um estudo do conceito de felicidade na história da

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UM ESTUDO DO CONCEITO DE FELICIDADE NA HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO
doi: 10.4025/XIIjeam2013.viana.oliveira55
VIANA, Ana Paula dos Santos1
OLIVEIRA, Terezinha2
Introdução
Nos dias que correm, observamos uma gama de tendências e possibilidades
metodológicas de pesquisa. São diversas áreas do conhecimento que proporcionam a estas
corpus e sentido de existirem. Desde a graduação realizamos estudos no campo da
Educação mais especificamente na História da Educação, no período medieval, seguindo
as premissas da História Social preconizada por Marc Bloch e Lucien Febvre3. Em nossos
trabalhos de Iniciação Científica observamos que muitos dos pensadores medievais se
fundamentavam, para tecer seus escritos, em autores anteriores ao seu tempo histórico,
como exemplo, podemos citar o mestre do século XII, Hugo de Saint-Victor, um dos
autores que embasam nosso primeiro Projeto de Iniciação Científica (PIC)4. Podemos
pontuar, ao ter estudado as formulações deste mestre, que seu pensamento baliza-se pelos
fundamentos teóricos de Agostinho de Hipona, do século V, dentre outros, para discorrer
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. Membro
do Grupo de Pesquisa Transformações Sociais e Educação na Antiguidade e Medievalidade. Bolsista pela
CAPES.
2
Pós-Doutora em Filosofia e História da Educação na FEUSP. Professora do Departamento de Fundamentos
da Educação e da Pós-Graduação em Educação pela Universidade Estadual de Maringá.
3
Esta perspectiva de análise do objeto como parte da totalidade representada pelo conceito de felicidade em
contextos distintos da história referencia-se ao método da História Social que, de acordo com a historiografia,
surgiu da Revista dos Annales fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929, na França. Estes autores
propunham a noção de história como problema e defenderam a ideia de que a história deve contemplar
diferentes campos do conhecimento como a Sociologia, a Antropologia, a Literatura e outros. Com isso, a
disciplina histórica passa a ter um novo enfoque, pois para Bloch (2001) o que antes se concebia a história
como a ciência do passado, com essa abordagem, para entendê-la, é preciso considerar o percurso do homem
ao longo do tempo, cujo princípio baseia-se no fluxo da duração.
4
Pesquisa esta intitulada A educação no século XII: um olhar da história, da filosofia e da literatura
(01/05/2009 a 30/04/2010). Nessa oportunidade compreendemos a importância da leitura como elemento
essencial para chegar à sabedoria, cujo ensinamento aprendemos com os escritos do mestre Hugo de SaintVictor. Pedro Abelardo, também, fez parte desse estudo juntamente com Chrétien de Troyes, os quais nos
brindaram com suas formulações, permitindo-nos chegar ao objetivo proposto – analisar o conhecimento
citadino do século XII, priorizando as mudanças teóricas e comportamentais.
1
sobre o conceito de sabedoria, que para o mestre Vitorino é o Verbo, o pensamento divino,
que se alcança por meio da leitura. A leitura e a escrita, para os autores, são aspectos
indispensáveis à formação da pessoa e, por conseguinte, à conversão para o cristianismo.
Logo, ousamos compreender o cristianismo como um processo pedagógico, pois
observamos que para ser cristão, nesse momento histórico, fazia-se necessário ter
conhecimentos, como a aprendizagem destas duas habilidades, entre outras, para conhecer
Deus (fonte de sabedoria e vitalidade durante a Idade Média).
Desta forma, ao realizamos este estudo que abarca o conceito de felicidade, o
faremos a partir das reflexões depreendidas de autores anteriores ao nosso tempo presente,
mas que suscita, em nós, indagações e, nesse sentido, constituem em oportunidade de
refletirmos acerca do conhecimento. A dúvida nos leva a querer saber sempre mais e é,
justamente, por considerarmos a importância do conhecimento para a formação humana
que elegemos estudar um conceito que nos inquieta – a felicidade.
Nesse sentido, observamos que estudar um conceito em um período longínquo ao
nosso é um desafio, pois não pretendemos transpor esse sentido para a nossa realidade,
aliás, devemos pontuar que estamos pesquisando, no tempo presente, um termo que possui
concepções distintas ao longo da história, justamente porque cada momento condiz com as
questões que lhe são próprias. Nosso intuito é verificar em que medida a felicidade pode
contribuir para a formação humana e intelectiva e, por conseguinte, entendermos como este
conceito foi constituído ao longo da história.
Para fundamentar nosso estudo selecionamos as obras históricas de Aristóteles (384
– 322 a. C.) com Ética a Nicômaco, Epicuro (341 a.C. – 270 a.C.) com Carta sobre a
Felicidade (a Meneceu) e Boécio (480 d.C. – 524 d.C.) com Consolação da Filosofia,
entre outras, que constituem em fontes para a realização deste estudo.
Inicialmente destacamos nosso olhar acerca do tema e que constitui o aspecto
central de nossas considerações. Trataremos da felicidade como virtude inerente ao
homem, por estar ligada à essência da pessoa ao viver em comum. O homem, concebido
como um animal político como aparece em Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) na Política, é
assim compreendido por entender que somente o homem
[...] é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz
sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom
da fala. [...] ter sensações do que é doloroso ou agradável e externá-las
entre si [...] somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do
2
injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade dos seres como
tal sentimento que constitui a família e a cidade. (ARISTÓTELES,
Política, L. I, c. I, §1253a).
Observa-se que o homem é concebido pelo Filósofo como ser social, por considerar
que somente este pode viver em sociedade, ou seja, se relacionar com as demais pessoas e
que é o conjunto desses seres que constituem a coletividade, o viver em comum. Ser feliz,
por conseguinte, é parte constituinte dessa convivência.
Dentro dessa perspectiva, a felicidade é uma virtude indispensável em qualquer
época histórica. De certa forma, essa concepção já delineia o caminho teórico que
pretendemos percorrer em nossa abordagem pelo fato de enunciar que trabalharemos na
perspectiva da história social, a partir de uma concepção de longa duração.
Compreendemos a felicidade como uma virtude necessária onde quer que haja pessoas e,
por conseguinte, sociedade. Assim, essa virtude e sua prática devem fazer parte do
cotidiano das pessoas desde quando os gregos, ou mesmo antes deles, passaram a viver em
comunidade.
Indubitavelmente, conforme as sociedades se tornam maiores e mais complexas,
põem-se na ordem do dia sentimentos também mais elaborados do que aqueles
pertencentes ao princípio da sociedade. Com isso, na medida em que os homens têm que
conviver em determinados espaços, apesar dos interesses divergentes, é preciso que
conheçam (e pratiquem) o amor, o respeito ao próximo, para chegar à felicidade – ao bem
comum.
O que a história ensina é que o homem não muda de maneira arbitrária;
não se metamorfoseia à vontade, chamado por profetas inspirados; pois,
como se choca com o passado adquirido e organizado, qualquer
transformação é dura e laboriosa; faz-se, por conseguinte, apenas sob o
império da necessidade. (DURKHEIM, 2002, p. 307).
Durkheim corrobora com a consideração anterior ao indicar que a humanidade não
sofre mudanças aleatoriamente. As transformações ocorrem quando, socialmente, elas se
mostram necessárias. Nesse sentido, este autor também pode nos auxiliar quanto a
metodologia escolhida à medida que nos possibilita, com seu posicionamento, refletir
sobre o estudo da história.
É justamente por considerar o processo histórico que entendemos a importância do
registro das experiências humanas. Conceitos são importantes à formação da pessoa. Como
3
educadora/pedagoga
concebemos
a
educação
para
além
de
saberes
escolares/institucionalizado. Compreendemos o aprendizado não apenas de conhecimentos
sistematizados, mas também de hábitos, costumes e virtudes capazes de propiciar à
sociedade, homens civilizados e em condições de conviverem pautados no bem comum, ou
seja, em prol da formação humana. Nesse sentido, com essa perspectiva, é que a educação
e, por conseguinte, a pedagogia possui um foco/direcionamento central, a saber, a
constituição do homem como ser social5.
A partir das formulações dos autores estudados, destacamos Aristóteles (384 a.C. –
322 a.C.) ao pontuar o homem como ser social, e que, por isso, pode viver em um coletivo.
Em suas considerações, o autor aborda alguns aspectos importantes a esses sujeitos e, por
conseguinte, pode norteá-los nas relações sociais. Dentre estes, o Filósofo assinala a justiça
como a mais elevada forma de excelência moral. Desta forma, ele a considera uma virtude,
ou até mesmo a principal delas porque ela estrutura as relações humanas. Juntamente com
a justiça, a felicidade corrobora com a vida em comum, pois para serem concebidas como
virtudes é preciso que “[...] referimo-nos ao hábito; e aos hábitos dignos de louvor
chamamos virtudes.” (ARISTÓTELES, Ética..., L.I, c. 13, §1103a). Em sua análise, o
autor concebe o hábito e, assim, a virtude aquilo que é realizável, ou seja, as ações
humanas. É a prática da justiça realizada pelo homem que a torna perfeita como excelência
moral e, pelo hábito, o homem é capaz de desenvolvê-la. É essa prática, ou melhor
dizendo, é esse aprendizado que permite/possibilita ao homem ser feliz. Assim, justiça e
felicidade são necessárias ao convívio dos homens, do mesmo modo que os demais
sentimentos que precisam ser desenvolvidos e sentidos, senão por todos, ao menos pela
maioria, para que a comunidade exista e sobreviva.
É a partir dessa concepção que pretendemos analisar a felicidade como uma prática
que deve ser ensinada e aprendida pelos homens para que possam viver em sociedade,
sendo esta condição da existência das cidades antigas e, também, das medievais.
5
As palavras de Libâneo, intelectual da educação brasileira, são elucidativas, nesse sentido, pois mostra
justamente o cerne da questão educacional-pedagógica, ou seja, a formação humana no seio da sociedade. “É
disto que trata a pedagogia: a mediação de saberes e modos de agir que provocam mudanças qualitativas no
desenvolvimento e na aprendizagem das pessoas, objetivando ajuda-las a se constituírem como sujeitos, a
melhorarem sua capacidade de ação e suas competências para viver e agir na sociedade e na comunidade.
Desse modo, todo profissional que lida com a formação de sujeitos, seja em instituições de ensino, seja em
outro lugar, é um pedagogo. Entretanto, na realidade brasileira, as instituições de ensino formal ganham
destacada importância, razão pela qual é crucial saber o que a pedagogia pode fazer pelas escolas e pelos
professores.” (LIBÂNEO, 2006, p. 866).
4
Consideramos que as percepções dos autores elencados a este estudo podem constituir em
oportunidade para analisarmos o conceito de felicidade como determinado historicamente.
A felicidade: um preceito educativo e humano
O diálogo com o passado e/ou com autores considerados clássicos6 ao longo da
história nos permitem observar que os homens, de alguma forma, sempre busca(ra)m
entender sua essência, sua humanidade com vistas a formação de pessoas virtuosas e
felizes, ou ao menos, capazes de viver em sociedade, como pontuou outrora Bloch (1965).
É nessa perspectiva que iniciaremos nosso estudo com Aristóteles e sua obra Ética
a Nicômaco. Observamos, dessa maneira, que para compreender um conceito é necessário,
por vezes, considerar o contexto em que ele foi formulado. Por isso apresentaremos,
inicialmente, a contextualização histórica da qual este Filósofo fez parte, para,
posteriormente, dialogar, com os autores, o conceito de felicidade presente nas outras obras
elencadas.
De acordo com Padovani e Castagnola (1977), Aristóteles viveu no século IV a. C.
considerado como o segundo período do pensamento grego e, também, como sistemático
ou antropológico. Neste século, a Filosofia concentra-se no homem e em sua totalidade,
não mais na natureza como no período anterior. Em 367 a. C., Aristóteles principia seus
estudos na Academia de Platão (427 – 347 a. C.) e, partindo das ideias deste, sistematiza
conhecimentos na área da Física, Lógica, Teologia, Ética, Moral, Retórica, Metafísica e
Política. Em 343 a. C., é chamado por Filipe da Macedônia para ser o preceptor de
Alexandre, tarefa a qual se dedica até, aproximadamente 336 a. C. Na cidade de Atenas,
em 335 a.C., funda o Liceu, escola herdeira e rival da Academia platônica.
Com efeito, Aristóteles preserva o pensamento platônico, porém de forma crítica.
Podemos observar tal postura recordando um trecho da obra Política, na qual é possível
verificar referências do pensamento socrático e platônico:
6
Consideramos válidas as palavras de Saviani, outro intelectual da educação brasileira, para compreensão do
sentido de clássico para a educação. “Às vezes me dá a impressão de que, passados mais de cinqüenta anos,
continuamos ainda na fase romântica. Não entramos na fase clássica. E o que é a fase clássica? É a fase em
que ocorreu uma depuração, superando-se os elementos próprios da conjuntura polêmica e recuperando-se
aquilo que tem caráter permanente, isto é, que resistiu aos embates do tempo. Clássico, em verdade, é o que
resistiu ao tempo. É nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como clássica [...]”. (SAVIAN I, 2005,
p. 18)
5
O erro de Sócrates está em sua falsa premissa sobre a unidade;
certamente deve haver alguma unidade no Estado, assim como na família,
mas ela não deve ser absoluta. O resultado da unificação é que o Estado,
se não cessa de sê-lo, decerto tornar-se-á pior; é como se alguém
reduzisse a harmonia a uma unissonância ou o ritmo a um simples
compasso. Como já dissemos, uma cidade deve ser uma pluralidade, e
sua união numa comunidade depende da educação. Soa estranho que
Platão, cuja intenção era a de introduzir uma educação que, segundo
acreditava, tornaria virtuosos os cidadãos, julgasse obter bons resultados
por meio de métodos assim. Esse é o caminho errado; as regulações
acerca da propriedade não substituem a educação do caráter nem do
intelecto, ou o uso de leis e costumes da comunidade para esse fim
(ARISTÓTELES, Política, L. II, c. 5, § 20).
Aristóteles analisa, no capítulo que contem esse excerto, em que medida tudo deve
ser comum aos cidadãos. Embora pareça contraditório, essa análise excetua uma questão –
a de que não deve existir unidade completa, pois para o autor a cidade deve ser plural e
diversificada, a harmonia deve ser obtida por meio da educação. Neste sentido, o bem da
cidade é resultado da formação de pessoas educadas, mas diferentes.
É, pois, dentro dessa perspectiva formativa que Aristóteles desenvolve na obra
Ética a Nicômaco, sua formulação de bem comum – felicidade. Na verdade, o autor a
inicia tratando do conceito de bem, afirmando que toda ação humana tem como objetivo
atingir esta finalidade. Para ele, a felicidade é viver bem, e afirma “[...] assim como toda
ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto,
que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem”. (ARISTÓTELES, Ética..., L.I, c. I,§ 1).
Por isso a relevância em buscar a definição do sumo bem, isto é, porque esta delimita a
finalidade das ações que praticamos, ou melhor, o que devemos e o que não devemos
praticar.
[...] Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado,
legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade
dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade
será o bem comum. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto
para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo
maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. (ARISTÓTELES,
Ética..., L. I, c. 2, §1094b).
Nessa
passagem,
o
autor
indica
que
a
política
pode
assegurar
a
existência/permanência da cidade, versada no desenvolvimento de leis, regras, costumes e
práticas educativas. Seu objetivo é o bem do homem, sendo possível a partir do bem maior
6
e mais completo que é o bem comum. Desse modo, o homem deve ser educado, desde
cedo, para compreender que o bem da cidade (polis) é a garantia de sua própria felicidade.
Retomemos a nossa investigação e procuraremos determinar, à luz deste
fato de que todo conhecimento e todo trabalho visa a algum bem, quais
afirmamos ser os objetivos da ciência política e qual é o mais alto de
todos os bens que se podem alcançar pela ação. [...] os homens de cultura
superior dizem ser esse fim a felicidade e identificam o bem viver e o
bem agir como o ser feliz.
[...] Eis porque, a fim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que
é nobre e justo, e em geral sobre os temas de ciência política, é preciso ter
sido educado nos bons hábitos. (ARISTÓTELES, Ética..., L. I, c. 4, §1,
grifo nosso).
Diferentemente desse homem educado em bons hábitos, constituídos por meio de
diversos conhecimentos necessários a viver em sociedade, Aristóteles (Ética..., L. I, c.
V,§2) menciona que há o homem que “[...] identifica o bem ou a felicidade com o prazer, e
por isso amam a vida dos gozos”. De acordo com o Filósofo esse homem, por sua vez,
agiria segundo sua paixão que para o autor são “[...] os apetites, a cólera, o medo, a
audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e em
geral os sentimentos que são acompanhados de prazer ou dor [...]” (ARISTÓTELES,
Ética..., L. II, c. 5, §2). Na relação apresentada pelo autor figuram sensações permeadas
por sofrimento ou deleite e que podem ser consideradas como o que, internamente, conduz
o agir humano (aquilo que move ou impulsiona o homem à sua ação), estando interligada
com a virtude ou com o vício que cada agente apresenta.
Na verdade, ao considerar a noção de felicidade em Aristóteles, observamos que ela
está relacionada à ideia de hábito da virtude moral. Para o filósofo, a virtude moral não é
inata ao homem, mas pode ser ensinada e aprendida por meio do hábito.
Sendo [...] de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por
via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino – por isso requer
experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida pelo hábito,
donde ter-se formado o seu nome por uma pequena modificação da
palavra (hábito). Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das
virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe
naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza.
[...] de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeira adquirimos a
potência e mais tarde exteriorizamos os atos. [...] Com as virtudes [...]
adquirimo-las pelo exercício, como também sucede com as artes. Com
efeito, as coisas que temos de aprender antes de poder fazê-las,
aprendemo-las fazendo; por exemplo, os homens tornam-se arquitetos
7
construindo e tocadores de lira tangendo esse instrumento. Da mesma
forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a
temperança, a bravura, etc. [...] Se não fosse assim não haveria a
necessidade de mestres, e todos os homens nasceriam bons ou maus em
seus ofícios.
Isso, pois, é o que também ocorre com as virtudes: pelos atos que
praticamos em nossas relações com os homens nos tornamos justos ou
injustos [...]. (ARISTÓTELES, Ética..., L. II, c. 1, § 1103a/1103b).
Compreendemos que, para o autor, os homens não nascem bons ou maus, mas são
ensinados a serem justos ou injustos. De acordo com ele, a virtude moral precisa ser
ensinada as pessoas para que a pratiquem (aprendam). Desta forma, depende do hábito
praticado diariamente para que sejam bons ou maus. As pessoas podem aprender essas
virtudes, porém é conforme sua prática cotidiana, no convívio com as demais que elas se
tornam uma coisa ou outra. Assim, também, acontecerá com a felicidade. Para serem
felizes é necessário que aprendam o princípio de bem comum, ao qual cotidianamente deve
ser praticado, do contrário, dificilmente alcançará esta virtude.
O louvor é apropriado à virtude, pois graças a ela os homens tendem a
praticar ações nobres, mas os encômios se dirigem aos atos, quer do
corpo, quer da alma. [...] a felicidade pertence ao número das coisas
estimadas e perfeitas. E também parece ser assim pelo fato de ser ela um
primeiro princípio; pois é tendo-a em vista que fazemos tudo que
fazemos, e o primeiro princípio e causa dos bens é [...] algo de estimado e
de divino. (ARISTÓTELES, Ética..., L. I, c. 12, § 1102a, grifos do autor).
[...] a felicidade é uma atividade da alma conforme à virtude perfeita,
devemos considerar a natureza da virtude: pois talvez possamos
compreender melhor, por esse meio, a natureza da felicidade.
O homem verdadeiramente político também goza a reputação de haver
estudado a virtude acima de todas as coisas, pois que ele deseja fazer com
que os seus concidadãos sejam bons e obedientes às leis. [...]
Mas a virtude que devemos estudar é, fora de qualquer dúvida, a virtude
humana; porque humano era o bem e humana a felicidade que
buscávamos. (ARISTÓTELES, Ética..., L. I, c. 13, §5-15).
Nesse sentido, observamos que Aristóteles busca apresentar um conceito de
felicidade, considerando este o fim a que visa às ações humana, ao qual ele assinala que a
função humana é conquistar o seu maior bem, isto é, adquirir a virtude, vista por ele como
excelência de nossas atitudes: “Por virtude humana entendemos não apenas a do corpo,
mas a da alma; e também à felicidade chamamos uma atividade de alma.”
(ARISTÓTELES, Ética..., L. I, c.13,§3). Assim, para o Filósofo, a felicidade é um hábito
do homem bom, pois está na natureza espiritual (alma) de quem preza pelo bem e tem
8
vontade para tal que seus atos possam se converter para o bem comum, ou seja, para ser
feliz.
Observamos, desse modo, que na proposta de Aristóteles, a felicidade seria o
aspecto central de todas as ações dos sujeitos, pois é ela que comandaria todo o agir dos
homens e, por conseguinte, os direcionaria ao bem comum. Assim, quanto mais os homens
aprenderem e praticarem os princípios de bem, mais harmoniosa e feliz será a sociedade,
pois será composta por homens justos.
Dessa forma, embora a felicidade entendida como bem para as ações humanas e
vista como ‘raiz’ para as demais virtudes humanas, ela não é inata ao homem, como já
pontuamos. Por isso a necessidade de ser ensinada e assim converter-se em um hábito, para
que os homens tornem-se justos e felizes.
Assim, para o autor de Ética a Nicômaco, a felicidade encontra-se presente nas
relações sociais, sejam estas individual ou coletivamente. Com efeito, ao consideramos a
proposta do Filósofo, percebemos ser possível aproximá-la da ideia de felicidade
apresentada por Epicuro (341 a.C. – 270 a.C.), outro filósofo grego, na Carta a Felicidade
(a Meneceu). Embora Aristóteles mencione, no excerto anterior, a felicidade como um
aspecto totalizante compreendendo corpo e alma, notamos que Epicuro confere uma
formulação mais tênue ao último aspecto – a felicidade espiritual. Observamos que
Epicuro aborda, em seu escrito, sobre a conduta humana, a fim de transmitir aos seus
discípulos os elementos que considerava essenciais para que estes buscassem a
permanência da felicidade. Seu intuito, com isso, era o de que, ao se apropriarem desses
ensinamentos, alcançassem a “saúde do espírito”.
Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se
canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém é demasiado jovem ou
demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a
hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é
como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser
feliz. [...] é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a
felicidade, já que estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo
fazemos para alcançá-la. (EPICURO, 1997, p. 21-23)
Compreendemos que em Epicuro a felicidade, proveniente do conhecimento, está
nas pequenas coisas, ele não trata da felicidade material, mas sim da espiritual conquistada
por meio da filosofia (do conhecimento feito pelos indivíduos). Por isso deve-se dedicar
tempo para filosofar e não há, segundo o autor, idade para isso, isto é, seja este jovem ou
9
idoso, o importante é saber que desse cuidado dependerá/condicionará sua felicidade. Ou
seja, para se apropriar dos elementos necessários à uma vida feliz, requer, da pessoa, um
grau de abstração (cognitiva) e tempo disponível ao saber.
Os aspectos ao qual ele considera indispensáveis para a busca permanente da
felicidade residem na crença nos deuses, em vencer o medo da morte, em controlar os
desejos, no prazer como início e fim de uma vida feliz e na concepção de sábio ao homem
que é feliz, porque este tem vontade definida.
[...] A consciência clara que a morte não significa nada para nós
proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo
infinito e eliminando o desejo de imortalidade. [...] (EPICURO, 1997, p.
27).
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para
nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está
presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não
estamos. [...] (EPICURO, 1997, p. 29)
O autor explicita a importância em ter a consciência de que a morte não significa
nada. Essa concepção, segundo ele, é fundamental porque assim possibilitaria uma vida
mais fruída sem apreço por acrescentar tempo infinito e, por conseguinte, eliminaria o
desejo pela imortalidade. Inferimos, com as considerações do autor, que este anseio pela
eternidade não se fazia necessário àqueles que se dedicavam ao conhecimento e que,
portanto, detinham o discernimento necessário para não ter medo da morte. O homem
sábio é aquele que saber viver bem, sem se afligir pelo o que está por vir. A imortalidade,
nesse sentido, estava direcionada não a eternidade da matéria, mas sim ao espírito.
Acreditamos que estar preparado para o ciclo da vida significava uma possibilidade de
encontrar a serenidade do espírito.
Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os
que são inúteis, há uns que são necessários e outros, apenas naturais;
dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade,
outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o
conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda
recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que é a
finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas
ações, para nos afastarmos da dor e do medo. (EPICURO, 1997, p. 35.
Grifo nosso).
10
Nessa passagem, o autor explana a finalidade da felicidade, ou seja, reside na
conduta humana. Ele explica que alguns comportamentos são necessários à existência,
como o zelar do corpo para proporcionar o bem estar à alma, outras são importantes para
ser feliz, como o conhecimento seguro dos desejos. É por meio do conhecimento e
discernimento que a pessoa tem a possibilidade de fazer boas escolhas, e são nessas
escolhas que se pode encontrar a felicidade. Por isso que esta, do ponto de vista do autor,
só é alcançada pelas pessoas sábias.
[...] um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de
toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma
imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a
prudência é o princípio e o supremo bem [...] filosofia; é dela
que originaram todas as demãos virtudes; é ela que nos ensina que não
existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe
prudência, beleza e justiça sem felicidade. (EPICURO, 1997, p. 45).
Desse modo, a pessoa sábia é aquela que trilha o caminho da filosofia, visando o
conhecimento das virtudes necessárias à vida feliz. Nesse sentido, Epicuro redige essa
Carta procurando mostrar aos seus discípulos, em especial a Meneceu, o quão é importante
cuidar do desenvolvimento do espírito. Dito de outra forma, o autor acreditava que o maior
bem residia na procura dos prazeres moderados de modo que alcançassem um estado de
tranquilidade e de libertação dos medos. Isso seria possível, segundo ele, por meio do
conhecimento do mundo e da limitação dos desejos. Em suma, observamos em seus
ensinamentos três aspectos essenciais para alcançar a felicidade: liberdade, amizade e
tempo para filosofar7.
Após as formulações de Epicuro sobre os elementos necessários para que seus
pares encontrasse a felicidade, passaremos, nesse momento, às considerações desse
7
O primeiro aspecto para Epicuro, a liberdade, está relacionado ao homem sábio, ou seja, aquele que jamais
acredita cegamente no destino e na sorte como se estes fossem fatalidades inexoráveis e sem esperança, pois
ao pensar desta forma, em sua concepção, estará direcionando à vontade e a liberdade do homem. Com
relação à segunda, a amizade, podemos observar esse aspecto ao longo de toda a obra de Epicuro, sua
preocupação em escrevê-la reside em transmitir a seus discípulos os tópicos que considera essenciais para a
busca da felicidade, por isso “[...] versa justamente sobre a conduta humana tendo em vista alcançar a tão
almejada “saúde do espírito.” (LORENCINI; CARROTORE, 1997, p. 14)”. Logo, sua atenção ser
considerada como amizade que tinha pelos seus pares. A filosofia, por sua vez, é o caminho para atingir essa
finalidade. Para tanto, Epicuro inicia a referida obra alertando aos discípulos para que “[...] ninguém hesite
em dedicar-se a filosofia enquanto jovem, nem canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é
demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito.” (EPICURO, 1997, p. 21). Nesse
sentido, entendemos que a “saúde do espírito” para o autor é a filosofia, por isso é preciso de tempo para
filosofar, porque assim alcançará o objetivo tão almejado, o de ser feliz.
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conceito para Boécio. Se para o primeiro autor a filosofia era um dos aspectos para adquirir
a felicidade, abordaremos como o segundo ‘dialoga’ com ela para discorrer acerca da
felicidade.
Ao falarmos de filosofia, o terceiro autor desse estudo, Boécio um político (cônsul
romano) ‘dialoga’ com a filosofia enquanto estava preso por ser acusado de traição ao
Imperador Teodorico (493-526 d. C.). Na obra Consolação da Filosofia, compreendemos
que o autor analisa, em última instância, uma civilização que está deixando de possuir
características necessárias para a vida em sociedade.
A sensibilidade, os valores morais, éticos, a percepção de que o ser humano
necessita do convívio social para exercer sua humanidade são aspectos que não poderiam
ser esquecidos. Ele tece considerações aos escritos clássicos, nisso reside sua relevância
histórica. Boécio é considerado, por alguns autores como Grabmann, Lauand, Reale, um
divisor de águas entre o pensamento clássico (mundo antigo) e a forma de educar presente
no medievo. Ele defendia o conhecimento e a sabedoria como essência do ser humano.
[...] É porque desconheces qual é a finalidade do universo que tu
imaginas serem felizes e poderosos os que te acusaram. É porque
esquecestes as leis que regem o universo que julgas que a Fortuna segue
seu curso arbitrário e que ela é deixada livre e soberana. (BOÉCIO, 1998,
p. 21).
[...] Portanto, já que a preocupação maior dos mortais é estarem vivos,
como serias feliz se tivesses consciência de tua felicidade, tu, que possuis
coisas que aos olhos dos outros valem mais que a vida! [...] existe algum
homem que possua uma felicidade tão perfeita que não se queixe de algo?
A felicidade terrestre traz sempre consigo preocupações e, além de nunca
ser completa em um termo. Um possui imensas riquezas, mas se
envergonha da sua origem humilde; outro é de linhagem nobre e ilustre,
mas preferiria não sê-lo devido à as insegurança e pobreza. [...] Em suma:
ninguém está contente com a sua situação, e cada situação comporta um
aspecto que não se nota a menos que seja experimentado [...] Quantas
vezes sua felicidade não é afastada por causa da amargura da condição
humana! [...] Por que então, ó mortais, buscais fora de vós mesmos o que
se encontra dentro de vós? O erro e a ignorância vos cegam. [...]
(BOÉCIO, 1998, p. 34-35).
Nessas passagens, verificamos que a concepção de felicidade para o autor reside na
condição para o conhecimento. É necessário que o ser humano tenha consciência do
contexto e das relações ao qual se encontra imerso, entender as questões humanas, mas
também sociais, não procurar nas questões efêmeras a felicidade, mas na sabedoria. A
compreensão desse conceito está ligada ao conhecimento e comportamento virtuoso, com
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vistas ao bem. Aquele que não entende sua condição humana considera-se infeliz, por isso
Boécio aconselha a buscar, em si próprio, as questões essenciais ao bem viver, isso
significa tonar-se um ser consciente, do contrário, cairá no erro e na ignorância. Por isso a
felicidade para Boécio consiste em conhecer a própria vida. Esta “[...] é o supremo bem de
uma natureza guiada pela razão, fica claro que a instabilidade da Fortuna não tem nenhum
conhecimento da natureza da felicidade.” (BOÉCIO, 1998, p. 36).
Considerações finais
Nesse estudo procuramos entender o conceito de felicidade sob um duplo olhar:
histórico e metodológico. Observamos que muitos aspectos tratados pelos autores
históricos são pertinentes à formação humana e intelectiva. O estudo no campo da História
da Educação permite refletir sobre o processo educativo sob uma perspectiva ampla,
superando os limites da prática cotidiana para que seja possível a ela atuar.
Cumpre mencionar que a análise sobre o passado expresso nos historiadores
presentes nesse texto só é legítimo para que possamos atuar no presente. Nesse sentido, foi
possível, com esses autores, destacar aspectos que compreendemos como essenciais ao
estudo realizado, noções, pensamentos, ações e fundamentos que podem colaborar para a
formação humana e, como educadora, à prática pedagógica.
Observamos que o estudo histórico de autores como Aristóteles, Epicuro e Boécio
podem nos auxiliar a compreender como eles pensavam, relacionavam e agiam, pois
entendemos que são os conhecimentos e análises de documentos históricos (sejam estes
imagens, cartas, escritos em geral, entre outros) que nos possibilita o desenvolvimento da
humanitas e de nos apropriar de conceitos, hábitos, comportamentos éticos e morais,
importantes ao convívio social.
De um modo geral, Aristóteles, Epicuro e Boécio mostraram que o ser humano
sempre está em busca da felicidade, seja para o bem comum ou de modo particular,
contudo trouxeram à baila a importância desse conceito para a existência humana. O
primeiro autor centrou-se seu olhar na necessidade de educar o homem de acordo com um
conjunto de hábitos, pois, de modo geral, o homem tem inclinação para ações que resultem
em prazer. Decorre disso a necessidade de se ensinar e aprender ações com vistas ao bem
comum. Por isso, por não serem inatas ao homem, é necessário desenvolver neles bons
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hábitos. Estes hábitos, por sua vez, tornam-se uma possibilidade prudente para atingir este
fim. É preciso, portanto, prezar pelo bem comum para alcançar uma vida feliz.
Epicuro concentrou suas formulações no preparo de seus discípulos ao bem estar,
levando em consideração os aspectos essenciais à saúde e tranquilidade da alma. Uma
serenidade livre de medos e sofrimentos, pois para ser feliz, segundo o autor, são
necessários três elementos, a saber, liberdade, amizade e tempo para filosofar. E, nosso
último autor analisado, Boécio, trata essencialmente da felicidade como condição para o
conhecimento.
Em suma, ousamos mencionar que se antes, em tempos anteriores como
observamos com os referidos autores, a felicidade foi concebida, substancialmente, como
possibilidade de conhecimento e de bem comum, no contexto atual, por vezes é vista com
efemeridade, porém não pretendemos generalizar tal acepção, pois percebemos que ao
longo do tempo a felicidade mostra a mentalidade e atitudes da existência humana.
REFERÊNCIAS:
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LIBÂNEO, J. C. Diretrizes Curriculares da Pedagogia: imprecisões teóricas e concepção
estreita da formação profissional de educadores. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 –
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Disponível
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