Experiência, memória e técnica: reflexões preliminares sobre limites e contribuições do campo CTS à História Social Catiane Matiello - Mestre em Tecnologia* Universidade Tecnológica Federal do Paraná – [email protected] Gilson Leandro Queluz - Doutor em Comunicação e Semiótica Universidade Tecnológica Federal do Paraná – [email protected] Resumo: O artigo apresenta as contribuições e os limites verificados nas abordagens da Construção Social da Tecnologia, da teoria do Ator-rede e dos Sistemas Tecnológicos, a partir de seu emprego em um trabalho orientado pela História Social, voltado à análise de histórias de vida de famílias desapropriadas pela usina de Itaipu. Por meio do enfoque possibilitado pelas abordagens, observouse o processo de desenho da usina em sua heterogeneidade e complexidade interativa e a cristalização, em seu projeto final, de relações sociais que repercutiram na vida das famílias. Porém, verificou-se que dimensões caras à análise da mudança tecnológica a partir da memória e da experiência, como relações de poder, tensões sociais e manifestações dos sujeitos, não encontraram suporte nas teorias. Dessa forma, lança-se mão da visão histórica de E. P. Thompson e das proposições de H. Thomas, para discutir alguns dos conceitos propostos pelas abordagens. O artigo inicia com uma revisão teórico-conceitual das teorias e em seguida, contrapõe os conceitos por elas tecidos às reflexões dos autores citados. A síntese final realizada evidencia como aspectos positivos deste processo para a pesquisa: a recusa à análise que afasta das narrativas a contextualização, os detalhes técnicos e as relações de poder no desenvolvimento tecnológico; a incorporação de dimensões mais humanas ao desenvolvimento tecnológico; e o contexto de construção da usina e a incorporação da memória e experiência dos sujeitos, compreendidos como dimensões de um mesmo processo de desenvolvimento tecnológico e não apenas como elementos relacionados por determinação. Palavras-chave: Construção Social da Tecnologia, Teoria do ator-rede, Sistemas tecnológicos, Estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), História Social. Abstract: The article presents the contributions and limitations encountered at the approaches, Social Construction of Technology, the Actor-network theory and technological systems, from the point of view of its employment in a research guided by the social history, wich was aimed at analyzing the life stories of families expropriated by the Itaipu dam. Through the foucus enabled by those approaches, we observed the process of plant designing in its interactive complexity and heterogeneity and also the crystallization, in its final project, of the social relations that affected the lives of families. However, it was found that some important dimensions of a analysis of technological change, from the point of view of memory and experience, as power relations, social tensions and manifestations of the subjects, found no support in those theories. Thus, it employed the historical view of E. P. Thompson and the propositions of H. Thomas, to discuss some of the concepts proposed by those approaches. The article begins with a review of theoretical and conceptual theories and then contrasts the concepts embedded in them with the reflections of Thompson and Thomas. The final synthesis shows as positive aspects of this process for the research: the refusal of the analysis that departs the narratives from their context, and also from the technical details and the power relations in technological development; the incorporation of human dimensions to technological development; and the context of plant construction and the incorporation of memory and experience of the subjects, understood as dimensions of the same process of technological development and not just as elements related by simple determination. Keywords: Social Construction of Technology, Actor-network theory, Technological Systems, Studies on Science, Technology and Society (STS), Social History. Introdução O presente trabalho é parte de pesquisa de mestrado que teve como objetivo compreender as práticas, as representações e os significados que agricultoras e agricultores desapropriados pela implantação da usina hidrelétrica de Itaipu, no Oeste do Paraná, construíram em torno deste momento de suas trajetórias. O trabalho foi orientado pela valorização, a partir de um marco teórico composto por vertentes da história social e do campo de estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), das experiências de sujeitos que, excluídos do processo decisório que envolveu um grande projeto, organizaram-se e formaram um movimento de resistência às arbitrariedades e ao autoritarismo do Estado. O campo CTS colocou à experiência histórica do desenvolvimento tecnológico sob a perspectiva das narrativas que registramos, a importância de afirmar que a tecnologia representada pela hidrelétrica não é neutra, nem determinada ou determinadora e que os elementos políticos, técnicos, econômicos e sociais presentes no processo de definição do projeto foram por ele incorporados, repercutindo na vida de milhares de pessoas. Dessa forma, sentimos a necessidade de considerar os antecedentes da construção da hidrelétrica de Itaipu. A partir de então, direcionamos à história da definição do projeto da usina três enfoques teóricos: a Construção Social da Tecnologia (Social Construction of Technology – SCOT), a Teoria do Ator-rede (TAR) e a abordagem dos Sistemas Tecnológicos. Mas à medida em que realizávamos as análises das narrativas e considerávamos questões relacionadas à memória e à experiência de nossos(as) colaboradores(as), estes enfoques pareciam não dar conta da subjetividade e das experiências narradas, apesar de auxiliarem fortemente na compreensão da presença de relações sociais na construção da hidrelétrica. Romper com estes contrastes teóricos, que mantinham em esferas praticamente separadas o que a prática da pesquisa já havia unido, passou a constituir um de nossos principais questionamentos. Como vincular um estudo dedicado aos significados por meio dos quais as pessoas procuraram pensar eventos de sua vida, aos conceitos desenvolvidos por autores que nos auxiliaram a pensar o desenvolvimento tecnológico? O caminho encontrado derivou do reconhecimento de que o projeto inicial fora pensado dentro de uma trajetória de pesquisa trilhada no âmbito da história social, a qual posteriormente foram acrescentadas as contribuições dos estudos CTS. Essa trajetória foi estendida às três abordagens em questão. Dessa forma, assumimos que alguns conceitos desenvolvidos pelas abordagens do campo CTS iluminavam a compreensão de determinados aspectos de nosso tema de pesquisa, mas que outros, não se ajustavam à análise pretendida. As reflexões que aqui compartilhamos, portanto, resultaram desse percurso de pesquisa e estão assim apresentadas: inicialmente realizamos uma revisão teórico-conceitual da Construção Social da Tecnologia, da teoria do Ator-rede e dos Sistemas Tecnológicos. Em seguida, discutimos os conceitos tecidos no interior dos enfoques, a partir de H. Thomas e E. P. Thompson, apontando para os limites que estes colocam aos nossos objetivos de análise e também, para suas contribuições. A construção de artefatos, coletivos sociotécnicos e sistemas tecnológicos Os estudos CTS constituem-se em um campo de trabalho interdisciplinar e compreendem diferentes reflexões e abordagens, mas que em comum, tem o objetivo de abrir a “caixa-preta” da tecnologia, analisando-a no momento de sua elaboração. Na crítica às noções de neutralidade e de determinismo tecnológico, estes enfoques voltam-se a explicitar o processo de design, não como resultado de um continuum de causalidades, para frente ou para trás, mas enquanto composto por deslocamentos múltiplos, em vários sentidos (FEENBERG, 1995), orientados por argumentos técnicos, intenções e demandas da sociedade. No interior dessas reflexões e tributárias dos estudos no campo da sociologia do conhecimento científico, que volta-se a analisar o caráter social desse mesmo conhecimento, situam-se a Construção Social da Tecnologia, a Teoria do Ator-rede e a abordagem dos Sistemas Tecnológicos1. Em comum, elas preocupam-se em afastar a noção do inventor individual como conceito explicativo, o determinismo tecnológico e as distinções entre aspectos técnicos, sociais, econômicos e políticos no desenvolvimento tecnológico (BIJKER; PINCH, 1997, p. 3). A SCOT procura descrever o desenvolvimento de um artefato como um processo de alternância entre variação e seleção, que resulta em um modelo multidirecional (1997, p. 28). Para compreender esta seleção, em que alguns modelos variantes permanecem e outros são abandonados, os autores consideram os problemas e soluções apresentados por cada artefato em momentos particulares. Nessa descrição, Bijker e Pinch empregam três conceitos-chave2: flexibilidade interpretativa, grupos sociais relevantes e fechamento ou estabilização (“closure”). Dessa forma, a SCOT realiza a identificação dos grupos sociais relevantes3 e a definição da função do objeto para 1 Estas três principais tendências dos estudos sociais da tecnologia são apresentadas por Pinch, Bijker e Hughes, na obra “The Social Construction of Technological Systems” (1997, p. 3). 2 Os conceitos desenvolvidos pelos autores são trabalhados por meio da abertura da “caixa-preta” de um artefato que nos é muito comum: a bicicleta. Quando em seu surgimento, na segunda metade do século XIX, muitos modelos chegaram a coexistir, voltados à diferentes necessidades. 3 O conceito de grupos sociais relevantes é utilizado para definir instituições, organizações, grupos organizados ou não organizados. Um artifício que permite a caracterização de um grupo social relevante é perguntar se o artefato tem um significado comum para os membros do grupo social em questão (BIJKER; PINCH, 1997, p. 32). cada grupo. A partir disso, o foco se volta para os problemas que os grupos apontam em relação ao objeto e, assim, várias soluções técnicas se tornam possíveis. É na possibilidade dos grupos sociais relevantes outorgarem significados distintos a um artefato de cuja construção participam que reside a flexibilidade interpretativa (Ibid, 1997, p. 40). Esse tipo de descrição possibilita trazer à tona os tipos de conflitos que surgem em torno do design tecnológico, sejam eles de ordem técnica, moral, política, econômica, etc. Na esfera de cada problema, muitas soluções podem ser identificadas e seguindo assim o processo de desenvolvimento, acompanharemos maiores ou menores graus de estabilização (Ibid, 1997, p. 37). Portanto, o conceito de estabilização evidencia o caráter multidirecional do desenvolvimento, como também a noção de flexibilidade interpretativa. Ele demonstra que a criação de um artefato não é um evento isolado, mas sim um processo que culmina em um acordo sobre sua configuração. E assim, a descrição de um artefato, por intermédio do significado atribuído pelos grupos sociais relevantes, possibilita o entendimento de como ele veio a ser dominante, negando a linearidade no processo de concepção tecnológica e afirmando que esta é fruto de interações complexas entre as diversas etapas da inovação. Já a abordagem do Ator-rede caracteriza-se justamente por romper as distinções entre atores humanos e não humanos, compreendendo-os dentro de uma rede social de elementos (BIJKER; PINCH; HUGHES, 1997, p. 4). Ela designa relações entre um conjunto heterogêneo e simétrico de elementos, formado não apenas por agentes humanos, como técnicos, engenheiros, inventores, trabalhadores, consumidores, mas também por objetos materiais. Ao elaborar um estudo sobre determinado artefato, o social deve ser considerado em suas relações humanas e não humanas e o técnico pelo resultado de negociações entre estes e as pessoas, conformando um “coletivo sociotécnico”. Utilizando um estudo de caso de inovação – o carro elétrico na França, na década de 1970 – M. Callon (1997) utilizou o conceito de Ator-rede na medida em que os engenheiros da EDF (Eletricité de France) propuseram um sistema que mesclava múltiplos elementos heterogêneos, com identidades e relações problemáticas. Um Ator-rede seria simultaneamente, portanto, um ator capaz de interligar elementos heterogêneos e uma rede capaz de redefinir e transformar os elementos que a compõem (CALLON, 1997, p. 93). Removendo um desses elementos, toda a estrutura é deslocada e muda. Esta intrincada relação entre elementos não humanos e elementos que representam o poder no processo de desenvolvimento tecnológico, como a política e a economia, encontra nos Sistemas Tecnológicos outra alternativa para ser pensada. Esta abordagem deriva em grande parte dos trabalhos do historiador da tecnologia, Thomas P. Hughes. Sua ênfase é colocada sobre a importância dos elementos heterogêneos dos artefatos que, porém, são interligados. Assim, a inovação tecnológica é analisada a partir do conjunto de elementos técnicos, políticos, sociais, culturais e econômicos que a envolvem: Entre os componentes de um sistema tecnológico estão artefatos físicos, como turbogeradores, transformadores e linhas de transmissão dos sistemas de luz elétrica e energia. Sistemas tecnológicos também incluem organizações, como empresas manufatureiras, empresas de utilidades públicas e bancos de investimento e eles incorporam componentes geralmente identificados como científicos, como livros, artigos e programas universitários de ensino e pesquisa. Artefatos legais, como leis de regulação, também podem ser parte dos sistemas tecnológicos. Pelo fato de serem socialmente construídos e adaptados para funcionar em sistemas, os recursos naturais, como minas de carvão, também se qualificam como artefatos do sistema (HUGHES, 1997, p. 51). Um elemento, seja físico ou não físico, funcionando como um componente no sistema, interage com outros elementos e todos contribuem direta ou indiretamente para a meta do sistema. Se um componente é removido ou se suas características mudam, os outros artefatos no sistema irão alterar as características, consequentemente. Em um sistema de luz elétrica, por exemplo, uma mudança na resistência ou carga, irá trazer para o sistema mudanças compensatórias na transmissão, distribuição e geração, da mesma forma que mudanças realizadas no ensino de uma escola de engenharia irão se refletir no sistema. Segundo Hughes, fatores ambientais que influenciam o sistema, mas que não são influenciados por ele ou que são influenciados pelo sistema, mas não o influenciam, não podem ser considerados elementos de um sistema. Sempre que a relação for apenas unidirecional e não representar interação, os fatores ambientais não serão considerados. Hughes sugere diversos conceitos para compreender os sistemas tecnológicos. Estes conceitos não correspondem a etapas fixas do desenvolvimento de um sistema, mas às distintas dimensões de análise, uma vez que não são simplesmente sequenciais, retrocedendo e sobrepondose. Um deles é o construtor de sistemas (system builder). O construtor de sistemas é composto por diversos outros artefatos que se relacionam, se influenciam mutuamente e que são interdependentes. De acordo com Hughes, é característica do construtor de sistemas a habilidade para construir ou para forçar a unidade na diversidade, a centralização em face do pluralismo e a coerência no caos, o que muitas vezes implica na destruição de sistemas alternativos. O construtor de sistemas, ao agregar bases definidoras dos rumos do desenvolvimento de uma tecnologia, permite a observação do caráter político contido no processo. Ao longo do desenvolvimento de um sistema, a energia inovativa é direcionada para os “reverse salients” e para os “problemas críticos”. O “reverse salient” é uma metáfora inspirada no vocabulário militar e corresponde a pontos críticos de um sistema, que orientam o seu desenvolvimento. Hughes afirma que é necessário superá-los por meio de sua “tradução” em “problemas críticos”. Uma vez solucionado o problema crítico, o sistema técnico em questão pode continuar a ser desenvolvido. Quando os sistemas amadurecem e se consolidam, eles adquirem “estilo” e “momentum”. O conceito de estilo tecnológico é uma resposta criativa em que os construtores de um sistema adaptam, modificam ou usam conhecimentos e técnicas de um modo diferente do proposto, dando a uma máquina, processo, artefato ou sistema uma qualidade distintiva. O conceito implica em afirmar que não há uma maneira melhor ou pior de desenvolver uma determinada tecnologia, mas que a tecnologia deve ser considerada apropriada conforme o tempo e o lugar em questão (Ibid, p. 68). Dessa forma, experiências históricas, condições geográficas e uma série de outros fatores definem o estilo. O momentum, por sua vez, corresponde a uma etapa em que o sistema conta com a aceitação por parte dos elementos envolvidos em seu desenvolvimento (Ibid, p. 76). O autor utiliza a metáfora do lançamento de um objeto que tem sua trajetória definida pelo impulso inicial para explicar o conceito e afirma que: “Artefatos físicos duráveis projetam no futuro, características socialmente construídas adquiridas no passado, quando foram projetados” (Ibid, p.77). A continuidade dos sistemas decorre tanto de sua característica material, quanto de fatores imateriais, como organizações, objetivos, metas. A despeito da inevitabilidade com que os observadores possam vir a observar um sistema técnico que atingiu um momentum elevado e uma hegemonia social, o conceito preocupa-se justamente em recusar a autonomia dos sistemas (Ibid, p. 76). Isso ocorre por meio da ênfase na independência dos sistemas com relação às decisões humanas. Nestas decisões, podemos inserir apropriações e transcrições da tecnologia e mesmo a resistência a ela, tornando-a, portanto, sujeita à mudança. Os sistemas tecnológicos resolvem problemas ou satisfazem metas através dos meios disponíveis e adequados. Nesta definição, a resolução dos problemas tem a ver principalmente com a reordenação do mundo físico em formas consideradas úteis ou desejáveis para aqueles que participam da criação ou utilização dos sistemas. De modo geral, as abordagens apresentadas procuram observar quais os papéis e interesses de grupos e indivíduos envolvidos no processo de desenvolvimento tecnológico. Suas principais contribuições ao nosso tema decorrem do combate às ideias de neutralidade e de determinismo tecnológico, por meio de conceitos que conduzem à compreensão da tecnologia em sua heterogeneidade e complexidade interativa, que a faz incorporar acordos e compromissos. Elas buscam integrar em uma única explicação não linear a complexidade da dinâmica da mudança tecnológica (THOMAS, 2008, p. 240)4. Os três enfoques contribuem para a visualização de aspectos de uma dada situação de mudança tecnológica, mas como modelos, que resultam em redução da realidade, compromissos e simplificações são necessários para que funcionem, podendo representar limitações à discussão. A SCOT, por exemplo, ao colocar que os sentidos do artefato são socialmente construídos 4 Em “Estructuras cerradas versus processos dinámicos: trayectorias y estilos de innovación y cambio tecnológico”, Thomas propõe um “conjunto de conceitos sociotécnicos [...] particularmente úteis para a compreensão de processos de design, produção e utilização de tecnologias na América Latina.” (2008, p. 218). Para tanto, o autor realiza uma revisão das abordagens integrantes dos estudos sociais da tecnologia e contribui para nossa análise ao apresentar suas vantagens, fragilidades e limitações. e ao empregar o social como forma explicativa preponderante, incorre numa espécie de determinismo social e mantém em esferas separadas o “social” e o “técnico”, esmaecendo a importância dos elementos técnicos e materiais, importantes na compreensão de design de artefatos (em nosso caso, condições geofísicas de um rio, por exemplo). O conceito de grupos sociais relevantes também pode representar problemas à análise, pois não considera que diferentes grupos podem atribuir diferentes significados a um artefato ao longo do processo e não oferece alternativa de análise dinâmica (THOMAS, 2008, p. 241): A pesar de su intención dinámica, el abordaje constructivista resulta estático: representa un momento estable de un sistema de interacciones. La temporalidad – historicidad de los marcos tecnológicos y los ensambles socio-técnicos – solo es representable mediante una sucesión de modelizaciones, tantas como estabilizaciones son detectadas (Ibid, p. 242). Assim, os conceitos de grupos sociais relevantes e de fechamento, dentro das funções que a SCOT lhes atribui, podem limitar análises que considerem a temporalidade, o que nos termos de Thompson constitui o “material” do historiador, mas com destaque para outro sentido, não abrangido por Thomas – e pelos autores vinculados às outras duas abordagens: “a evidência de comportamento (inclusive comportamento mental, cultural) acontecendo no tempo” (THOMPSON, 1981, p. 49). Ou seja, a utilização dos grupos sociais relevantes identifica elementos constitutivos da mudança tecnológica e os isola, de modo que suas prováveis manifestações contraditórias e caras à compreensão da dinâmica histórica escapam à análise. Portanto, falta o suporte no contexto social e cultural mais amplo, que explique e dê espaço às relações de poder existentes entre os grupos sociais, uma vez que estes são integrados de maneira homogênea. Outro ponto problemático, que derivamos da afirmativa de E. P. Thompson, de que a análise histórica exige constantes modificações nos seus procedimentos para captar os movimentos do evento histórico (Ibid, p. 49), se relaciona aos conceitos de fechamento e de estabilização. Na dinâmica histórica eles podem impedir a observação de novas relações, contextos e situações estabelecidas a partir da adoção de um determinado artefato. Contudo, a SCOT interessa pela ênfase atribuída ao caráter multidirecional do desenvolvimento tecnológico e pelo conceito de flexibilidade interpretativa, na medida em que este chama a atenção para a observação de grupos que participam do processo de design, para a atribuição de significados ao artefato por estes grupos e para formas possíveis de fechamento de controvérsias. Principalmente, no conceito de flexibilidade interpretativa, encontramos apoio para a afirmativa de que o desenvolvimento de uma tecnologia, tal qual ocorre, não necessariamente deve ser entendido como a causa de seu êxito, mas como o resultado de ter sido aceita ou imposta por grupos sociais (BIJKER, 1993, p. 119 apud THOMAS, 2008, p. 235). Quanto à teoria do Ator-rede, nossa crítica recai justamente sobre o ponto que propõe simetria entre humanos e não humanos. A atribuição de agência a artefatos5, como no caso em que Callon afirma que os catalisadores recusaram-se a desempenhar seu papel no cenário criado pela EDF6, exige esforço para aceitação, sobretudo quando esta mesma simetria acaba também por subtrair das relações de poder, seu papel no desenho tecnológico. Conforme Thomas, se a teoria do Ator-rede é útil para descrever como ocorreram as coisas, apresenta dificuldades no momento de explicar por que ocorreram assim e não de outra maneira (2008, p. 232). Thompson observa que na análise histórica, a observação é raramente singular e procura por múltiplas evidências “cuja interrelação é, inclusive, objeto de nossa investigação” (1981, p. 15). Na procura dos porquês envolvidos em um processo histórico, a própria evidência e os acontecimentos não se mantêm estáveis, o que representa buscar pela formação da consciência social e de suas tensões. Mas na teoria do Ator-rede encontramos a formação de um coletivo sociotécnico, pela forte ligação entre atores humanos e não-humanos. Nesse sentido, o Ator-rede vai além da SCOT, ao considerar que o design final do artefato ocorre não somente como resultado da aceitação dos grupos sociais relevantes, mas devido à participação de atores heterogêneos, de modo a possibilitar a análise de situações em que a presença de atores não humanos exerce forte influência. O sistema tecnológico, por sua vez, não é linear, não prioriza nenhum aspecto, seja econômico, tecnológico ou político e permite compreender o caráter complexo da construção social da tecnologia através de operações de representação racional (THOMAS, 2008, p. 225). Mas ao prover um conjunto específico de conceitos para analisar como os diversos atores interagem com a tecnologia, como a avaliam e em que direção propõem sua mudança, cria condições para análises de grande escala (grandes sistemas tecnológicos nacionais ou transnacionais), representando dificuldades para a análise de aspectos parciais (Ibid, p. 225). Dentre os conceitos desenvolvidos por Hughes, adotamos o conceito de momentum, útil à compreensão de nosso objeto de estudo, pois considera que o desenvolvimento de uma nova tecnologia produz uma materialidade que pode resultar em novas formas de organização social. Ou seja, diferentemente da SCOT, que analisa apenas os artefatos socialmente construídos, os sistemas tecnológicos não consideram somente o contexto e os elementos presentes no desenvolvimento tecnológico, como também as mudanças que se desenvolvem a partir dele (BIJKER; PINCH, 1997, p. 55). Na análise de aspectos de grande escala, não encontramos espaço para nossa intenção, de 5 A esse respeito, Latour afirma: “La TAR no es la afirmación vacía de que son los objetos los que hacen las cosas 'en lugar de' los actores humanos: dice simplesmente que ninguna ciencia de lo social puede iniciarse siquiera si no se explora primero la cuestión de que quién y qué participa en la acción, aunque signifique permitir que se incorporen elementos que, a falta de mejor término, podríamos llamar no-humanos. Esta expresión, como todas las demás elegidas por la TAR, no tiene ningún significado in sí misma. No designa un dominio de la realidad.” (LATOUR, 2008, p. 107, grifo no original). 6 “Fairly quickly, the catalysts refused to play their part in the scenario prepared by EDF: Although cheap (unlike platinum), the catalysts had the unfortunate tendency of quickly becoming contaminated, rendering the fuel cell unusable. The mass market suddenly disappeared like a mirage.” (CALLON, 1997, p. 90-91). “tanger percepções subjetivas, multifacetadas, submetidas ao resultado de experiências que em si são históricas” (MEIHY, 2006, p. 124) e mesmo diante da possibilidade apresentada pela abordagem, de compreender as mudanças a partir do desenvolvimento tecnológico, nos interessa a experiência dos(as) colaboradores(as). Portanto, para compreender a mudança na vida de um grupo de agricultores, decorrente da implantação de um grande projeto tecnológico de infraestrutura, precisamos, primeiramente, recorrer também à expressão cultural e política da consciência dos sujeitos. Considerações finais Do ponto de vista que adotamos, privilegiar apenas fatores econômicos, políticos ou técnicos constitui procedimento limitador na análise das relações que produzem historicamente as transformações tecnológicas. Ao pensarmos os conceitos técnicos desenvolvidos no interior das abordagens apresentadas, orientando-nos pela História Social, buscamos o destaque à dimensões mais humanas do desenvolvimento tecnológico, de modo a conhecer “a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento” (THOMPSON, 1981, p. 15). Estas respostas, imersas e constituídas por subjetividades, fundamentam-se em experiências socioculturais produzidas historicamente e tratadas na consciência dos sujeitos. Portanto, elas também revelam a experiência das mudanças tecnológicas na vida social e cultural, bem como sua repercussão nas ideias e valores dos sujeitos, que poderão propor novas questões e contextos ao desenvolvimento tecnológico. Assim, as narrativas produzidas e a contextualização da construção da usina podem ser compreendidas como dimensões de um mesmo processo de desenvolvimento e não como elementos que se relacionam por simples determinação. Este procedimento pode possibilitar análises da natureza da mudança tecnológica que Itaipu representou e inserir as narrativas das famílias desapropriadas, as percepções e significados nas quais se apoiam, na dinâmica de relações em que se constitui o desenvolvimento tecnológico. Destacamos que, pela visão contextualista de tecnologia que adotamos, este procedimento teórico não correspondeu a atribuir um papel secundário ao campo CTS, nem ocorreu apenas de modo a entender alguns aspectos da história social pretendida. Considerar as reflexões dos estudos CTS enquanto contribuição, correspondeu a acessar de modo privilegiado uma determinada dimensão da história da construção da usina de Itaipu, relacionada à necessidade de compreensão da atuação e das demandas dos sujeitos históricos frente às mudanças tecnológicas da sociedade. * Com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Referências CALLON, Michel. Society in the making: the study of technology as a tool for sociological analysis. In: BIJKER, Wiebe E. et al (eds.). The social construction of technological systems: new directions in the sociology and history of technology. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1997, p. 83-103. FEENBERG, Andrew. Technology and freedom. In: Alternative modernity: the technical turn in philosophy and social theory. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1995. HUGHES, Thomas P. The evolution of large technological systems. In: BIJKER, Wiebe E. et al (eds.). 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