Pessoas ignorantes em política devem ter direito

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Pessoas ignorantes em política devem ter
direito de votar?
27/09/2016 02h00
Vamos ser honestos? A democracia não é o melhor regime político. Você sabe disso. As
maiorias, muitas vezes, elegem governos incompetentes, mentirosos, corruptos. Até
autoritários. Devemos conceder o direito de voto a quem não tem inteligência suficiente
para escolhas responsáveis?
O cientista político Jason Brennan defende que não. O livro, que provocou polêmica nos
Estados Unidos, intitula­se "Against Democracy" ("contra a democracia"). Não é um
panfleto populista contra o populismo circunstancial de Donald Trump. É um estudo
acadêmico com toneladas de bibliografia científica.
Tese do dr. Brennan: em todas as pesquisas disponíveis, os eleitores americanos são
comprovadamente ignorantes sobre os assuntos da República. Desconhecem coisas
básicas, como identificar qual dos partidos controla o Congresso. Para usar a terminologia
de Brennan, a maioria dos eleitores se divide em "hobbits" e "hooligans".
Binho Barreto/Editoria de Arte/Folhapress
Os "hobbits" são apáticos, apedeutas, raramente votam –e, quando votam, votam com a
cabeça vazia.
Os "hooligans" são o contrário: fanáticos, como os torcedores do futebol, defendendo os
seus "clubes" de uma forma irracional, ou seja, tribal. É possível perguntar a um "hooligan"
democrata se ele concorda com uma política de Bush e antecipar a resposta. (É contra,
claro.)
E depois, quando o pesquisador comunica ao "hooligan" que a referida política, afinal, é de
Obama, o "hooligan" muda de opinião; ou afasta­se; ou indigna­se. Como dizia T. S. Eliot
sobre Henry James, a cabeça de um "hooligan" é tão dura que nenhuma ideia é capaz de
violá­la.
O eleitor ideal, para Brennan, é um "vulcan": alguém que pensa cientificamente sobre os
assuntos. Mas os "vulcans" são artigo raro. Em democracia, somos obrigados a suportar as
escolhas de "hobbits" e "hooligans".
Felizmente, Jason Brennan tem uma solução: se as pessoas precisam de uma licença para
dirigir, o mesmo deveria acontecer para votar. "Epistocracia", eis a proposta. O governo dos
conhecedores. Antes de votar, é preciso provar.
Existem vários modelos de epistocracia. Dois exemplos: todos teriam direito a um voto e
depois, com a progressão acadêmica, haveria votos extra; ou, em alternativa, só haveria
votos para quem tivesse boa nota em exame de política. Faz sentido?
Não, leitor, não faz. Seria possível escrever várias páginas de jornal a desconstruir o livro
de Jason Brennan. Por falta de espaço, concentro­me na sua falha básica: Brennan, um
cientista político, não compreende a natureza da política.
Como um bom racionalista, Brennan acredita que os fatos políticos são neutros;
consequentemente, as escolhas do eleitor podem ser "científicas".
Acontece que nunca são: a política, ao contrário da matemática ou da geometria, lida com
a complexidade e a imperfeição da vida humana.
Um "exame" de política, por exemplo, dependeria sempre das preferências políticas dos
examinadores –nas perguntas e na correção das respostas. Brennan até pode defender
perguntas "factuais" para respostas "factuais". Mas a simples escolha de certos temas
(mais economia) em prejuízo de outros (menos história) já é uma escolha política.
Além disso, acreditar que diplomas acadêmicos conferem a alguém um poder especial em
política é desconhecer o papel que os "intelectuais" tiveram nos horrores do século 20.
Ou, para não irmos tão longe, é ignorar o estado de fanatismo ideológico que as
universidades, hoje, produzem e promovem.
Por último, não contesto que a maioria desconhece informação política relevante. Mas as
pessoas não precisam de um Ph.D. para votarem. Basta que vivam em sociedade. Que
sintam na pele o estado dos serviços públicos. O dinheiro que sobra (ou não sobra) no final
do mês. A segurança que sentem (ou não sentem) nos seus bairros, nas suas cidades, nos
seus países. E etc. etc.
Como lembrava o filósofo Michael Oakeshott, não se combatem ditadores com a balança
comercial. Tradução: a política não depende apenas de um conhecimento técnico; é
preciso um conhecimento prático, tradicional, vivencial. O conhecimento que só a
experiência garante.
A democracia pode não ser o regime ideal para seres humanos ideais. Infelizmente, eu não
conheço seres humanos ideais. No dia em que Jason Brennan me mostrar onde eles
vivem, eu prometo jogar a democracia no lixo.
Endereço da página:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2016/09/1817101­pessoas­ignorantes­em­politica­
devem­ter­direito­de­votar.shtml
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