Euro vs dólar A dimensão internacional do euro O facto de o dólar estar instituido como moeda-veículo, confere-lhe à partida uma vantagem que o euro não conseguirá reproduzir. Por conseguinte, o euro será a segunda moeda do sistema monetário internacional. A unificação monetária na Europa constitui, naturalmente, um choque de grande dimensão no Sistema Monetário Internacional. A Zona do Euro (ZE) terá dimensões económicas comparáveis à dos Estados Unidos (UE) e relações económicas priveligiadas com áreas em desenvolvimento, como a Europa de Leste e a África. É, pois, natural que se questione a possibilidade de o euro vir a disputar a posição dominante do dólar no sistema monetário internacional. Segundo o argumento, à medida que se generaliza a utilização do euro, aumentam os ganhos de eficiência decorrentes da sua utilização, diminuindo ao mesmo tempo os ganhos decorrentes da utilização do dólar. Como esses efeitos são cumulativos, o processo de substituição pode ir até ao ponto em que euro se torne mais líquido do que o dólar, desalojando-o como principal moeda internacional. Apesar da sua importância, a dimensão externa da unificação monetária não tem sido objecto priveligiado de análise na literatura. Os estudos realizados são tipicamente pobres do ponto de vista analítico, limitando-se normalmente aferir sobre o peso do euro com base em tabelas onde se comparam o produto ou o comércio externo dos Estados Unidos (EU) e da Zona do Euro (ZE). Uma vez que a ZE tem uma dimensão semelhante à dos EU, a maior parte desses estudos chega à conclusão de que o euro terá um peso internacional equivalente ao do dólar. Essa conclusão simplicista esquece, no entanto, o papel crucial que o dólar tem hoje nos mercados cambiais interbancários. O facto de o dólar estar instituido como moeda-veículo nas transacções cambiais, confere-lhe à partida uma vantagem que o euro dificilmente conseguirá reproduzir. À semelhança das moeda nacionais, as moedas internacionais desempenham funções de meio de pagamento, reserva de valor ou unidade de conta na economia internacional. Ao contrário das moedas nacionais, que são impostas por lei, a ascensão e queda das moedas internacionais é um processo livremente determinado pelas forças de mercado. Embora ao longo da história tenham existido inúmeras moedas locais, foram raras as que se tornaram meios de pagamento internacionalmente aceites. O esterlino foi a primeira moeda internacional com funções à escala planetária, mantendo a liderança até à Grande Guerra. Após a Segunda Guerra Mundial, a substituição do esterlino pelo dólar como principal moeda internacional veio culminar um processo de ascenção económica dos Estados Unidos, face a um Reino Unido de muito menor dimensão que perdera a supremacia na economia mundo. O dólar foi praticamente a única moeda internacional até ao colapso de Bretton Woods, em 1971, mas com a subsequente instabilidade cambial os agentes económicos (privados e públicos) procuraram diversificar as suas aplicações, pelo que outras moedas, nomeadamente o iene e algumas moedas europeias, passaram a partilhar com o dólar o papel de reserva de valor internacional. Mas a hegemonia do dólar no sistema monetário internacional manteve-se até hoje. À medida que se desenvolveu o sistema financeiro internacional, o papel das moedas internacionais foi-se alargando. No início, eram apenas usadas para financiar o comércio internacional ou como forma de deter riqueza. Hoje em dia, o dólar é também usado, por exemplo, como moeda de referência para definição de políticas cambiais, para cotar produtos na bolsa de mercadorias, como moeda paralela em economias “dolarisadas”, como moeda de intervenção de bancos centrais e como moeda-veículo (intermediária) nas operações cambiais interbancárias (isto é, para trocar escudos por pesos, troca-se primeiro escudos por dólares e depois dólares por pesos). Estas funções são separáveis (um exemplo clássico eram algumas nações do golfo pérsico, que até 1974 fixavam os preços do seu petróleo em dólares mas exigiam o pagamento em libras), mas não são independentes: isto é, quanto mais uma moeda internacional é usada numa função, maior o incentivo para ser usada nas outras. A multiplicidade de funções das moedas internacionais torna difícil uma análise rigorosa das forças que rejem a sua substituição. No entanto, existe a convicção de que a função determinante é a de moedaveículo nos mercados cambiais interbancários. Os mercado cambiais movimentam diariamente mais de um um trilião de USD, dos quais mais de 80% correspondem a transacções inter-dealer. Como esses montantes excedem largamente os das transacções reais e financeiras e como, por outro lado, a função de moedaveículo não tende a ser partilhada, a moeda que se conseguir estabelecer como veículo apresentará um volume de transacções tão grande - e por conseguinte custos de transação tão baixos, que dificilmente será desalojada. Além disso, como a moeda veículo é a mais líquida, será naturalmente priveligiada noutras funções, tornando-se a principal moeda internacional. Os operadores cambiais usam o dólar como veículo por uma questão de simplificação. Tempo é dinheiro, e andar à procura de um agente com necessidades complementares não é, em regra, vantajoso. A emergência de uma moeda-veículo é, pois, comparável à adopção de um meio de pagamento numa economia de troca. Há cerca de cem anos, K. Menger escreveu que a aceitação de um meio de pagamento depende das expectativas sobre a mesma intenção pela parte dos outros agentes. Esse princípio foi validado formalmente por R. Jones e pela dupla N. Kiyotaki e R. Wrigh em modelos search que foram depois adaptados ao caso das moedas-veículos. Tal como as pessoas preferem pagar e receber em dinheiro, os operadores cambiais preferem comprar e vender divisas contra o dólar porque há muita gente a comprar e vender dólares. Do exposto resulta que, em matéria de moedas internacionais, há vantagem para quem chega primeiro. Para uma moeda desalojar o dólar, é necessário que se apresente com custos de transacção mais baixos. Mas nessa avaliação, é preciso ter em conta que o dólar, pelo facto de ser a moeda veículo, apresenta à partida um volume de transacções que ultrapassa largamente o peso que lhe é conferido pelo comércio mundial de bens ou activos. Isto é, não basta à ZE ser tão tão grande como os EU, seria necessário que o euro atingisse um volume de transacções superior ao do dólar. Quando o dólar desalojou o esterlino, existia uma diferença significativa entre as dimensões económicas dos dois países que compensou o facto de a libra ser usada como veículo nos mercados cambiais. No caso presente, tudo leva a crer que a ZE terá um peso económico ligeiramente inferior ao dos EU. Se atendermos apenas ao peso das duas zonas no comércio mundial de bens e serviços, os dados de 1996 apontam para uma pequena vantagem da ZE (17,1%, contra 16,4% dos EU). Mas a maior parte das transacções internacionais são financeiras, e estas são largamente favoráveis ao dólar. Num cenário eurooptimista, em que o turnover de cada título europeu fosse tão grande como o dos títulos americanos, as minhas estimativas apontam para um peso total (no comércio de bens e activos) da ZE igual a 28% contra 31% dos EU. A participação do Reino Unido diminuiria o peso da ZE no comércio de bens e serviços (devido ao grande volume de transacções que passaria a ter âmbito intra-comunitário), mas aumentaria o peso total da UE para 31,7% (contra 32,7% dos EU), devido à importância do mercado de activos londrino. Em qualquer dos casos, a ZE não atinge sequer a dimensão económica do EU, pelo que o euro não tem condições para desalojar o dólar como veículo. A conclusão é que, em matéria de moeda-veículo se manterá o “status quo”, e isso por si só será suficiente para assegurar o domínio do dólar nas outras funções. O euro será a segunda moeda internacional, com funções importantes, nomeadamente enquanto moeda de facturação e reserva de valor Num estudo recente sobre o papel internacional do euro, Richard Portes (LBS) e Hélène Rey (LSE) chegaram a vários cenários possíveis, incluindo a possibilidade de o euro emergir como moeda veículo. Ao contrário de estudos anteriores, a abordagem prosseguida por estes autores partiu de um modelo formal, que depois foi calibrado por forma a everiguar a plausibilidade dos vários cenários. Segundo os autores, a emergência do euro como moeda-veículo requeriria a adopção de políticas específicas para promover a sua internacionalização. Mas essa análise tem duas limitações importante. Por um lado, a especificação adoptada pelos autores para as economias de rede não corresponde ao princípio de Menger acima enunciado. De facto, em lugar de assumir que os custos de transacção decrescem com a liquidez da moeda (por exemplo, o dólar), o modelo - desenvolvido por Rey e baseado num artigo de Paul Krugman, postula custos de transacção que decrescem com a profundidade de cada mercado bilateral (por exemplo, o dólar-estrelino). Essa hipótese torna possível a co-existência de várias moedas-veículo, correspondendo a outras tantas potencias regionais e por conseguinte subestima a vantagem do veículo estabelecido. No caso presente, ao contemplar o hipótese de o euro desalojar o dólar em mercados bilaterais de moedas de países próximos da UE, o modelo sobre-estima a capacidade de o euro crescer à custa do dólar. Por outro lado, a proposta de Portes e Rey, de promover a internacionalização do euro como forma de induzir a substituição, afigura-se pouco efectiva. Em tese, se fosse possível convencer um grande número de agentes a adoptar o euro a partir do dia 1 de Janeiro, podia ser que as actuais posições se invertessem, ganhando o euro a supremacia internacional num equilíbrio auto-sustentado. Mas isso obrigaria a um esforço de coordenação internacional que não é de modo algum praticável. A decisão de mudar de moeda-veículo não depende da vontade de países ou de instituições, mas sim de agentes económicos descoordenados que, não sabendo como reagir ao choque, tenderão a fazer o que sempre fizeram. Cultura, imitação, inércia e resistência à mudança são factores que favorecem a manutenção do dólar. Neste contexto, se alguns operadores experimentarem o euro como veículo, o facto de a maioria não mudar será suficiente para garantir ao dólar os custos de transacção mais baixos, levando os “inovadores” a retroceder. Por outras palavras, num mundo em que a racionalidade dos agentes é limitada, a história e as rotinas estabelecidas têm um papel determinante na selecção do equilíbrio, e neste caso o dólar leva vantagem. Como um dia Charles Kindleberger escreveu, “o poder do dólar, como o poder do inglês, representa la force des choses, pas la force des hommes”. Miguel Lebre de Freitas Economia Pura Nº 9, 1999