Trabalho de campo como prática dialógica: aprendendo a mambear com Don Ángel Ortiz:~ Edmundo Pereira* * "Raymond Firth sobre Pa Fenuatata, Robert Lowie sobre Jim Carpenter -uma longa lista de reconhecidos antropólogos descreveram os "etnógrafos" indígenas com quem eles dividiram, em algum grau, uma visáo distanciada, analítica e mesmo ironica dos costumes" (Clifford, 1998:53). "Assim estou lhe narrando. Aí veja voce como vai ordenar depois. Sim. E náo me fa~a dizer: Edmundo, por que voce bagun~ou isso?" (Don Ángel Ortiz, mambeadero de sua casa, San Rafael, rio Caraparaná, 02.03.2000). Bachelard (1996:307) coloca que "a ciencia contemporanea é cada vez mais urna reflexáo sobre a reflexáo". No caso da disciplina antropológica, esse movimento tem levado, sobretudo nas últimas tres décadas, a questionamentos e revisóes metodológicos e políticos. Em Turner (1986), ternos algumas dessas Doutorando, PPGAS-Museu NacionalJUFRJ, Brasil Email: [email protected] Agradecimentos a Juan Álvaro Echeverri e demais membros do Imani (Instituto Amazónico de Investigaciones - Universidad Nacional de Colombia, Sede Leticia), e a Marta Pabón (Oficina de Asuntos Indígenas) pela acolhida em Leticia; e a Don Ángel Ortiz, Don Gregorio Gaike, Luis Aberlardo Mefitofe e Abelardo Palomares, pela acolhida e permissáo de permanencia em San Rafael, rio Caraparaná, El Encanto, departamento do Amazonas. 479 Edmundo Pereira questóes levantadas através da no<;:ao de experiencia, especialmente no que concerne a subjetividade do pesquisador e as condi<;:óesde produ<;:ao dentro das quais o trabalho de pesquisa antropológica se realiza: "Of aH the human sciences and studies anthropology is the most deeply rooted in the social and subjective experience of the inquirer". Para Kuper (1992:1), em introdu<;:ao a reuniao de artigos dialogando com questóes similares as de Turner, "the problem facing the social anthropologist is to reconcile at sorne level the experiences and conceptualizations of actor and observer". Através da explicita<;:ao dessas experiencias, considerar para o exercício da análise a subjetividade do "observador", sua nao neutralidade política, e o ponto de vista nativo, "what the natives think" (idem). Tomadas as especificidades das tendencias teóricas em que se tem organizado a disciplina na atualidade, estas teriam como desafio comum confrontar "the modeIs current in the social sciences with the experiences and models of our subjects, while insisting that this should be a two-way process" (idem: 14). Já em Malinowski (1984 [1922]: 18), ternos a preocupa<;:ao em definir o trabalho do antropólogo e explicitar parte das "tribula<;:óes" por que este passa para "atingir o significado intrínseco da vida tribal": ''A meu ver, um trabalho etnográfico só terá valor científico se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observa<;:ao direta e das declara<;:óes e interpreta<;:óes nativas e, de outro, as inferencias do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intui<;:ao psicológica" . Acompanhando os exercícios de contextualiza<;:ao sócio-histórica da obra do polones radicado na Inglaterra apresentados por autores como Leach (1984), StockingJr. (1991) e Clifford (1998), ternos enfatizado, por um lado, o ambiente academico e social em que é publicado Argonautas do Pacífico Ocidental; por outro, a necessidade do pesquisador em diferenciar a identidade do antropólogo frente a do missionário e a do administrador -também produtores de conhecimento sobre as popula<;:óes da Nova Guiné-, o que acarreta posturas políticas e metodológicas. Stocking Jr. (1991: 63) coloca o polones como sendo um dos "archetypes from the Dreamtime of Anthropology", especificamente da figura do "Etnógrafo", "the lone Ethnographer". Sobre a introdu<;:ao de Argonautas, coloca (idem: 11) que esta nao era apenas "a methodological prescription; in the terms of Malinowski's later anthropological theory, it was a "mythic charter" for what was to become the central ritual of social anthropology". Este fato, se por um lado trás variáveis importantes que nos permitam "distinguir claramente" o processo de constru<;:ao da obra de Malinowski; por outro, nao invalidam sua contribui<;:ao para a consolida<;:ao da especificidade metodológica e teórica da disciplina: "his ethnographic work remains a landmark in the history of anthropology-one of the relatively few rich lodes of ethnographic material that have been and wiH long be the foci of continuing theoretical discussion" (idem: 63). 480 Trabalho de campo como prática dialógica: aprendendo a mambear com Don Ángel Ortiz Conforme propóe Bourdieu (1968: 136), dentro do que chama de "sociologia da cria~áo intelectual", "o intelectual é situado histórica e socialmente". Seu trabalho "se realiza através de urna infinidade de rela~óes sociais particulares, rela~óes entre o editor e o crítico, entre o autor e o crítico, entre autores, etc." (idem: 124). Situar histórica e socialmente o processo de produ~áo do conhecimento antropológico teI\l sido um dos movimentos internos el disciplina no exercício de revisóes e supera~óes político-metodológicas, materializadas em coloca~óes com as de Clifford (1998: 94): da necessidade para o antropólogo de "situar seu próprio modo de produ~áo no contexto da inven~áo cultural e da mudan~a histórica". Nessa mesma dire~áo, colocam os Comaroff (1992: 9) sobre o trabalho etnográfico: "It is a historically situated mode of understanding historically situated contexts, each with its own, perhaps radically different, kinds of subjects, objects and objectives". Clifford (1998) enfatiza que para o "historiador do trabalho de campo", árdua é a tarefa de composi~áo dessa historiografia, na maioria das vezes informa~óes dessa natureza estando restringidas a breves introdu~óes e notas de pé de página. Pels & Salemink (1994: 1) propóe para o desenvolvimento de urna história da antropologia a constitui~áo de "contextual histories of ethnographic practices" como forma de explicita~áo dos processos de constru~áo da pesquisa etnográfica, de suas implica~óes metodológicas, éticas e políticas. Mas de que contexto, de que situa~óes estamos falando? Os Comaroff (1992: 11) enfatizam que os contextos náo estáo simplesmente Id: "They, too, have to be constructed analytically in light of our assumptions about the social world". Pensando a partir do caso ticuna, Oliveira (1999: v) propóe diante da complexidade das situa~óes etnográficas vividas na contemporaneidade amazónica: ''Além dos condicionantes coletivos e de época, cada pesquisador constrói e negocia suas condi~óes individuais de pesquisa, o que recomenda que a situa~áo etnográfica seja equiparada ao laboratório nas ciencias exatas e descrita com extremo rigor e aten~áo". Esse rigor tanto cabe para o trabalho em campo quanto para o campo onde esse trabalho come~a na maioria das vezes: as bibliotecas, os centros de documenta~áo, os arquivos de diversas naturezas. Nesse ambiente, se compóem os primeiros esbo~os dos "pontos no mapa" onde se desenvolveráo pesquisas de campo, se organizam os primeiros dados que compóe a imagina~áo etnográfica (Comaroff & Comaroff, 1992) que em campo será reavaliada, reelaborada, complexificada diante da realidade experenciada. Objetivando o que Malinowski coloca como "permitir distinguir claramente" o desenvolvimento do que Clifford (1998: 79) chama do "processo etnográfico", apresento neste trabalho parte do processo de constru~áo da pesquisa de campo realizada de janeiro el mar~o de 2000 (Pereira, 2000), especialmente o período passado em San Rafael, urna das quatro comunidades uitoto murui -termo 481 Edmundo Pereira local-1 do rio Caraparaná, distrito de El Encanto, departamento do Amazonas, sul da Colombia. De como optei pela regiáo como locus de estudo; de como conheci Don Ángel Ortiz, cacique zonal do Resguardo Predio Putumayo e de como acabaria iniciando aprendizado na etiqueta e nos processos de transmissáo de conhecimento associados ao preparo e consumo ritual da coca (Erthroxylon coca) e do tabaco (Nicotiana spp.), instrumentos fundamentais nas dinamicas das conversas noturnas no espa<r0 em estes se realizam, denominado em espanhol como mambeadero ou coqueadero2• Objetivo iniciar urna historiciza<ráo básica do processo etnográfico vivido pensando-o em termos de um conjunto de rela<róes que se foram construindo, apresentando alguns dos atores e contextos envolvidos enfatizando, como o propóe Stocking ]r. (1991: 5), "the ways in which these situational interactions conditioned the specific ethnographic knowledge that emerged". Aprendendo a mambear com Don Ángel Ortiz Um elemento chave de distin<ráo do grupo usualmente conhecido como uitoto3, e dos demais Pueblos del Centro4, com seus vizinhos indígenas é o consumo ritual de tabaco em pasta mesclado a sal vegetal denominado em espanhol ambil (yera, em uitoto). Em torno da ingestáo do ambil e do preparado das folhas de coca secas, piladas e peneiradas, denominado em espanhol mambe (jiibie, em uitoto), articulam-se e desenvolvem-se modos específicos de preparo das substancias e de práticas e conceitualiza<róes a estes associadas. Ao fim de cada dia, em lugar específico usualmente conhecido como mambeadero (nos dialetos uitoto denominado como jiibibiriS [Gasché, 1972: 187; Pereira, 2000)), reunem-se, 2 3 4 5 Sao elas: Tercera India, San Rafael, San José e Puerto Tejada. Na foz do rio Caraparaná, encontram-se a administra~áo distrital de El Encanto, urna base do exército e da marinha, além de um pequeno comércio de colonos. Neste trabalho, me aterei especialmente nas dinamicas relacionadas a coca, urna vez terem sido estas as mais desenvolvidas no mambeadero onde iniciei meu aprendizado. Usualmente conhecido corno uitoto (que em língua carib significa inimigo), entre as formas de auto-designa~áo dos membros do grupo, estáo as de murui o~ muinane, de acordo com suas regióes de origem, respectivamente os rios Caraparaná e Igaraparaná. Pueblos del Centro é a auto-denornina~áo utilizada pelos grupos indígenas que habitam a regiáo entre os médios rios Caquetá e Putumayo (uitoto, ocaina, nonuya, bora, miranha, muinane e andoque), área oficializada pelo governo colombiano desde 1988 corno sendo de propriedade indígena constituindo o Resguardo Predio Putumayo. Ainda que sejarn lingüísticamente diferentes, partilham elementos culturais que os tornam distintos de grupos indígenas vizinhos. Urna outra denornina~áo assumida pelos grupos é a de Gente de Ambil (Echeverri, 1997). i: vogal alta central que se pronuncia colocando a língua na posi~áo de"u" e os lábios na posi~áo de"i" (Candre K. & Echeverri, 1993: xxv). 482 Trabalho de campo como prática dialógica: aprendendo a mambear com Don Angel Ortiz diariamente, alguns homens para preparar, dividir e consumir coca conversando ritualmente. "A coca é para charlar", frase de uso corrente no mambeadero, pautada, entre outras idéias, na origem da coca das cinzas do pescoc;:ode Buinaima, personificac;:áo do criador na terra, quando este é atingido por um raio (Pereira, 2000). Conversando, aprende-se e dividi-se conhecimento, conhecimento chamado em espanhol de tradiciQnal, conhecimento que abrange desde o tratamento de certas doenc;:as com as plantas e as palavras a este associadas, até o comentário detalhado sobre certas passagens específicas de mitos que guardam instrumentos importantes para se prosseguir com certos aprendizados. Conversando, também se comenta sobre os acontecimentos vividos na comunidade, também organizam-se as tarefas para odia seguinte. Conversando, "esfria-se" o mundo, as relac;:óessociais que váo desde o agregado familiar até os grupos indígenas vizinhos e os náo-índios. Dentro da bibliografia antropológica dedicada aos uitoto, o consumo da coca é apresentado por Steward (1948: 579), em sec;:áointitulada "narcotics and beverages", da seguinte forma: "Coca, grown locally by these tribes [witotoan tribes], is toasted, pulverized, and taken with leaf ashes. Eaten in lieu of food, it has a sustaining effect". No período em que o Handbook of South American Indians é organizado, muito poucos eram os dados advindos de trabalhos de pesquisa de campo intensiva. A coca náo substitui a comida nem táo pouco é "comida" ela mesma. Mambear é o termo de uso genérico utilizado para designar tanto o ato de consumo em si -de levar a boca o mambe, a coca já preparada, colocando-o em suas laterais, na altura das glandulas salivares, deixando-a dissolver lentamente- quanto todo o conhecimento e regras de conduta a coca associados. Após suas jornadas diárias de trabalho, após já estarem devidamente alimentados, alguns dos homens da comunidade6 reunem-se, no início da noite, para preparar e dividir a coca, para aprenderem o conjunto de conhecimentos ao qual Don Ángel Ortiz, cacique zonal do Predio Putumayo, chamava de jiibie nauai. Nauai é traduzível por "palavra verdadeira, palavra certa" (Preuss, 1994) . Urna traduc;:áo possível para o termo jiibie nauai seria "Palavra de Coca", que em espanhol era também denominada por Don Ángel de "Doutrina Verdadeira": "como um estatuto, por que é parte da lei. É um critério, urna disciplina". Iniciei meu aprendizado na prática de mambear em San Rafael, um dos quatro aldeamentos uitoto do rio Caraparaná, distrito de El Encanto, departamento do Amazonas, sul da Colombia. Os uitoto ocupam, na Colombia, sobretudo, a regiáo entre os médios rios Caquetá e Putumayo, especificamente os rios Caraparan á e Igaraparaná e a regiáo de Araracuara, rio Caquetá. San Rafael é um dos 6 Comunidade é termo local, de uso corrente, utilizado para referir-se ao aldeamento do qual se faz parte. 483 Edmundo Pereira maiores aldeamentos uitoto da regiao com certa de 280 habitantes? Por estar ali sediado um pequeno hospital, único de toda a regiao do Predio Putumayo8, e um Internato Capuchinho, freqüentado por crianc;:asde todo o Predio, San Rafael é ponto estratégico na rede de relac;:áesque comunica os aldeamentos indígenas da regiao. Rio acima, está San José, outro aldeamento uitoto, próximo ao qual se encontra caminho por terra (trocha) até La Chorrera, principal aldeamento do rio Igaraparaná. Enfatiza Echeverri (1990: 27), quando de sua passagem por San Rafael: "No existe ninguna maloca en San Rafael, pero si un mambeadero en casa de Ángel Ortiz donde asisten jóvenes y algunos ancianos". Foi com Juan Álvaro Echeverri, antropólogo colombiano membro do Imani (Instituto Amazónico de Investigaciones - Universidad Nacional, Sede Leticia), com sua ajuda e incentivo, que organizei o que viria a ser o trabalho desenvolvido no Caraparaná. Leticia Conheci Juan Álvaro Echeverri em Letícia, na sede do Imani, no início de meu trabalho de campo. Nesse período, dediquei-me a estreitar relac;:áes com alguns dos pesquisadores do Imani; a pesquisa de fontes bibliográficas na biblioteca da instituic;:ao e em acervos pessoais de alguns de seus membros; ao mapeamento de instituic;:áes estatais, religiosas e civis que travavam relac;:áes com as populac;:áes indígenas da regiao; e a algumas visitas a alguns dos assentamentos indígenas próximos a cidade. Após algumas conversas, Echeverri sugeriu como um possívellocus de pesquisa o rio Caraparaná. Este rio, enfatizou, era pouco conhecido etnograficamente em relac;:aoao Igaraparaná, tendo ali sido realizadas pesquisas antropológicas apenas nos anos 1970. Sugeriu também que procurasse por Don Ángel Ortiz, cacique zonal do Predio, conhecedor das tradiciones do grupo indígena, acostumado a prática de pesquisa antropológica. Como coloca Barth 7 8 No período de atua"áo das empresas extrativistas do caucho (1900-1930), contingentes do grupo foram levados para a Peru, hoje estando estabelecidos, principalmente, nos rios Ampiyacu e Napo. Alguns desses desceriam ainda o rio Amazonas estabelecendo-se próximo a cidade de Letícia, na regiáo do Trapézio colombiano. • O Resguardo Predio Putumayo abarca cinco corregimientos do departamento do Amazonas -Puerto Alegría, El Encanto, Puerto Santander, Puerto Arica e La Chorrera-, sul da Amazonia colombiana, em urna áera de 5.818.702 hectares. Sua popula"áo era, no início dos anos 90, de pouco mais de 4000 pessoas (3.250 uitoto, 150 miranha, 400 bora, 220 andoque, 150 ocaina, 250 nonuya, e popula"áo muinane desconhecida, mas pequena). Além dos "Povos do Centro", aí também habitam pequenas grupos ou famílias ticuna, barasana, macuna, inga, cabiyari e yuri (carabayo). Essa popula"áo é distribuida em basicamente tres regióes: rio Caquetá, com 18 assentamentos; o rio Igaraparaná, com 34 assentamentos, e os rios Putumayo e Caraparaná com 25 assentamentos (Dados em: Colombia, 1997; Domínguez, c., 1999; Echeverri, 1997). 484 Trabalho de campo como prática dialógica: aprendendo a mambear com Don Ángel Ortiz (2000b), O "problema da representatividade" coloca-se constantemente para o pesquisador em campo na constitui~ao e organiza~ao de seus dados, da relevancia de cada um destes para um suposto sistema geral que os abarca: como assegurar, por ejemplo, "a nao ocorrencia de urna generaliza~ao ou proje~ao imprudente sobre outras comunidades da regiao a partir de algo que tal vez fosse urna características idiossin<;rásicas ou singular de urna determinada aldeia"? Quem sao esses "etnógrafos indígenas", como o coloca Clifford (1998: 53), com os quais constroe-se o que seria a sociedade, a cultura de um dado grupo humano? Em que medida a presen~a do etnógrafo influi na constru~ao da imagem que será alcan~ada desse grupo? Se nos contextos políticos, como o coloca Landé (1977: xiii), as rela~óes pessoais podem desenrolar "a more important part in the organization of political activity than do organized groups based on shared class identification, occupation, or ideological affinity", nas situa~óes etnográficas experenciadas pelo pesquisador, no desenvolvimento do processo etnográfico, estas sao um dos fundamentos que direcionam seus caminhos. Assim como coloca Landé (xiv-xv) para o contexto de constitui~ao das rela~óes clientelistas, também a rela~ao entre antropólogo e nativo, dentro das especificidades dessa rela~ao, tem entre seus alicerses "the mutual assurance of aid" e "the exchange of favors", a partir destes podendo ser criados movimentos em um aldeamento, por ejmplo, que levem a celebra~ao de festas e rituais ditos "tradicionais". Os Comaroff (1992: 10) salientam, no entanto, que nao basta pensar a constru~ao da pesquisa apenas como urna rela~ao entre o "observador" e o "outro", correndo o risco de transformar a experiencia etnográfica em urna "ethnocentric interview". Esta é perpassada por contextos mais gerais sediados em locais por vezes muito distante de um aldeamento ou de urna praia deserta, sejam os expedientes e prazos universitários, seja a rela~ao do aparato administrativo estatal colombiano com os Uitoto, seja a desconfian~a contemporanea de algumas das organiza~óes políticas indígenas com o trabalho de antropólogos e lingüistas. Juan Álvaro Echeverri, reconhecido como um dos "nomes" (Bourdieu, 1996:186-187) da atualidade da antropologia colombiana amazónica, tem extenso trabalho desenvolvido entre os uitoto, especialmente no rio Igaraparaná e médio Caquetá. Através da leitura de seu trabalho, e de algumas conversas com ele em sua oficina, organizei a pesquisa no rio Caraparaná, aprendendo, entre outras coisas, as primeiras no~óes sobre as dinamicas das conversas noturnas no mambeadero. San Rafael Para desenvolver trabalho de campo em San Rafael, urna das quatro comunidades uitoto murui do rio Caraparaná, corregimiento de El Encanto, afluente da 485 Edmundo Pereira margem esquerda do rio Putumayo, foram necessárias duas reunióes formais de apresenta~áo e pedido de autoriza~áo para permanencia em área: com o gobernador da comunidade, Abelardo Palomares, em San Rafael; e com o do corregimiento de El Encanto, Luis Alberto Menitofe, murui nascido em San Rafael. Foram emitidos dois documentos em que ambas as partes reconheciam comum acordo com rela~áo a minha permanencia, além do próprio Don Ángel que com esta já consentira. Desde a Constitui~áo de 1991, os grupos indígenas colombianos tem controle administrativo sobre seus territórios, desde que de acordo com os "usos y costumbres" -conforme expresso na Constitui~áo- de cada grupo (Rappaport & Dover, 1996). O contexto de negocia~áo entre antropólogos e autoridades indígenas sobre as condi~óes de desenvolvimento de pesquisa em campo, passadas já tres décadas desde os primeiros trabalhos realizados nesse rio (especificamente os de Horacio Calle e Fernando Urbina), mudou bastante, sendo esse personagem já integrado as agencias com as quais o grupo tem contato. Náo é incomum, no contexto geral contemporaneo de pesquisa na regiáo entre os médios rios Caquetá e Putumayo, ainda que por vezes apenas ao nível do discurso -discurso corrente, enfatize-se-, ser figura náo desejada, no mínimo recebida com desconfian~a sob acusa~óes como a de -recorrente- "levar para longe conhecimento do grupo sem deixar nada em troca". Urna das mudan~as significativas que vem ocorrendo dentro das práticas e reflexóes do exercício etnográfico é pensar a rela~áo entre antropólogos e indígenas como de co-autoria do conhecimento daí advindo, de negocia~áo constante nos processos de investiga~áo e de "inven~áo cultural" (Clifford, 1998). Don Ángel Ortiz é um dos filhos, o mais novo, de Benedito Ortiz, cabe~a do grupo que fundaria, na década de 1930, o aldea mento que viria a se chamar, após a chegada de missionários capuchinhos, San Rafael. O período de atua~áo da empresa extrativista do caucho, especificamente a conhecida Casa Arana, tem seu auge com -pouco antes do conflito colombo-peruano (1932) pela delimita~áo da fronteira entre os dois países- o translado for~ado das popula~áo nativas do interflúvio entre os médios rios Caquetá e Putumayo para a margem dire ita deste rio. O Igaraparaná ficara "vazio", conta Don Ángel. Após o conflito, progressivamente iniciar-se-ia a re-ocupa~áo desse rio e a ocupa~áo do Caraparaná. A família de Benedito Ortiz, do clá naimeni, é urna das prime iras a nele chegar. Don Ángel é o cacique zonal de todo o Predio Puiumayo, espécie de cacique dos caciques, autoridad e tradicional máxima. A organiza~áo política dos grupos indígenas habitantes do Resguardo Predio Putumayo sofreu significativas transforma~óes após o período de atua~áo das empresas extrativistas do caucho. No caso dos Pueblos del Centro, habitantes do Predio, esta rearticulou-se em duas instancias com graus de autonomia e complementaridade entre si: o que se passou a chamar de organiza~áo política "tradicional", materializada na figura do cacique (iyaima), e o cabildo, modelo de organiza~áo hispanico, articulado entre 486 Trabalho de campo como prática dialógica: aprendendo a mambear com Don Ángel Ortiz os Pueblos a partir dos anos 1980, dentro de contextos de mobiliza~áo étnica por reconquista de territórios e reconhecimento de identidade. A atua~áo do cacique é basicamente local e sua autoridade fundamenta-se em seu conhecimento da "tradi~áo" do grupo, nas palavras de Don Ángel Ortiz, da "Palavra de Coca", da "Doutrina Verdadeira". Existia no processo de ensinamento de Don Ángel -sempt:e muito bem humorado- urna preocupa~áo com a forma~áo de condutas e valores morais dentro do que traduzia para o espanhol como constituindo essa "Doutrina", esse "conhecimento antigo". Se náo se conhecesse a "Doutrina Verdadeira", salientava, náo se seria capaz de entender corretamente um mito, urna história, o que estes tinham para ensinar: "Um mito é experiencia. Náo é para se fazer como a primeira gera~áo [aimas, gera~áo anterior ao grande dilúvio], mas para aprender que por terem feito o que fizeram fracassaram". A palavra, esta sim, é o instrumento de apaziguamento e cura~áo dos homens e do mundo: "Matando náo se faz nada. Conversando sentado, consertando, se faz tudo. É preciso sentar e conversar para ver como vamos, que devemos fazer, por que estamos assim. Assim podemos construir um mundo melhor", enfatizava Don Ángel. Partindo da leitura de Barth (2000a) para o guru balines, urna leitura possível do papel ocupado por Don Ángel Ortiz, por ele enfatizado como sendo o de um nimairama (traduzível por "homem de conhecimento"), é a de um "educador" (Barth, 2000a). Barth (idem:148), empreendendo um exercício tipológico dentro do que chama de urna sociologia do conhecimento, urna sociologia "das transa~óes envolvendo o conhecimento", procura assim explicitar certas dinamicas de transmissáo e mantenimento de um certo corpus de saberes práticos e conceituais. Tomadas as especificidades de cada um dos casos, assim como para o guru balines, também para o nimairama seu conhecimento só tem valor "se voce ensina a alguém" (idem: 144). Don Ángel era enfático: um nimairama deve ser generoso, por que assim o foi Buinaima, Pai Criador, quando ensinou as dinamicas envolvendo o uso ritual da coca e do tabaco. Além disso, no mambeadero, "nunca é alguém que fala, mas os avós que falam pelo boca de alguém. Quando digo avós, mais do que os avós mesmos, aqueles que nos ensinaram a mambear, estou falando do Criador", enfatizava Don Angel. Essa generosidade náo é apenas retórica, mas atende também ao reconhecimento do esfor~o daquele que chega para perguntar, para aprender. Explicitava: "náo se deve, claro, dar coca a um néscio. É preciso reconhecer o trabalho que se teve. Se aquele que pergunta seguir o que pede a tradi~áo, deve-se responder". Da mesma forma que Barth (idem:150) enfatiza para a rela~áo do guru com aqueles a quem ensina, ainda que de forma menos rígida do que o retrato feito pelo antropólogo noruegues, também no mambeadero os aprendizes sáo incentivados "a desenvolver urna preocupa~áo com seu próprio aprimoramento, assim como um ideal, ou concep~áo de si, permanentemente exigente". Aprender a "Doutrina Verdadeira", a 487 Edmundo Pereira "Palavra da Coca", pressupóe dedica~ao e investimento. Assim como a organiza~ao de bailes (festas rituais), para os envolvidos em tal prática, esta constitui-se em urna carrera de vida inteira, de acumula~ao progressiva de conhecimento. Don Ángel conta que seu canasto -imagem corrente utilizada para referir-se ao conhecimento que se vai acumulando-Ihe foi sendo transmitido desde muito cedo, que foi herdado principalmente de sua avó paterna, Nemencia, e de Kuegajima, anciao que vivera em San Rafael. Sua avó Nemencia era filha de Uruani, espécie de chefe da guerra, posi~ao que o fazia ter contato com gente conhecedora da "religiao uitoto" -palavras de Don Angel-. Sua mae, Maria Note, era filha de ]agiema, que havia sido iyaima do grupo. Além disso, de sua posi~ao genealógica dentro da organiza~ao do conhecimento entre os uitoto, por viajar muito, especialmente entre o rio Igaraparaná e Letícia, "investigou" -termo correntemente usado por Don Ángel- mais sobre o mundo da coca e do tabaco visitando outros mambeaderos, tanto uitoto quanto dos demais Pueblos del Centro. Reflexóes como as de Tonkin (1992) apontam para a necessidade de se pensar criticamente, dentro do trabalho com fontes orais, a idéia de "biografia", de "história de vida", nao apenas como retratos de experiencias estritamente individuais. "1 have argued", salienta Tonkin (1992: 131), "that historians are mistaken to argue that testimony comes from an individual as a singular universal"'. "Human beings are not only individual s in this limited sense: to be singular experiencers, their individual consciousness must be socially formed. It is for these reason that they may lie, forget, or misremember as singular individuals and also socially, as part of a pattern", enfatiza (idem). Os Comaroff (1992:26), em crítica ao exercício biográfico pouco rigoroso, colocam-no como "a modernist fantasy about society and selfhood to which everyone is, potentially, in control of his or her destiny in a world made by actions of autonomous agents". Perguntado pelo pesquisador sobre a fonte de seu conhecimento, tra~ando parte de sua genealogia, Don Angel expóe, por um lado, as bases de onde provem seu conhecimento, parte do que fundamenta sua autoridade enquanto conhecedor de sua "tradi~ao", por outro, expóe parte do processo de transmissao de conhecimento entre os uitoto, conhecimento ligado a origem c1anica e as dinamicas que ordenam as conversas noturnas do mambeadero, espa~o público, locus por excelencia do conhecimento mítico-religioso do grupo, mas nao só, também de decisóes políticas e de relacionameñto com as agencias náo-índias, governamentais e nao-governamentais. Urna maneira possível de ler o mambeadero, como o coloca Barth (2000:75) para as reunióes do conselho pathan - estes com suas práticas mais voltadas para as decisóes políticas -, seria a de um espa~o privilegiado para "disseminar de maneira adequada informa~óes que permita m a manuten~ao, ao longo do tempo, de um conjunto compartilhado de valores e percep~óes". O modus operan di dessa dissemina~áo processa-se de diferentes maneiras em diferentes contextos, este ou aquele elemento cultural podendo ser 488 Trabalho de campo como prática dialógica: aprendendo a mambear com Don Ángel Ortiz acionado ou esquecido. No caso do mambeadero, este pode ser pensado, dentro dos termos de Tambiah (1985: 131), como ocupando a "traditionalizing role" dentro do desenvolvimento da organiza~áo social do grupo e do conhecimento por este manejado. Nesse sentido, enfatiza (idem:133) que para os envolvidos em um dado ritual é preciso "aprender a aprender". Mambear, tomado em seu sentido amplo, pode envolver um iniciante em urna gama cada vez mais complexa de con he cimento s, condutas e valores, que se iniciam com saberes bem básicos, tais como tostar e saber oferecer e receber a coca dentro de urna certa etiqueta, de certos preceitos a esta associados. Mambeadero da casa de Don Ángel Orriz, ali presente desde a funda¡¡:áo de San Rafael, no final da década de 1930. Sentados, Hermes Ortiz, filho de Don Ángel, com seus dois filhos. Concretamente, mambear significa ficar sentado aproximadamente 6 horas (aproximadamente das 19:00 a 01:00 h.), todos os dias, mexendo-se o menos possível, falando pouco. O mambeadero de Don Angel ficava embaixo de sua casa. Suas charlas noturnas eram freqüentadas, em geral, por alguns poucos jovens, além de um de seus filhos. Ao contrário das demais comunidades do rio, San Rafael náo possuía maloca, um dos símbolos de tradicionalidade mais acionado e reconhecido entre índios e náo-índios, fato ao qual Don Angel referia-se da seguinte forma: "náo ternos maloca mas ternos conhecimento. Há lugares em que se tem maloca mas náo se tem conhecimento". Mambear significa também participar em alguma das 3 fases de prepara~áo da coca que será servida na ocasiáo como urna das formas de "pagar" ao "dono" do mambeadero por poder estar presente: (1) secar as folhas de coca e queimar as de yarumo, folha acrescentada 489 Edmundo Pereira a coca; (2) pilar a coca e depois a coca já pilada com as cinzas de yarumo; (3) peneirar a coca, servir urna rodada aos presentes a cada quantidade peneirada e dividir, ao final, entre os potes de todos a coca preparada. Dentro da especificidade do processo de instruc;ao nesse espac;o de conversa pública, aprende-se o preparo e uso rituais da coca e do tabaco e da "Palavra" a esse uso articulada. Dentro dessa Palavra, dessa "Palavra de Coca", dessa "Doutrina Verdeira", algumas imagens/ac;óes sao fundamentais, entre elas as de "esfriar" e "adoc;ar", relacionadas ao próprio processo de preparo de coca e tabaco para consumo ao longo dos encontros noturnos. Quando o tabaco é processado virando espessa pasta misturada a sal vegetal, ambil / yera, diz-se que se está "esfriando" o tabaco, que é colhido na natureza "quente". O "calor" é considerado como fonte principal de toda doenc;a. Quanto a coca, quando esta é processada -seca, pilada, misturada com folha de yarumo e peneirada-, assim se a está tornando "doce", para que doces sejam as palavras ao mambear. A Palavra doce trás saúde. Em urna de suas "Palavras de Vida" (rafue), Don Hipólito Kinerai inicia com expressao que Echeverri (1993:93) traduz por "corac;ao pacífico"9. Vm homem de "corac;ao pacífico" é um homem que aprendeu a estar sentado no mambeadero, "who has raised a family, whose wife keeps producing food and increasing life" (Echeverri, 1997: 195). Por isso, seu corac;ao está cheio, por isso fala "heartly and truly" (idem). Através da coca e do tabaco, ressalta Echeverri (idem: 196), "Indian men increase their awareness to stay awake and watch over the development of life. With them [Coca e Tabaco], they advise, they heal, and they speak". Sobre essa prática diária de alguns dos homens de San Rafael, me aterei neste exercício especificamente na parte do que alcancei aprender da etiqueta de regulava as conversas no mambeadero de Don Angel e de alguns preceitos a esta associados. Para Tambiah (1985: 13 8), em ac;óes ritualizadas a etiqueta, urna "regulative etiquette", "orders what is considered as proper communication between persons in equal or asymmetrical statuses". No caso do mambeadero, fui me dando conta, desde o início, da relevancia de entender esta etiqueta sem a qual nao se participa nem se acompanha as dinamicas das conversas noturnas. Pode-se dizer que no processo de construc;ao do trabalho de campo, o tempo deste está diretamente ligado ao tempo do mambeadero, as dinamicas em que certos conhecimentos sao socializados. Como dizia Don Angel em urna de nossas primeiras conversas: "É preciso ter memória forte, por que o que se conversa 9 Em urna de suas falas, Kinerai come~a invocando: Ero káimaki, "cora~áo pacífico". Esa paz significa salud de cuerpo, abundancia de comida, cacería, buen sueño, buen trabajo, buenas relaciones con parientes y con otras personas. La búsqueda de esa tranquilidad es lo que Kinerai llama "Palabra de vida" (Candre Kinerai & Echeverri, 1993:161). 490 Trabalho de campo como prática dialógica: aprendendo a mambear com Don Ángel Ortiz hoje só voltará a ser conversado daqui a muito tempo". Elenco algumas destas etiquetas e idéias a estas associadas apenas como exemplos de práticas sobre as quais se precisa ainda aprofundar: 1. Urna vez que se mambea, nao se deve nunca recusar a coca oferecida. É considerado grande ofen~a. Cada pessoa tem um pote (tarrito) ande a coca é guardada 10. Quando se recebe do pote de alguma pessoa, deve-se consumir, independente de quanto já se tenha na boca. Se se recebe da coca que está sendo preparada na hora, no mambeadero, pode-se botar na boca e da boca no pote pessoal. 2. Quando se chega a um mambeadero, oferece-se coca -por menos que se tenha- aos mais velhos da roda, primeiro para o "dono" deste. Nao é obrigatório oferecer para os demais, mas é de bom tom, pelo menos na primeira vez que se oferece do que se tem, logo que se chega. Urna vez que já se está na roda, só se é obrigado a oferecer ao anciao a quem se está perguntado algo, com quem se está diretamente conversando. 3. Nao se pode jogar a coca que se está consumindo fora. O ideal é mambear até o fimo Se realmente nao se quer mais, deve-se jogar no rio, em água corrente. Se se cospe a coca no chao, os bichos a comedo, e se ficará doente. 4. Se se oferece coca a um anciao, é sinal de que se quer aprender, se quer perguntar algo. Nesse sentido, a coca foi comparada a moeda pelos freqüentadores do mambeadero de Don Ángel: "es nuestra plata". Quando se oferece coca, " Se aquele que pergunta seguir o que pede a tradi~ao" -como já salientado por Don Angel-, um anciao é obrigado a responder. Essa norma é baseada principalmente no fato de assim ter ensinado Buinaima aos homens. Assim como ele nao negou seu conhecimento, assim um "dono" de mambeadero nao pode negá-Io. Considera~óes finais Dentro da rela~ao que iniciei no trabalho de campo em San Rafael com Don Ángel Ortiz, algumas variáveis sao importantes para se entender a natureza do conhecimento que aqui se come~a a explicitar, pontos a serem desenvolvidos posteriormente mas que aqui já sao indicados: o fato de conversarmos em espanhol; a recorrencia do uso de Don Ángel de imagens bíblicas para explicar alguns princípios do universo da coca e do tabaco, enfatizando ele que assim o 10 Em geral, os mais jovens possuíam potes menores do que os dos mais experienres na prática de mambear. 491 Edmundo Pereira fazia para me fazer compreender mais rapidamente; o fato de Don Ángel já ter trabalhado com outros antropólogos, enfatizando ele saber "exatamente o que voce quer". Quando lá cheguei, pensava em concentrar-me especificamente na constituic;áo de urna história do repovoamento do rio Caraparaná a partir dos anos 1930, fim da atuac;áo das empresas do caucho, pouca atenc;áo sendo dada ao caráter ritual do mundo social uitoto. Urna das tendencias de aproximac;áo a realidade sócio-histórica amazónica desenvolvida nas últimas tres décadas tem sido a que Pineda Camacho (1989), para o caso colombiano, e Oliveira (1999), para o brasileiro, chamam de urna "antropologia histórica". Os trabalhos antropológicos desenvolvidos na tríplice fronteira entre Peru, Colómbia e Brasil, dáo cada vez mais atenc;áo, especialmente no caso colombiano, ao que passou a se designar de etnohistória: a organizac;áo de conhecimento histórico sobre os grupos indígenas da regiáo e a compreensáo de um olhar histórico, da construc;áo de urna narrativa histórica, dentro das óticas nativas. Maior atenc;áo também vem sendo dada ao caráter construtivista (in the making, como o coloca Echeverri [1997]) da cultura, das formas de organizac;áo social, enfase em um entendimento de stas como se constituindo em arranjos sociais que respondem aos fatores sócio-históricos e aos contextos de inter-relac;áo nos quais sáo gerados. Nos termos de Barth (1966:2), exercitar a apreensáo náo dos "padróes de regularidade" de urna dada cultura ou sociedade, mas explicitar "what makes the pattern, i.e. certain processes". Foto tirada durante urna de minhas últimas grava~óes com Don Ángel no mambeadero de sua casa. Sob um dos bancos estáo dois gravadores, o do pesquisador e o de Don Ángel. Os dois potes sáo de coca e tabaco. Don Angel, na rede que lhe dei logo que cheguei em San Rafael, procura em livro sobre a re-conquista indígena do Predio Putumayo detalhes cronológicos a partir de pergunta que lhe coloquei. 492 Trabalho de campo como prática dialógica: aprendendo a mambear com Don Ángel Ortiz Malinowski (1984 [1922]: 19) coloca -ainda que a luz da leitura crítica de sua obra possa, hoje, soar (...como um ...) recurso retórico frente a um público leitor que precisava ser convencido da originalidad e e relevancia do método antropológico- o etnógrafo como "um principiante, sem nenhuma experiencia, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar". De fato, se acompanhamos reflexóes como as de Asad (1973) e os Comaroff (1992), vemos que o "etnógrafo solitário" náo chega a urna ilha deserta sem roteiro - nem táo pouco está táo solitário assim -, mas que sua visáo de mundo, seus instrumentos interpretativos, respondem tanto por sua formac;áo profissional específica, quanto pelo repertório de imagens -do qual a disciplina antropológica náo está imune- que ao longo da história do con tato entre o "Ocidente" e o chamado mundo "primitivo", mundo "tradicional", tem sido constituído perpassando campos disciplinares e administrativos. Como enfatiza Leach (1996:331), "náo raro o etnógrafo logrou discernir a existencia de "uma tribo" por que partiu do axioma de que esse tipo de entidade cultural deve existir. Muitas dessas tribos sáo, em certo sentido, ficC;óes etnográficas". No dia a dia do exercício etnográfico, os caminhos desta pesquisa foram sendo reformulados dentro das relac;óes que foram sendo construídas, dentro dos dados que foram sendo levantados e organizados. Neste exercício, busquei tanto sintetizar reflexóes e explicitar questóes iniciais dentro dos debates que envolvem o que Clifford (1998) coloca como a "crise" da disciplina antropológica após os anos 1950; quanto iniciar organizac;áo de alguns dos dados reunidos sobre a realidade social experenciada em San Rafael, rio Caraparaná, especialmente no mambeadero de Don Ángel Ortiz. O desenvolvimento, desde finais dos anos 60, de novos entendimentos sobre o "trabalho" e a "escrita" antropológicos puseram a autoridade da disciplina sob suspeic;áo, analisa Clifford (idem). Em linha de reflexáo em que o entendimento da construc;áo e mantenimento do que chama de "autoridade etnográfica" tem lugar privilegiado, coloca (idem:57) o que chama de a "ruptura da autoridade monológica" da disciplina associada a contextos sócio-históricos extra-disciplinares, "a desintegrac;áo e a redistribuic;áo do poder colonial nas décadas posteriores a 1950" (idem:18). Vm dos caminhos possíveis para os antropólogos superarem a "crise" por que passa sua disciplina, propóe Clifford (1998), é o exercício de urna antropologia reflexiva, urna antropologia da antropologia, com enfase na formac;áo de um entendimento sócio-histórico da disciplina em sua relac;áo com os processos coloniais dentro dos quais esta tem estado inserida, em urna complexificac;áo do entendimento da relac;áo "pesquisador" / "nativo" no processo de constituic;áo do conhecimento etnográfico de um dado grupo humano. A idéia de "crise" pode ser entendida como chave de leitura através da qual se busca dialogar com algumas questóes da antropologia contemporanea. Substancializar a idéia de "crise", leitura possível da história da disciplina das últimas 493 Edmundo Pereira décadas -generalizando-a aos quatro cantos do campo antropológico, seja nos Estados Unidos e na Europoa, seja no Brasil ou na Colómbia-, no entanto, pode trazer o pressuposto de um campo antropológico mais homogenio do que realmente é, de urna "crise" cujo alcance pode náo ser táo generalizado quanto alguns autores acentuam. De qualquer modo, mudanc;:as políticas e metodológicas vem ocorrendo na disciplina e alternativas tem sido buscadas, tanto por antropólogos quanto por nativos para a continuidade de trabalhos de pesquisa. Diante dessa busca de alternativas, ao invés de pensarmos em urna "crise" da disciplina, poderíamos tomar das palavras de Bachelard (1996:19) -intentando sair um pouco do ambito de como a disciplina antropológica ve a si mesma- quando este coloca que "um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento náo questionado". Pensar náo em "crise", mas que, assim como as culturas, as sociedades, as formas de organiza(iio social, também o con he cimento antropológico é suscetível ao tempo, é reelaborado diante das relac;:áessociais, diante da imprevisibilidade da realidade empírica. Bibliografia Asad, T. 1973. Introduction. Em: T. Asad, (ed.). Anthropology Encounter. New York: Humanity Press. & the Colonial Bachelard, G. A. 1996. Forma(iio do espírito científico. Rio de Janeiro: Contra-ponto. Barth, F. 1966. Models of Social Organization. Occasional Papers 23. London: Royal Anthropological Institute. ____ ____ ____ '-- 1987. Cosmologies in the making. 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