conv.) Até 4 2 6.253 1.664 2.657 124 138 % 27,8 7,4 11,8 0,6 0,6 De 5 a 9 2.729 1.480 2.806 400 1.000 % 8,8 4,8 9,1 1,3 3,2 De 10 a 24 10.049 1.757 5.966 2.029 5.044 % 10,8 1,9 6,4 2,2 5,4 De 25 a 34 2.606 863 853 836 1.229 % 12,3 4,1 4,0 3,9 5,8 35 e mais 887 827 238 2.291 2.448 % 5,6 5,3 1,5 14,6 15,6 BRAS I L 22.524 6.591 12.520 5.680 9.859 12,3 3,6 6,8 3,1 5,4 6.572 2.387 2.209 I gnorado 481 T OT AL 22.485 29,2 10,6 9,8 2,2 100,0 11.186 4.237 6.410 617 30.865 36,2 13,7 20,8 2,1 100,0 34.715 19.071 13.488 582 92.701 37,4 20,6 14,6 0,7 100,0 6.252 4.458 3.254 909 21.260 29,4 21,0 15,3 4,2 100,0 1.894 1.564 3.329 2.263 15.741 12,0 60.619 33,1 9,9 21,1 14,4 100,0 31.717 28.690 4.852 183.052 17,3 15,7 2,7 100,0 MACHADO(1997) considera assalariamento “todas as formas de trabalho institucionalizadas, por meio das quais o profissional presta seus serviços, esteja o vínculo formalizado ou não sob a égide das leis trabalhistas”. (*) categoria múltiplo abrange os médicos que exercem atividades assalariadas nos setores público e privado e atuam em consultório. Fonte: Pesquisa “Perfil dos médicos no Brasil”, Fiocruz / CFM, Ano 1995 A tabela acima confirma essa realidade, mostrando que 69,5% dos médicos do Brasil têm vinculo público. Se considerarmos apenas os médicos em início de carreira (com até 4 anos de inserção no mercado de trabalho) esse percentual sobe para 79,4% dos profissionais. Em contrapartida, os médicos com esse mesmo tempo de trabalho, que atuam de forma liberal (em consultório, com ou sem convênio) representam apenas 1,2% do total de profissionais em atividade. Também é importante ressaltar o fato de a legislação brasileira permitir ao profissional de saúde ter dois vínculos públicos. Embora não se tenha números precisos da quantidade de profissionais com mais de um vínculo público, essa prerrogativa aumenta a possibilidade de dependência desse profissional do Estado. Ao lado da forma de pagamento, também os esforços para introduzir controle nos honorários médicos têm sido objeto de intenso conflito. Um dos mecanismos mais comuns para esse controle, surgidos a partir do Seguro Nacional de Saúde, compreende a adoção de tabelas de honorários, usualmente negociados entre representantes dos médicos e das agências de governo ou dos seguros-saúde, no caso dos sistemas privados. Entre as principais questões surgidas nesse debate está se os médicos podem cobrar dos pacientes um valor maior do que o listado na tabela e, caso possam, em que montante (IMMERGUT, 1992). Em algumas associações médicas, como as da França e da Suíça, as isenções das tabelas de honorários foram autorizadas em casos difíceis ou em pacientes graves, podendo o médico cobrar de acordo com o procedimento. Já no Canadá, os médicos têm lutado pelo direito de cobrar do paciente uma taxa extra, ou seja, um valor além do que consta na tabela de procedimentos. Na verdade, esse direito de cobrar dos pacientes segurados uma taxa suplementar tem sido visto, em alguns casos, como uma parcial alternativa para o seguro público, pois, argumentam os defensores da idéia, quando os médicos estão insatisfeitos com as taxas oficiais, podem burlar o controle de preços, através de cobrança adicional, e recusarse a tratar os pacientes que não pagam taxas privadas (IMMERGUT,1992). Por outro lado, essas cobranças adicionais têm sido combatidas pelos compradores de serviços em geral, seja por considerarem-nas ilegais, seja pela ameaça que essas cobranças possam trazer à universalidade e à tão desejada eqüidade no acesso aos serviços, mas também, e principalmente, porque os compradores temem que essas taxas extras privadas possam produzir pressão inflacionária, forçando a elevação das taxas–padrão então vigentes. A hegemonia norte-americana no mundo no pós- II guerra refletiu-se também no campo médico-científico, tendo como resultado uma forte influência dos EUA na difusão e expansão do modelo de assistência médica que se consolidou no mundo ocidental a partir da segunda metade do século XX, trazendo importantes impactos na área da saúde (ALMEIDA, 1996). Um desses impactos causados foram as mudanças na organização dos serviços de assistência médica, em função do privilegiamento de um modelo assistencial hospitalocêntrico, de alta tecnologia e de prática especializada. O principal resultado desse incremento intensivo de tecnologia na área de saúde foi o crescimento geométrico dos custos da assistência médica. A inflação setorial passou a superar os índices da inflação geral, por anos seguidos e em diversos países, com diferentes modelos assistenciais, independentemente se majoritariamente públicos ou privados. Para se ter uma idéia, na década de 70 os serviços médicos já absorviam em média 7,5% do PIB de países com sistemas predominantemente públicos ou privados. O gráfico A demonstra bem essa afirmação. Como podemos observar, nos EUA, um sistema majoritariamente privado, o gasto total em saúde em relação ao PIB pulou de 5,6 % em 1965 para 13% em 1995; na Suécia e no Reino Unido, sistemas majoritariamente públicos, esse gasto, no mesmo período, passou de 4,5% para 8,7 % e de 3,9% para 5,9%, respectivamente. 13,5 12,5 11,5 10,5 CANADÁ 9,5 ALEMANHA 8,5 ITÁLIA 7,5 SUÉCIA REINO UNIDO 6,5 ESTADOS UNIDOS 5,5 4,5 3,5 2,5 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 1998 Fonte: Oecd Health Data, 2001 GRÁFICO A - GASTO TOTAL EM SAÚDE - % PIB O aumento exponencial dos custos dos procedimentos reduziu a níveis quase residuais o pagamento direto, com importante impacto para a prática médica liberal. Isso porque os valores dos serviços, antes estipulados diretamente pelo próprio profissional (fundamento da prática liberal), passaram a ser determinados e tabelados pelos planos e seguros de saúde, a que esses usuários passaram a se vincular. Ou seja, passou a acontecer nos sistemas privados o mesmo que já acontecia nos majoritariamente públicos: o aumento da centralização e do poder regulatório dos compradores dos serviços em razão da consolidação dos chamados “terceiros pagadores” (os planos e seguros de saúde) como principais financiadores nos sistemas privados, em razão do distanciamento do poder de compra dos serviços pelos usuários. Paralelamente à explosão dos custos desse modelo de assistência centrado na atenção curativa, também a crise fiscal do Estado, em meados da década de 70, e o consenso políticoideológico, que norteou o mundo a partir da crise do Welfare State, forneceram os subsídios necessários para se desencadearem as Reformas Sanitárias nos anos 80, cujas principais orientações e justificativas tendiam para a crítica a esse referido modelo de assistência e, principalmente, para a diminuição radical dos gastos com saúde pelos Estados nacionais –ou seja, pela forte redução do financiamento do setor. Os argumentos utilizados (OECD, 1987 apud ALMEIDA, 1997) eram que a escassez de recursos públicos não permitia a manutenção dos padrões anteriores de gasto sanitário e das formas de estruturação dos serviços de assistência médica adotadas no pós-guerra, pelo crescimento do déficit público que essas formas provocavam. Nesse sentido, o Estado não poderia continuar arcando com a responsabilidade de garantia de acesso à assistência a toda a população, advogando-se a necessidade tanto da restrição da oferta de serviços de saúde quanto da descentralização, para níveis subnacionais e para o setor privado, passando a ser questionado o predomínio dos fundos públicos no financiamento da prestação da atenção médica à população. O financiamento, tanto da infraestrutura quanto da melhoria dos serviços, deveria ser provido por outros meios que não os orçamentos globais (ou seja, a arrecadação fiscal), eliminando a necessidade de novos impostos ou taxas específicas. Outro argumento utilizado pelos defensores das Reformas dos sistemas de saúde na década de 80 como causa importante da ineficiência desses sistemas era o nãocomprometimento dos agenciadores do gasto com os custos dos serviços, impedia a responsabilização no uso dos recursos. Ou seja, o médico foi o alvo central dessa crítica por ser considerado o principal indutor das demandas – muitas vezes consideradas desnecessárias – tendo sido propostas medidas de restrição da autonomia profissional e o deslocamento monopolístico dos prestadores de serviços, com a introdução de mecanismos competitivos e de mudanças gerenciais típicas do setor privado. A importância da gestão dos sistemas de saúde passa, nesse contexto, a ser amplamente reconhecida e defendida como condição fundamental para a utilização eficiente dos restritos recursos disponíveis. Mas, o que é ser eficiente em se tratando de prover assistência à saúde? Assistência médica: bem público, bem privado ou bem social ? O debate acerca da abordagem da assistência médica como um bem público, um bem privado ou um bem social, mais do que uma questão conceitual ou mesmo ideológica, é um elemento central na estruturação dos sistemas de saúde, especialmente por ter relação direta com os objetivos principais desejados para esse respectivo sistema. Em economia, segundo o enfoque neoclássico, bens privados são bens econômicos3 “cuja utilização por determinado indivíduo exclui a utilização por parte de outros” (VIANNA, PIOLA & REIS,1998:111); ou seja, é aquele bem cujo consumo individual esgota nele mesmo o benefício. O bem público, ao contrário, baseia-se fundamentalmente nos preceitos da nãoexclusividade e da não-rivalidade, no sentido de, respectivamente, não se poder excluir de seu consumo um indivíduo em particular, além de o seu uso por determinada pessoa não reduzir a quantidade disponível do mesmo bem para os demais membros da sociedade. Tomando como referência a diferenciação feita por DONNANGELO (1975), que considerou a assistência médica como “um conjunto de ações de diagnóstico e terapêutica dirigidas ao consumidor individual” e a saúde pública como “um conjunto de ações orientadas coletivamente”, podemos afirmar que, sob essa perspectiva, a assistência médica - consultas, exames, internações - é um típico bem privado; e as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, ou seja, as ações de saúde pública seriam exemplos típicos de bens públicos. Assim, algumas correntes de pensamento têm tentado considerar uma classificação intermediária para a assistência médica, a partir do conceito de bens de mérito ou bens sociais, que são “os bens de consumo individual cuja utilização dá origem a benefícios superiores àqueles gozados pelo consumidor”(VIANNA, PIOLA & REIS,1998:111). Segundo esses autores, a qualidade de bem social provém da existência de externalidades positivas, sendo esse elemento fundamental para diferenciar os cuidados de saúde de outros bens, pois indica que há um valor social associado ao consumo de cuidados individuais (VIANNA, PIOLA & REIS,1998:111); Considerando isso, um bem social poderia ser provido pelo Estado, como é o caso da assistência médica, dado o interesse coletivo oriundo das externalidades positivas geradas. 3 Bem econômico é todo bem escasso que gera utilidade, ou seja, todos os bens que estão disponíveis em quantidades limitadas em relação às necessidades ou aos benefícios que poderão gerar (Pereira, 1995:275 apud VIANNA, PIOLA & REIS,1998:111). A concepção da assistência médica como um bem privado (que supostamente não deveria ser financiado pelo Estado) e como um bem social (que não o impediria de ser provido pelo governo), tem também relação direta com a forma como um sistema de saúde é estruturado e, conseqüentemente, com os objetivos principais desejados para esse sistema. Usando os termos da doutrina econômica para o setor saúde, o debate é entre a estruturação com ênfase na abordagem pelo lado da demanda ou pelo lado da oferta. De acordo com HSIAO (1992), a escola na qual se baseia a abordagem pelo lado da demanda argumenta que o cuidado com a saúde é como qualquer outro bem: os consumidores podem exercer o controle sobre que serviços comprar e a que preço. Com a atomização do financiamento, a decisão de gastar ou não seria diretamente resultante do comportamento utilitário e maximizador do consumidor, o que supostamente forçaria os provedores, pela competição, a produzir serviços mais baratos e eficientes. Em suma, a abordagem pelo lado da demanda considera a assistência médica como um bem privado e, dessa forma, a alocação dos recursos de saúde se daria segundo a disposição do consumidor de pagar por esses serviços. A abordagem pelo lado da oferta considera, ao contrário, que os cuidados com saúde possuem características distintas dos outros bens de consumo, e que as falhas do mercado trariam enormes prejuízos para a estruturação dos sistemas de saúde. Ou seja, esse enfoque considera a assistência médica como um bem social, por ser fundamental para a manutenção da vida e, por esse motivo, qualquer um deveria ter direito a esse cuidado, independente de sua capacidade de pagar por ele. Na visão dessa escola, duas importantes particularidades limitam a abordagem da assistência médica como um bem privado: primeiro, a demanda pelo “produto” é gerada por um terceiro – o médico – e não pelo “consumidor”, que sequer tem conhecimento do que (não) deseja comprar. Noutras palavras, a assimetria de informações, ou seja, a disparidade entre o montante de informações que o médico tem, e o paciente não, induz ao forte domínio do profissional médico não só na decisão do serviço a ser comprado como também na indução de demandas e de preços4; e, segundo, porque, por se tratar de doença ou risco de vida, em caso de necessidade o “consumidor” tenderia a alocar o máximo de recursos disponíveis ou disponibilizáveis. Esses dois fatores diminuiriam consideravelmente - ou mesmo eliminariam - a eficácia do comportamento utilitário e maximizador desse “consumidor” e, portanto, desse modelo de estruturação. Entretanto, HSIAO (1992) conclui, a partir de experiências realizadas, que nenhum extremo pode isoladamente produzir um melhor resultado; afirma ainda que a estruturação dos sistemas de saúde, tendo por base a demanda (vale lembrar, considerando a assistência médica como um bem privado), é incapaz de produzir acesso universal a esses serviços para a população. Por exemplo, dos 5 países analisados por esse autor - Japão, Alemanha, Canadá, Reino Unido e EUA, países cujo propósito comum era a contenção dos custos dos serviçosapenas os EUA escolheram estruturar seu sistema de saúde com base na demanda e as falhas de mercado foram tão severas que, mesmo com a intervenção governamental para socorrer os idosos, doentes crônicos e pobres – através dos programas Medicare e Medicaid – esse país tinha, em 2002, em torno de 16% de sua população descoberta, ou seja, sem acesso a qualquer tipo de assistência médica, conforme pode ser observado na Tabela 2. 4 Os próprios defensores da assistência médica como um bem privado concordam com esse argumento, tanto que um dos pontos mais importantes das reformas dos anos 80 foi a limitação da autonomia técnica do profissional médico. TABELA 2 - Pessoas com e sem Seguro-Saúde (Privado e Público). EUA – 1990-2002 Ano 1990 1996 2002 População total (mil Hab) 246.190 264.465 281.381 Pessoas com seguro-saúde (mil Hab.) Abs. % 172.333 70,0 170.844 64,6 175.019 62,2 Pessoas sem segurosaúde (mil hab.) Abs. % 32.005 13,0 40.992 15,5 45.584 16,2 População coberta pelo sist. Público de saúde (mil hab.) Medicaid Medicare % 14.033 27.819 17,0 22.480 30.149 19,9 28.419 32.359 21,6 Fonte: Adaptação por Paulo Henrique Rodrigues, do Source Book of Insurance Data, Health Insurance Association of América, Washington, D.C., 1999 Além disso, os EUA gastaram com saúde muito mais que as outras nações, tendo esses gastos alcançado um nível quase incontrolável, em termos de percentagem do PIB (ver Gráfico A). Por outro lado, todos os países que utilizaram a estruturação com base na oferta ou seja, elegeram como prioridade a universalidade da cobertura - conseguiram reduzir ou pelo menos estabilizar a inflação dos gastos com saúde; e, paradoxalmente, obtiveram um maior nível de satisfação dos usuários (HSIAO, 1992). Conclusões A busca da eficiência nas organizações e sistemas de saúde envolve também dimensões humanas e sociais tornando-se, por essa razão, um grande desafio para os gestores. O critérios de alocação dos recursos, cada vez mais restritos, devem necessariamente considerar parâmetros diferentes daqueles utilizados nas organizações tradicionais, principalmente em razão das especificidades da assistência médica, particularmente os limites de sua abordagem como um bem privado. A literatura, e também algumas experiências, sugerem que a eficiência, quando buscada apenas sob a ótica da dinâmica da relação entre compradores e vendedores e serviços – ou seja, segundo a lógica do mercado -, pode parecer inversamente proporcional à eqüidade. Assumir essa premissa como verdadeira seria admitir que os sistemas públicos de saúde jamais conseguiriam atingir sua finalidade maior, que é prover saúde à sua população. Por outro lado, como privilegiar a eqüidade, sem pensar em ser eficiente, diante de uma realidade na qual se deve conciliar demanda crescente e recursos decrescentes. Desconsiderar a importância de buscar a eficiência, por sua vez, poderia significar a impossibilidade de se alcançar essa tão desejada eqüidade. Voltamos então à questão central: o que é (e como) ser eficiente, em se tratando de se prover assistência à saúde? Bibliografia ALMEIDA, C. M. 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