Texto na íntegra - Instituto de Psicologia da USP

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LYGIA CLARK: NO PRESENTE-AGORA DO ATO. UM ESTUDO SOBRE O FAZER, A
GESTALT E A ARTETERAPIA. 1
Raquel Carneiro Amin2
Tatiana Fecchio Gonçalves.
O presente trabalho abordará especificamente os “objetos relacionais” de Lygia Clark, produzidos
nos idos da década de 1970, a partir de análise bibliográfica existente sobre a artista, bem como a partir
dos estudos dos teóricos da Gestalt e da Arteterapia, com o intuito de verificar a presença ou não de
elementos arteterapêuticos nesse seu determinado trabalho.
Pequeno trajeto sobre seu caminho artístico
Lygia Clark nasceu em 1920 em Belo Horizonte. Mesmo demonstrando desde cedo interesse pelas
artes, sua inserção no sistema Erudito da Arte foi tardio, somente aos 27 anos. Depois de casada e com
três filhos dedica-se mais profundamente à Arte, já então no Rio de Janeiro, em 1947, sob a orientação de
Burle Marx. Viaja a Paris para continuar os estudos de pintura com os mestres Léger, Dobrinsky e Arpad
Szenes. Volta ao Rio de Janeiro, tornando-se integrante do Grupo Frente3 (1954 a 1956). Em 1970 reside
em Paris como professora na Sorbonne, propondo exercícios para grupos de sensibilização, expressão
gesticular de conteúdos reprimidos e liberação da imaginação criativa, tendo o corpo como suporte.
Lygia contribuiu para a renovação da linguagem plástica no meio artístico no Brasil, aderindo à
pintura abstrata geométrica, preocupada em explorar as possibilidades compositivas do plano e do espaço
pictórico. Tentava encontrar um novo espaço, capaz de romper com a representação bidimensional do
plano e integrar-se aos sentidos do espectador.
Propõe e executa a “morte do plano” (antes com retas de contorno que orientavam e equilibravam
o homem num ponto fixo, exterior à realidade do quadro), que passa a envolver o homem, atraindo e
deslocando-o, proporcionando uma sensação de desorientação, proibindo-o de ocupar uma posição fixa
no espaço exterior. Todo o corpo passa a explorar uma realidade antes desconhecida, movido por
1
Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Arteterapia apresentado à Universidade São Marcos Campus Paulínia,
como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista em Arteterapia, sob orientação da profa. Ms. Tatiana Fecchio
Gonçalves.
2
Formada em Artes Visuais-Design, Especialista em Arteterapia pela faculdade São Marcos, Mestranda do Instituto de Artes
da Unicamp. E-mail: [email protected].
3
Movimento construtivo no Brasil, foi um dos precursores da abstração geométrica no Brasil, estabelecendo discussões em
torno da abstração e da arte concreta, o grupo não se caracteriza por uma posição estilística única, sendo o elo de união entre
seus integrantes a rejeição à pintura modernista brasileira de caráter figurativo e nacionalista. Liderado por Ivan Serpa, tinha
como companheiros Aluísio Carvão, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Abraham Palatnik, Décio Vieira, Franz Weissmann e outros.
impressões sensoriais. Lygia foi buscando, cada vez mais, no decorrer de suas experimentações artísticas,
a interferência do sujeito, como participador ativo, senão na criação, ao menos nos desdobramentos de
configurações no objeto. Obra e artista convidam o espectador a abandonar a posição distanciada e
passiva em relação à obra de arte, e esta se abre para a ação do sujeito.
Objetos Relacionais
Ao voltar de Paris, em 1976, colocando em prática o trabalho realizado na Sorbonne, dedica-se
integralmente ao trabalho terapêutico individual, procurando reativar o corpo (em face do espaço exterior)
utilizando-se de uma atividade terapêutica baseada num contato corporal entre paciente e os chamados
“objetos relacionais”, empregando o método que desenvolvera intitulado de a “Estruturação do Self”.
Muitos dos objetos resultaram de trabalhos anteriores da artista, como a série “Nostalgia do
Corpo” (1966) e “A Casa é o Corpo” (1967-69), na qual cria objetos que só podem ser explorados se
vestidos pelo receptor, sendo integrados ao corpo humano4. No “Corpo é a Casa” (1968-70), os trabalhos
são destinados às experiências grupais, e, por fim em “Corpo Coletivo” (1972-75), também dedicado ao
coletivo, com um elemento a mais: um dos participantes do grupo é escolhido para submeter-se à
determinada ação dos demais5. É principalmente da fase “Corpo Coletivo” que Lygia importa
procedimentos e objetos para a realização da “Estruturação do Self”. Muitos objetos foram desenvolvidos
no percurso, em função do que lhe era pedido pelos clientes; outros eram trazidos pelos próprios clientes,
sendo geralmente somados ao trabalho. Alguns objetos tinham nome específico, outros não, e outros,
ainda, mudavam de nome em função de seu uso, do tipo de vivência que proporcionavam. Era a própria
Lygia que colocava o objeto nas mãos do cliente, já montado, indicando-lhe o que deveria ser feito.
Os “objetos relacionais” podem ser agrupados em diversas séries. A primeira é composta por
saquinhos plásticos, oriundos de supermercados, contendo ar, areia, água, conchinhas ou sementinhas.
Quase todos têm nome nesta série: Saco plástico cheio de água, de ar ou areia. Havia, por exemplo, o
Plástico como ventre exterior, que consistia em colocar um Saco plástico cheio de ar em cima do ventre
do cliente, cobrindo-o com a blusa que este vestia. Estes vinham da fase “Corpo coletivo”. Já outros
objetos, também feitos de plásticos, provinham da fase da “Nostalgia do corpo”, como sendo o caso de
Pedra e ar, Água e conchas e Pequeno plástico ou Saco vazio. Originalmente era o próprio propositor
4
Alguns objetos dessa fase são feitos para serem utilizados individualmente, como é o caso de: Máscara abismo (série, 1968),
Máscara sensorial (série, 1967-68), Óculos (1968), Luvas sensoriais (série, 1968) e Camisa-de-força (1969). Outros devem
ser vividos a dois, como Roupa-corpo-roupa (série de 1967 que inclui o Eu e o tu e Cesariana), Diálogo: Óculos (1968) e
Casal (1969).
5
Algumas dessas propostas são: Baba antropofágica (1973), Canibalismo (1973), Túnel (1973), Viagem (1973), Rede de
elásticos (1974), Relaxação (1974-75) e Cabeça coletiva (1975). Esta última série Lygia rebatiza de Fantasmática do Corpo
em 1974, pois, ao mobilizarem as memórias do corpo do receptor, eles convocam os fantasmas dessas memórias.
que enchia o saquinho com seu próprio sopro e depois o fechava com o elástico. Logo após, com um dos
seus ângulos externos voltados para cima, ele deveria apoiar o seixo e apalpar o balão de ar, fazendo com
que a pedra subisse e descesse sucessivamente pela pressão de suas mãos. Água e conchas é um saquinho
de plástico contendo esses dois elementos, sendo divididos por um elástico simetricamente, mas não
isolados, o que permite o movimento das conchas no seu interior. Pequeno plástico ou Saco plástico
vazio são vários sacos de plásticos vazios, como o próprio nome indica, que eram entregues ao cliente ao
término da sessão por Lygia, depois de oferecer um Saco plástico cheio de ar, para ser estourado se
quisesse. Dessa forma o cliente poderia encher o Saco plástico vazio com o ar de seus pulmões,
descobrindo que o objeto destruído pode ser sempre reposto, e que o processo de criação não cessa nem
mesmo com o fim de um objeto. Havia variações da qualidade e do interior desses saquinhos durante o
processo, como por exemplo, o Objeto de semente, que foi trazido por uma das participantes.
Outra série de objetos criada para a “Estruturação do Self” é composta por almofadinhas de
algodão de cor neutra ou de voile de náilon contendo areia, bolinhas de isopor ou seixos. Podem ser
divididos ao meio por uma costura, abrigando dois materiais ao mesmo tempo (um leve e outro pesado),
oferecendo a experimentação de qualidades físicas opostas, vividas concomitantemente. Nesta série todos
são nomeados: Almofadas leves (com isopor), Almofadas pesadas (com areia), Almofadas leve-pesadas
(com isopor e areia).
Outra série era formada por tubos de dois tipos: um de papelão pardo (advindo de lojas de tecido),
chamado de Tubo, e outro de borracha preta sanfonada (advindos de scubas, aparelhos de respiração
subaquática). Grande falo: era deixado sobre o sexo e entre as pernas do cliente. Justa medida: quando
posto entre o peito e o sexo. Cordão umbilical: quando colocado na altura do umbigo. Respire comigo: as
duas extremidades do tubo eram encaixadas um dentro da outra, formando um círculo, que era estirado e
relaxado ritmadamente, ao pé do ouvido do cliente. A artista também usava os tubos para produzir sons
de todas as espécies, ou assoprava-os, aquecendo, com seu próprio ar, diferentes partes do corpo.
Outra série é composta por materiais dos quais eram extraídos os mais estranhos ruídos. Lygia os
emitia de diversos pontos da sala, longe ou perto do cliente: soprava uma cabaça, chacoalhava conchas
pequenas numa peneira, usava conchas grandes para cobrir os ouvidos do cliente.
Ao dispor pedras ao longo do corpo do paciente, criou mais uma série. O seixo era usado
especificamente, recebendo o nome de Prova do Real: um seixo, geralmente envolvido por um saquinho
de rede de cor quente e textura macia, era colocado na mão do cliente, permanecendo nela ao longo da
experiência com os “objetos relacionais”. Este feito confirmava a existência da referência externa em
situações de grande regressão possibilitadas pela técnica. Suportava qualquer tipo de uso: com ou sem
rede, com uma ou duas pedras, uma em cada mão ou duas numa mão só, ou ainda uma dentro da mão e
outra sobre ela. Quando era colocada entre a mão da propositora e do cliente, possuía outro nome: Ponte,
indicando o vínculo que era formado entre ambos por meio do seixo, que permanecia ainda na memória
do corpo mesmo depois de ser retirado; uma ponte invisível que sustenta o self e lhe dá suporte para o
processo contínuo de criação da subjetividade e do mundo que o cerca.
As plantas também fazem parte de uma outra série: folhas secas, sementes e caules eram
manipulados por Lygia de diversas maneiras, acariciando partes do corpo, ou mesmo forrando a pele.
Enfim, uma última série é formada por materiais com texturas singulares: bombril, palha de aço
grossa e fina, luvas de diferentes texturas, bucha natural, estopa, rabo de coelho, e outros.
Existem ainda outros “objetos relacionais” que não foram agrupados em séries, é o caso de:
Manta, um almofadão, de tule ou voile, recheado por bolinhas de isopor, que era esfregado pelo corpo do
cliente; Cobertor, um tecido grande, de tule, voile ou lã, com o qual ela o cobria; uma lanterna, cujo foco
de luz era aproximado de seus lábios ou seus olhos; um espelho que ela colocava bem próximo a seus
olhos; mel que era pingado na sua boca através de um conta-gotas; pedaços de papel absorvente, ou jornal
molhado, que embrulhavam e cobriam o corpo; meia-calça, com nós que formavam pequenos bolsos
contendo objetos com texturas, pesos e tamanhos contrastantes: em uma das pernas, conchas finas e
partidas, na outra, seixos; bolas de pingue-pongue de um lado, e do outro, bolas de tênis. A lista de
“objetos relacionais” não tem fim, estavam sempre sendo incorporados, inventados e reinventados.
Já em 1981 Lygia começa a perder interesse pela prática, diminuindo gradativamente o número de
sessões e clientes, alegando que absorvia demais a carga emocional dos pacientes. Passou, então, a treinar
outros terapeutas interessados no seu método6. Ao final de 1984 interrompe as atividades de consultório,
como consta em artigo de Schild em O Jornal do Brasil de 06/12/1984:
“parei porque fiquei contaminada pelos clientes. Toda psicose deles passava para mim, era
um processo pré-verbal, sem palavras para elaborar as coisas que aconteciam. Comecei a
ficar doente, vi que não dava mais conta. Parei”. (apud Carneiro, 2004, p. 65).
Mais tarde retomou as atividades, parando-as novamente em fevereiro de 1988, pouco antes de
morrer. No início da década de 1980 sentia-se anulada por ser o “receptáculo das inibições de grupos”,
encontrando-se reduzida a um ponto de informação de outros corpos: “Me violentei, passei a ser o outro e
só agora começo a me enxergar de novo”, conforme impresso no artigo de Held em o Jornal do Brasil de
21/09/1974 (apud Fabbrini, 1994, p. 229).
Sobre uma prática terapêutica, os objetos e suas propriedades
6
Lygia antevia um possível uso de sua prática no terreno do trabalho clínico, especialmente para o tratamento da psicose. Fato
que foi incorporado com êxito no tratamento de psicóticos da rede de saúde mental pública, que receberam o conhecimento por
meio dos profissionais que foram ensinados por ela (Lula Wanderley e Gina Ferreira).
Num quarto de seu apartamento no Rio de Janeiro encontravam-se dispostos uma infinidade de
objetos de todas as espécies, intitulados pela artista de “relacionais”. É nesse espaço que ela praticava a
“Estruturação do Self”, à qual se dedicou até o fim da vida. O trabalho acontecia com uma pessoa por vez
em sessões de uma hora, de uma a três vezes por semana, que podiam durar meses ou mesmo anos.
Utilizava-se desses “objetos relacionais” para poder tocar o corpo de seus “clientes”, como ela mesma os
denomina. Estes se despiam, ficando somente com suas roupas íntimas e deitavam sobre o Grande
colchão (almofadão de plástico transparente, preenchido com bolinhas de isopor, coberto por um lençol
solto); e, com seu próprio peso abriam sulcos acomodando seus corpos, a fim de “enformá-lo”, como
dizia a própria Lygia – a partir de então, iniciava-se a sessão.
Os “objetos relacionais” não eram usados com o intuito de se criar uma nova técnica de expressão
corporal, pois não era um método composto de exercícios sistemáticos de coordenação motora ou
harmonização de movimentos, não eram propostos para adestrar. Enfatizando essa idéia, Lygia afirmava
que: “O objeto relacional não tem especificidade em si. Como seu próprio nome indica, é na relação
estabelecida com a fantasia do sujeito que ele se define”. (apud Milliet, 1992, p.161). A revitalização do
potencial criativo acontece na ação, seja ela individual ou conjunta, na qual fragmentos de materiais como
panos, plásticos e elásticos são retirados de seu estado de inação e impregnados de sentido, como explica
Lygia em “1965: Um mito moderno: A colocação em evidência do instante como nostalgia do cosmo”:
“Uma folha de plástico colocada aberta no chão ainda não é nada. É o homem que penetrando-a, a cria e a
transforma”. (id., p.115).
Os objetos eram despojados e reduzidos à sua essência, procurando valorizar as propriedades da
matéria (textura, opacidade, transparência, dureza...), a percepção das estruturas geradas na relação corpoa-corpo e para dar asas à imaginação, servindo à fantasia do homem, que redescobre a possibilidade de
criar novas formas e novas significações, podendo transitar, sem barreiras, entre o imaginado e o vivido.
Suspendendo o uso da palavra, utiliza seus “objetos relacionais”, maleáveis e conformáveis ao toque, para
ressuscitar no paciente sensações arcaicas carregadas afetivamente. Esse contato, a temperatura, o peso, a
textura e sonoridade do objeto, trazem à lembrança as primeiras relações do paciente com o environment,
onde Lygia explica que as sensações são vividas no corpo, no agora, sendo então trabalhadas nesse
mesmo local.
É justamente na relação estabelecida com a fantasia do sujeito que o “objeto relacional” se define.
Desse modo, ele não provoca uma vivência específica, pois sua significação depende da qualidade do
contato corporal estabelecido entre corpo e objeto. A cada toque é ressemantizado, é fonte inesgotável de
sensações vagas, porém bastante carregadas emocionalmente, que se individuam segundo as
particularidades experienciadas a cada relação. O mesmo objeto pode apresentar significados diferentes
para sujeitos diferentes ou para um mesmo sujeito em momentos diferentes. É uma relação entre dois
mundos: interno e externo, mediada pelos sentidos.
Com os “objetos relacionais” Lygia rastreava o corpo de seu cliente, escolhendo entre seus
instrumentos qual seria o mais propício, em função de suas percepções. Ao deparar-se com essas marcas
traumáticas “as qualidades físicas do objeto traziam à tona, como um imã, a memória da ferida, o que
convocava a família inteira de fantasmas a ela associada” – segundo Rolnik (2006, p. 17). O próximo
passo era, portanto, permitir que o corpo expelisse-os, desobstruindo a passagem do fluxo vital
justamente naquele ponto. Esse procedimento tinha por objetivo recuperar a receptividade do corpo
vibrátil (que absorve todas as forças que o afetam, os elementos de sua tessitura, marcas de sensações que
irão compor sua memória corporal), e reinstalar sua capacidade de ser fecundado pelo mundo ao seu
redor. Ao tratar essas ‘feridas’ por meio de um “exorcismo afetivo dos fantasmas a elas associados”
(Rolnik, 2006, p. 20), agrega-se, sem sombras de dúvidas, uma vocação terapêutica. A “Estruturação do
Self” operava no corpo e com o corpo, num processo corpo-a-corpo entre Lygia e seu cliente, no
momento em que está sendo vivido, mediado pelos “objetos relacionais”, recorrendo poucas vezes ao
registro verbal. Como escreve a própria artista: “em meu trabalho aflora a ‘memória do corpo’: [...] as
sensações são trazidas, revividas e transformadas no local do corpo, através do objeto relacional ou do
toque direto das minhas mãos”. (apud Rolnik, 2006, p.18). Fabbrini diz sobre a reintegração do self:
“é a recuperação da unidade da imagem do corpo: se há resistência do paciente à terapia, a
mão da mediadora realinha com toques alisadores toda a continuidade de seu contorno
devolvendo-lhe a densidade de seu interior (a plenitude de suas vivências); estes contatos
reescrevem seu corpo, agora sem rasuras ou intermitências, possibilitando-lhe interagir
com o mundo externo, sem o risco da desfiadura de seus limites. A linha divisória, uma vez
restaurada, relaciona-se com o espaço circundante integrando-se a novas composições,
afastando deste modo o perigo da desfiguração do self”. (Fabbrini, 1994, p. 202).
No processo terapêutico interessava a fantasmática do corpo, “a memória silenciosa que o corpo
carrega, plena de sensações corpóreas que não se tornaram palavras”. (Carneiro, 2004, p. 61). Lygia
defendia que só o silêncio ou o som desarticulado podia reavivar a memória do corpo; é o corpo do
paciente que “abre” o “espaço para a palavra” conforme disse Lygia ao Jornal do Brasil em 21/09/1974.
(apud Fabbrini, 1994, p. 215). A palavra só é usada ao final da terapia, se necessário: caso a pessoa queira
expressar verbalmente imagens, sensações experienciadas fora ou dentro da sessão, ou se esta notou
modificações em seu comportamento no mundo real.
Os “objetos relacionais” visavam reencontrar o “status unitário” da personalidade, necessário para
um viver criativo; para isso procuram realizar recorrentemente experiências de projeção e introjeção. A
eliminação física do objeto não invalida a prática e nem a experiência, justamente pela presença da
mediadora, que o aplicou, e também, pelo registro da vivência, instalam-se na memória corporal do
sujeito fatores que restituem a relação dialética entre a realidade psíquica e o mundo exterior.
Nos exercícios de percepção propostos por Lygia o cliente é incitado a uma atividade que não o
lança apenas à experiência, mas a um exercício de percepção. Nestas atividades o indivíduo percebe-se na
sua individualidade e, ao mesmo tempo, na sua generalidade (que é todo humano); é neste sentido micro,
(pois particular) e macro (pois é de todos os homens - da ordem deste eu como humano). Experienciando
a tensão entre estes dois pólos pode perceber que possui uma identidade de ordem humana e que será, a
partir dela, que estabelecerá uma relação, com os outros, com os objetos e consigo mesmo. Assim,
durante essa vivência, pode adquirir consciência deste eu que se altera, que tem uma forma dinâmica e
relacional com o seu meio. Pode estabelecer-se um exercício de percepção de tal forma que possibilite
uma experiência da qual nasça tanto a consciência do eu quanto a do eu em relação (como agente e em
processo), que acaba por resultar na atribuição de sentido verdadeiro à vida, às construções, projetos e
perspectivas. Dessa maneira, na interação com os objetos, poderia descobrir o ritmo vital, que direciona
movimentos corporais, em relação com a alteridade. Para que isto ocorra, durante o processo, existem
algumas condições que funcionam como pressupostos ao processo: 1)Vulnerabilidade, ou seja, a pessoa
fica frágil em relação ao meio, numa situação de se sentir indefeso e vulnerável ao que está ao redor. Esta
seria a ordem definida como Microsensorial, a do sujeito em exposição ao meio. 2)Plasticidade, ou seja, a
pré-disposição a diversas estimulações. Deve haver a vontade e a entrega à experiência, não
condicionando-a ou limitando-a, mas deve haver aceitação de experienciar diversas estimulações. Isto se
relaciona ao desejo do sujeito de estar em processo, predisposto a mudanças de forma flexível
(plasticamente). 3)Tolerância. Esta representaria a ordem do relacional, saber-se amorfo, massa que aceita
e se molda às formas impregnadas para deste contato deixar surgir uma nova constituição e novas formas.
Entregue desta maneira à interação com os objetos relacionais o cliente poderia por decorrência
tomar consciência de seus atos cotidianos, percebendo–se ao mesmo tempo como individual e coletivo,
transformando-se em função desta percepção.
Relação Propositora-cliente7
Em 1968 Lygia substitui a palavra artista por “propositor”, conceituando da seguinte forma:
“Somos os propositores: somos o molde; a vocês cabe o sopro, no interior desse molde: o
sentido de nossa existência. Somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não
existimos; estamos a vosso dispor. Somos os propositores: enterramos a obra de arte como
7
É importante notar as diferentes nomenclaturas usadas por Lygia Clark, pela Gestalt-Terapia e pela Arteterapia. A primeira
utiliza o termo cliente, assim como a Gestalt-Terapia, e na Arteterapia é utilizado os termos sujeito ou paciente.
tal e solicitamos a vocês para que o pensamento viva pela ação. Somos os propositores: não
lhe propomos nem o passado nem o futuro mas o agora”. (apud Milliet, 1992, p.155).
Com uma postura estimuladora e não autoritária Lygia norteia suas proposições. Não adotava uma
determinada teoria, estava em concordância com as correntes que questionavam ou se opunham à
psiquiatria clássica (eletrochoques)8 e se aproximava aos questionamentos da psicanálise e a
fenomenologia (Gestalt); mas afirmava que se apropriava dessas teorias de maneira parcial ou análoga,
procurando extrapolar estas conceituações com discussões mais contemporâneas.9
Uma vez que Lygia propõe o trabalho como terapêutico, sua presença se faz imprescindível
durante todo o processo, acompanhando e conduzindo-o – a propositora torna-se elemento constitutivo do
processo; sobre isso, afirmou, na edição original dos “Objetos Relacionais”: “na realidade eu trabalho
com dois suportes: um é o objeto e eu sou o outro” (apud Rolnik, 2006, p.20). É importante estabelecer-se
entre o mediador e o paciente uma relação genuína, análoga à existente entre uma boa mãe e seu filho.
Estando o mediador engajado na relação, fica mais fácil perceber as necessidades fundamentais do
sujeito, sendo vivenciadas através do contato com o corpo e não da interpretação analítica clássica. Tais
experiências acontecem no aqui e agora, através de sensações corpóreas; passado, presente e futuro
fundem-se num presente ilimitado.
Considerações finais
É a partir do século XX que a arte expande em seus valores: a atividade do artista plástico passa
então a invadir ou inventar espaços - espaços capazes de transmutar o cotidiano, permitindo experiências
paralelas inumeráveis. É conhecimento que envolve uma prática composta de materiais e sensações.
A proposta de Lygia aflora nos idos dos anos 1960 e 1970, período onde terapias de gênero
parecido começam a surgir. A grande diferença reside no uso dos “objetos relacionais” e à atmosfera
singular que eles ajudavam a criar. Sobre seu trabalho Favaretto comenta: “desaparecem a pintura e o
objeto, talvez a arte; surgem experiências em que confluem arte, psicanálise, expressão corporal, teatro –
nenhuma delas em especial, pois o interesse está no que acontece nas intersecções, nos atos e processos
de investimento do desejo”. (apud Fabrinni, 1994, p.7).
Seu trabalho mobiliza recursos internos para a sobrevivência, é alerta para o que acontece fora e
também para o que se passa por dentro. Corpo e mente indissociados são utilizados para captar,
comunicar, ligar, soltar, agir, com o intuito de articular dentro e fora, homem e mundo. Com relação à sua
8
Ver “História da Loucura” - Foucault.
Mesmo não se atendo a um único referencial teórico, que facilitaria a precisão dos termos, Lygia foi capaz de incorporar às
suas documentações de suas experiências analíticas, conceitos advindos da psicanálise Freudiana, Melanie Klein, da
esquizoanálise de Deleuze e Guattari ou da psicologia de Winnicott.
9
produção sensorial Mário Pedrosa comenta que Lygia adere à antiarte, recusando a obra acabada que é
sujeita à contemplação, propondo o corpo-expressão, que, sendo aprofundado, passa à prática terapêutica,
em total coerência.
Nas proposições Clarkianas é impossível a repetição porque nada é previsto, tudo é improvisado.
Esta pode surgir decorrente de um sonho, de um acontecimento, de um filme ou mesmo de uma idéia que
lhe vem à cabeça na hora, no contato com o grupo. É o que Artaud fala em seus escritos10: “Nada de
espetáculo de representação, uma obra deve mudar toda noite, é necessário que a obra mude”. (apud
Milliet, 1992, p.117). Artaud e Lygia afirmam a importância do aqui agora, da presença genuína no ato,
sendo que o primeiro afirma: “a experiência se vive no instante”, e que “tudo se passa como se hoje o
homem pudesse captar um fragmento de tempo suspenso, como se toda uma eternidade habitasse no ato
de participação”. (Milliet, 1992, p.117). 11
Em suma sua técnica terapêutica consiste em fazer viver, num contexto regressivo, o que ficou
gravado na “memória do corpo”. Sendo assim utiliza-se de estímulos sensoriais, e não à verbalização,
para trabalhar com conteúdos arcaicos que foram registrados em nível sensorial nas primeiras etapas de
vida, uma fase primitiva, anterior à aquisição da linguagem. Lida com materiais brutos, que surgem na
infância do indivíduo e que ressurgem na fantasia do inconsciente e na atuação fantasmática, que, no
decorrer do processo, da experimentação, são nomeados, digeridos, e integrados à psique do indivíduo, no
desejo de recuperar a unicidade perdida. Em suas proposições Lygia integra o pensar, o sentir e o fazer.
Nessa relação com o objeto o homem adquire recursos para a manutenção de sua existência, a partir das
suas necessidades naquele determinado momento.
Nada somos a não ser nosso próprio corpo, nossa carne... Matéria que atua, sente, movimenta-se e
contagia outros corpos. O corpo é também a morada da emotividade. Constitui o lugar do “eu” corporal segundo Pain e Jarreau (1996) – que é a primeira imagem de identificação do sujeito com ele mesmo, é
por intermédio de seu corpo com ele mesmo, e depois com o ambiente que o cerca, que este atesta sua
corporeidade na infância. O sujeito é seu corpo não somente na forma como se apresenta, mas também é
eficaz, é um corpo que o obedece, quando se quer algo. Dessa forma, afirmam as autoras que: “toda
representação assinala, ao mesmo tempo, um eu - proprietário (do corpo enquanto causa) e um eu - autor
(da obra enquanto efeito)”. (id., p. 54).
Lygia, assim como os Gestaltistas, encoraja a exploração através da ativação sensório-motora;
acreditando ser a busca pela solução dos problemas internos de cada um. A prática terapêutica ajuda a
dissolver conflitos internos, possibilitando a expansão da awareness e a liberação de energia que era
detida nessas situações mal-resolvidas, trazendo-a para o aqui-agora da relação. Tanto a Gestalt quanto a
10
11
A. Artaud, apud C. Willer (org.), em Os escritos de Antonin Artaud, Porto Alegre, 1983, p.77.
A. Artaud, apud Teixeira Coelho, Artaud, São Paulo, 1982, p.94
Arteterapia, e também Lygia, são contrárias a “qualquer pressuposto que não leve em consideração o
momento presente e o indivíduo, único, com todo seu mundo fenomenológico singular”. (Bonante e
Kiyan, 2006, p. 20). Todos os três se propõem a lidar com aspectos sufocados do inconsciente utilizandose, para tal feito, materiais de arte, para que sejam construídos imagens, movimentos e ações que
permitam a redescoberta das necessidades e potencialidades individuais. Através dela o cliente aprende e
toma conhecimento da existência de conteúdos antes desconsiderados, (podendo entrar em contato com
seus conflitos criativamente, organizando-os quando expressados, visando um equilíbrio de sua
personalidade), produzindo insights, integrando assim seu passado no presente, desejo e realidade como
um projeto de futuro.
Lygia propunha a reinvenção do mundo e de si mesmo, o tornar-se outro. Sem reduzir o corpo à
“obra de arte”. Lygia procurou fazê-lo “viver a arte”. Essa mudança ocorre justamente “quando uma
pessoa se torna o que é, não quando tenta converter-se no que não é. A mudança não ocorre através de
uma tentativa coercitiva por parte do indivíduo ou de uma outra pessoa para mudá-lo, mas acontece se
dedicarmos tempo e esforço a ser o que somos – a estarmos plenamente investidos em nossas posições
correntes”. (Fagan e Shepherd, 1975, p.110).
Lygia utilizava seus “objetos relacionais” como porta-vozes dos conflitos internos do ser humano.
Na interação com o meio e com esses objetos o homem era capaz de solucioná-los, transformando a si
mesmo e ao seu entorno. Nessa dança ele integrava, compreendia e vivenciava aspectos desses dois
mundos, o dentro e o fora, concomitantemente. Conforme Andrade (2000, p. 17) essa expressão ou
mesmo a arte “passa a ser um instrumento, técnico e conceptual, de um método de trabalho, ao combinar
o fazer arte, e expressar-se, o uso de materiais plásticos e outras formas de expressão a um objetivo
educacional ou terapêutico”. Sendo expressão, sendo arte, possui função simbólica, permite ao homem
expressar e perceber significados pertinentes à sua vida ao estabelecer uma relação profunda com o
mundo. A arte revela o homem no mundo.
Acreditamos que, mesmo sem utilizar-se de um referencial teórico em particular, Lygia Clark, em
suas proposições expressivas, dialogava francamente com os pressupostos Gestálticos e também com a
Arteterapia. Enfatizava a importância no vivido, no aqui e agora, na relação entre terapeuta-cliente, no
ambiente físico acolhedor, nos sentimentos despertados, no respeito ao outro... Lygia sabia da
singularidade de cada ser humano posto à sua frente, sempre mergulhada no processo, mostrava-se
extremamente competente para propor e manusear seus “objetos relacionais” – ferramentas que se
mostraram singulares durante toda sua prática terapêutica, e mesmo na história de práticas
Arteterapêuticas. Interessante notar como as palavras de Mario de Andrade sintetizam claramente o
trabalho de Lygia Clark: “O importante não é ficar, é viver”.
Bibliografia
ANDRADE, Liomar Quinto de. Terapias Expressivas: arte-terapia, arte-educação, terapia- artística.
São Paulo: Vector, 2000.
BONANTE, Ricardo; KIYAN, Ana Maria. (Org.). Arte como espelho: experimentos em Arteterapia
Gestáltica. São Paulo: Altana, 2006.
CARNEIRO, Beatriz Scigliano. Relâmpagos com claror – Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como
arte. São Paulo: Imaginário: Fapesp, 2004.
CIORNAI, Selma. (Org). Percursos em Arteterapia: arteterapia gestáltica, arte em psicoterapia,
supervisão em arteterapia. São Paulo: Summus, 2004.
FABBRINI, Ricardo Nascimento. O Espaço de Lygia Clark. São Paulo: Atlas, 1994.
FAGAN, Joen; SHEPHERD, Irma Lee. (Org.). Gestalt-Terapia: Teoria, técnicas e aplicações. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1975.
JARREAU, Gladys; PAIN, Sara. Teoria e técnica da arteterapia: a compreensão do sujeito. Porto
Alegre: Artes Médicas, 2001.
MILLIET, Maria Alice. Lygia Clark – Obra e Trajeto. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1992.
RODRIGUES, Hugo Elidio. Introdução à Gestalt-Terapia: conversando sobre os fundamentos da
abordagem gestáltica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
Catálogos
ROLNIK, Suley Corinne Diserens, curadoria Lygia Clark – da obra ao acontecimento. Somos o
molde. A você cabe o sopro. Catálogo publicado por ocasião da exposição “Lygia Clark – da obra ao
acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro”, organizada pelo Musée dês Beaux-Arts de Nantes,
França e pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil, com a colaboração da Associação Cultural “O
Mundo de Lygia Clark”.
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