Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):54-57 janeiro/fevereiro Relato de Caso 1 Pinheiro et al. ICFEN em Jovem Relato de Caso Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Normal em Paciente Adulto Jovem Heart Failure with Normal Ejection Fraction in a Young Adult Patient Tadeu Batista Pinheiro1, Cristiano Almeida Tiradentes1, Antonio José Lagoeiro Jorge2, Mario Luiz Ribeiro2, Evandro Tinoco Mesquita2 Resumo Abstract A insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal (ICFEN) é uma síndrome complexa, caracterizada pela presença de sinais e/ou sintomas de insuficiência cardíaca (IC), fração de ejeção do ventrículo esquerdo >50% e presença de disfunção diastólica; é comum em mulheres idosas com hipertensão arterial e de difícil diagnóstico. Relata-se o caso de paciente feminina, 43 anos, portadora de hipertensão arterial que desenvolveu quadro de ICFEN e que apresentou regressão do quadro clínico e melhora das anormalidades morfofuncionais com o tratamento anti-hipertensivo e o emprego de medicamentos que atuam no remodelamento cardíaco. Heart failure with normal ejection fraction (HFNEF) is a complex syndrome, characterized by the presence of signs and/or symptoms of heart failure (HF), left ventricle ejection fraction >50% and diastolic dysfunction; common in older women with hypertension, it is difficult to diagnose. This case report describes a hypertensive female patient (43 years old) who developed HFNEF, and who then achieved a regression in her clinical status with improved morphofunctional anormalies through antihypertensive treatment and the use of cardiac remodeling drugs. Palavras-chave: Insuficiência cardíaca; Disfunção diastólica; Acoplamento ventrículo-arterial Keywords: Heart failure; Diastolic dysfunction; Ventricular arterial interaction Introdução HAS é o fator de risco mais comum para IC em particular a ICFEN. O risco de desenvolver IC em pacientes hipertensos quando comparados aos não hipertensos é cerca de três vezes mais elevado4. A IC é uma complexa síndrome clínica, constituindose em problema de saúde pública mundial. Caracterizase de duas formas: uma com a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) <50%, e outra em que a disfunção diastólica é dominante e a FEVE é >50%¹. A incidência de ICFEN tem aumentado devido ao envelhecimento da população e ao aumento do reconhecimento médico da síndrome que compromete principalmente mulheres idosas e com múltiplas comorbidades como hipertensão arterial sistêmica (HAS), obesidade e diabetes2,3. 1 2 O diagnóstico de ICFEN é baseado na presença de sinais ou sintomas de IC em pacientes com FEVE >50% e que apresentem alterações da função diastólica avaliada pelo ecoDopplercardiograma e Doppler tecidual (EDT)5. Programa de Pós-graduação em Ciências Cardiovasculares - Faculdade de Medicina - Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói, RJ - Brasil Departamento de Medicina Clínica - Faculdade de Medicina - Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói, RJ - Brasil Correspondência: Tadeu Batista Pinheiro E-mail: [email protected] Av. Marquês do Paraná, 303 6º andar Cardiologia - Centro - 24030-215 - Niterói, RJ - Brasil Recebido em: 25/07/2012 | Aceito em: 01/11/2012 54 Pinheiro et al. ICFEN em Jovem Relato de Caso Relato do Caso Paciente feminina, 43 anos, afro-brasileira, procurou ambulatório com queixas de falta de ar e cansaço ao acordar e durante o dia ao realizar suas atividades, com piora nos últimos 30 dias. Refere ser portadora de hipertensão arterial, porém naquele momento não fazia uso de nenhuma medicação. Ao exame: lúcida, taquipneica, ciclo menstrual normal, sedentária, sem turgência de jugular a 4 5 º . R i t m o c a rd í a c o re g u l a r c o m q u a r t a bulha; ausculta pulmonar normal; membros inferiores sem edemas; peso: 72,60 kg; altura: 153 cm; IMC: 31,01 kg/m 2 ; cintura abdominal: 90 cm; PA: 236x152 mmHg; pulso: 107 bpm; classe funcional II NYHA. Exames Complementares ECG ritmo sinusal, PR: 0,14s, AQRS: +30º a +60º; índice de Sokolow Lyon (ISL): 53 mm; hipertrofia do ventrículo esquerdo (HVE) e crescimento do átrio esquerdo (Figura 1). Hemoglobina: 15,5 g/dL; glicose: 95 mg/dL; creatinina: 1,06 mg/dL; hemoglobina glicada: 5,4 mg/dL; Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):54-57 janeiro/fevereiro TSH: 3,61 UI/ml; colesterol: 222 mg/dL; triglicérides: 62 mg/dL; HDL colesterol: 73 mg/dL; proteína C-reativa ultrassensível: 0,10 mg/dL; BNP: 42 pg/mL. Radiografia de tórax: transparência pulmonar normal, seios costofrênicos livres, aorta de calibre normal, aumento do volume cardíaco – índice cardiotorácico = 0,57. Ecocardiograma com Doppler tecidual (Tabela 1) FEVE: 58%; massa VE indexado: 115,50 g/m2. Diâmetro de átrio esquerdo: 3,9 cm; volume do átrio esquerdo (VAE): 59 mL; VAE indexado: 35,03 mL/m 2 ; E: 95 cm/s; A: 68 cm/s; relação E/A: 1,40; tempo de desaceleração da onda E: 272 ms; S’: 5 cm/s; E’: 5 cm/s; relação E/E’: 19. Disfunção diastólica estágio II, HVE. Evolução Paciente foi medicada com clortalidona 25 mg 1x/dia, carvedilol 6,25 mg 2x/dia, besilato de anlodipina 5 mg e losartana potássica 100 mg 1 x/dia. Figura 1 ECG de 12 derivações realizado em 8/8/2011 55 Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):54-57 janeiro/fevereiro Pinheiro et al. ICFEN em Jovem Relato de Caso Um mês após a consulta inicial encontrava-se com queixas de cansaço aos médios esforços com PA: 160x100 mmHg; a dose de carvedilol foi aumentada até alcançar 25 mg 2 x/dia. Tabela 1 Parâmetros ecocardiográficos iniciais e após seis meses de tratamento Parâmetros EDT (15/08/11) FEVE (%) VDF I mL/m2 EDT (13/02/12) 58 69 94,20 72,70 115,50 76,80 VAE-I mL/m 35,03 26,70 Relação E/A 1,40 1,50 S’ cm/s 5 8 E’ cm/s 5 11 19 10 Massa VE-I g/m2 2 Relação E/E’ EDT=ecocardiograma com Doppler tecidual; FEVE=fração de ejeção do ventrículo esquerdo; VDF I=volume diastólico final do ventrículo esquerdo indexado; VAE I=volume do átrio esquerdo indexado E/A=relação enchimento/contração atrial; S’=avaliação da função sistolica do VD; E’=Doppler tecidual; E/E’=avaliação da função diastólica ventricular Figura 2 ECG de 12 derivações realizado em 23/1/2012 56 Cinco meses após queixava-se de cansaço aos grandes esforços conseguindo executar suas atividades sem sintomas. Peso: 77,70 kg; PA: 140x98 mmHg; pulso: 61 bpm. O ECG de controle mostrou uma redução do ISL para 32 mm (Figura 2). Novo ecocardiograma foi realizado (Tabela 1). Discussão Hipertensão arterial é o principal fator de risco para desenvolver IC 6 . Pacientes com hipertensão apresentam maior espessamento da parede arterial que normotensos, mesmo após ajuste pela idade, e também está associada com o remodelamento concêntrico do VE e fibrose 7. A interação do VE com o sistema arterial – acoplamento ventrículoarterial – é um fator determinante do desempenho cardiovascular. O acoplamento ventrículo-arterial pode ser avaliado pela relação entre a elastância arterial (EA) e a elastância sistólica final do VE (ELv). Pinheiro et al. ICFEN em Jovem Relato de Caso HAS é capaz de alterar o acoplamento com aumento tanto do E A (15-60%) como do E Lv (16-95%) 8. O aumento da rigidez tanto do VE como das artérias e x a c e r b a d a p e l a H A S re f l e t e a d o e n ç a d o acoplamento 8 , ou seja, a rigidez vascular e a ventricular interagem para limitar a resposta ao estresse cardiovascular (desempenho reduzido) e c o m i s s o p ro m o v e m o a p a re c i m e n t o d o s sintomas. Na paciente relatada, o diagnóstico de ICFEN foi confirmado pela presença de sintomas de IC, FEVE: 58%, VDF-I: <97 mL/m2 e a relação E/E’: 19. De acordo com as Diretrizes de IC5, em pacientes com sinais e/ou sintomas de IC que apresentem FEVE >50% e volume diastólico final indexado do VE <97 mL/m2 o diagnóstico de ICFEN pode ser feito pela presença de uma relação E/E’>15, que é um marcador não invasivo das pressões de enchimento do VE. BNP é uma ferramenta importante no diagnóstico de IC. A paciente apresentava uma dosagem de B N P : 4 2 pg/mL o que a princípio afastaria o diagnóstico de IC. Pacientes ambulatoriais com ICFEN diferentemente da ICFER podem apresentar valores de BNP <100 pg/mL. Recente estudo avaliou 159 pacientes com ICFEN: valores de BNP <100 pg/mL estavam presentes em 29% dos pacientes que eram mais jovens, mais obesos e com melhor função renal9. A paciente relatada evoluiu com melhora do quadro clínico e redução da pressão arterial. O ecocardiograma realizado seis meses após o primeiro atendimento mostrou uma redução importante do VAE-I, da massa do VE indexada e das pressões de enchimento do VE. A redução da HVE reduz a E LV possibilitando a melhora do acoplamento ventrículo-arterial. O Estudo LIFE mostrou o impacto da losartana na redução da HVE em pacientes hipertensos6. O acoplamento ventrículo-arterial é importante mecanismo de doença para o desenvolvimento de ICFEN em pacientes com HAS que ainda não desenvolveram rigidez arterial significativa. O tratamento desses pacientes com medicamentos que bloqueiam o sistema renina-angiotensinaaldosterona, betabloqueadores e diuréticos pode melhorar significativamente o quadro clínico e a função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo. Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):54-57 janeiro/fevereiro Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica Este artigo é produto do Grupo de Pesquisa “Insuficiência cardíaca: da molécula à população” do curso de Pósgraduação em Ciências Cardiovasculares da Universidade Federal Fluminense. Referências 1. Schmidt MI, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, et al. Chronic noncommunicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet. 2011;377(9781):1949-61. 2. Owan TE, Hodge DO, Herges RM, Jacobsen SJ, Roger VL, Redfield MM. Trends in prevalence and outcome of heart failure with preserved ejection fraction. N Engl J Med. 2006;355(3):251-9. 3. Tribouilloy C, Rusinaru D, Mahjoub H, Soulière V, Lévy F, Peltier M, et al. Prognosis of heart failure with preserved ejection fraction: a 5 year prospective population-based study. Eur Heart J. 2008;29(3):339-47. 4. Levy D, Larson MG, Vasan RS, Kannel WB, Ho KK. The progression from hypertension to congestive heart failure. JAMA. 1996;275(20):1557-62. 5. Paulus WJ, Tschöpe C, Sanderson JE, Rusconi C, Flachskampf FA, Rademakers FE, et al. How to diagnose diastolic heart failure: a consensus statement on the diagnosis of heart failure with normal left ventricular e j e c t i o n f r a c t i o n b y t h e H e a r t F a i l u re a n d Echocardiography Associations of the European Society of Cardiology. Eur Heart J. 2007;28(20):2539-50. 6. Dahlöf B, Devereux RB, Kjeldsen SE, Julius S, Beevers G, de Faire U, et al; LIFE Study Group. Cardiovascular morbidity and mortality in the Losartan Intervention For Endpoint reduction in hypertension study (LIFE): a randomised trial against atenolol. Lancet. 2002;359(9311):995-1003. 7. Mayet J, Hughes A. Cardiac and vascular pathophysiology in hypertension. Heart. 2003;89(9):1104-9. 8. Kass DA. Ventricular arterial stiffening: integrating the pathophysiology. Hypertension. 2005;46(1):185-93. 9. Anjan VY, Loftus TM, Burke MA, Akhter N, Fonarow GC, Gheorghiade M, et al. Prevalence, clinical phenotype, and outcomes associated with normal B-type natriuretic peptide levels in heart failure with preserved ejection fraction. Am J Cardiol. 2012;110(6):870-6. 57