PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista (im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2013 1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista (im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA SÃO PAULO 2013 2 Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista (im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Serviço Social sob a orientação da Professora Drª Maria Carmelita Yazbek. São Paulo 2013 3 BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________ Profª Drª Maria Carmelita Yazbek (Orientadora) _______________________________________________________ Profª Drª Raquel Raichelis Degenszajn (PUC-SP) _______________________________________________________ Profª Drª Maria Lúcia Martinelli (PUC-SP) _______________________________________________________ Profª Drª Potyara Amazoneida Pereira Pereira (UnB-DF) _______________________________________________________ Profª Drª Berenice Rojas Couto (PUC-RS) _______________________________________________________ Profª Drª Rosângela Dias de Oliveira da Paz (Suplente) (PUC-SP) _______________________________________________________ Profª Drª Maria Luiza do Amaral Rizzotti (Suplente) (UEL-PR) 4 AGRADECIMENTOS O ciclo que se inicia e se encerra com a conclusão da tese e a sua defesa é, sem dúvida, um dos marcos mais significativos na vida de qualquer pesquisador. Atividade solitária, como se diz de modo corrente no meio acadêmico, é, ao mesmo tempo, resultado de um “coletivismo” que se constrói ao longo de uma trajetória que extrapola os “anos” formalmente estabelecidos para o exercício da atividade. É por isso que estas páginas de agradecimentos são tão fundamentais quanto a própria tese. Todas as interações e interlocuções realizadas ao longo de uma vida profissional e acadêmica se fazem aqui presentes, objetiva ou subjetivamente, logo, as páginas destinadas a lembrá-las são sempre insuficientes, nos obrigando a fazer escolhas justas, contudo, sempre incompletas. O caminho que escolhi para isso foi tratar a nominata a partir das relações que se estabeleceram de modo mais direto ao objeto e processamento da tese. Assim, destaco em primeiro lugar a (re)acolhida que me foi dispensada no Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que, desde o Mestrado que conclui nessa mesma casa, me foi um espaço da mais competente interlocução para a produção de saber aliada à consolidação de relações de cumplicidade e muito fraternas que tornaram a árdua busca de conhecimento racional/científico mais leve e prazerosa. Portanto, a todos os professores, trabalhadores e colegas do PEPGSS-PUC-SP meu sincero muito obrigado. O Serviço Social da PUC-SP (graduação e pós-graduação) tem a importância, de todos nós conhecida e reconhecida, para o Serviço Social brasileiro não apenas por ter sido o nosso primeiro lócus de formação profissional, mas por abarcar e ter abarcado parte significativa dos nossos quadros pensantes mais ativos com suas produções “arrasadoras”. Nesse contexto, o privilégio de ter convivido, ainda que pelas horas restritas às atividades acadêmicas, com os mestres José Paulo Netto e Evaldo Vieira, fez as minhas buscas muito mais amplas e rigorosas, tendo este último se tornado, além de uma fonte de inspiração, um amigo dileto que não se furtou aos meus apelos e se dedicou à leitura dos meus alfarrábios; a tese em forma primitiva. Ao mestre e amigo Evaldo Vieira compartilho que esta tese também é uma tentativa de responder à altura da qualidade de sua interlocução. Em um lugar não menos destacado, a responsabilidade de responder às expectativas da interlocução de qualidade também se estende à rica orientação de Maria Carmelita Yazbek. Como disse a poetisa, “feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”1, pois não se trata aqui de uma relação formal de orientador/orientando, mas sim de uma forma simbiótica peculiar de tratar o conhecimento onde o respeito unido à admiração recíproca foram seus fios condutores. 1 Cora Coralina. 5 Outra relação intelectiva/afetiva deu-se com as mestres e amigas Raquel Raichelis e Rosangela Paz, cujas presenças foram imprescindíveis para que eu nunca pensasse em desistir da caminhada. A primeira, junto com minha orientadora e a querida Maria Lúcia Martinelli, deu ao trabalho os rumos que ele deveria tomar com suas argutas e generosas considerações no rito da qualificação. Meus agradecimentos dão-se na forma das ininterruptas produções que daqui prosseguem na esteira de seus exemplos. Ao professor Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, cujo “marxismo impenitente” foi essencial para que eu pudesse incorporar com segurança categorias e rumos analíticos por vezes marginalizados no mundo acadêmico de orientação marxiana e marxista. Aos professores Marco Aurélio Nogueira e Luís Filgueiras, pelo diálogo que se transformou em contribuição aos meus estudos. Aos companheiros de caminhada, amigos e colegas, professores Wanderson Fábio de Melo e Eduardo Benzatti do Carmo, que também dispensaram parte de seu precioso tempo para ler e opinar sobre os originais, melhorando em muito o que eu poderia fazer. Aos companheiros do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) que compartilharam dessa jornada, compreendendo sua importância e com isso aliviando as tensões do nosso exercício profissional nesses espaços. Aos(Às) companheiros(as) assistentes sociais que, no primeiro desenho da pesquisa, se dispuseram a participar dos grupos focais. Embora a pesquisa tenha amadurecido para outros rumos, as ricas contribuições e seus depoimentos foram fundamentais para que o estudo se concretizasse. Aos colegas professores, trabalhadores e alunos da Faculdade Projeção de Ceilândia, do Curso de Serviço Social, incentivadores, portanto, cúmplices do começo e, aos colegas professores, trabalhadores e alunos da Universidade Federal de Goiás, cúmplices do final disso tudo. Aos mestres que, generosamente, aceitaram compor a banca de arguição desta tese em meio a tantas atribuições que se lhes exige o cotidiano. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo apoio na realização do doutorado e da tese. A todos vocês citados e aos não citados, meu muito obrigado. 6 RESUMO PAULA, Renato Francisco dos Santos. Serviço social, estado e desenvolvimento capitalista: (im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional. 420p. Tese (Doutorado em Serviço Social)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2013. A presente tese tem como objeto de estudo as particularidades dos projetos desenvolvimentistas contidos na história da evolução do capitalismo brasileiro e suas implicações para o Serviço Social e seus projetos profissionais. Sob a orientação da “economia política” como método, parte do pressuposto de que as relações estabelecidas entre o Estado e as classes sociais são o núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão social e técnica do trabalho no capitalismo de tipo monopolista. Desta forma, resgata a evolução do debate sócio-histórico sobre o Estado tanto como categoria de análise crítica quanto como “instrumento” de concreção dos interesses de classe por meio do cotejamento aos clássicos da ciência política, dos pensamentos sociológico e econômico universais. Presta-se à análise desses mesmos campos de conhecimento, em sua versão brasileira, para, com isso, induzir a uma perspectiva totalizante que arrola os elementos gerais, particulares e singulares do fenômeno considerado. Trata dos projetos desenvolvimentistas como “momentos de síntese” do processo de evolução do capitalismo nacional com destaque especial para o ciclo atual de acumulação em que se trava um debate sobre a existência ou não de um projeto neodesenvolvimentista, cujos desdobramentos rebatem tanto na reconfiguração do mercado particular de trabalho do Serviço Social, quanto nas suas formas de produzir conhecimento, análises da realidade e orientações ético-políticas relacionadas à sua luta antissistêmica cotidiana. Palavras-Chave: Estado. Desenvolvimento Capitalista. Serviço Social. Neodesenvolvimentismo. 7 ABSTRACT PAULA, Renato Francisco dos Santos. Serviço social, estado e desenvolvimento capitalista: (im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional. 420p. Tese (Doutorado em Serviço Social)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2013. The current thesis has as object of study the particularities of those developmentalist projects, present in the history of the evolution of Brazilian capitalism as well as its implications in Social Work and its professional projects. Under the lights of the ‘political economy’ as a method, it departs from the assumption that the relationships established between State and the social classes are the hard core through which circulate the legitimacy and the social orientation of Social Work as a participating profession of the social and technical division of monopolist capitalism. That way, it recovers the evolution of the socio-historical debate on State not only as a category of critical analysis but also as an ‘instrument’ that makes concrete the class interests through the collation to the Political Science canon as well as to the sociological and economic thoughts taken as universal. It also lends itself to the analysis of such fields of knowledge in its Brazilian version in order to induce to a totalizing perspective that does not abstain from listing the general and particular elements of the phenomenon in question. It regards the developmentalist projects as ‘moments of synthesis’ of the evolutionary process of the national capitalism with special emphasis on the current cycle of accumulation in which there is a debate on the existence or not of a neo-developmentalist project whose deployments hold in check the reconfiguration of the private job market of Social Work as well as its ways of producing knowledge, analysis of the reality and ethical-political orientations, in its daily anti-systemic struggle. Key Words: State. Capitalist Development. Social Work. Neo-developmentalism. 8 RÉSUMÉ PAULA, Renato Francisco dos Santos. Serviço social, estado e desenvolvimento capitalista: (im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional. 420p. Tese (Doutorado em Serviço Social)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2013. Cette thèse a comme objet d’étude les particularités des projets développementalistes présents dans l’histoire de l’évolution du capitalisme brésilien et ses implications pour le Service Social et ses projets professionels. Sous l’orientation de “l’économie politique” comme méthode, cela part de l’hypothèse que les rélations établies entre l’État et les classes sociales sont le noyau dur par où circulent la légitimité et l’orientation sociale du Service Social en tant que profession participante de la division sociale et technique du travail dans le capitalisme monopoliste. Ainsi, cela délivre l’évolution du débat sociohistorique en tant que catégorie d’analyse critique et aussi en tant qu’instrument de concrétisation des intérêts de classe à travers le rapprochement aux classiques des Sciences Politiques, des pensées sociologique et économique universelles. Cela se prête à l’analyse de ces champs de connaissance dans sa vérsion brésilienne afin d’induire à une perspective totalisante qui ne se abstient pas d’enrouler les éléments généraux, particuliers et singuliers du phenomène en question. Cella s’occupe des projets développementalistes en tant que “moments de synthèse” du processus d’évolution du capitalisme national, notamment en ce qui concerne le cycle actuel d’accumulation où il y a un débat à propos de l’existence ou pas d’un projet néo-développementaliste dont les dédoublements rebattent dans la reconfiguration du marché particulier de travail du Service Social et aussi dans ses manières de produire connaissance, analyses de la réalité et orientations étiques politiques à sa lutte anti-systémique quotidienne. Mots-clés: État. Développement Capitaliste. Service Social. Néo-développementalisme. 9 LISTA DE QUADROS E FIGURAS Quadro 1 – Trajetória intelectual de Nicos Poulantzas (o conceito de Estado capitalista) 109 Quadro 2 – Os 20 maiores grupos econômicos no Brasil, em receitas totais e áreas de atuação de suas controladas (2009) 283 Quadro 3 – Tendências predominantes no debate profissional sobre “Estado” e temas afins 342 Figura 1 – Dupla estratégia da campanha OIT para estender a cobertura da Seguridade Social – Cobertura de Benefícios 297 10 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Taxas anuais de crescimento econômico – Brasil – 1920 a 1945 188 Tabela 2 - PEA versus PNB/ano – Brasil – 1976 a 1978 203 Tabela 3 - Apropriação da riqueza – Brasil - 1981, 1990, 1999 208 Tabela 4 - Despesas do governo central (% do total) - Brasil - 1994 a 2010 262 Tabela 5 - Participação da indústria no emprego (% do total) 273 Tabela 6 – Donos últimos que exibiram maiores ganhos de centralidade na Reconfiguração das teias societárias entre 1996 e 2009 281 Tabela 7 – Programas apoiados pelo FMI na Europa 382 Tabela 8 – Cooperação oferecida pelo Brasil 2005-2009 383 Tabela 9 – Contribuição para organismos multilaterais 383 11 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Balanço de ACs julgados versus distribuídos no Cade com tempo médio – 2000 a 2011 240 Gráfico 2 - Tempo médio de tramitação dos ACs no SBDC (em dias) – 2005 a 2011 240 Gráfico 3 - Composição e crescimento do estoque financeiro global (em trilhões de dólares%) 246 Gráfico 4 - Estoques da dívida externa (em % do RNB) – América Latina e Caribe, e Brasil - de 1980 a 2010 250 Gráfico 5 - Serviço da dívida (capital + pagamento de juros) – Brics – 1995 a 2010 (em bilhões de dólares) 251 Gráfico 6 - Serviço da dívida total (% das exportações de bens, serviços e renda) – Brics – 1995 a 2010 251 Gráfico 7 - O investimento estrangeiro direto nas regiões emergentes – 1990-2005 (em %) 252 Gráfico 8 - Ingressos líquidos de investimento estrangeiro direto (em bilhões de dólares) 253 Gráfico 9 - PIB per capita (US$ atualizados) – Brasil - 1995 a 2011 256 Gráfico 10 - PIB na cotação atual do dólar – Brics – 1995 a 2011 (em bilhões e trilhões de dólares) 257 Gráfico 11 - Inflação (%) – Preço para o consumidor – Brasil - 1995 a 2011 258 Gráfico 12 - Inflação (%) – Preço para o consumidor – Brics, América Latina e Caribe - 1995 a 2011 259 Gráfico 13 - Taxa de juros Selic acumulada anual e média mensal – Brasil – 1995 a 2012 260 Gráfico 14 - Dívida Interna (R$) – Brasil - 1994 a 2010 (em trilhões de real) 261 Gráfico 15 - Credores da dívida interna (%) – Brasil - abril de 2010 261 Gráfico 16 - Participação da indústria de transformação no PIB - Brasil, economias desenvolvidas e economias em desenvolvimento no ano 2000 271 Gráfico 17 - PIB e subsetores (com ajuste sazonal) - Taxa (%) do primeiro trimestre de 2012 em relação ao trimestre imediatamente anterior 272 Gráfico 18 - Valor adicionado real – PIB, agropecuária, mineração e indústria de transformação: 2002-10 (índice 2002 – 100) – Brasil 274 Gráfico 19 - Dessubstituição de importações, indicadores: 1995 – 2002 12 (média móvel 4 anos) – Brasil 274 Gráfico 20 - Participação no valor das exportações, segundo o fator agregado: 2002-10 (%, média móvel 4 anos) – Brasil 275 Gráfico 21 - Dependência tecnológica: 1996-2010 (%) – calculado com US$, valores constantes em 2010 – Brasil 276 Gráfico 22 – Trajetória do Gasto Social Federal – 1995 a 2010 291 Gráfico 23 – Taxas de Crescimento Real do Gasto Social Federal e do PIB, 1995 a 2010 293 Gráfico 24 – Taxas de Crescimento Real do Gasto Social Federal e do PIB, 1995 a 2009 293 13 LISTA DE SIGLAS ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social Ambev – Companhia de Bebidas das Américas ANAS – Associação Nacional de Assistentes Sociais BC – Banco Central BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento Bird – Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento BM – Banco Mundial BNDES – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social BNH – Banco Nacional de Habitação BPC – Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social Bric – Brasil, Rússia, Índia e China (países em desenvolvimento) Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica CEB – Comunidade Eclesial de Base Cepal – Comissão Econômica para América Latina e Caribe CEF – Caixa Econômica Federal CFESS – Conselho Federal de Serviço Social CLT – Consolidação das Leis do Trabalho CRAS – Centro de Referência de Assistência Social CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social DC – Desenvolvimento de Comunidade DOC – Desenvolvimento e Organização de Comunidade DEM – Democratas (partido político) DRU – Desvinculação de Receitas da União Eletrobras – Centrais Elétricas Brasileiras S.A. EI – Empreendedor Individual FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço FHC – Fernando Henrique Cardoso Fiesp – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo FMI – Fundo Monetário Internacional Geia – Grupo Executivo da Indústria Automobilística GSF – Gasto Social Federal IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IED – Investimento Estrangeiro Direto 14 Ipea – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas Iseb – Instituto Superior de Estudos Brasileiros JK – Juscelino Kubistchek LBA – Legião Brasileira de Assistência MDIC – Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MP – Medida Provisória OMC – Organização Mundial do Comércio OIT – Organização Internacional do Trabalho ONU – Organização das Nações Unidas PAC – Programa de Aceleração do Crescimento Paeg – Programa de Ação Econômica do Governo Castelo Branco PASEP – Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público PBF – Programa Bolsa Família PCB – Partido Comunista Brasileiro PCUS – Partido Comunista da União Soviética PDS – Partido Democrático Social PEA – População Economicamente Ativa PEP – Projeto Ético-Político-Profissional Petrobras – Companhia de Petróleo Brasileiro S.A. PIB – Produto Interno Bruto PIS – Programa de Integração Social PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNB – Produto Nacional Bruto PND – Plano Nacional de Desenvolvimento PNDH – Plano Nacional de Direitos Humanos Pnud – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PP – Partido Progressista Protec – Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica PRR – Partido Republicano Rio-Grandense PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira Psol – Partido do Socialismo e Liberdade PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro PUC – Pontifícia Universidade Católica RNB – Renda Nacional Bruta 15 SDBC – Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência SESC – Serviço Social do Comércio SESI – Serviço Social da Indústria SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial SPVEA - Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia Sudam – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia Sudene – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste SUS – Sistema Único de Saúde SUAS – Sistema Único de Assistência Social UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura Unicamp – Universidade de Campinas Unctad – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas URV – Unidade Real de Valor 16 SUMÁRIO NOTAS INTRODUTÓRIAS 20 Capítulo I ESTADO E RAZÃO MODERNA 52 1.1 A problemática do Estado 1.2 Problematizações mais visitadas: exemplos de evolução do pensamento sobre o Estado 1.2.1 De Maquiavel a Hegel 1.2.2 Marx e os marxistas 1.2.3 A tradição liberal 64 67 78 129 Capítulo II DESENVOLVIMENTO E CAPITALISMO: ESBOÇO DE INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA 156 2.1 Estado e desenvolvimento 2.1.1 Desenvolvimentismo no Brasil 2.1.2 Momentos de síntese da acumulação capitalista: o desenvolvimentismo brasileiro 2.1.2.1 Expressões inaugurais: protoformas 2.1.2.2 A crise do café 2.1.2.3 A Era Vargas 2.1.2.4 O Plano de Metas de Juscelino Kubistchek 2.1.2.5 O desenvolvimentismo autocrático burguês 2.1.3 Um interlúdio para a redemocratização: protoformas do ajuste neoliberal 2.1.3.1 O Plano Cruzado (1986) 2.1.3.2 O Plano Bresser (1987) 2.1.3.3 O Plano Verão (1989) 2.1.3.4 Os Planos Collor I e II (1990 – 1991) 2.1.3.5 O Plano Real (1994) 61 162 165 170 171 185 187 194 199 202 203 206 206 206 209 17 Capítulo III CONTINUIDADE E RUPTURA: NOVO-DESENVOLVIMENTISMO OU NEOLIBERALISMO À BRASILEIRA? 212 3.1 Modo de produção, expropriação e fluxos do capital 224 3.2 Acumulação, fetichismo e a crítica marxista ao desenvolvimento 234 3.3 Dependência (Sistema de Reciprocidades) e a nova roupagem do neoliberalismo 244 3.3.1 Continuidade e ruptura: novo-desenvolvimentismo ou neoliberalismo à brasileira? 255 3.3.1.1 Primeira fase do novo ciclo: fase contrarreformista 256 3.3.1.2 Segunda fase do novo ciclo: fase de consolidação do neoliberalismo à brasileira 263 3.4 A Política Social do neoliberalismo à brasileira: fugindo às injunções lineares 285 Capítulo IV SERVIÇO SOCIAL NAS TRAMAS DO NEOLIBERALISMO À BRASILEIRA: PASSADO, PRESENTE E FUTUTO 304 4.1 Das origens às tentativas de ressignificação 4.2 Construções pós-intenção de ruptura 4.2.1 Análises críticas sobre a reestruturação produtiva e a recomposição do pensamento liberal 4.2.2 Análises críticas sobre a contrarreforma 4.2.3 Análises críticas sobre o terceiro setor 4.2.4 Análises críticas sobre a assistência e a proteção social 4.3 Neodesenvolvimentismo (?) e o projeto profissional: ameaça ou possibilidade? 306 325 343 358 360 363 368 À GUISA DE CONCLUSÃO 400 REFERÊNCIAS 407 18 O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. João Guimarães Rosa 19 NOTAS INTRODUTÓRIAS Para algumas pessoas, as tarefas aparentemente mais simples tornam-se as mais complexas quando têm de ser colocadas em prática. Os produtos acadêmicos, quase sempre, costumam sofrer desse mal. O batismo de uma tese — no caso a finalização com seu título — é um exercício tão descontraído quanto complexo. O produto que ora apresentamos para ser posto em análise pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PEPGSS-PUC-SP), como síntese de um curso de doutorado, não se furtou a tal dualidade. Seu título não é autoexplicativo, porém, amplamente sugestivo. Antes de refletir o conteúdo da tese, o título anuncia — ao menos no campo das expectativas de seu autor — a articulação entre categorias científicas, de um lado, relativamente desgastadas no campo das ciências sociais e humanas por serem recalcitrantes, pois fundantes da área chamada humanidades e, por outro, componentes categoriais insuficientemente tratados no âmbito do Serviço Social brasileiro e menos ainda como manifestações, para além de fenomênicas, em relação ininterrupta. O comum é encontrarmos abordagens que isolam esses elementos ou quando os articulam entre si não os agregam a outras categorias de maior amplitude, e, na maioria das vezes, são tratados de modo apenas descritivo ou apenas ensaístico. A escolha dessa aventura consequente deu-se com plena consciência de sua complexidade, suas dificuldades, seus limites, mas também com consciência de suas possibilidades e do flanco teórico, metodológico e político que se abre como contribuição aos debates interno e externo à categoria profissional dos assistentes sociais brasileiros. Ambos os motivos foram mais estimuladores que temerários. Serviço Social, Estado, desenvolvimentismo, capitalismo e projeto profissional costumam frequentar a produção sociológica do tempo presente em cotejamento histórico com o que há de clássico e tradicional no tempo passado. Não se explicam por si. Devem mesmo associar-se internamente e a outras categorias, como modo de produção, sociedade, classes sociais, questão social, políticas públicas, etc. e fazer valer-se de recursos epistemológicos da História, da Economia Política e da Economia, da Ciência Política e da Filosofia Política, do Direito, da Filosofia, da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, e até das “Ciências Duras”, em alguma medida. Juntos, devem ser contextualizados conjunturalmente, em explícita evidência das mediações que se lhes articulam e atribuem nexos, permitindo transcender da sua materialização à abstração e de modo contrário. Estas considerações iniciais evidenciam apenas a amplitude da temática. Não permitem de per si identificar a que objeto a pesquisa se dedica de fato. E isso não se dá apenas porque a pesquisa é um recurso inesgotável para o conhecimento, fazendo dos pesquisadores sempre 20 aprendizes, mas se dá também porque a circunscrição metodológica de um objeto que se constitui de modo relacional é, na maioria das vezes, relativa. Isso porque se referencia em “fatos móveis”, mutáveis e dependentes de inúmeras variáveis. Essa sentença ajuda a entender as dificuldades e idiossincrasias da definição de um objeto que se constrói em um processo histórico em curso, contudo não é suficiente para justificar sua apresentação “difusa”, como pode parecer ser. Por isso, manteve-se aqui a usual escolha de algumas indagações provocativas e indicativas de possíveis lacunas no vasto campo de conhecimento que utiliza de modo recorrente as cinco categorias em suas elaborações2. Não é necessário precisar se foram os incômodos originados pela observação crítica e pela prática cotidiana que motivaram as perguntas norteadoras ou se foi a ausência preliminar de respostas. É um dilema similar ao do “ovo e a galinha”, que, embora exista concretamente, ao ser real, sua solução imediata mostra-se indiferente para o que se pretende, ainda que um raciocínio lógico possa se impor como recurso, pois o que nos incomodava primeiro era uma problemática que insistia em nos provocar: a problemática teórico-prática do Estado. O que isso quer dizer? Significa que há correntes de ideias em torno do Estado que remetem a formulações teóricas sobre seus significados e significantes constantemente contrastadas. Do mesmo modo, esses contrastes criam vida e tomam corpo quando se referenciam na realidade mesma, com seus “homens concretos e suas vidas concretas”. Ou, se preferirmos os termos de um intelectual de maior envergadura, considerar-se-á que a problemática é “o conjunto de perguntas, ideias e suposições que delimitam o terreno no qual se produz determinada teoria, terreno que nem sempre é visível na superfície do discurso teórico, e que, no entanto, determina as condições e as possibilidades de enunciados desse discurso”, ou numa outra opção: “a problemática é a unidade profunda de um pensamento teórico ou ideológico”3. E isso nos mostra que há uma problemática ancestral em torno do Estado que foi precursora de conhecimentos racionais modernos como os da Ciência Política ou da Filosofia Política. Isto sim antecede, a nosso ver, o dilema da galinha com seus ovos. A temática não esgotada do Estado, por se atrelar a relações sociais concretas, atravessa como lâmina a vida cotidiana desde o trabalhador humildemente iletrado até os PhDs das mais complexas ciências, desafiando-os como a esfinge que espera para devorar os que não decifram seus enigmas, pois, como referiu Marx, “o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual” 4 conformando a consciência dos homens e o modo como esses tomam consciência da vida. 2 São elas: Serviço Social, Estado, Desenvolvimentismo, Capitalismo e Projeto Profissional. ALTHUSSER (1965). In: BOITO JR, Armando. Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos. São Paulo: Unesp, 2007. 4 MARX. Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 3 21 Ao chegar ao nosso terreno — o campo do Serviço Social — essa problemática inacabada (por ter como base um objeto inacabado) vai ganhando aderência de diferentes matizes. Atrela-se ao Serviço Social por ser inevitável como um elemento, que justifica sua existência como profissão na divisão social e técnica do trabalho, ao mesmo tempo em que lhe condiciona a legitimidade. Disso decorre o primeiro enigma da esfinge: Como nos apropriamos de tal problemática? Como o Serviço Social se apropriou da problemática teórico-prática do Estado? E, numa imanente reciprocidade, cabe a dúvida invertida: Como o Estado, em suas metamorfoses ininterruptas, apropria-se e relaciona-se com o Serviço Social? As respostas não estão prontas. Elas vão sendo descobertas nos caminhos que conduzem a investigação. Ou, como nos lembra Marx: “Não há entrada já aberta para a ciência”. E delas — das respostas — vamos selecionando o que de fato nos interessa inquirir com mais vigor no momento, que nada mais é do que o próprio objeto de estudo: as particularidades dos projetos desenvolvimentistas contidos na história da evolução do capitalismo brasileiro e suas implicações para o Serviço Social e seus projetos profissionais. Esta sim, de fato, é uma forma mais precisa de interpelar o modo como o processo relacional entre o Estado e a profissão se manifestam no concreto da vida e no subjetivo das relações. A inquietação sobre o tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teórico-prática do Estado impôs-se com tal força que não pôde ser eliminada como pano de fundo. Ambos — Serviço Social e Estado — são suficientemente relacionais e, por isso mesmo, apresentam quantidade relativa de estudos, pesquisas, ensaios, em torno de si, que pudemos utilizar como ponto de partida. “A galvanização necessária para constituição do objeto se fez possível quando o referenciamos a formação social particular que o inscreve em sua dinâmica: a formação social capitalista e, sua base constitutiva: o desenvolvimento capitalista de feições monopólicas”5. Nele, encontramos de modo cíclico, em momentos de síntese, um fenômeno particular historicamente determinado: o chamado desenvolvimentismo. Esse último é tomado como a ação peculiar do desenvolvimento imanente das sociedades de tipo capitalista monopolista, que prescreve um conjunto de medidas voltadas para a manutenção e aperfeiçoamento de si mesmo, provocando mudanças nas relações sociais, na 5 A constituição do Brasil como sociedade capitalista, embora tenha seus traços particulares e singulares, não abdicou das características universais desse modo de produção, ou, como afirma Trotsky: “Não é verdade que a economia mundial represente apenas a simples soma de frações nacionais uniformes. Não é verdade que os traços específicos não passem de um ‘complemento dos traços gerais’, uma espécie de verruga no rosto. Na realidade, as particularidades nacionais formam a originalidade dos traços fundamentais da evolução mundial (...) não se pode reorganizar nem mesmo compreender o capitalismo nacional sem encará-lo como parte da economia mundial. As particularidades econômicas dos diferentes países não têm uma importância secundária. Basta comparar a Inglaterra e a Índia, os Estados Unidos e o Brasil. Os traços específicos da economia nacional, por mais importantes que sejam, constituem, em escala crescente, os elementos de uma unidade mais alta que se chama a economia mundial”. In: TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. 22 luta entre e intraclasses. É no escopo desse produto histórico que as articulações mais evidentes entre o Serviço Social e o Estado se mostram, mesmo na realidade brasileira. Não é por acaso que a origem do Serviço Social como profissão está atrelada ao conjunto de medidas desenvolvimentistas empregadas pelo Estado burguês quando leva a cabo seus intentos de modernização nos idos dos anos 1930. E também não é por acaso que tanto a requisição formal pelo Estado de “trabalhadores sociais” quanto o debate em torno desse processo se repõem na contemporaneidade. Encontramos, nesses tempos, um mundo igual, mas diferente. Igual porque as características estruturais do processo de acumulação capitalista, que não podem prescindir do desenvolvimento, insistem em permanecer: a expropriação do trabalho, a expansão dos níveis de acumulação, etc. Diferente porque as forças produtivas se encontram num estágio mais elevado, causando inflexões diretas na conjuntura e no desenho ideopolítico das classes e dos Estados, afetando sua própria maneira de existir6. No Brasil, se vê mais do mesmo quando identificamos que a necessidade de concertação entre Estado e mercado, Estado e classes permanece desde o Império, passando pela Primeira República, pelo Estado Novo, pela ditadura civil-militar até a redemocratização contemporânea, porém se renova com o impulso dos avanços técnicos e tecnológicos, de uma nova morfologia no mundo do trabalho, nas interpenetrações do capital desterritorializado nos Estados nacionais, nas roupagens que assumem as políticas públicas, e, como não poderia deixar de ser, pelas características e pelos efeitos das crises sistêmico-estruturais do capitalismo monopolista de cariz financista7. 6 Ou, como referiu Iamamoto: “O ‘moderno’ se constrói por meio do ‘arcaico’, recriando nossa herança histórica patrimonialista ao atualizar marcas persistentes e, ao mesmo tempo, transformando-as no contexto de mundialização do capital sob a hegemonia financeira. As marcas históricas persistentes ao serem atualizadas se repõem modificadas ante as inéditas condições históricas presentes, ao mesmo tempo que imprimem uma dinâmica própria aos processos contemporâneos. O novo surge pela mediação do passado, transformado e recriado em novas formas nos processos sociais do presente. A atual inserção do país na divisão internacional do trabalho, como um país de economia dita ‘emergente’ em um mercado mundializado, carrega a história de sua formação social, imprimindo um caráter peculiar à organização da produção, às relações entre o Estado e a sociedade, atingindo a formação do universo político-cultural das classes, grupos e indivíduos sociais. Tais desigualdades revelam o descompasso entre temporalidades históricas distintas, mas coetaneamente articuladas, atribuindo uma marca histórica particular à formação social do país. Afetam a economia, a política e a cultura, redimensionando simultaneamente nossa herança histórica e o presente. Imprimem um ritmo particular ao processo de mudanças em que tanto o novo quanto o velho se alteram em direções contrapostas: a modernidade das forças produtivas do trabalho social convive com padrões retrógrados nas relações de trabalho, radicalizando a ‘questão social’ ”. IAMAMOTO, Marilda Villela. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001. p. 101-102. 7 Por crise estrutural ou sistêmica entendemos, em conformidade com Mészáros, que se refere “a uma condição que ‘afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada’ (...) Põe em questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por algum complexo alternativo (...). Uma crise estrutural não está relacionada aos limites imediatos, mas aos limites últimos de uma estrutura global”. In: MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. 23 É esse quadro que, ao responder a novas manifestações do capital, repõe a necessidade de reconfiguradas medidas de desenvolvimento que incluem também o debate sobre a relação das profissões com a sociedade em que se inserem, pois, assumindo uma nova forma de objetivação, o capital impõe dali em diante a universalização do trabalho. O chamado novo-desenvolvimentismo, no Brasil, surge em um cenário controverso que aponta, ao mesmo tempo, de um lado, o desgaste do ideário neoliberal e do insucesso das medidas de contrarreforma dos anos 19908, e, de outro, a vitória desse mesmo ideário atestada pelas características de um novo ciclo de desenvolvimento capitalista, no qual capital e trabalho reordenam suas relações nos limites da revolução passiva, segundo os termos gramscianos9. É uma alternativa que se coloca muito mais no plano ideopolítico e no imaginário coletivo do que no campo das medidas econômicas de reversão reais dos postulados neoliberais. Se, nos idos dos anos 1930, o projeto desenvolvimentista burguês encontrava coerência e atos de reciprocidade com o projeto profissional dos assistentes sociais, na contemporaneidade o novo-desenvolvimentismo promove um discurso de renovação das políticas de tratamento das refrações da “questão social”, o que o impele a requisitar assistentes sociais para operá-las, como sempre tem sido, mas se depara com um projeto profissional criticamente antagônico às suas bases estruturais de legitimação. Há então uma ruptura do Serviço Social com projetos burgueses de desenvolvimento? Tal resposta não pode ser dada ao sabor do maniqueísmo corrente: “sim” ou “não”. Há, de um lado, uma intenção de ruptura desde o Movimento de Reconceituação, como demonstra José Paulo Netto em sua tese sobre a Ditadura e o Serviço Social que se concretiza pela aquisição e “utilização” de um cabedal teórico-metodológico de bases marxianas e marxistas refletidas no Código de Ética Profissional, na lei que regulamenta a profissão, nas Diretrizes Curriculares da formação profissional, na produção acadêmico-científica e nos posicionamentos políticos individuais ou coletivos do corpo profissional, mas há, ao mesmo tempo, e, contraditoriamente, uma aderência relativa ao que há de civilizatório no exercício prático dos postulados da 8 Não há entre os analistas da economia política brasileira um consenso que ateste se a implantação do neoliberalismo no Brasil foi exitosa ou fracassada. O que podemos encontrar com recorrência são afirmações que se referem ao seu êxito no que tange às intenções de desmonte do Estado, retração de direitos e ampliação da dependência externa. Não obstante, no que se refere a suas promessas de socialização de bem-estar, é evidente o seu fracasso, pois as medidas que arrolamos foram motivações suficientemente competentes para ampliar o fosso social das desigualdades. Se essa dialética “sucesso x fracasso” pode, à primeira vista, parecer incongruente, uma análise mais atenta nos mostra que se trata de um binômio que converge para o mesmo fim, qual seja a implantação de reformas regressivas na estrutura dos Estados nacionais de capitalismo pouco avançado, denominado argutamente por Behring (2003) de “contrarreforma”. 9 Segundo Coutinho, “uma revolução passiva implica sempre a presença de dois momentos: o da ‘restauração’ (trata-se sempre de uma reação conservadora à possibilidade de uma transformação efetiva e radical proveniente ‘de baixo’) e da ‘renovação’ (no qual algumas das demandas populares são satisfeitas ‘pelo alto’, através de ‘concessões’ das camadas dominantes) (...) A revolução passiva, portanto, não é sinônimo de contrarreforma; na verdade, numa revolução passiva, estamos diante de um reformismo ‘pelo alto’”. (In: COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2008). 24 democracia burguesa, a exemplo da defesa dos direitos humanos, dos preceitos em defesa da diversidade e do pluralismo das ideias, isto sem falar nas diretrizes relativas ao modus operandi da profissão como a qualidade dos serviços prestados, o incentivo ao protagonismo e à participação popular na agenda pública, o sigilo profissional, o direito dos usuários de serviços sociais à informação, etc. O projeto burguês, portanto, para se realizar, não precisa abrir mão desse segundo conjunto de “características” da profissão. Ao contrário, pode conviver com elas e tomá-las ainda como parte de suas estratégias de coerção ideopolíticas, fomentando a ilusão que nos leva a tentar humanizar o inumano10. Do mesmo modo, podemos tomá-las como parte constituinte das táticas necessárias à construção de um projeto societário alternativo presente no conteúdo interno dos movimentos sociais antissistêmicos, cuja adesão dos estratos profissionais críticos é inequívoca. Fica confirmada, deste modo, para nós, a necessidade de prosseguirmos problematizando o Estado e suas relações a partir da escolha de elementos relacionais que expressam uma totalidade concreta. As respostas sempre provisórias para as indagações originárias que já citamos começam a fazer sentido quando se defrontam de modo arterial com as singularidades das categorias basilares da investigação. Por isso quando perguntamos: Qual o tratamento dispensado pelo Serviço Social brasileiro à problemática teórico-prática do Estado, somos alçados inevitavelmente a uma formulação mais específica, mais próxima da realidade objetiva que concretiza a profissão: De que modo o Serviço Social brasileiro tem se relacionado com as transformações recentes, na estrutura jurídico-política de nosso Estado, consubstanciadas num ciclo peculiar de desenvolvimento capitalista? Conferindo ainda mais precisão ao objeto, colocando-o em outro ângulo, a indagação nos induz a prosseguir admitindo algumas premissas fundamentais. A primeira delas é que tratamos o Serviço Social como uma especialização do trabalho coletivo, inserido na divisão social e técnica do trabalho. A segunda, mas não menos importante, é que suas demandas legitimadoras estão relacionadas às diferentes formas de enfrentamento das múltiplas variáveis da “questão social”. Também se destaca o fato de que é na estrutura jurídico-política do Estado que repousa a rede de inter-relações entre a base material de uma determinada sociedade e suas várias instituições e onde suas formas de consciência são localizadas, como não nos deixa esquecer Mészáros11. 10 Já que tais características, quando referenciadas pelo modo capitalista de reprodução das relações sociais absorvem, de modo ineliminavelmente aderente, as feições estruturantes desse modo, o que implica a primazia do capital sobre o trabalho redundando num tipo de produção catastrófica, destrutiva e desumana conforme demonstra Mészáros (2002). 11 MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo: Ensaio, 1993. 25 Com esses pressupostos, fica mais fácil realizar a opção metodológica de circunscrever a investigação aos resultados do produto histórico produzidos no campo relacional entre Serviço Social e Estado, notadamente pelo modo como ambos participam dos projetos peculiares do desenvolvimento capitalista. Por isso, perseguir parte dessas respostas implica, ainda, dialogar com os elementos constitutivos gerais e particulares das transformações no processo de reprodução social dos sujeitos individuais (os profissionais) e coletivos (as entidades da categoria e de fora dela), ou, em outros termos, agregar outros pressupostos necessários à análise da relação Serviço Social — Estado — Desenvolvimento, quais sejam: a) buscar o sentido e a inteligibilidade da profissão na história da sociedade da qual ela é parte e expressão; b) guiar-se pelo primado da produção e reprodução social, pois é nela e a partir dela que os indivíduos se tornam sujeitos históricos, e; c) conferir centralidade a história, pois é nela que se encontra a chave heurística da problemática anunciada. Esses três pressupostos já foram arrolados por Iamamoto (2003, p. 151) 12 como fundamentais às análises da relação Serviço Social — Estado — Desenvolvimento capitalista, o que nos leva a indagar o que há de inédito, então, na reflexão proposta, uma vez que a referência em que mais nos apoiamos — a produção de Iamamoto — já nos adiantou tais chaves heurísticas? Ora, os três pressupostos ancoram-se na realidade concreta e objetiva. Sendo assim, o caráter metamórfico das relações e processos sociais: conjunturas e estrutura, atendem às requisições do seu tempo histórico. Deste modo, nunca haverá um conhecimento acabado sobre tais relações, necessitando, antes, ser constantemente revisitado e referenciado a um tempo histórico. Ademais, buscamos demonstrar, no desenrolar de toda nossa argumentação, que o período recente do Estado brasileiro é particularmente rico em seu processo de rearranjo interno e externo, devido ao modo como se reconfiguraram as correlações de forças nele, movimentando de modo singular as relações entre as classes e as frações de classe. Da contrarreforma do Estado praticada pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso até o novo-desenvolvimentismo do Presidente Lula da Silva e da presidenta Dilma Roussef, transformações significativas aconteceram, na estrutura jurídico-política do Estado, que não foram suficientemente tematizadas no espectro do Serviço Social brasileiro, nem o serão ainda, simplesmente por estarem em curso. O que nos dá a medida exata dos limites da tese sem prejuízo da sua relevância como parte dos estudos contemporâneos sobre o tema. Do ponto de vista exterior ao Brasil, também se registram mudanças significativas, no cenário mundial, avalizadoras da escolha temporal da proposta. Essas mudanças vão desde a implementação dos imperativos da mundialização do capital, sentida, sobretudo, nos anos 1990, até os marcos daquela que tem sido apontada como a mais grave crise estrutural desde 1929: a 12 IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 6. ed., São Paulo: Cortez, 2003. 26 crise sistêmica dos anos 1970, com uma erupção incontestável, em 2008, e que ainda penaliza milhares de pessoas em todo o mundo, incluindo países de capitalismo avançado. Quais elementos desse processo global têm interferência direta ou indireta nos trâmites do Estado brasileiro, no período em questão? Ou seja, impõe-se também para nós o imperativo de articular, analiticamente, a dialética das mudanças dentro e fora do País, considerando a perspectiva de uma totalidade social cujos limites extrapolam as condições imediatas de reprodução do gênero humano. Do ponto de vista interno à profissão, consideramos que as diretrizes do projeto profissional crítico do Serviço Social brasileiro, expressas no Código de Ética da Profissão, na sua Lei de Regulamentação e nas Diretrizes Curriculares da formação profissional, necessitam ainda de elementos que lhes agreguem valor teórico-prático para sua efetiva disseminação hegemônica na formação e no exercício profissional, visto que a reposição do debate sobre o desenvolvimento capitalista e seus ciclos particulares recentes apresentam tais virtudes em potencial. Não tratamos aqui de uma consideração retórica ou de desejo político. São as transformações recorrentes na conjuntura e na estrutura que requisitam a construção dialética, portanto, histórica, de táticas e estratégias que reconfigurem nossas dinâmicas internas, conforme as requisições de um mesmo real-histórico. Os elementos de análise do projeto profissional crítico sugeridos por uma ontologia do ser social possibilitam o entendimento dos aspectos gerais e particulares das sociedades e Estados que operam na ordem do capital, desde que se mantenham no campo da “ortodoxia marxista”13. Todavia, isso não implica dizer que as estratégias e táticas de enfrentamento ao padrão de sociabilidade imposta, desse modo, são imutáveis ou passíveis de um único tratamento ideopolítico e teórico-prático. Ao contrário, nem sempre as mudanças provocadas pelo próprio capital visando à sua (re)acomodação diante das transformações na sociedade são favoráveis ao projeto profissional crítico ou mesmo de modo inverso. O que nos exige vigilância e reconstrução permanente de tais estratégias e táticas, avançando/agregando conteúdos e inovando em formas de ação. Esse é o escopo motivador do estudo que só adquire sentido no nível lógico se associado ao que existe como produto histórico no campo das análises de matriz marxiana e marxistas. Portanto, é um esforço que, caso se consagre acabado, será apenas parcialmente bemsucedido. 13 Segundo Lukács, a ortodoxia marxista diz respeito à fidelidade ao método de Marx. Nesse sentido, consultar LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 63-64. 27 Sobre o método As aproximações aqui contidas relativas ao método proposto pelo estudo da crítica da economia política, nos leva a pensar as particularidades dos projetos desenvolvimentistas que caracterizam a história da evolução do capitalismo brasileiro e suas implicações para o Serviço Social e seus projetos profissionais a partir da nucleação das categorias de totalidade, contradição e mediação (NETTO, 2011, p. 58)14. A totalidade em questão apresenta-se como uma complexidade composta em processo histórico plurissecular plasmada em complexidades partícipes de seu processo de constituição. Isto é, uma totalidade concreta, que nada mais é do que a própria sociedade burguesa. Essa sociedade específica, quando tomada nas suas formas dinâmicas de realização, convoca como fulcro sustentador as relações materiais de produção, determinadas, nesse caso, pelo capital e, a depender das condições históricas que encontram, imprimem sentido à entificação do capitalismo e seu núcleo precípuo de dominação: o Estado burguês. Isso significa dizer que o recurso à totalidade se impõe como modo de alcançar a realidade como síntese de múltiplas determinações, por ser concreta, unidade do diverso (MARX, 2011) 15 , característica fundante e necessária ao estudo de formações sociais. É o mesmo que considerar o resgate da realidade ontológica como realidade determinada pelas condições materiais de existência condicionadas à processualidade da história. Ou, como afirmou Lukács (2007, p. 59 ): [A totalidade] é uma unidade concreta de forças opostas em uma luta recíproca (...) significa que, quer em face de um nível mais alto, quer em face de um nível mais baixo, ela resulta de totalidades subordinadas e, por seu turno, é função de uma totalidade e de uma ordem superiores (...) Enfim, cada totalidade é relativa e mutável, mesmo historicamente: ela pode esgotar-se e destruir-se — seu caráter de totalidade subsiste apenas no marco de circunstâncias históricas determinadas e concretas. 16 Assim, a formação social brasileira não se processa alheia à universalidade do capitalismo, e nem mesmo se absteve da criação de traços particulares e singulares que a distinguiram de outras formações congêneres. Em outros termos: Se as regras gerais do sistema 14 Como apontado por NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 58. 15 Nesse sentido, é suficientemente conhecido o célebre excerto de Marx: “O concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação”. (In: MARX, Karl. Grundisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. p. 54). 16 LUKÀCS, Georg. As tarefas da filosofia marxista na nova democracia. In O Jovem Marx E Outros Escritos. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007. (Tradução Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Netto). 28 de produção generalizada de mercadorias permaneceram presentes na constituição da sociedade capitalista brasileira, do mesmo modo penetraram as condições históricas objetivas dadas preliminarmente, plasmando, em momentos de síntese, não apenas a sua universalidade como também a formação e conformação do Estado burguês brasileiro que, desde a sua gênese até a atualidade, funciona como agente das “revoluções passivas” que marcam sua história17. Essas revoluções pelo alto, embora acomodem interesses de classes, não suprimem a luta a elas inerentes; deste modo, não podem ser entendidas como sinônimo de contrarrevolução e nem mesmo de contrarreforma, mas sim de um “reformismo pelo alto” (COUTINHO, 2008, p. 93)18. A persistência desse traço no desenvolvimento do capitalismo brasileiro nos leva, então, a pensar o método sem a interferência do determinismo economicista típico da II Internacional ou do stalinismo19. Isso significa que: 17 As regras gerais do sistema generalizado de produção de mercadorias estão mais bem detalhadas no Livro I, volume II de O Capital no item: Formas de Existência da Superpopulação Relativa. A Lei Geral da Acumulação Capitalista, onde Marx assim a resume: “Quanto maiores a riqueza social, o capital em função, a dimensão e energia de seu crescimento e consequentemente a magnitude absoluta do proletariado e da força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força expansiva do capital. A magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce portanto com as potências da riqueza, mas, quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda, quanto maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. Esta é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. Como todas as outras leis, é modificada em seu funcionamento por muitas circunstâncias que não nos cabe analisar aqui”. (In: MARX, Karl. O capital. Livro I, v. II, Capítulo XXIII: A Lei Geral da Acumulação Capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p. 747). Do mesmo modo, a história do desenvolvimento capitalista brasileiro, ao articular particular e geral, não é tratada como “evolução de um movimento anterior que se desenvolve segundo as leis da natureza”, mas sim no processo de desenvolvimento real que a engendra. Ver MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). 18 COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2008. 19 Mészáros afirma: “O ‘dogmatismo stalinista’ rejeitado [por Lukács] foi definido mais uma vez, primeiro em termos metodológicos: como a ‘ausência de mediação’, a reificadora ‘confusão da tendência com o fato realizado’, ‘a subordinação mecânica da parte ao todo’, a afirmação de um ‘relacionamento imediato entre os princípios fundamentais da teoria e os problemas da época’, a ‘restrição dogmática do materialismo dialético’ e, mais importante, como crença errônea de que o ‘marxismo era uma reunião de dogmas’. Lukács também declarou categoricamente que o único modo de exercer influência ideológica era a ‘crítica imanente’, que coloca as questões metodológicas em primeiro plano”. (In: MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005 e MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004). Quanto ao determinismo economicista, fatorialista e evolucionista, da II Internacional, sobram as críticas também feitas pelo próprio Lukács, quando afirma que os motivos econômicos não são o que distingue o marxismo da ciência burguesa, mas sim a perspectiva da totalidade (Ver História e Consciência de Classe) e também Lênin quando se refere à complexidade que envolve o “desenvolvimento desigual” típico do capitalismo que se exacerba em sua fase monopolista. (Ver Imperialismo Fase Superior do Capitalismo). 29 (...) a totalidade concreta e articulada que é a sociedade burguesa é uma totalidade dinâmica — seu movimento resulta do caráter contraditório de todas as totalidades que compõem a totalidade inclusiva e macroscópica. Sem as contradições, as totalidades seriam totalidades inertes, mortas — e o que a análise registra é precisamente a sua contínua transformação. A natureza dessas contradições, seus ritmos, as condições de seus limites, controles e soluções dependem da estrutura de cada totalidade — e, novamente, não há fórmulas/formas apriorísticas para determina20 las: também cabe à pesquisa descobri-las. (NETTO, 2011, p. 58) . Nesse movimento é que o método nos invoca a apreender as contradições que, originadas na base material da infraestrutura econômica, portanto, como fator ontológico primário da socialidade (MARX, 2008)21 partem para novos graus de complexidade, sobretudo pela generalização da política diante de um contexto social saturado de novas determinações, fazendo com que as lutas de classes — expressando relações de poder e de interesses se espraiem — por meio da ideologia, da cultura, da política, da religião, etc., — por toda a superestrutura (GRAMSCI apud COUTINHO, 2006)22, onde o jogo de interrelações entre a base material de determinada sociedade e suas várias instituições e formas de consciência podem, assim, ser localizadas (MÉSZÁROS)23. Isso confere centralidade ao terceiro elemento do núcleo duro do método, que são as mediações. Elas impedem o imediatismo na consideração da totalidade. Deste modo, (...) uma questão crucial reside em descobrir as relações entre os processos ocorrentes nas totalidades constitutivas tomadas na sua diversidade e entre elas e a totalidade inclusiva que é a sociedade burguesa. Tais relações nunca são diretas; elas são mediadas não apenas pelos distintos níveis de complexidade, mas, sobretudo, pela estrutura peculiar de cada totalidade. Sem os sistemas de mediações (internas e externas) que articulam tais totalidades, a totalidade concreta que é a sociedade burguesa seria uma totalidade indiferenciada — e a indiferenciação cancelaria o caráter do concreto, já determinado como “unidade do diverso”. (NETTO, 2011, p. 58)24. Portanto, um conjunto de mediações se coloca ao corolário de busca entre as determinações que fundam as disputas de interesses na sociedade com suas bases materiais e os 20 Como apontado por NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 58. 21 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Prefácio. Tradução de Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 22 COUTINHO, Carlos Nelson. O conceito de sociedade civil em Gramsci e a luta ideológica no Brasil de hoje. In: ______. Intervenções: o marxismo na batalha de ideias. São Paulo: Cortez, 2006. 23 MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo: Ensaio, 1993. 24 Como apontado por NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 58. 30 sujeitos coletivos que dão vida e forma às categorias que queremos colocar em relação. Assim, Estado, desenvolvimento capitalista e desenvolvimentismo compõem uma unidade complexa e contraditória de um mesmo movimento, voltado, sobretudo, às dinâmicas de acumulação que analisamos detalhadamente e, em seguida, suas articulações endógenas e exógenas em interação com um produto histórico particular da divisão social do trabalho que é o Serviço Social e seus projetos profissionais. O elo que garante tais articulações não é senão o Estado, que se materializa na realização de programas de administração da vida social sumarizados nos governos que resultam das disputas societárias mais amplas. Sendo, o governo, a forma fundamental que a classe dominante encontra para legitimarse enquanto classe e enquanto dominante pela tomada hegemônica do Estado, os programas e projetos governamentais assumem, assim, a forma mais evidente, porém não a única, de expressar os interesses desse bloco no poder. Esses programas e projetos assumem a prevalência da política econômica burguesa na medida em que esta se estrutura no processo de fetichização de toda a produção, e, por consequência de toda a vida social, impedindo a crítica de sua economia política. Esta última, por sua vez “se inicia pela mercadoria, no momento em que se trocam alguns produtos por outros” (ENGELS, 2011, p. 283)25 o que, de per si, implica uma relação e a conformação subsequente de relações recíprocas que fazem toda a produção ser socialmente determinada (MARX, 1978, p. 103)26. A política econômica burguesa, por seu turno, funda-se no mito que confere autonomia tanto à mercadoria quanto à individualização das relações sociais de produção originárias de um processo evolutivo natural e inequívoco, com uma história fatalista e unilateral. (id., ibid.)27. Com isso, torna-se imperativo colocar em exame as medidas econômicas propostas pelos governos burgueses como a melhor forma de desvendar, em suas contradições, os seus nexos internos e o modo como se articulam aos “complexos do complexo” social macroscópico na esteira da luta entre e intraclasses, do qual o Serviço Social é parte e expressão. 25 ENGELS, Friedrich. Comentários sobre a contribuição à crítica da economia política de Karl Marx. In: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2011. 26 MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). 27 Na mesma Introdução à Crítica da Economia Política, (1978, p. 103-104), Marx ironiza esse processo de fetichização e a-historicidade, em David Ricardo e Adam Smith e seus seguidores, quando afirma: “O caçador e o pescador, individuais e isolados, de que partem Smith e Ricardo, pertencem às pobres ficções das robinsonadas do século XVIII (...) Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam inteiramente Smith e Ricardo, imaginam este indivíduo do século XVIII — produto, por um lado, da decomposição das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças de produção que se desenvolvem a partir do século XVI — como um ideal, que teria existido no passado. Veem-no não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da História, porque o consideravam como um indivíduo conforme à natureza — dentro da representação que tinham de natureza humana —, que não se originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. Esta ilusão tem sido partilhada por todas as novas épocas, até o presente”. 31 Com este método, partimos sempre da relação primeira e mais simples que existe historicamente, de fato; portanto, aqui, da primeira relação econômica com a qual nos encontramos. Depois procedemos à sua análise. Pelo próprio fato de se tratar de uma relação, está implícito que há dois lados que se relacionam entre si. Cada um desses dois lados é estudado separadamente, a partir do que se depreende de sua relação recíproca e sua interação. Encontramo-nos com contradições que exigem solução. Porém, como aqui não seguimos um processo de reflexão abstrato, que se desenvolve exclusivamente em nossas cabeças, mas uma sucessão real de fatos, ocorridos real e efetivamente em algum tempo ou que continuam ocorrendo, essas contradições também estarão determinadas na prática, onde, provavelmente, também será encontrada sua solução. E, se estudarmos o caráter dessa solução, veremos que se consegue criar uma nova relação, cujos dois lados opostos teremos agora que desenvolver, e assim sucessivamente. (ENGELS, 2008, p. 282-283)28. Desse modo, recorremos ao modo lógico de análise, para buscar, no processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, “as soluções” apresentadas pelo bloco no poder, conforme apontara Engels, para dirimir suas contradições imanentes29. Por serem muitas e variadas, pelo contexto histórico, escolhemos um tipo específico de alternativa (solução) tratada aqui como momento de síntese que se origina da negação (parcial) das lógicas operantes do sistema capitalista (pelas suas crises imanentes e seus limites) em confronto com sua afirmação mesma (autorreprodução e expropriação do trabalho), e que se volta para a ampliação ininterrupta dos níveis de acumulação. Assim, os programas e projetos econômicos dos governos burgueses são pensados como produtos históricos tipificados conjunturalmente, porém, plasmados na dinâmica própria do desenvolvimento capitalista, sobretudo, na fase dos monopólios. Com isso, procuramos não conferir autonomia ao modo analítico lógico perante a história, afinal: [O método lógico] não é, na realidade, senão o método histórico despojado unicamente de sua forma histórica e das casualidades perturbadoras. Lá, onde começa essa história, deve começar também o processo de reflexão; e o desenvolvimento posterior desse processo não será mais que a imagem refletida, de forma abstrata e teoricamente consequente, da trajetória; uma imagem refletida corrigida, porém corrigida de acordo com as leis da própria trajetória histórica; e, assim, cada fator pode ser estudado no ponto de desenvolvimento de sua plena maturidade, em sua 30 forma clássica. (ENGELS, 2008, p. 282-283) . 28 ENGELS, Friedrich. Comentários sobre a contribuição à crítica da economia política de Karl Marx. (In: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2011). 29 Nesse sentido, podem ser situados tanto os processos históricos de “modernização conservadora” registrados ao longo da história dos países capitalistas, incluindo o Brasil, quanto os “reformismos às avessas”: os contrarreformismos. O reformismo real, criação das esquerdas, também é alternativa que depende das injunções históricas, como, por exemplo, no advento da social-democracia. 30 ENGELS, Friedrich. Comentários sobre a contribuição à crítica da economia política de Karl Marx. (In MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2011). 32 Assim, destacamos como categoria central, que colocaremos em relação com um elemento crucial, no processo de desenvolvimento do nosso capitalismo, que são as iniciativas de administração da res publica, consubstanciadas em projetos socioeconômicos e políticos que, tendo como fulcro o nacionalismo, a modernização pensada pela via da industrialização e o intervencionismo estatal orientado para o mercado, foram denominados de “políticas desenvolvimentistas” 31 . Associados a esses momentos específicos do desenvolvimento capitalista, os “planos voltados para estabilidade econômica” se fazem notar pelo mesmo fim: manter o funcionamento da supremacia das “liberdades” do mercado e exponenciar os níveis de acumulação com a forte interveniência estatal. Desse modo, examinamos esses momentos desde suas impostações primitivas coloniais (neste caso, relacionadas à entificação do capitalismo no Brasil pela “via colonial”, como demonstrara José Chasin) até suas expressões mais modernas, como na Era Vargas, no Plano de Metas de Juscelino Kubistchek, nos programas econômicos dos governos militares e no ajuste neoliberal expresso nos Planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor I e II e Real. Como manifestações de uma vontade política que se constrói no confronto classista, o esboço de uma interpretação histórica sobre o pensamento econômico brasileiro pela via das particularidades desenvolvimentistas evidencia suas raízes conservadoras, constantemente atualizadas pela modernização evidente das forças produtivas, ratificando o “fetichismo da mudança”: Genericamente, a valorização da mudança e a preservação das tradições constituem os dois principais traços distintivos entre o progressismo e o conservadorismo. Mas existe mais complexidade nisto. (...). Para o conservador, o divino rege a sociedade e o indivíduo, delineando eternos direitos e deveres. Portanto, o problema político também é religioso e ético. Nada de igualdade e de uniformidade, o que vale é a variedade e o enigma da vida tradicional. Assim, o conservador concorda com a existência de ordens e classes, mas acredita que a única e verdadeira igualdade é a igualdade moral, prestigiando ao mesmo tempo a autoridade, indispensável à vida 32 social. (VIEIRA, 1998, p. 35) . 31 Para Marx, as categorias exprimem (...) formas de modo de ser, determinações da existência. Para ele, o “concreto pensado é composto das categorias, das mediações, das particularidades que são propriedade do real”, portanto, “o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado” (Ver Contribuição à Crítica da Economia Política, p. 127-128). Ianni (1986) também esclarece que “na medida em que a explicação se sintetiza na categoria que poderíamos traduzir em ‘conceito’, ‘numa lei’, então a construção da categoria é, por assim dizer, o núcleo, o desfecho da reflexão dialética. Explicar dialeticamente é construir a categoria ou as categorias que resultam da reflexão sobre o acontecimento que está pesquisado (...). Marx retoma a concepção de que explicar a realidade é não só descobrir os nexos que constituem a realidade, mas ajudar essa realidade a se constituir. Portanto, o pensamento impregna o real, entra na constituição do real”. (In: IANNI, Octávio. Construção de categorias. Transcrição de aula dada no Curso de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, no primeiro semestre de 1986). 32 VIEIRA, Evaldo. Poder político e resistência cultural. São Paulo: Autores Associados, 1998. 33 No pensamento conservador, a propriedade privada e a liberdade ligam-se intimamente, ficando a sobrevivência de uma dependente da sobrevivência da outra. Prefere os sentimentos à razão, não confiando no sofismo e no cálculo, rejeitando a ideia de reforma. O conservadorismo distingue reforma e mudança, e considera legitima para a sociedade apenas a mudança33, que se deve processar lentamente como acontece no corpo humano, sempre sob direção do divino. Na mudança conservadora, se substituem elementos individuais por elementos individuais, particularidades por particularidades, enquanto a mudança progressista atinge a totalidade, o indesejável e o mundo que o torna possível. O que importa ao conservador é o imediato e o real, desprezando e excluindo a especulação e a hipótese. Fustiga, portanto, a generalização e o pensamento sistemático. Colocando-se o pensamento na perspectiva do tempo, o conservador fixa-se no passado, à medida que ele participa do presente. (Id., ibid,, p. 36)34. Assim, cumpriu-nos ir além dos conteúdos contidos nas iniciativas governamentais de gestão econômica e trazer à baila a presença ativa dos sujeitos históricos que compõem a arena dessa totalidade social. Os discursos ideopolíticos que proferem são construídos no interior dos conflitos societários e passam ao nível gnosiológico, quando referenciados ao grupo social que se vinculam, permitindo, assim, explicitar suas “visões de mundo”. Isto é, Quase nenhuma ação humana tem por sujeito um indivíduo isolado. O sujeito da ação é um grupo, um “Nós”, se bem que a estrutura atual da sociedade tenda por meio do fenômeno da reificação a ocultar este “Nós” e a transformá-lo em soma de várias individualidades distintas e fechadas umas para as outras (...) Uma concepção de mundo é precisamente este conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que reúne os membros de um grupo (ou o que é mais frequente, de uma classe social) e os 35 opõe a outros grupos. (GOLDMAN apud VIEIRA, 1998) . Assim, tanto o conteúdo dos programas quanto os discursos proferidos por seus agentes protagônicos demonstram a capacidade de os sujeitos históricos formularem respostas às intempéries de uma realidade social concreta que encontra razão nas dinâmicas dos grupos sociais que atuam no conflito classista, permitindo, de modo reiterado, alçar a análise ao campo da totalidade. 33 Lembremo-nos de que os grandes apelos de campanha de políticos que se colocaram como “alternativa” a situações político-estruturais mais longas foi o termo “mudança”. Barack Obama colocouse, em 2008, como o candidato da “mudança”. No Brasil, o novo marketing político admitido pelo Partido dos Trabalhadores também imprimiu o “selo da mudança” à campanha de Lula, em 2002, só para citar dois exemplos conhecidos e próximos de nós. Nesses discursos, a “reforma” aparece mas não com sentido de reversão estrutural de determinadas institucionalidades, mas sim como apêndice, acessório, da mudança, perdendo seu sentido progressista. 34 VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1998. 35 Id., ibid. 34 O homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida em que, paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente, ele generaliza, transformando em perguntas os seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los, bem como na medida em que, na sua resposta ao carecimento que a provoca, funda e enriquece a própria atividade com estas mediações, frequentemente bem articuladas. Desse modo, não apenas a resposta, mas também as perguntas são um produto imediato da consciência que guia a atividade. Mas isso não anula o fato de que o ato de responder é o elemento ontologicamente primário nesse complexo 36 dinâmico. (LUKÁCS, 2007, p. 229) . Os discursos proferidos por grandes personalidades que transitam no mundo da sociedade política refletem a vida e o pensamento dos sujeitos coletivos que os circundam e com eles se relacionam organicamente, mas não como individualidades iluminadas, que retiram da cartola mágica respostas aos problemas que se apresentam, mas sim como individualidades construídas, em um fazer histórico, cujos comportamento, acontecimentos e instituições, com os quais estão envolvidos, se referenciam ao grupo social, para além dos reflexos imediatos provindos das determinações econômicas, afinal, o homem faz a sua história, mas não como a quer (MARX, 1978)37. Desse modo, no itinerário de busca da configuração do desenvolvimento do capitalismo brasileiro, destacando nele os momentos de síntese desenvolvimentista, arrolamos como objetos para análise discursos proferidos pelas autoridades políticas máximas na esfera executiva, considerando que o período que marca as inflexões de envergadura na implantação do ajuste neoliberal nos interessou particularmente. Assim, os excertos de discursos analisados de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Roussef, ao apresentarem a síntese do que ensejam implantar no processo de desenvolvimento do Estado/economia brasileira, eivam-se de fatores subjetivos próprios das disputas que se processam por meio das relações entre o todo e as partes. De modo contrário, na dinâmica da integração dos elementos ao conjunto, essas sínteses tornam-se concretas, ainda que tal relação não se construa e nem se evidencie de modo imediato. A opção temporal por esse período (1995 ao momento atual) está atrelada à própria definição do objeto de estudo que, ao estabelecer os nexos relacionais entre o desenvolvimento capitalista (e o papel protagônico do Estado) e o Serviço Social, identifica um contexto social saturado de novas determinações que não apenas reconfiguram a relação capital versus trabalho, em níveis ainda não vivenciados no País, como também faz com que uma nova morfologia do trabalho obrigue a profissão a ampliar seu dinamismo crítico na construção de respostas ao processo de 36 LUKÁCS, Georg. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. (In: O jovem Marx e outros escritos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p.225-245). 37 MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. (In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores). 35 lutas antissistêmicas de que participa. O que tem provocado, inclusive, uma profusão difusa das análises desses mesmos discursos e dos programas por eles anunciados, levando, às vezes, até no meio acadêmico, a interpretações que conferem autonomia a indivíduos, personalidades políticas ante o confronto de grupos e classes estruturalmente presentes na realidade social. Imputações parecidas com: “esqueceu-se do que disse no passado” ou “rendeu-se à ordem” aparecem na maior parte das análises nos limites da dialética indivíduo/grupo mais próximas da vontade (idealizada) do que da razão (real/concreta)38. Os indivíduos podem, sem dúvida (...) separar seu pensamento e suas aspirações da atividade cotidiana deles; o fato fica excluído, entretanto, quando se trata de grupos sociais (...). Para o grupo, a concordância entre o pensamento e o comportamento é 39 rigorosa. (GOLDMANN, 1967, p. 19) . Por conseguinte, a visão do mundo elaborada pelo grupo (...) só existe nas consciências individuais dos seus membros e que, em cada uma delas, se apresenta sob a forma de uma maior ou menor variação de uma mesma estrutura que surge à apreensão global do grupo como 40 um processo de estruturação do conjunto. (GOLDMANN, 1984, p. 26 ) . O próprio Marx nega a linearidade determinista do caminho que confere autonomia ao sujeito ante os fatos históricos quando, no prefácio da segunda edição do 18 Brumário de Luís Bonaparte, critica Víctor Hugo por tratar “o acontecimento” como “um raio caído do céu”, e Proudhon, por transformar sua narrativa histórica do golpe de Estado “em uma apologia histórica do seu autor”. Conclui dizendo que ambos caem “no erro dos nossos historiadores pretensamente objetivos”. Refere que seu caminho analítico-metodológico se diferencia por “demonstrar como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a uma personagem medíocre e grotesca desempenhar um papel de herói” referindo-se a Napoleão III (MARX, 38 Ao fazer a crítica da autonomia do sujeito perante a realidade social, não estamos desconsiderando o fato de que os sujeitos históricos participam dos processos em tela por atos contínuos de reciprocidade com essa mesma realidade, o que configura a elevação do ser social. Desse modo, o lugar e o papel que ocupam na trama contribui para convocar certas “mediações” que não estão dadas da mesma forma para todos os seres. Esse processo ficará evidente quando tratarmos, no item 3.3.1 em diante, do fenômeno batizado por Singer (2012) de “lulismo”. Ali se verifica a centralidade de uma “individualidade”, mas não se justifica autônoma perante o grupo. O fenômeno está mais próximo daquilo que Weber tipificou como “liderança carismática”, cujos fins são convergentes: a manutenção do poder de um “bloco no poder”. 39 GOLDMANN, Lucién. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. Ou ver também: FREDERICO, Celso. A sociologia da literatura de Lucién Goldmann. Revista Estudos Avançados, v. 19, n. 54, São Paulo, maio/ago. 2005. 40 GOLDMANN, Lucién. Espistemologia e filosofia política. Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Nogueira. Lisboa: Presença, 1984. Ou ver também: FREDERICO, Celso. Ob. Cit., 2005. 36 1978, p. 325)41. O que nos leva a analisar com rigor os conteúdos internos dos discursos e suas imbricações com o grupo, na contemporaneidade, elevados aos níveis globais. Desse modo, somos induzidos a pesquisar os “atributos teóricos e práticos das proposições dos sujeitos a fim de corresponder a sua complexidade e revelar o núcleo social de determinada posição” (GOLDMANN, 1984, p. 26)42, que, como dissemos, são elevados à aldeia global, na contemporaneidade, a partir do processo de mundialização do capital sentido desde os anos 80. Quanto aos componentes relacionais afetos ao Serviço Social, destacam-se duas ordens de fatores distintos pelas características que apresentam, porém, com unidade causada pelos processos sociais que os engendram: um deles é a relação ontogenética da profissão com o capitalismo de tipo monopolista, e, por isso mesmo, com momentos de mais expressão nos ciclos desenvolvimentistas e o outro são as transformações no mundo do trabalho, decorrentes, para nós, sobretudo, pelo modo como as respostas dadas ao enfrentamento de refrações da “questão social” metamorfoseiam-se em conformidade com as metamorfoses da política social implementada pelo Estado burguês. Isso implica dizer que (...) a emergência [e o desenvolvimento ulterior]43 da profissão deve sua existência à síntese das lutas sociais que confluem num projeto político-econômico da classe hegemônica de manutenção do sistema perante a necessidade de legitimá-lo em função das demandas populares e do aumento da acumulação capitalista. (...) A “questão social” não determina, por si só, a gênese do Serviço Social. Ela apenas dá a base para a emergência da profissão quando se transforma em objeto de intervenção do Estado, quando surge uma mediação política entre a “questão social” e o Estado; mediação esta instrumentalizada pelas políticas sociais cujo executor terminal é o assistente social. (NETTO apud MONTAÑO, 2011, p. 33-34)44. Com esses elementos, compreendemos sumariamente os componentes que dão legitimidade ao advento do Serviço Social, mas também à sua reprodução como práxis socialmente útil45 na esfera da reprodução social. Como produto histórico, portanto, determinado socialmente, a profissão que se atrela à relação estabelecida entre o Estado e as classes sociais, pela mediação das políticas, encontra 41 MARX, Karl. Ob. Cit., 1978. GOLDMANN, Lucién. Ob. Cit, 1984. Ou ver também: FREDERICO, Celso. Ob. Cit., 2005. 43 Grifo nosso. 44 MONTAÑO, Carlos Eduardo. A natureza do serviço social: um ensaio sobre sua gênese, a “especificidade” e sua reprodução. 2. ed., São Paulo: Cortez, 2011. 45 Práxis compreendida como “atividade humana sensível”, como explorado por Marx nas teses sobre Feuerbach: “A questão se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, a saber, a efetividade e o poder, a criteriosidade de seu pensamento. A disputa sobre a efetividade ou não efetividade do pensamento isolado da práxis — é uma questão puramente escolástica”. MARX, Karl. Teses contra Feuerbach. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). 42 37 razão na esteira mesmo do desenvolvimento capitalista configurado no aprofundamento do corporativismo de Estado e de políticas desenvolvimentistas, que se repetem desde os anos 30, no Brasil. Esse simulacro exógeno rompe com a visão a-histórica e evolucionista da profissão e permite, ao mesmo tempo, que sejam verificadas as maneiras como os agentes profissionais e os demandantes dos serviços sociais (chamados de usuários) imprimem razão teleológica a ela, ainda que sob o movimento de instâncias superiores típicas das lutas que se travam na dinâmica societária mais ampla. Dessa forma, os discursos dos agentes profissionais também refletem aspirações dos sujeitos coletivos com os quais se relacionam, devendo, assim, ser referenciados tanto à dinâmica societária quanto aos grupos a que pertencem, tal como fizemos com os discursos presidenciais. Ambos — os discursos presidenciais e os discursos dos agentes profissionais — se articularão quando têm de tratar do mesmo fenômeno emergente da realidade social: o desenvolvimento social/capitalista. No caso particular da profissão, pela mediação das políticas sociais46. O caminho da profissionalização do Serviço Social é, na verdade, o processo pelo qual seus agentes — ainda que desenvolvendo uma autorrepresentação e um discurso centrados na autonomia dos seus valores e da sua vontade — se inserem em atividades interventivas cuja dinâmica, organização, recursos e objetivos são determinados para além do seu controle. Esta inserção — em poucas palavras, a localização dos agentes num topus particular da estrutura sócio-ocupacional —, quase sempre escamoteada pela autorrepresentação dos assistentes sociais, marca a profissionalização: precisamente quando passam a desempenhar papéis que lhes são alocados por organismos e instâncias alheios às matrizes originais das protoformas do 47 Serviço Social é que os agentes se profissionalizam. (NETTO, 2001, p.72) . Na conjuntura recente do País, esse processo é peculiarmente emblemático, pois está engrendrado na complexificação das lutas classistas, a partir de dois momentos significativos de alteração na rota do processo histórico do desenvolvimento capitalista em escala global: o primeiro diz respeito à alternativa neoliberal, como resposta à crise dos Estados Sociais desde os anos 70, cujos desdobramentos se dão de modo tardio no Brasil dos anos 90; e, o segundo, está afeto à substituição desse primeiro projeto — neoliberal — pelo que se convencionou chamar de social-liberalismo, que passou a funcionar a partir de 2003, acelerando-se a partir de 2007, 46 Portanto, é evidente que tratamos as políticas sociais a partir da sua relação orgânica com a política econômica e com a política desenvolvimentista. 47 NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e serviço social. 3. ed., ampl. São Paulo: Cortez, 2001. 38 quando suas medidas de gestão político-econômicas são tratadas pelo discurso oficial como políticas neodesenvolvimentistas48. É desse modo que podemos também analisar, pelos discursos e documentos oficiais, os interesses reais que inflexionam a disputa à realidade mesma e, nela, a profissão na quadra histórica atual. E, sendo atual, encontramos os registros das manifestações que se travam não apenas na oficialidade, mas também nos aparelhos da sociedade civil, da mídia à academia, o que nos obriga a “estudar a descida de suas proposituras das cúpulas da intelligentsia até o âmbito social, além do modo como suas ideias, influências e assimilações se relacionaram com os diversos grupos em disputa” (MELO, 2009, p.7)49. Com a complexificação tecnológica, os instrumentos de comunicação midiáticos assumem um lugar na arena de disputas ideopolíticas em níveis crescentes. Hoje, se dá, por exemplo, importância fundamental a campanhas políticas feitas pela Internet. A utilização de 48 Como doutrina econômico-filosófica, o social-liberalismo emerge na Inglaterra na transição do século XIX para o século XX, no bojo do processo de questionamento dos postulados centrais do liberalismo clássico; sobretudo, a liberdade. O pensamento de intelectuais como T. H. Green e L. T. Hobhouse destacam-se. Se, no liberalismo clássico, as liberdades individuais se garantiriam pela lógica do laissezfaire, com o mínimo ou nenhuma intervenção estatal, no social-liberalismo, essas mesmas liberdades seriam asseguradas com a intervenção do Estado, promotor das condições sociais e econômicas garantidoras desse exercício. Como vertente de orientação política, nesse primeiro momento, serve apenas para ampliar o debate sobre os rumos de orientação do Estado, sendo sufocada tanto pela socialdemocracia quanto pela predominância das modernizações conservadoras que se aplicam no âmbito do próprio liberalismo como forma dominante, em que anos mais tarde se converterá em neoliberalismo. Desse modo, as teses do social-liberalismo retornarão com força e com novas roupagens, quando a crise conjuntural da hegemonia neoliberal, já na metade para o fim do século XX, passa a requisitar medidas de “reparação” das bases de acumulação capitalistas afetadas pela crise, em um contexto em que as orientações do Consenso de Washington expressavam seus limites. Associa-se a isso, no âmbito mesmo da crise, a agudização das expressões da “questão social” que passam a ocupar lugar de destaque nas preocupações da classe dominante neoliberal. Processo que contribui para o advento de teses que vão desde a “modernização conservadora” do neoliberalismo, sob o signo da “humanização” do sistema, até as de um campo “pseudo-progressista”, que propagam a reversão da economia que acumula “pelo alto” pela economia que “acumula a partir da inclusão mercantil” dos “de baixo”. Destacam-se, deste modo, sujeitos políticos como Amartya Sen (capacidades, capital e desenvolvimento humanos); Anthony Giddens (com sua Terceira Via); Pierre Rosanvallon (propalando a existência de uma “nova questão social”, este, inclusive, causando imensa agitação no debate brasileiro sobre a “questão social” no âmbito do Serviço Social); Joseph Stiglitz (as falhas do mercado e assimetrias comunicativas); Alan Touraine (a via 2 ½ ); John Williamson (com seu pós-Consenso de Washington); André Gorz (com seu ecosocialismo e seu “adeus ao proletariado); Alain Lipietz (com seu paradigma ecológico central), dentre outros. Segundo Castelo, o social-liberalismo no Brasil começa quando a ideologia dominante admite maior intervenção do Estado na área social, nos idos dos anos 1990. “Os ideólogos neoliberais foram subitamente tomados de assalto por um certo tipo de humanismo, dotando os seus planos de ajuste macroeconômico de condicionamentos sociais. Têm-se, assim, uma inflexão do pensamento hegemônico em relação ao debate sobre mercado e bem-estar social, na qual uma epistemologia de direita – maximização e otimização dos recursos, escassez relativa, capital humano – é envernizada por uma suposta ética de esquerda, com palavras de ordem como justiça social, solidariedade, filantropia e voluntariado. Busca-se uma terceira via, um sincretismo entre o mercado e o Estado capaz de promover o bem-estar social.” CASTELO, Rodrigo. O social-liberalismo e a globalização da “questão social”.( In: IV CONFERÊNCIA INTERNACIONAL "LA OBRA DE CARLOS MARX Y LOS DESAFÍOS DEL SIGLO XXI”, 2008). 49 MELO, Wanderson Fábio. Institucionalização e modernização: o debate no Senado Federal entre Fernando Henrique Cardoso e Roberto Campos (1983-1989). Tese (Doutorado em História Social)Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), 2009. 39 redes sociais extrapola a esfera do entretenimento e atinge todo o âmbito das formas de reprodução espiritual da sociedade. Hoje a comunicação falada é um meio de difusão ideológica que tem uma rapidez, uma área de ação e uma simultaneidade emotiva enormemente mais amplas do que a comunicação escrita (...) o cinema e o rádio superam todas as formas de comunicação 50 escrita, desde o livro até a revista, o jornal. (GRAMSCI, 2002) . O autor dos Cadernos do Cárcere, mesmo não tendo vivido a revolução da Internet, já atribuía à imprensa e aos meios de comunicação em geral importância fundamental no campo da disputa de “ideias” capazes de promover o que Gramsci chama de “reforma intelectual e moral” da sociedade subvertendo toda “a cultura”. Como agentes privados de hegemonia, esses “aparelhos” não se constrangem, ao reproduzir projetos políticos que tenham convergência a seus interesses, por isso, se fazem de uma importância crescente para os sujeitos políticos que querem potencializar suas “armas” para a disputa. O objetivo é, como se sabe, formar consensos coletivos por meio da opinião pública. O que se chama de “opinião pública” está estreitamente ligado à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre o consenso e a força (...) A opinião pública é o conteúdo político da vontade política pública, que poderia ser discordante: por isso, existe luta pelo monopólio dos órgãos da opinião pública — jornais, partidos, Parlamento —, de modo que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que 51 discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica. (GRAMSCI, 2002b) . No Brasil contemporâneo, o longo período de democracia liberal de massas que vivemos consolidou a ideia de esses aparelhos funcionarem como agentes poderosos de formação da opinião pública, e suas liberdades tornam-se tão sagradas quanto as liberdades do mercado. Desse modo, percebemos que as disputas em torno de um projeto neodesenvolvimentista que se possibilita a partir das configurações de um neoliberalismo com traços tipicamente verde e amarelo, o que denominamos de neoliberalismo à brasileira 52 (ou pelo advento do social-liberalismo com traços peculiares) se espraiam para todos os agentes privados de hegemonia — universidades, escolas, rádio, televisão, partidos políticos, movimentos sociais, Parlamentos, etc. —, animando as disputas, mas também os debates em 50 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v. 4, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Id., Ibid., v. 3. 52 Vide item 3.3.1. 51 40 torno da temática do desenvolvimento com efeitos progressivos e regressivos ao mesmo tempo53. É nesse ínterim que o projeto profissional do Serviço Social é convocado a atuar. Nessa disputa por hegemonia, se colocam possibilidades de interveniência nos campos constitutivos dos “complexos sociais particulares”, na prospecção de um tipo alternativo de um complexo social macroscópico alternativo ao que está subsumido pela ordem do capital. Saturando a realidade, descobrem-se os caminhos. Sobre a exposição A rota que ampara a exposição é resultado de uma escolha racional mais afeta à pretensão de certo didatismo, do que necessariamente uma indicação metodológica unívoca, pois o percurso da investigação não se deu na mesma ordem em que a exposição ocorre. E nem é necessário que assim seja, como demonstra nosso mestre alemão no processo de elaboração de sua obra magistral: Das Kapital. É mister, sem dúvida, distinguir, formalmente, o método de exposição do método de pesquisa. A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho, é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a priori. (MARX,1971, p. 16)54. O esforço de tornar a exposição inteligível — e acessível — nos levou a utilizar inúmeras referências, algumas recorrentemente já abordadas em nossa área acadêmica, outras nem tanto, mas todas referidas ao raciocínio apresentado como forma de ilustrar, esclarecer, complementar, ou agregar sentido ao que se argumenta. Indiretamente, também se pode ter como resultado o indicativo de estudos a posteriori, que podem tornar aquilo que aqui se tem algo mais acabado. Cumpre-nos, dessa forma, apelar à paciência dos leitores, diante de extensas citações que buscam preservar o fio condutor das análises em que estão inseridas para, desse modo, seus autores participarem ativamente da exposição, pois, com eles, através de suas produções, dialogamos intensamente. 53 Progressivos quando permitem a politização da vida social, convocando os “cidadãos comuns” a debaterem os rumos ético-políticos das medidas, e regressivas, quando os mecanismos da disputa pela hegemonia consagram a prevalência do conservadorismo e conseguem, como também apontou Gramsci, espraiar para toda a sociedade o projeto societário burguês como sendo o projeto de toda a sociedade. Tratamos disso no Capítulo 4. 54 MARX, Karl. O capital. Livro I, v. I, Pósfácio da 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. 41 Esses diálogos e sua narrativa se fundam na análise histórica entendida como a melhor forma de desvendar o que há de determinismos dialéticos nas relações próprias do objeto de estudo. Todavia, isso não significa o desprezo ao modo lógico de análise, ao contrário, como dissemos alhures. Buscamos estabelecê-los como dois níveis de uma mesma unidade, ou seja, como um duo dialético que nos eleva do particular para o geral, mas também possibilita o caminho de volta capturando todas as mediações necessárias que lhe são constitutivas55. Assim, no Capítulo I, optamos por trazer as bases epistemológicas do pano de fundo em que as argumentações posteriores se assentam. Não se trata do objeto em si, mas do modo como ontogeneticamente foi se configurando ao longo dos tempos, como conhecimento e prática. Primeiro, tratamos de resgatar um pressuposto indispensável. Referimo-nos ao fato de que o Estado só existe, seja como construção mental, seja como algo materialmente entificado, no âmbito da racionalidade humana. Fora do projeto racional, é algo etéreo e amorfo. Prova disso é o fato de ser matéria fundante de campos do conhecimento que se dedicam ao estudo da vida humana nas suas mais amplas dimensões, na esfera mesma das ciências humanas. Por isso esses estudos não têm forma acabada, assim como o Estado também não a tem56. Não obstante, sua forma inaugural, como objeto de interesse científico, data em consonância com o projeto racional ilustrado, que coloca o homem no centro dos acontecimentos cognoscíveis. Nesses ínterim e contexto, batizam a dinâmica na qual as relações humanas acontecem de modo pensado de Política. Ao dar nome ao conjunto das relações, conseguem também tratá-las no campo do conhecimento, estabelecendo, a partir daí, um caminho sem reverso, ou seja, surgem ciências destinadas a pensar os aspectos relacionais da condição humana com destaque para as relações de poder, as estruturas sociais em que essas 55 E o recurso à história é, ao mesmo tempo, o recurso à razão, afinal “o conteúdo da razão é aqui o mesmo conteúdo de história, embora por conteúdo compreendamos não a miscelânea de fatos históricos, mas o que faz da história um todo racional: as leis e tendências para as quais os fatos apontam, e das quais eles recebem sua significação”. Por isso mesmo, além das notas e referências extensas, o próprio texto apresenta-se, em quantidade, acima da média convencionada para estudos dessa ordem na contemporaneidade, pois a inquisição da razão histórica nos interpelou a associar o modo descritivo e analítico culminando na densidade qualitativa do ensaio. (In: MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 195). 56 Não se trata de afirmar que o Estado é, assim, infinito. Ao contrário, enquanto perdurar a luta de classes ele permanece como “instrumento e agente” da configuração dos interesses burgueses, contudo, se transforma, ao sabor das “mudanças” que ocorrem no movimento entre e intraclasses decorrentes da dinâmica processante da produção social. Do mesmo modo como objeto de interesse científico: “permanece enquanto a luta de classes permaneça latente ou se revele apenas em manifestações esporádicas” (MARX, 1971, p. 10). Ele deixa de existir quando superada a lógica da dominação burguesa e instalada a “ditadura do proletariado”. (MARX, 1978). Ou, “a condição da libertação da classe laboriosa é a abolição de toda classe, assim como a condição da libertação do terceiro estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens (MARX, 2009). Essa afirmação sumária será mais bem abordada no desenvolvimento da tese que estamos apresentando. Ver: MARX, Karl. O capital. Livro I, v. I, Pósfácio da 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. (In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores). MARX, Karl. Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria do Sr. Proudhon. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p.124. 42 relações se assentam, as maneiras como se vive e sobrevive em sociedade; antes, o que é sociedade, e assim por diante. Deste modo, o Capítulo I inicia-se com a tentativa de resgatar, historicamente, como a dimensão política da vida social foi se configurando em matéria de análise científica e, ao mesmo tempo, como parâmetro de organização dessa mesma vida social, requisitando, para isso, formas particulares de exercício de poder. Como os homens não são iguais, suas ideias também não são iguais, logo, toda a necessidade de ordem racional das coisas da vida social é controversa. Assim emerge a problemática do Estado, fundada nas controvérsias sobre as razões e o modus operandi do exercício do poder. Intelectuais e estadistas se envolvem com o assunto desde remotos tempos. Arrolamos, assim, as abordagens mais significativas, ao menos no uso acadêmico corrente, no intuito de refazer com elas o percurso evolutivo, porém não linear, da razão moderna voltada para os aprofundamentos teóricos e práticos da problemática com que se ocupam. Ao longo do tempo, percebemos que a maior parte dessas elaborações acaba por se constituir em matrizes de pensamento, que são diversificadas, por legatários diferentes, conforme seus interesses particulares e também do grupo social a que se vinculam. Isto é, o conjunto de significações do pensamento de determinado autor compõe parcela da realidade e por este motivo não pode deixar de ser integrada no âmbito do comportamento de um grupo social. Isto nos libera de uma elaboração de tipo meramente biográfico quando nos remete às mediações que provocam discrepâncias entre as pretensões do autor e o significado de sua obra 57 atribuído por ele mesmo e por outrem. (VIEIRA, 1981, p. 16) . Por isso, fomos de Maquiavel a Hegel, de Marx a Mandel, de Benjamin Constant a Hayek, com direito a interlúdios em Durkheim e Weber, abordando suas elaborações originais, as escolas que fundam, e seus desdobramentos nas tintas de outros autores, na releitura de seus textos e analisando seus conteúdos. Evidentemente que não se trata de apuração das possíveis teorias do Estado contidas nas formulações dos intelectuais citados, ainda que este seja um relevante e prazeroso exercício, antes, o que queremos é explicitar a construção e evolução de um pensar crítico sobre o Estado, que interrelaciona normatividade e operatividade como meio embrionário para uma contribuição ao estudo sobre o Estado na contemporaneidade, em tempos de acirramento das perversidades do capitalismo e porque, nessa evolução de pensamento, estão as chaves 57 VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & companhia. São Paulo: Cortez, 1981. 43 heurísticas que esclarecem os modos históricos com que se concretiza o desenvolvimento da ordem do capital. Assim, a parcela do projeto racional dedicada às relações de poder que supõem o Estado como o ente central dessas relações foi sumarizada a ponto de nos esclarecer o intrínseco componente de desenvolvimento que está nela contido quanto nas instâncias com que fatalmente se relaciona. O recurso aos clássicos não se fez por diletantismo, mas sim por sua relevância histórica, por seus conteúdos atemporais, bem como por suas constantes reposições na vida prática enfeixadas em várias formas de “neos” — neomarxismo, neopositivismo, neoliberalismo, neokeynesianismo, neodesenvolvimentismo, neoconservadorismo, e assim por diante. No Capítulo II traçamos nova tentativa. Empreendemos esforços para propor uma linha de interpretação histórica que desse conta de evidenciar a inter-relação entre duas de nossas grandes categorias de trabalho: Estado e Desenvolvimento Capitalista, particularizados no contexto brasileiro. Procuramos buscar na dinâmica mais fundamental de funcionamento da formação social capitalista como se constitui a necessidade imanente dessa formação empreender processos “evolutivos”, quais as características genéricas e particulares desses processos, quais as correlações de força que disputaram a hegemonia dos “aparelhos privados de hegemonia” na sociedade civil e como a luta entre classes e frações de classes condensaram no Estado seus interesses. Levantamos, nesse capítulo, de modo muito breve, as interpretações mais recorrentes, em nossos compêndios de história socioeconômica, sobre o que vivemos de desenvolvimentismo. Ainda que o uso desse termo nos surja na memória como algo recente, de influência cepalina 58 , as protoformas de medidas planejadas de desenvolvimento capitalista, emanadas de um poder central, podem ser buscadas já no Brasil colonial. É difícil precisar o início do desenvolvimentismo no Brasil. Uma certidão de nascimento desse processo seria tão provisória quanto contestada. Há várias alternativas que, se sujeitando tão somente a nossas preferências racionais, podem iluminar alguns caminhos. Uma delas é identificar a indissociabilidade — orgânico-estrutural — entre capitalismo e desenvolvimento e, na tarefa difícil de precisar o início do capitalismo, incluir na narrativa seu inerente desenvolvimento, uma vez que suas características inaugurais pressupõem mudanças evolutivas substantivas nas forças produtivas, fulcro do desenvolvimento de tipo capitalista. A escolha desse percurso, embora racional, não se mostra razoável para um trabalho acadêmico que deve se ater a um foco e buscar prescrição mais que descrição de fatos históricos — caso se busque cumprir os objetivos formais de uma tese de doutorado —, por isso, vislumbramos outra alternativa. 58 Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), organismo da ONU. 44 Sem abrir mão de passar em exame as características fundantes do capitalismo, em correlação com as mediações que unem seus nexos internos ao desenvolvimento, podemos estabelecer parâmetros característicos do fenômeno desenvolvimentista — tomando-o como produto histórico —; verificar sua recorrência; analisá-lo a luz da conjuntura; identificar as particularidades estruturais em que se assenta e as inflexões que provoca nas relações sociais. Enquanto metodologia, esse caminho pouco difere do anterior, pois a descrição e a prescrição do primeiro podem utilizar-se dessas etapas para tornar suas análises mais científicas que ideopolíticas. A diferença está em que o uso desse caminho, para nós, pressupõe recortes temporais e espaciais mais precisos, obrigando o pesquisador a se manter no trânsito ininterrupto entre as determinações gerais e particulares do fenômeno, buscando o equilíbrio entre elas, saindo disso apenas para efeitos narrativos, mas não para fins analíticos, pois se trata de uma realidade não fragmentada. Considerando que desse processo inevitavelmente emergem correntes categoriais de raciocínio e de explicações, o percurso metodológico sugerido não pode existir em abstrato — o primeiro poderia optar pela dedução. Se não for capaz de afirmar-se no real, antepondo-se a outro real, como síntese, o fenômeno/processo histórico do desenvolvimentismo deixa de existir enquanto expressão das contradições engendradas no processo dinâmico da luta de classes59. Se “o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações”, então, nos cabe identificar as determinações fundantes do fenômeno eivadas de mediações que expõem a totalidade da vida social. Como não se trata de promover a releitura da história, mas sim de buscar nela os episódios que nos interessam, ainda que estejam sempre vinculados a muitos outros, cinco períodos históricos se destacaram: a estruturação do Estado republicano, a crise do café, a Era Vargas, o Plano de Metas de Juscelino Kubistchek, e o desenvolvimentismo no modo autocrático burguês. Os cinco períodos são bastante distintos, do ponto de vista das determinações conjunturais, e, em certa medida mesmo das determinações de tipo estrutural, contudo, há uma característica comum a todos eles, que lhes confere certa unidade, articulando-os no tempo 59 Refere Marx: “Mais uma vez que a razão conseguiu pôr-se como tese, esta tese, este pensamento, oposto a si mesmo, desdobra-se em dois pensamentos contraditórios, o positivo e o negativo, o sim e o não. A luta entre esses dois elementos antagônicos, compreendidos na antítese, constitui o movimento dialético. O sim tornando-se não, o não tornando-se sim, o sim tornando-se simultaneamente sim e não, o não tornando-se simultaneamente não e sim, os contrários se equilibram, neutralizam, paralisam. A fusão desses dois elementos contraditórios constitui um pensamento novo, que é a sua síntese. Este novo pensamento se desdobra ainda em dois pensamentos contraditórios que, por seu turno, se fundem em uma nova síntese. Deste trabalho de processo de criação nasce um grupo de pensamentos. Este grupo de pensamentos segue o mesmo movimento dialético de uma categoria simples, e tem por antítese um grupo contraditório. Destes dois grupos de pensamento nasce um novo, que é sua síntese”. (In: MARX, Karl. Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria do Sr. Proudhon. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p.124). 45 histórico e ao que há de peculiar no Brasil: em todos eles se percebe a exclusão de momentos radicais do tipo revolucionário jacobino. Dito de outro modo, são todos momentos de revolução passiva60, em termos gramscianos. Além disso, se percebe ainda que, desde sempre, as correntes que propugnam por um desenvolvimentismo articulado entre capital nacional e estrangeiro apresentam uma força diante da diversidade do bloco no poder. Essas correntes conseguem ora a hegemonia ora impingir a parte estruturante de seus interesses na formação da hegemonia de outra fração da classe burguesa no bloco dominante. Desse modo, a interpendência das relações capitalistas contemporâneas, acirrada com a mundialização do capital, é apenas o reflexo dessa “fase superior do imperialismo” em versão high tech, como anunciara Lênin em sua antecipação da fase financista do capital, que agora assistimos com maior vigor. Uma última peculiaridade que levantamos, mas não derradeira, de todo o processo estudado, é o modo desigual como o nacionalismo se configura como amálgama ideológica das disputas pelo desenvolvimento. É uma ideologia mutante, capaz de aderir em separado, ou ao mesmo tempo, a diferentes correntes de pensamento, sejam elas complementares ou antagônicas, assumindo a forma de seus protagonistas (e vice-versa) e se apresentando sempre como culturalmente superior. Os momentos de síntese do desenvolvimentismo brasileiro são interrompidos por uma conjuntura que assiste a um duplo movimento: a redemocratização do País associada à implantação da agenda de ajuste neoliberal. Embora a implantação mais drástica e efetiva de tal agenda só se faça sentir nas quadras dos anos 90, o cenário pautado por amplas experimentações de caráter socioeconômico é que lhe abrem caminhos. O caso mais emblemático das protoformas do ajuste são os planos de estabilidade econômica, que só fizeram por arruinar o pouco que havia se conseguido em termos de desenvolvimento com os ciclos desenvolvimentistas anteriores. O Plano Cruzado, o Plano Bresser, o Plano Verão e os Planos Collor I e II lançam as bases para o neoliberalismo, mas sequer se aproximam dos seus postulados mais fundamentais. É somente com o Plano Real, responsável pelo controle inflacionário, que a agenda toma corpo; afinal, a diretriz da estabilidade monetária figura como um dos princípios basilares nas cartilhas dos organismos multilaterais desde o Consenso de Washington. A opção, para esse capítulo, foi a ênfase em uma narração descritiva, pois se buscou trazer ao debate os elementos que informam fases substantivas do processo de desenvolvimento do capitalismo e Estado brasileiro para que, no avançar das argumentações, pudéssemos identificar a dialética de continuidade e ruptura em uma realidade saturada de novas determinações. 60 Ver nota de rodapé 9. 46 Assim, estão dadas as bases para problematizarmos as conjunturas mais próximas de nós, que trazem como epicentro do processo de acumulação a contrarreforma do Estado e adaptações verde e amarela no processo de inflexão social-liberal. O eixo fundante, pois, do Capítulo III, consiste no caminho sugerido pelo método da economia política, que entende o desenvolvimento econômico como o “mito fundador” do capitalismo, sustentado na exploração da força de trabalho em níveis sempre crescentes. A necessidade de desenvolvimento desse modo de acumulação está, assim, ancorada em duas variáveis estruturais: o trabalho livre ascendente e, em mesmo nível, a expropriação desse mesmo trabalho livre, que, em última análise, nos remete aos diferentes tratamentos dados ao valor trabalho. Ocorre que o objetivo dessa exploração do homem pelo homem está na extração exponencial da mais-valia. Desse modo, o aumento da produtividade coloca-se como condição que, para existir, se faz necessário o desenvolvimento dos meios de produção em ato análogo ao desenvolvimento das forças produtivas, processo ininterrupto. Emerge daí a contradição fundamental do modo capitalista de produção: a reiteração do sentido coletivo do trabalho, o que lhe confere, nesse processo, um caráter altamente civilizatório e a apropriação privada não apenas dos meios e modos de trabalho, mas também dos resultados dessa produção, a riqueza socialmente produzida. Portanto, desenvolvimento e capitalismo formam a unidade que confere sentido à expropriação do trabalho e sua alienação. Mas nem o desenvolvimento nem o capitalismo existem em abstrato e muito menos o modo como se expressam concretamente pode abrir mão de instituições concretas que atuem no nível ideopolítico intentando alcançar seus objetivos de manutenção e reprodução. Por isso mesmo, todas as elaborações teóricas e práticas feitas pelos intelectuais e estadistas, que elencamos no Capítulo I, contribuem para esse caminho, pois colocam o Estado como um sujeito indispensável para as provocações do desenvolvimento nas sociedades de tipo capitalista, mas também no socialismo61. E sendo, o Estado, uma espécie de “síntese” da diversidade social, a forma que assumem suas instituições tende a ser coerente com o que protagoniza o modo de produção e as classes no poder. Assim, o desenvolvimento em ação, com protagonismo ou não do Estado, pode ser facilmente identificado como desenvolvimentismo. O movimento de ordem global, que leva a desterritorialização do capital, reedita as velhas formas de dependência econômica dos países da periferia capitalista, em relação ao centro, agudizando a dependência. No Brasil, esse movimento é sincronizado à implantação do neoliberalismo, nos anos 90, que se dividirá em duas fases, conforme nossa construção teórica. 61 Embora o socialismo não seja nosso foco, não podemos passar ao largo da importância do Estado para as sociedades desse tipo, tanto as “pensadas” quanto as efetivamente “realizadas”. 47 A primeira é marcada pelo contrarreformismo do Estado e terá como características estruturais ampla agenda de privatização, ofensiva liberalização econômica e todos os sacrifícios sociais pensáveis em nome da estabilização monetária. A segunda etapa logra do espólio ambiguamente bendito e maldito da primeira. Bendito, pois recebe o programa de estabilização monetária (o plano real) consolidado e com seu manual para manutenção acabados, o que abre espaço para a implantação de medidas não econômicas de cunho eleitoral e populistas. Maldito, pois os custos sociais do ajuste atingem desde a máquina estatal sucateada, passando pelos baixos índices de crescimento até a deterioração das condições de reprodução da classe trabalhadora. Oportunisticamente, os governos que recebem esse espólio, a partir de 2003, embora mantenham os eixos fundantes do ajuste — sobretudo a política superavitária e a ausência de reformas de base e estruturais — modificam as estratégias, promovendo nova concertação entre Estado–mercado–sociedade, ou em outros termos, uma modernização conservadora das relações capital-trabalho, ou, nos dizeres de Singer (2012), uma reforma gradual e um pacto conservador. Negada, pelo discurso oficial, que se trata de um novo ciclo, mais maduro, de implantação da ofensiva neoliberal, a programática é transmutada em forma de novo desenvolvimentismo, baseado no crescimento econômico sustentável e na distribuição de renda para equidade e justiça social. Uma nova geração de políticas sociais se institui de modo ascendente, em especial as que têm, para este projeto, caráter redistributivo, ao mesmo tempo em que reformas por dentro causam um movimento regressivo em outras áreas sociais, como a previdência e a educação, por exemplo. Assim, no Capítulo III, argumentamos, sob as características factuais desse processo, que não se trata de um novo-desenvolvimentismo, mas sim de um tipo peculiar de neoliberalismo, uma nova fase amoldada à realidade e às especificidades do País: um neoliberalismo à brasileira. No Capítulo IV vai se delineando, por meio também de resgate histórico, as relações que se estabelecem entre Serviço Social – Estado – Desenvolvimento. Ali, vamos recuperando o que já se sabe sobre a profissão, como sua imersão dualista no modo capitalista de produção e vida, como meio de evidenciar que são as contradições da sociedade em que se insere que são tomadas como suas próprias contradições, bem como algumas de suas características essenciais, como o desenvolvimento, como seu componente imanente. A base para essa discussão ancora-se naquilo que, de fato, se tornou a intenção em última instância de nossa análise. Ou seja, ao concordarmos com a literatura corrente do Serviço Social, que nos mostra que a profissão só pode ser entendida no contexto das relações sociais — no âmbito da produção e reprodução social — próprias da sociedade da qual é parte e expressão, e, ainda, nos mostra também que a gênese, a manutenção e o dinamismo histórico particulares da profissão estão diretamente vinculados aos momentos em que a sociedade que lhe requisita é 48 submetida, por intermédio do Estado, a medidas deliberadamente planejadas de desenvolvimento, concluiremos o que a literatura também já explorou, que é o entendimento de que Serviço Social e o desenvolvimento capitalista compõem uma unidade de contrários, em atração e retração contínuas próprias das contradições que sustentam a reprodução social de caráter burguês, condicionadas a múltiplas determinações gerais e singulares dos processos históricos de cada sociedade. Desse modo, a particularidade dessa relação, no caso brasileiro, estudada por pesquisadores como Marilda Villela Iamamoto, Raul de Carvalho, José Paulo Netto, Maria Lúcia Martinelli, Maria Carmelita Yazbek, Leila Lima Santos, Vicente de Paula Faleiros, em direções distintas, porém convergentes, ao tratar das imbricações ontogenéticas do Serviço Social com o capitalismo monopolista nos caminhos da crítica marxista, só para citar alguns nomes, encontra nas transformações conjunturais recentes, sobretudo aquelas afetas ao âmbito das estruturas jurídico-políticas do Estado, requisição para ser revisitada, pois trabalhamos a hipótese de que essa conjuntura também é uma espécie de revisitação de um passado não muito distante. Em outros termos e em traços largos: O Serviço Social brasileiro surge e se justifica no contexto das medidas de desenvolvimento traçadas na Era Vargas, que, como todas as medidas de desenvolvimento clássicas pressupõe um reordenamento da chamada área social, como forma de garantir um duplo resultado: a reposição e o controle da força de trabalho, associados à manutenção e/ou ampliação dos níveis de consumo e, por consequência, de acumulação. Para isso, os assistentes sociais ocupam a linha de frente desse processo, atuando junto à classe subalterna, na pretensão de incorporá-la à lógica concreta e subjetiva da sociedade de mercado. É assim nos contextos históricos que se sucedem: no desenvolvimentismo empreendido por Juscelino Kubistchek com seu Plano de Metas; e no desenvolvimentismo praticado pelos governos militares com vistas à modernização conservadora. Assistimos a uma interrupção do uso dessas clássicas estratégias de desenvolvimento62 quando a crise do capital, em prenúncio de seu modo financista avançado, impõe o reordenamento dos Estados nacionais sob o signo do neoliberalismo. Isso redundou no enxugamento das máquinas estatais na lógica de um desmonte, na retração de conquistas históricas da classe trabalhadora configuradas, sobretudo, no campo dos direitos sociais, na agudização da relação de interdependência econômica dos países subdesenvolvidos e dos países em desenvolvimento aos de capitalismo central e no deslocamento do enfrentamento das 62 Claro que essas estratégias se associam a outras e que estão condicionadas às características próprias do seu momento histórico. Contudo, o que arrolamos aqui é um pressuposto fundamental que, embora possa aparecer de modos diferenciados em cada conjuntura, mantém sempre o seu fim último que é participar positivamente das medidas de desenvolvimento empregadas pelo Estado acriticamente, como foi no passado, ou criticamente, como se faz na contemporaneidade. 49 variáveis da “questão social” do âmbito do Estado para a sociedade civil com o desmonte das políticas sociais e o apelo ao voluntarismo e ao associativismo civil, dentre outras medidas. A substituição da trajetória histórica da implantação de medidas de desenvolvimento de tipo tradicional pelo neoliberalismo rebateu na profissão de várias formas, mas vale destacar um duplo movimento: de um lado, acelerou o processo de incorporação das matrizes do pensamento social crítico, aprimorando com seu uso as diferentes formas do exercício e da formação profissional, o que possibilitou a construção de molduras mais maduras para o projeto profissional; e, por outro lado, assistiu-se à precarização da natureza das relações e condições de trabalho com a gestão flexível dos processos de trabalho — contratos precários, parciais, temporários, por projeto, terceirizados, etc. —, associada à redução de postos não apenas pelo desmonte das políticas públicas, mas também pela implantação do voluntariado em larga escala. A história nos mostra que o conjunto das condições econômicas e políticas do período seguinte leva o País a apresentar uma série de novos arranjos econômicos voltados para o desenvolvimento amalgamados pela ofensiva ideológica do novo desenvolvimentismo. Isso foi possível graças a um contraditório e perverso arranjo. De um lado, a propagação (à direita e à esquerda) do fracasso não assumido do neoliberalismo, sobretudo em suas promessas de inflexões positivas na agenda social de bem-estar e, por outro lado, as críticas (à esquerda) do sucesso da ofensiva neoliberal por alcançar tanto a estabilidade (com a política superavitária e de juros altos) quanto por possibilitar a emergência de uma nova oligarquia: a financeira63. Ocorre que essa retomada é feita sob condições históricas muito peculiares64, o que nos obriga a investigar seus nexos internos para trabalhar no limiar da hipótese de sua própria (in)existência. Mas isso se atrela a outra evidência, que se problematizada corretamente pode nos levar a respostas, ainda que parciais, sobre o entendimento do momento presente, qual seja: 63 A não realização do neoliberalismo nos moldes do que foi orientado no Consenso de Washington e publicado nas cartilhas das agências multilaterais, com vistas ao ajuste e ao contrarreformismo dos Estados, é um argumento utilizado por vários ensaístas nas mais diferentes teses. No Brasil, o contrarreformismo de FHC e Bresser Pereira é tratado como algo interrompido, por analistas que identificam que a privatização absoluta, como o principal pilar de sustentação do contrarreformismo, não chegou a se realizar, em virtude da derrota do PSDB nas eleições de 2002. A Privataria Tucana, livrodossiê do jornalista Amaury Ribeiro Júnior, de 2011, mostra tal interrupção. Mas há ainda aqueles que, como Behring (2003, p. 102) identificaram, com cautela, “sinais de esgotamento” da programática neoliberal decorrentes dos resultados da eleição de 2002. Há os que evidenciam “mudanças na continuidade”, como é o caso de Boito Jr. (2005) ao tratar da Reforma do Neoliberalismo no governo Lula, e, o mais surpreendente, é o reconhecimento recente de Bresser Pereira de que há, de fato, um esgotamento do modelo praticado no Brasil dos anos 1990 (Vide entrevista concedida por Bresser Pereira à revista Desafios do Desenvolvimento, de abril de 2008, ano 5, n. 42). Mas há, por outro lado, produções como as de Filgueiras (2006) que demonstram de modo claro e objetivo a vitória da programática neoliberal. 64 Algumas produções podem ajudar a compreender melhor o que estamos chamando de condição histórica peculiar, como, por exemplo: IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006; VIANNA, Luiz Werneck. Esquerda brasileira e tradição republicana estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula. Rio de Janeiro: Revan, 2006 ou ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). Campinas/SP: Autores Associados, 2004. Cada qual a seu modo. 50 a reconfiguração das políticas sociais contida no novo-desenvolvimentismo recompõe o lugar que ocupam os assistentes sociais na divisão do trabalho, assim, havendo de fato novodesenvolvimentismo, há um novo Serviço Social que o acompanha? De que forma isso ocorre? Nessa inquietação residem os motivos da investigação que levam, ainda nesse capítulo, a reflexões sobre a particularidade desse momento neodesenvolvimentista (?) deparar-se com um projeto profissional que já é capaz de decifrar suas contradições, bem como seus reais intentos e, ao mesmo tempo, propor a inserção crítica dos profissionais no mundo contraditório e conflituoso do trabalho. Não menos significativo é o amadurecimento teórico-analítico que o Serviço Social vem registrando, ao longo das últimas décadas. Desse modo, recortes da realidade contraditória e perversa são feitos em forma de estudos analíticos, que permitem, além de desvendar o real nele mesmo, propor estratégias para seu enfrentamento. Categorias centrais como trabalho, Estado, Serviço Social e Desenvolvimento Capitalista encontraram, assim, na passagem para o novo século, formulações indispensáveis para seu entendimento na perspectiva da totalidade. As teses sobre a reestruturação produtiva, a contra-reforma, o terceiro setor e a assistencialização da proteção social agregam sentido ineliminável ao entendimento do Serviço Social nas tramas do neoliberalismo à brasileira. Levam-nos, ainda, a sugerir de modo inferente possibilidades ao projeto profissional na conjuntura em tela. Assim, se o novo desenvolvimentismo (?) é um momento peculiar de síntese do desenvolvimento capitalista que “captura” o Serviço Social nas malhas das contradições que expressa, é possível, do mesmo modo, capturar as lacunas e limites que apresenta como formas objetivas e concretas de iluminar e instrumentalizar um projeto profissional de bases ética e política antissistêmicas. Temos clareza de que o ensaio teórico que apresentamos como forma de tese de doutorado é tão relativo quanto insuficiente, devendo, deste modo, ser submetido à crítica própria dos processos que fazem avançar o conhecimento. 51 Capítulo I ESTADO E RAZÃO MODERNA É evidente que a consciência dos homens continuará a ser determinada pelos processos materiais que reproduzem a sociedade, mesmo quando os homens tiverem chegado a regular suas relações sociais de modo que estas melhor contribuam para o desenvolvimento de todos. Mas quando estes processos materiais se tiverem tornado racionais, resultando do trabalho concreto dos homens, a dependência cega da consciência às relações sociais terá deixado de existir. A razão, quando determinada por condições sociais racionais, é determinada por si mesma. A liberdade socialista abarca ambos os lados da relação entre consciência e a existência social Herbert Marcuse A preocupação dos seres humanos em explicar os fatos e fenômenos que circundam a sua vida é tão antiga quanto sua própria existência. Nessa preocupação reside a origem de descobertas científicas fundamentais ao processo civilizatório de nossa espécie. Após séculos de explicações atribuídas a vontades sobrenaturais, a humanidade indaga sobre a necessidade de encontrar respostas nas coisas, nelas mesmas, e vê no homem o agente nuclear de seu próprio destino. Nos enciclopedistas franceses, na Astronomia e Física, com Pascal e Newton; na Química, com Lavoisier; na Matemática, com Descartes; na Medicina e Biologia, de Hipócrates a Darwin; nas Artes, na Cultura, Literatura, nas Engenharias e em todos os objetos cognoscíveis, com seus seres cognoscentes, o homem e a sua razão ocupam o leit motiv desses campos do conhecimento, ao mesmo passo em que promovem a ruptura com as explicações teocêntricas no período ilustrado65. Mas a construção da racionalidade humana não se limita a esses campos de conhecimento destacados. Desenvolve-se, pari passu, uma razão que busca desvendar as dinâmicas, das mais simples às mais complexas, da sociedade humana; suas formas de organização, seus sentidos, sua razão histórica. Assim, desenvolvem-se campos do conhecimento que vão desde os sentidos e a razão da política, por exemplo, entendida em Aristóteles como o caminho para se alcançar a felicidade humana, até as diversas formas de se viver nas polis como os diferentes regimes e instituições políticas, passando evidentemente pela construção do direito positivo, dos contratos sociais, dos ciclos de desenvolvimento das sociedades emergentes de mercado, e das sociedades que podem ser construídas depois de atestadas determinadas condições da evolução humana, como o socialismo ou o comunismo. 65 O período a que nos referimos compreende boa parte do século XVIII. Nele, intelectuais europeus, sobretudo franceses, argumentam sobre a supremacia da razão humana opondo-se frontalmente à lógica teocrática e teocêntrica e ao absolutismo monárquico. 52 A expansão desse leque de possibilidades de conhecimento funda, como uma necessidade de sua própria justificativa, disciplinas que se dedicam a esmiuçar as particularidades de um objeto sociopolítico de investigação, que sempre em processo de franca expansão se desdobrará em ininterruptos conjuntos de novos objetos: a política. É assim que nasce a filosofia política, a ciência política, a sociologia política e a sociologia da política, cujas distinções entre elas não subtraem o fulcro comum existente nas relações sociopolíticas humanas66. A raiz comum dessas ciências sociais está na necessidade imperativa de construir, pela razão lógico-abstrata, ou empírica, explicações, precedidas de métodos, para as questões afetas ao poder e ao Estado. Esses são tomados como variáveis interdependentes e a categoria política, que os une, adquire ênfase diferenciada, a depender dos motivos que suscitam sua análise, do método ao resultado. A Filosofia Política, por exemplo, sendo filosofia, utiliza como recurso metodológico o raciocínio lógico dedutivo, e tem, assim, um caráter normativo. Está, portanto, na raiz dos conhecimentos científicos, em especial do campo denominado de humanidades. Aristóteles afirma que a Filosofia estuda os princípios originários de todas as coisas e o “Ser enquanto Ser”, ou seja, as essências. Adjetivada com a política, a filosofia tende a indagar a essência lógica e racional do poder. Filósofos políticos como os ingleses Thomas Hobbes (1588-1679), ou John Locke (1632-1704), e o suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778) se ocuparam em pensar como as relações de poder podem ser estabelecidas de modo a atender às necessidades de sobrevivência dos homens, quando estes transcendem de seu estado primitivo (natural) para a condição de seres que sobrevivem em sociedade, e, nesse salto, legitimam um poder superior que garanta essa coexistência. A partir de uma construção lógico-abstrata inferem sobre a origem do Estado e da sociedade e atribuem à entificação do primeiro a sobrevivência do segundo. Pensavam num Estado ideal. A contribuição da Filosofia Política apresenta-se, ainda, na sua preocupação em caracterizar com precisão o “fenômeno político”, ou seja, estabelecer com rigor lógico a especificidade dos fatos políticos em relação a outros tipos de acontecimentos. Ao distinguir, por exemplo, o campo político do mundo da moralidade privada, a Filosofia Política contribui com a autonomização do saber político. A Filosofia Política, então, dá os parâmetros para a construção do saber científico tanto da Ciência Política quanto da Sociologia Política, mas não se confunde com elas . (SOUZA, 2008, p. 9)67. 66 E, ainda assim, não são apenas “essas ciências” que se preocupam com as “coisas da vida societal”, mas são estas que nos interessam por ora. 67 SOUZA, Nelson Rosário de. Sociologia política. Curitiba: Iesde Brasil S. A., 2008. 53 O raciocínio dedutivo que a caracteriza funda tanto a lógica como sua ciência quanto às teorias do conhecimento. Encontramos, por exemplo, no Ensaio sobre o Entendimento Humano, de John Locke, as premissas para “a análise de cada uma das formas de conhecimento que possuímos, a origem de nossas ideias e nossos discursos, a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com os objetos que ele pode conhecer” (CHAUÍ, 2010, p. 167)68. A Ciência Política, por seu turno, sustenta-se na empiria. O método é o indutivo, diferente da dedução que se pratica na Filosofia, embora isso não seja suficiente para explicar as diferenças fundamentais entre os saberes de um ou outro campo, considerando-se, ainda, que tal distinção só é possível no sentido stricto, pois, num sentido amplo e não técnico, o termo ciência política pode se referir ao estudo de qualquer fenômeno, ou estrutura, afetos ao campo da política. Bobbio (2007, p. 164) não só confirma tal assertiva quanto anuncia que a preocupação principal da Filosofia Política é com aquilo que deveria ou poderia vir a ser, enquanto a Ciência Política contém pressupostos de operatividade, ainda que isso não signifique que “os ideais tenham sido na história das mudanças políticas menos ‘operativos’ do que os conselhos dos ‘engenheiros sociais’” 69. O centro das preocupações permanece nas relações de poder, embora a ênfase da Ciência recaia um pouco mais sobre as instituições e nos regimes que as orientam. A instalação dos regimes políticos ajuda a conformar o desenho dos Estados, e, com isso, se conformam também as instituições estatais70. Nelas se materializa a sua estrutura jurídico-política, alvo das problematizações pioneiras da Ciência Política71. Assim, notamos que a Ciência Política se debruça sobre as particularidades da relação poder-Estado-sociedade tratando, além dos regimes políticos, como já mencionado, dos problemas afetos às eleições, do poder, da autoridade, administração pública, das relações exteriores, dos partidos, dentre outros. Conceitos estes entrecortados por categorias sociológicas que os sustentam e/ou os contextualizam como: classes sociais, ideologia, status, etc., próprios da Sociologia, e requisitados como recurso interdisciplinar. 68 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 14. ed., São Paulo: Ática, 2010. BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 13. ed., Brasília: UnB, 2007. 70 Claro que não é uma afirmação linear. A opção pelos regimes políticos é uma construção histórica decorrente da confluência de inúmeras variáveis, que dão sentido ao Estado, mas a luta por um regime específico também pode ser o fator decisivo na inauguração de um tipo de Estado qualquer. 71 Por isso que o modo como as considerações sobre o poder, feitas por Maquiavel (Niccolò Machiavelli, 1469-1527) em O Príncipe, são consideradas como notas postulares, que dão origem ao Estado moderno, mesmo nas conjunturas absolutistas. Do mesmo modo, Montesquieu (1689 – 1755) quando propõe a constituição tripartite dos poderes do Estado: Judiciário, Legislativo e Executivo, mesmo em outra época, rende-se a pensar também “relações de poder”. São dois exemplos, por serem “incomuns” que nos mostram como as questões da estrutura estatal ocuparam tanto filósofos quanto cientistas políticos, fazendo com que a interdependência entre os saberes se estabeleça como um imperativo para a definição de um campo de conhecimento científico que tem por objeto um ente relacional, sendo um conhecimento mais dinâmico e não rígido como se define nas ciências naturais. 69 54 Mas como disciplina, a Sociologia Política se calça, sobretudo, nas relações sociais decorrentes do modo como os indivíduos se organizam no processo de produção e reprodução social da vida, criando sempre, na correlação de forças, mecanismos civilizatórios de participação no “mundo dos homens”. Antonio Gramsci (1891–1937) ao estabelecer o esquema dialético de distinção entre sociedade política e sociedade civil72 possibilita a compreensão do modo pelo qual a sociologia política pode se ocupar em estudar as maneiras como a sociedade influencia a arena pública, exerce o poder, disputa e conquista hegemonia na esfera estatal. Antes dele, Hegel (1770-1831), e outros, da escola idealista alemã, enalteceram a atividade livre e racional e se ocuparam em pensar “o eu” e “o todo” como forma de projetar um Estado ético e de liberdade em suas práticas políticas 73 . Isto porque a disciplina sugere a articulação dialética entre Sociologia e Política, a primeira tratando dos problemas da sociedade humana ancorada por teorias sociais amplas e a segunda tratando dos meios e processos civilizatórios que circundam a organização da sociedade e as formas para se resolver os problemas elencados pela primeira. Esse conhecimento pode, ainda, ser adjetivado, quando reduzimos seu escopo de atuação em Sociologia da Política. Aqui não se trata de nenhum campo autônomo das ciências sociais, apenas da definição com precisão, por meio de um anúncio prévio do recorte epistemológico desejado. Equivale a outras adjetivações da Sociologia, como sociologia da educação, sociologia do trabalho, sociologia da administração, sociologia da religião, sociologia da cultura, etc. Em síntese, as motivações que induzem os seres humanos a pensar e a fazer política, de sua essência à técnica, não prescindem da interdependência de categorias como o Estado e o poder, portanto, cumpre-nos considerar que o Estado, nas ciências sociais, é um dos objetos que, ao lado de outros, como o poder e a sociedade, como já dissemos, legitima a racionalidade das teorias do conhecimento e funda as principais ciências que se ocupam da política, no âmbito do advento da modernidade. É quase consenso, no campo das ciências sociais, que esses elementos interdependentes, em especial o Estado, sejam considerados seus objetos estruturantes. Contudo, ao longo do processo que os torna elementos constitutivos imprescindíveis para a formulação de um pensamento crítico, em especial no bojo da tradição marxista, é possível notar que nem sempre 72 Gramsci estabelece uma distinção dialética entre estes dois segmentos: a Sociedade política, que compreende os aparelhos de coerção sob o controle das burocracias executivas e do aparato jurídicomilitar, e Sociedade civil, que abarca o conjunto de organizações responsáveis pela difusão das ideologias que sustentam o consenso (hegemonia) no Estado burguês, ainda que dentre esses “aparelhos” possam existir aqueles que se colocam contrários à lógica dominante. Esses organismos vão desde o partido político e organizações sindicais até os veículos de comunicação, Igreja, Escola, etc. Sobre isso voltaremos a tratar no item 1.2.2. 73 Neste sentido consultar: MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 55 seus componentes axiais econômicos e políticos estão presentes de modo decisivo na orientação das análises. Perry Anderson e Atílio Borón, por caminhos distintos, submeteram esse processo à crítica, e, no final, convergem, ao demonstrar que a construção ontológica dessas categorias deve permitir plasmar-se no movimento dialético próprio da realidade em que se assenta, recusando a linearidade e a construção da crítica (que articula teoria e prática políticas) entendida apenas como uma sucessão evolutiva natural de fatos, acontecimentos e vontades pessoais de seus protagonistas. Ambos chamam a atenção para a centralidade da luta de classes como mola propulsora e estruturante das ciências sociais, que buscam lastro no Estado e em suas dinâmicas econômicas, políticas, ideológicas, etc., inerentes, no âmbito da tradição marxista. Inferem que sua ausência pode conduzir a um academicismo distante da prática revolucionária concreta (Anderson) quanto à legitimação da ordem burguesa e do pensamento conservador (Borón). O historiador inglês faz referência ao movimento descontínuo do tratamento dessas categorias no marxismo ocidental (eurocentrado) e o sociólogo argentino relembra do resgate da problemática 74 do Estado no contexto latino-americano, nas últimas quadras do século XX, após um longo período de marginalização nos círculos político e acadêmico. Anderson (2004) refere que o marxismo ocidental foi acometido de um silêncio sobre as estruturas econômicas e políticas como objetos centrais da teoria, causado por um deslocamento para a filosofia: O deslocamento básico de todo o eixo gravitacional do marxismo europeu no sentido da filosofia foi resultado do abandono progressivo de estruturas econômicas ou políticas como objetos centrais da teoria. (...) Os determinantes externos que levaram à substituição da economia e da política pela filosofia como foco principal da teoria marxista e das assembleias partidárias pelos departamentos acadêmicos como seus centros formais estavam inscritos na sombria história do período (...) [Mas] o evento decisivo para tal transformação foi a tardia descoberta do mais importante trabalho do jovem Marx — os Manuscritos de Paris de 1844, que foram publicados pela primeira 75 vez em Moscou, em 1932. (ANDERSON, 2004, p. 69-70) . Refere, o historiador inglês, que ainda que os impactos dessa descoberta tenham sido abafados pela vitória do nazismo, na Alemanha, e “pelo início dos expurgos na Rússia, em 1934”, os Manuscritos “causaram profunda e duradoura impressão” em Lukács, Marcuse e Lefebvre. O primeiro, “trabalhando sob a supervisão de Riazanov, em seu exílio em Moscou, em 1931, os decifrando”; o segundo, afirmando com um ensaio de 1932 que “os Manuscritos 74 Sobre o conceito de “problemática do Estado”, ver o item 1.1. O autor faz uma distinção entre o tratamento teórico conferido ao Estado no campo filosófico daquele do campo da ciência política, sendo que o último é que orienta institucionalmente a configuração do Estado. (In: ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004). 75 56 colocavam toda a teoria do socialismo científico sobre novas bases” e enfatizava “em particular sua visão de que eles demonstravam a importância vital dos fundamentos filosóficos do materialismo histórico em todos os estágios da obra de Marx” e, o último, sendo o responsável pelas primeiras traduções dos Manuscritos. O desdobramento dos estudos desses autores, mas também de outros marxistas europeus, como Althusser, Gramsci, Della Volpe, dentre outros, eclodiu em recorrentes formulações sobre o método, causando um afastamento cada vez maior dos “filósofos profissionais” da prática política das massas proletárias. (Id., ibid.). A trajetória do desenvolvimento do próprio Marx foi paradoxalmente invertida pelo marxismo ocidental como um todo. Enquanto o fundador do materialismo histórico moveu-se progressivamente da filosofia para a política e então para a economia como terreno central de seu pensamento, os herdeiros da tradição que apareceram depois de 1920 gradualmente afastaram-se da economia e da política para se aproximar da filosofia, abandonando o envolvimento direto com aquelas que foram as grandes preocupações do Marx da maturidade, quase tão completamente como este tinha abandonado o exame direto das questões filosóficas que o tinham interessado na juventude. (...). Na verdade, está claro, o que ocorreu não foi, nem poderia ter sido, mera inversão. A empreitada filosófica do próprio Marx estava dirigida, antes de tudo, para um acerto de contas com Hegel e seus mais importantes herdeiros e críticos na 76 Alemanha, especialmente Feuerbach. (Id., 2004, p. 72) . Outro elemento destacado por Anderson, para a reversão do eixo categorial central de Marx, no marxismo ocidental, foi, de um lado, a experiência real de implantação do socialismo, que leva o debate teórico à endogenia, e, por outro, a influência do stalinismo77. Refere: 76 O autor faz distinção entre o tratamento teórico conferido ao Estado no campo filosófico daquele do campo da ciência política, sendo que o último é o que orienta institucionalmente a configuração do Estado. (In: ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004). 77 Nascimento (2007) em seu artigo O Estado Capitalista na Análise de Nicos Poulantzas, ao discorrer sobre o contexto histórico em que a obra deste autor foi elaborada, refere polemicamente, nas trilhas do raciocínio de Anderson, que: “Durante mais de vinte anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, a produção teórica do marxismo ocidental no campo da teoria política e da teoria econômica foi praticamente inexistente em termos de contribuições originais. Os textos sobre política e economia, que surgiram após a Segunda Guerra Mundial, em sua maioria, eram da lavra dos burocratas dos partidos comunistas e tinham como apanágio a ‘esterilidade’ teórica, pois não apresentavam nenhuma contribuição decisiva ou original. Tal esterilidade seria tributária de dois elementos. Por um lado, pelo fato de que as discussões sobre a luta de classes e sobre o imperialismo terem sido praticamente monopolizadas pela cúpula dos partidos comunistas (os quais submetiam todas as suas teses à linha oficial do PCUS). Por outro, pela novidade que representava o fenômeno de consolidação de uma dominação burguesa fundada não mais em práticas autocráticas, mas, sobretudo, em práticas democráticas — baseadas na democracia representativa e sufragista. O fenômeno da consolidação em países de capitalismo avançado da democracia burguesa teria escapado às análises de Marx e Lênin e, posteriormente, à tradição que herdara o legado teórico desses autores”. (In: NASCIMENTO, Adriano. O Estado capitalista na análise de Nicos Poulantzas. Revista Palavra Mundo, v. 1, n. 1, Campinas/SP, 2007). 57 Com a vitória do “Socialismo em um País” na União Soviética, seguida pela progressiva burocratização do Comintern e pelas perspectivas nacionalistas adotadas pelo comunismo europeu durante e após a Segunda Guerra Mundial, os marcos do debate marxista passaram por uma mudança fundamental. Ocorria agora não apenas uma distancia cada vez maior da militância política, mas de qualquer horizonte 78 internacional. (ANDERSON, 2004, p. 72) . Mas o que o autor de Considerações sobre o Marxismo Ocidental não aborda é que a produção que categoriza como filosófica, em sentido negativo, mesmo sendo produzida em círculos acadêmicos oficiais, isto é, para além das “escolas operárias, do partido, dos movimentos sociais” não foi encastelada pelos muros da academia sem sofrer nenhuma influência da agitação social que ocorria do lado de fora. Justamente o aprofundamento de questões como as do “método” possibilitaram um novo tipo de relação entre teoria e prática revolucionária, permitindo à teoria lapsos temporais mais longos para sua elaboração e maturação ainda que em contraste com a urgência cotidiana da luta de classes79. Além disso, os acontecimentos que levam à adoção da Nova Política Econômica (NEP), após o X Congresso do PCUS, ao assegurar uma série de concessões mercantis na União Soviética, não se furtam da interlocução com intelectuais marxistas de maior envergadura, preocupados com os rumos da Revolução, após a desestabilização do Comunismo de Guerra. Mesmo nesse contexto, e nisto Anderson é preciso, segundo nossa interpretação, o desenvolvimento de um tipo mais complexo de Estado que acontecia em países como os Estados Unidos, Inglaterra ou Alemanha (ou mesmo a Itália unificada que chamará a atenção de Gramsci) não fora objeto, pelo menos de imediato, de análise do marxismo ocidental. Isto é, o tipo de Estado capitalista necessário à reprodução dos interesses das classes dominantes, que pressupõe a radicalização do trabalho livre – uma de suas características fundantes –, e sustentase nos estatutos da democracia burguesa (representação, sufrágio, aparelhos jurídicos-estatais, etc.), desestimula a esquerda a produzir teses sobre ele, uma vez que não encontravam referências contundentes sobre o tema em Marx ou em Lênin. 78 O autor faz uma distinção entre o tratamento teórico conferido ao Estado no campo filosófico daquele do campo da ciência política, sendo que o último é o que orienta institucionalmente a configuração do Estado. (In: ANDERSON, Perry. Ob. Cit., 2004). 79 Seria um bom exercício, no sentido de aprimorar nossa afirmação, proceder à análise biográfica dos principais intelectuais marxistas europeus, estes citados por Anderson, e, nelas constatar a influência do contexto social em que vivem e produzem em suas formulações teóricas e o retorno destas à realidade (prática social) mesma. Não procederemos a tal análise, para não enviesar nosso raciocínio argumentativo, contudo, nos permitimos indicar, por exemplo, o estudo de Michael Löwy sobre A Evolução Política de Lukács (1909-1929) publicado homonimamente no Brasil (São Paulo: Cortez, 1998) com a tradução de Heloísa Helena A. Mello, Agostinho Ferreira Martins, anexos traduzidos por Gildo Marçal Brandão. Do mesmo modo, o leitor pode recorrer a biografias de Althusser, Lefebvre, Marcuse (e outros membros da Escola de Frankfurt), Gramsci, entre outros. 58 O Estado burguês democrático em si nunca foi objeto de qualquer trabalho importante de Marx, que morreu antes de sua realização, ou de Lênin, cujo inimigo, na Rússia czarista, era um tipo totalmente diferente de Estado. Eram de escala pouco menor os problemas suscitados pelo rápido avanço da economia capitalista mundial nas duas primeiras décadas após a segunda Guerra do que as dificuldades existentes no desenvolvimento de uma teoria política capaz de apreender e analisar a natureza e os mecanismos da democracia representativa como uma forma madura de poder burguês. 80 (Id., ibid.,) . Evidentemente que a publicação, em 1917, de O Estado e a Revolução, de Lênin, uma obra capital dentro do marxismo, segundo os dizeres de Florestan Fernandes, marca uma inflexão substantiva nos estudos sobre a problemática teórica e das práticas políticas ao Estado afetas. Mas são justamente os ventos revolucionários da mudança que fazem com que o próprio Lênin se dedique aos assuntos da Revolução abdicando de aprofundamentos posteriores, corroborando a afirmação anterior de Anderson. Borón (1994, p. 243), por sua vez, refere-se ao desterro e retorno do Estado informando que “o Estado se transformou em um dos eixos principais do debate que atualmente agita as ciências sociais e a vida política das sociedades contemporâneas”. O autor atribui esse agito ao advento neoconservador que prevalece em todo o mundo e que converteu o Estado em uma espécie de 81 bête noire que é preciso destruir. Isto não poderia deixar de surpreender o estudioso da ciência política, dado que, anteriormente a este esmagador retorno, o conceito de Estado havia sido excomungado da academia e desterrado para os nebulosos territórios da ideologia e do pensamento précientífico. As razões: uma supostamente incurável vaguidão conceitual e um traço cronicamente formalista o privavam de todo valor heurístico . (Id., ibid., p. 243). E prossegue: 80 E, de fato, o Estado da democracia liberal de massas não foi objeto das análises marxianas. Nem o pudera, afinal, não foi esee o tipo de Estado que Marx conheceu. Contudo, procede a crítica do Estado em obras como Introdução à Crítica e a Filosofia do Direito de Hegel; Sobre a Questão Judaica; Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social, de um Prussiano”; 18 Brumário de Luís Bonaparte e Guerra Civil na França. Neste último, defendendo a “destruição do Estado”. No Manifesto do Partido Comunista, escrito em parceria com Engels, os autores chegam a proferir uma “defesa” da democracia, mas em conformidade ao entendimento corrente no movimento operário da época: democracia, tendo o proletariado como “classe dominante”. 81 Besta negra (tradução nossa). 59 Em 1953 – uma época em que, da mesma forma que hoje, também se falava do “fim das ideologias” e do triunfo do capitalismo – David Easton expressava eloquentemente o consenso prevalecente dentre os cientistas sociais de seu tempo ao afirmar que “nem o Estado nem o poder são conceitos que servem ao desenvolvimento da pesquisa política”. (Id., ibid.p.243). Como um objeto pulsante para as ciências, até mesmo de um modo geral, isto é, para além das sociais e políticas, como fênix, o Estado ressurge e recupera sua inevitabilidade. Borón (1994, p. 245) lembra a produção latino-americanista que invade a academia norte-americana, tratando de temas como a dependência, o subdesenvolvimento e o Estado, entre os anos 60 e 70. O regresso virtuoso do Estado como objeto de interesse científico subverte o posicionamento anterior de Easton, que é levado a afirmar que “o Estado agora sitiou o sistema político” e assim, numa tentativa de explicar esse retorno, elenca três principais motivos para o fenômeno: 1) o ressurgimento cíclico do marxismo nos Estados Unidos; 2) a persistente necessidade dos conservadores de encontrar alguém a quem possam culpar pela desordem atual das sociedades ocidentais; 3) as recentes tendências em matéria de pesquisa, orientadas para análise de políticas (policy analysis). Borón (1994) considera os argumentos de Easton insuficientes e, por isso, acrescenta a eles: 1) a indubitável estatificação dos processos de acumulação capitalista e da vida cotidiana nas sociedades burguesas [...] a partir da recomposição keynesiana posterior à Grande Depressão de 1929; 2) o caráter penetrante e de longa duração da crise política que afeta os estados contemporâneos, qualquer que seja seu tipo e forma, em todos os seus níveis e, finalmente; 3) a insuportável leveza teórica e a aridez conceitual da ciência política convencional. Os argumentos de Easton não alcançam os componentes estruturais das relações sociais que engendram a formulação científica. Uma análise mais comprometida com as reais condições em que se autoproduz a crítica, deve levar em conta não apenas os elementos conjunturais, mas também as estruturas em que são gestados. Os diferentes padrões de acumulação capitalista, como bem refere Borón (1994), estão na base de qualquer investigação sobre o Estado e as relações de poder. Além disso, ignorar a participação estatal nos processos de reprodução ampliada do capital, com inflexões em toda a vida social, é no mínimo manter-se na superficialidade da análise. Por isso, esses blecautes nas formulações sobre o Estado, ao longo da história, estão, em nossa opinião, mais condicionados à prevalência do complexo ideológico burguês de determinados tempos, que busca encobrir as contradições engendradas por seu sistema socioeconômico do que necessariamente uma possível irrelevância da temática como objeto de pesquisa. O Estado nunca abandonou a cena intelectual e política das academias, dos 60 Parlamentos, dos partidos ou das praças públicas. Mesmo quando considerado irrelevante, sua presença na difusão das teses sobre sua própria irrelevância o manteve vivo e afeto ao campo da racionalidade humana. Assim, esse Capítulo I busca passar em exame as construções racionais modernas82 mais visitadas pelos estudiosos do tema Estado e das relações de poder, nos domínios da Filosofia Política, da Ciência Política e da Sociologia. De modo que seus desdobramentos, nos campos da Economia e do Direito, fiquem evidentes. São formulações dos mais variados matizes: do jusnaturalismo ao idealismo alemão, atravessando a tradição marxista, incorporando os postulados liberais, e, por fim, deslocando o debate conceitual para os tipos predominantes de Estado. Outrossim, afirmamos que não se trata de uma apuração das possíveis teorias do Estado contidas nas formulações que elencamos, ainda que este seja um relevante e prazeroso exercício, antes, o que queremos é explicitar a construção e evolução de um pensar crítico sobre o Estado que inter-relaciona normatividade e operatividade como meio embrionário para uma contribuição ao estudo sobre o Estado na contemporaneidade, em tempos de acirramento das perversidades do capitalismo, e, porque, nessa evolução de pensamento, estão as chaves heurísticas que esclarecem os modos históricos como se concretiza o desenvolvimento da ordem do capital. É uma espécie de introdução sobre as formas heterogêneas de se pensar e construir o Estado, considerando que nosso estudo se referencia num tipo específico: o Estado capitalista, o que lhe confere características próprias, dentre as quais destacaremos suas formas particulares de desenvolvimento e, nelas, a movimentação ético-política do Serviço Social, no que tange tanto à incorporação da ciência e filosofia política pela profissão quanto a suas conexões com um projeto profissional de bases antissistêmicas. 1.1 A problemática do Estado As preocupações de grande quantidade de intelectuais em explicar o que é e entender como funciona a sociedade humana (desde o primitivismo até o capitalismo contemporâneo) e nela o Estado justifica-se, dentre outros motivos, porque intencionam, via de regra, conferir direcionamento político e ideológico ao Estado, seja para destruí-lo, após transformá-lo em 82 Recorremos, às vezes, às formulações pré-modernas apenas para efeitos de contextualização histórica de determinados raciocínios. 61 instrumento para a revolução proletária (Marx, Engels e Lênin), seja para disputá-lo na esteira da “condensação de relações de força” que engendra (Poulantzas)83. Essa articulação intencional pode se dar de várias formas. Por meio dos partidos políticos, a forma institucional mais utilizada para essas disputas, mas pode ocorrer também por meio e influência das corporações, de agentes públicos ou privados isolados, de organizações sindicais, de movimentos sociais, dentre outros, sempre na direção de corroborar ou refutar grandes ou pequenas construções teóricas que o tiveram como objeto de análise. É no teor dessas construções teórico-metodológicas que os diferentes governos têm encontrado sustentação para colocar em prática suas epistemologias as quais, alçadas ao campo concreto e real da luta de classes, refletem os interesses dos grupos a que se vinculam, transformando-se em ação concreta, ou, nos termos atuais, em programas de governo. Desde o jusnaturalismo de Hobbes, Locke, ou Rousseau, até a incursão contemporânea que leva Anthony Blair a seguir os mandamentos da Terceira Via de Giddens, ou mesmo nas articulações de pensamento e ação entre Bresser Pereira e Fernando Henrique Cardoso, em suas ofensivas contrarreformistas no Brasil, intelectuais e estadistas se confundem e se identificam fenomenicamente em processos parasitários de retroalimentação84. As defesas pelo fortalecimento ou enfraquecimento, existência ou inexistência do Estado, podem ser dos mais diversos matizes, como dito alhures. Há os que sugerem o fim do Estado como forma de dar vazão à supremacia do mercado e sua mão invisível; há os que defendem o seu fim como a única maneira de proporcionar a efetiva igualdade entre os homens. Outros podem defender sua existência mediante a exacerbação de seu poder regulatório e coercitivo, interferindo nas liberdades individuais, como é o caso dos regimes autocráticos, ao passo que outros podem pensá-lo neutro, diante das disputas próprias da democracia liberal burguesa. Da direita à esquerda, todos têm opinião e posicionamento sobre o Estado. Processo histórico este que o alça dos braços da ciência e filosofia políticas para o campo das teorias do direito, da administração, da administração da produção, etc. 83 A grande questão colocada por Marx, Engels e muitos outros intelectuais da tradição marxista é a “extinção” desse “comitê gestor dos negócios comuns da burguesia”. As distinções entre eles, incluindo agora Gramsci, se davam no campo de como encaminhar tal extinção — a luta proletária mesmo — de modo a lograr o êxito revolucionário necessário. Lênin, por exemplo, foi contundente a esse processo quando propõe a “guerra de movimento” e dá outros encaminhamentos em O Estado e a Revolução se aproximando do que Marx argumentou em A Guerra Civil na França. Gramsci, por seu turno, propôs a “guerra de posição” na sociedade civil com a generalização da política pelos aparelhos privados de hegemonia. Um “marxismo” que destoa destes é mesmo o de Poulantzas, que, ao conceber o Estado como “condensação de relação de forças”, abre terreno para que se pense em disputas no e pelo Estado. No Capítulo IV, veremos como essas construções influenciaram o tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teórico-prática do Estado redundando em um ecletismo de posições. 84 Um exemplo interessante são as observações traçadas por Napoleão Bonaparte e a rainha Cristina da Suécia sobre O Príncipe, de Maquiavel. Há várias edições dessa obra que agregam as notas dos dois estadistas. A que utilizamos é a da Editora Jardim dos Livros (São Paulo, 2007), tradução direta do italiano por Ana Paula Pessoa. Nela, os comentários de Napoleão e rainha Cristina estão incorporados como notas. 62 O fato é que a definição de Estado nunca será algo acabado, signatário de uma verdade, o que levou Pereira (2008) a afirmar que o Estado, “além de ser um conceito complexo, é um fenômeno histórico e relacional”85. Desde que jacobinos e girondinos se sentaram em lados opostos, na Assembleia Francesa de 1791, a vida de estadistas e estudiosos do Estado tornou-se imbuída da inevitabilidade de sua problematização, ainda que, por vezes, presa ao maniqueísmo do antagonismo político marcado pelas noções de direita e esquerda. Desse modo, tanto um polo quanto outro não conseguem precisar, mesmo na polarização que anunciam, uma definição unívoca do Estado; contudo, adicionam elementos que buscam defini-lo ora por suas funções, ora pelas instituições ou corporações que o compõe, ora por sua relação inexorável com a sociedade, ora por todos esses elementos juntos, e assim por diante. Trata-se, então, de entender que o Estado não “existe em abstrato (sem vinculações com a realidade e a história) e nem de forma absoluta (assumindo sempre e para toda vida uma única forma)” (Id., ibid.). Por isso, a natureza do Estado é de imanente problemática. Por problemática, entendemos “o conjunto de perguntas, ideias e suposições que delimitam o terreno no qual se produz determinada teoria, terreno que nem sempre é visível na superfície do discurso teórico, e que, no entanto, determina as condições e as possibilidades de enunciados desse discurso” (BOITO Jr., 2007, p. 42)86 ou, como referiu Althusser (apud BOITO Jr., 2007, p. 42): “A problemática é a unidade profunda de um pensamento teórico ou ideológico”. Desse modo, Boito Jr. (2007) nos lembra que distintas teorias podem ser construídas com base em uma única problemática. Em nosso conjunto argumentativo, a problemática teórico-prática do Estado encontra abrigo numa miríade de teses e teorias que mantém sempre uma base comum, qual seja, a processualidade de sua entificação, o que incide em sua estrutura e nas formas que se materializam ao sabor de distintas conjunturas. Ratificando em outros termos, nos interessa, assim, um tipo particular de Estado, ou seja, o referido a uma formação social específica, historicamente determinada, cujas características lhe dão forma estrutural e que, de modo ainda mais específico, se referencia também a contingências conjunturais. Trata-se, pois, daquele tipo de Estado dotado de obrigações positivas que inevitavelmente o impelem a exercer regulações sociais por meio de políticas. Ou seja, o Estado em ação (PEREIRA, 2008, p.99). 85 Segundo a autora, histórico, porque não existe de forma absoluta e inalterável. É algo em movimento e constante mutação ... relacional porque não é um fenômeno isolado, fechado ou circunscrito em si mesmo e autossuficiente, mas um fenômeno em relação. (In: PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Política social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008). 86 BOITO JR, Armando. Estado, política e classes sociais. Ensaios teóricos e históricos. São Paulo: Unesp, 2007. 63 É esse tipo de Estado que interessa à tese que ora apresentamos, pois esse é o tipo que protagoniza impulsos cíclicos voltados ao seu próprio desenvolvimento, em ato de reciprocidade ao desenvolvimento do modo de produção capitalista e que, ao longo dos tempos, tem sido objeto de interesse científico com inflexões diretas nos rumos que as sociedades humanas têm tomado, desde o advento da Modernidade. Sobre essas particularidades, retornaremos mais adiante, todavia, é importante resgatar a trajetória evolutiva na construção do pensamento teórico e prático, ou seja, da problemática mesma do Estado nas formulações de maior influência, de base racional, conforme já anunciamos. 1.2 Problematizações mais visitadas: exemplos de evolução do pensamento sobre o Estado É notória a preocupação de intelectuais e estadistas em definir e pensar o Estado nas suas mais variadas formas e expressões. Dedutiva ou indutivamente, é possível perceber um fio evolutivo, porém não linear, nas formulações teórico-práticas mais visitadas sobre o tema. Tais formulações expressam, nas ações de seus emissores, as “consciências sociais práticas” dos grupos sociais a que se vinculam87. Marcados pela heterogeneidade, há grupos de formuladores que primam pela explicitação de valores universais, ou por elementos categoriais fundantes, que conduzem a análises totalizantes, e, recorrem, sobretudo, às ciências sociais 88 . Outros, também com diferenciações internas, nos apresentam de modo mais evidente os valores sensíveis que conformam a problemática do Estado. Estes, por sua vez, dialogam mais fortemente com a filosofia política89. Há ainda um terceiro grupo, que se ocupa menos da problemática teórico-prática do Estado (por vezes, até a nega) por entender que as funções a ele afetas se reduzem à participação na busca pelo êxito dos processos que visam administrar as relações sociais como derivação direta dos mecanismos de gestão das relações de produção. São os que se ancoram 87 Esses intelectuais, mas, sobretudo, os “estadistas”, podem ser entendidos como ideólogos de seus grupos sociais. Ideologia aqui tratada não como falsa consciência, conforme nos esclarece Mészáros, quando afirma: “a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal, é insuperável nas sociedades de classes”. (In: MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004). 88 São expoentes dessa perspectiva: Marx (1818-1883); Engels (1820-1895); Lênin (1870-1924); Lukács (1885-1971); Gramsci (1891-1937); Althusser (1918-1990); Mandel (1923-1995) e Poulantzas (19361979); Durkheim (1858-1917); Weber (1864-1920). 89 Destacam-se: Hobbes (1588-1679); Locke (1632-1704); Kant (1724-1804); Rosseau (1712-1778); Hegel (1770-1831). 64 fundamentalmente no direito positivo e nas teorias gerais da administração das empresas e dos negócios capitalistas90. De modo geral, todas as perspectivas, por serem também ideológicas, apresentam natureza ontológica que se traduz numa espécie de função social, isto é, refletem também não apenas o papel que a ideologia desempenha ante o grupo social de seus portadores como também a conscientização como prévia ideação da prática social de seus agentes. Deste modo, o conjunto de intenções que serão implementadas pelos agentes portadores da ideologia, em termos ontológico-práticos, são encontradas sob duas formas essenciais de embate éticopolítico: o liberalismo e o socialismo. Os primeiros, na sua maioria, se guiam pelos primados da política econômica burguesa, evidenciando, em seus constructos, o liberalismo como valor ético para o tipo de Estado que defendem, ainda que conjunturas históricas específicas possam levá-los a radicalizar ou atenuar as diretrizes liberais, como é o caso do liberalismo radical autocrático ou o social-liberalismo. Já entre os socialistas, podem se destacar tendências, do mesmo modo autocráticas, e outras que, revisando ou reformando as bases de sustentação de suas teses, desembocam em uma heterogeneidade de acepções que vão desde a social-democracia até o capitalismo humanizado91. As fronteiras entre o conhecimento produzido por esses três grupos de formuladores são tênues, por vezes, possibilitando articulações positivas, quando há algum tipo de identificação ético-política ou metodológica; ou negativas, quando se trata de tomar o outro por antagonista. Contudo, se faz lídimo afirmar que não estamos pondo em confronto filosofias e sociologias, afinal: 90 Os mais visitados nesse campo costumam ser: Adam Smith (1723-1790); Thomas Malthus (17661834); David Ricardo (1772-1823); Fayol (1841-1925); Hayek (1849-1992); Taylor (1856-1915); Henry Ford (1863-1947); F. Mises (1881-1883); Keynes (1883-1946); e Friedman (1912-2006). 91 O “revisionismo”, como ficou conhecido o movimento protagonizado por Bernstein e Kaustky, sobretudo a partir da II Internacional, propunha a revisão dos escritos de Marx subtraindo deles a perspectiva de uma irrupção violenta e revolucionária como meio de superação do capitalismo. Sem dúvida, são os teóricos mais importantes da gênese da social-democracia. As teses sobre o capitalismo humanizado, embora tenham bases clássicas, estão em voga na pós-modernidade, inclusive em grande parte dos chamados novos movimentos sociais. Ver, nesse sentido, de Boaventura de Sousa Santos: Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007; Poderá o Direito Ser Emancipatório? Vitória: Faculdade de Direito e Fundação Boiteux, 2007; Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007; A Gramática do Tempo. Para uma Nova Cultura Política. Porto: Afrontamento, 2006. Também publicado no Brasil, 2. ed., São Paulo: Cortez, 2006, e Fórum Social Mundial: Manual de Uso. São Paulo: Cortez. 65 em um ensaio, Le philosophe et La sociologie, Merleau-Ponty assinalava os riscos de uma rivalidade cultivada entre filósofos e sociólogos, os primeiros considerando-se possuidores da verdade porque detentores da Ideia, os segundos reivindicando para si a posse do verdadeiro porque conhecedores do Fato. É uma rivalidade obscurantista que priva o filósofo de contato com o mundo e o sociólogo, da interpretação do sentido de sua investigação; tal atitude esconde algo típico da ideologia: a crença na existência do Sujeito do Conhecimento como olhar separado que sobrevoa imaginariamente o real e o domina através de um sistema de representações, sem que seja preciso indagar qual o sentido dos fatos nem qual a necessidade das ideias ao serem realizadas pela experiência. (CHAUÍ, 2007, p. 104)92. Queremos evidenciar, portanto, a relevância do pensamento construído pelos intelectuais que consideramos significativos para nossa análise — também por serem referências recorrentes no Serviço Social —, pois, na sua maioria, inauguram escolas de pensamento que nos influenciam até os dias atuais, à direita, à esquerda; na porosidade do centro, ou em suas frações. Das relações de poder (e sua manutenção) em Maquiavel até condensar correlações de forças típicas da vida social, em Poulantzas, a problemática do Estado foi se metamorfoseando, de cérebro em cérebro, até chegar aos elementos que nos permitem hoje elencar categorias teóricas para a análise de suas diferentes nuanças conceituais, teóricas, políticas, metodológicas e éticas. Conferimos um destaque especial para as “narrativas” no campo da tradição marxista, tanto por sua diversidade quanto pela abrangência, mas, sobretudo, porque é nesse campo que residem os nexos ontológicos da crítica que empreendemos. Ademais, a variedade de perspectivas no bojo dessa tradição tende a mostrar a fecundidade da problemática do Estado nesse campo de construção do conhecimento, mantida a unidade interna com relação ao modo como os diferentes autores evoluíram a sínteses diferenciadas partindo do mesmo tema, isto é, seus caminhos metodológicos coincidem nas preocupações que circunscrevem as análises da configuração e do desenvolvimento do Estado burguês, ou Estado capitalista 93 . Deste modo, a presença das classes sociais e da processualidade das relações de produção e reprodução social é constante, nos autores marxistas, conquanto se tratar de categorias centrais, na obra de Marx. Não por acaso, neste grupo, encontramos estadistas revolucionários, como Lênin ou Trotski. Não estamos assim, como já destacamos, apurando teorias do Estado contidas nas formulações dos intelectuais que convocamos, antes, estamos explicitando a construção e 92 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12. ed., São Paulo: Cortez, 2007. 93 Utilizaremos sem distinção os termos “Estado capitalista” e “Estado burguês” entendendo a burguesia como a classe que emerge como dominante no tipo capitalista de Estado, apresentando vinculação orgânica entre si. 66 evolução de um pensar crítico sobre o Estado, que inter-relaciona a normatividade e operatividade como meio embrionário para uma contribuição ao estudo sobre o Estado na contemporaneidade, e os modos como nos relacionamos com tais estudos (e práticas) ao longo do evolvimento da profissão dos assistentes sociais. 1.2.1 De Maquiavel a Hegel Nicolau Maquiavel (1469-1527) é reconhecidamente o primeiro sujeito político a se deter sobre a problemática do Estado moderno. As considerações que registra em O Príncipe são citadas por um sem-número de intelectuais como sendo as notas que dão origem a esse tipo de Estado, o Estado moderno. Contrapondo-se aos argumentos aristotélicos, Maquiavel não entende o Estado como instrumento que assegura a felicidade e a virtude humanas e nem como veículo intermediário entre o Reino dos Céus e da Terra como se pensava na Idade Média. Para ele, o Estado tem um funcionamento próprio, regras e características próprias, apreendidas tanto a partir da observação da dinâmica das Repúblicas ou Principados quanto da interação entre súditos e Príncipe, o que, seguramente, o credencia a estabelecer as tendências predominantes para o funcionamento desse Estado. Por isso que, na apresentação de seus escritos a Lourenço de Médici, refere: Espero, todavia, não se repute presunção o atrever-se um homem de condição baixa e humilde discorrer sobre os governos dos príncipes e inculcar-lhes regras. Assim como os que desenham paisagens se colocam nos vales para apreciar a natureza das montanhas; em lugares elevados e nas cumeadas dos montes para apreciar a dos vales; da mesma forma, para bem conhecermos a índole dos povos é mister sermos príncipes, e para conhecermos bem a dos príncipes precisamos ser do povo. 94 (MAQUIAVEL, 2007, p. 28). Sua humildade irônica é acompanhada por um princípio de empiria, no modo como diz estudar o Estado, associado a uma espécie de convencimento para aceitação de suas ideias. O autor de O Príncipe preocupava-se em afastar-se das abstrações da mente para ocupar-se das coisas como elas “realmente são”, pois não via a realidade como espontaneamente harmônica. Referia-se à verdade objetiva das coisas: 94 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Jardim dos Livros, 2007. 67 Em todo o caso, sendo minha intenção escrever coisa útil para quem saiba entendê-lo, julguei mais conveniente ir atrás da verdade efetiva do que das aparências, como fizeram muitos imaginado repúblicas e principados que nunca se viram nem existiram. Entre como se vive e como se devia viver há tamanha diferença, que aquele que despreza o que se faz pelo que se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da sua ruína do que de sua conservação. Na verdade, quem num mundo cheio de perversos pretende seguir em tudo os princípios da bondade, caminha para a própria perdição. Daí se conclui que o príncipe desejoso de manter-se no poder tem de aprender os meios de não ser bom e a fazer uso ou não deles, conforme as 95 necessidades. (MAQUIAVEL, 2007, p. 139-140). E, com isso, Maquiavel (2007, p.27-28) também trata a política como “a arte do possível (...) a arte da realidade que pode ser efetivada, a qual leva em conta como as coisas estão e não como elas deveriam estar”. Levando-se isso em conta, é desse modo que o Príncipe deve agir para ter controle de seu principado. Estado e política são mais do que categorias, para a análise teórico-filosófica de Maquiavel. A prática política “realista” que sugere é a que propicia as condições objetivas de se configurar um Estado moderno e coeso em torno do poder de seus governantes. Por isso é que Maquiavel afirma que é bom que o príncipe seja temido e amado, contudo, na impossibilidade da conquista dos dois sentimentos, o temor lhe é preferencial. O temor gera mais segurança e fidelidade ao governante que o contrário: “os homens têm menos escrúpulos de ofender quem se faz amar do que quem se faz temer, pois o amor depende de uma vinculação moral que os homens, sendo malvados, rompem; mas o temor é mantido por um medo de castigo que não nos abandona nunca”. E arremata: “Por conseguinte, deve-se estabelecer o terror; o poder do Estado, o Estado moderno, funda-se no terror”. (MAQUIAVEL apud GRUPPI, 1980, p.11)96. Com essas e outras considerações, Maquiavel passa a ser referência para todos os que se dedicam às coisas da política e do poder97. Seus escritos não trazem, a rigor, uma teoria do Estado, mas os principais determinantes das práticas políticas que conformam o Estado, cuja 95 Id., ibid. GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel — as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1980. 97 Os comentários tecidos por Napoleão Bonaparte e a rainha Cristina da Suécia, sobre O Príncipe, contidos em várias edições da obra, como já citamos, indicam a influência do pensador italiano para além de seu tempo, sobretudo no que se refere ao exercício de poder do Estado. Nesse sentido, recomendamos a leitura de qualquer uma das edições que tragam esses comentários, e, também, de HELLER, Agnes. O homem do renascimento. Lisboa: Editorial Presença, 1982. Coleção Métodos, em especial o Capítulo 10 - Filosofia Social, Política, Utopia, em que a autora nos brinda com uma discussão filosófica sobre como os axiomas maquiavélicos chamam a atenção tanto para o emprego de métodos políticos quanto os de violência, para o controle do príncipe, de modo que os fins (já que os meios já foram convocados) permaneçam com seu “caráter ético” inalterado. Ainda, o terceiro volume dos Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, em que o autor trata da temática da “decadência ideológica” e, por fim, o ensaio Marx e o Problema da Decadência Ideológica Burguesa. (In: LUKÁCS, Georg. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2009). 96 68 característica fundante é conquistar (mais pela força do que pela tradição) e manter o poder sobre seu povo, ou seja, o Estado como aparelho de dominação. A partir desse pressuposto, outras formulações foram surgindo e agregando novas categorias às explicações sobre o Estado e o poder. O francês Jean Bodin (1530-1596), por exemplo, discorre, por quase toda sua obra, sobre a questão da “soberania”. Polemizando com Maquiavel, afirma que o Estado constitui-se essencialmente por um poder em que a soberania é seu pilar de sustentação primordial. Ao sistematizar o tratamento da categoria soberania98, afirma que se está tratando de um poder perene e quase sem limites. Suas limitações são apenas a lei divina e as leis naturais, mas considera que o príncipe soberano deve, ainda, respeitar os contratos que estabelece com seus súditos, sem prejuízo da centralização do poder que se reserva. Na esteira de seu pensamento, a problemática da coesão social, entendida como função política e moral do Estado, ocupa o centro das atenções dos intelectuais da escola jusnaturalista, que a partir dali se fundará. Deste modo, o inglês Thomas Hobbes (1588-1679) é o primeiro a tratar do Estado como momento de síntese da elevação dos indivíduos de um estado primitivo, natural, estado de natureza, para um estado social. Tendo por referência a sociedade inglesa de seu tempo, já num estágio de desenvolvimento avançado, se comparada a outras sociedades europeias ou asiáticas da época, Hobbes percebe a capilarização de valores estruturados numa sociabilidade fundada na propriedade privada e que encontra, na sociedade que se organiza a partir das dinâmicas da acumulação primitiva, suas formas mais acabadas, e, dessa percepção, infere que o homem é naturalmente competitivo às últimas consequências: homo homini lúpus. A competição por riquezas, prazeres, honrarias e outras formas de poder conduz à luta, à inimizade e à guerra. (...) Assim, considero como principal inclinação de toda a humanidade um perpétuo e incessante afã de poder, que cessa apenas com a morte. Sua causa nem sempre é o fato de que o homem espera um prazer mais intenso que aquele já alcançado, ou que não chegue a satisfazer-se com um poder moderado, mas, sim, o fato de não poder ter assegurados seu poderio e os meios de seu bem-estar atual sem adquirir novos bens. Dessa forma, os reis, cujo poder é maior, tratam de assegurá-los, em seu país, por meio de leis e, no exterior, mediante guerras; o desejo da fama de novas conquistas; em outras, o de prazeres fáceis e sensuais; em outras, ainda, a admiração, o desejo de atingir a excelência em alguma arte ou habilidade 99 mental. (HOBBES, 2009, p. 78) . 98 Em sua obra, de 1576, Les Six Livres de la Republique (Os Seis Livros da República). HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de Rosina d’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009. (Coleção A Obra-Prima de cada Autor. Série ouro, 1). 99 69 Isto é, o desejo incessante de poder, de propriedade, de bens e riquezas, leva os homens a destruírem-se uns aos outros. Essa é a causa pela qual os homens quando desejam a mesma coisa e não podem desfrutá-la por igual, tornam-se inimigos e, no caminho que conduz ao fim (que é, principalmente, sua sobrevivência e, algumas vezes, apenas seu prazer), tratam de eliminar ou subjugar uns aos outros. (...) se alguém semeia, constrói ou possui uma área conveniente, pode estar certo de que chegarão outros que, unindo suas forças, procurarão despojá-lo e privá-lo do fruto de seu trabalho e até de sua vida ou liberdade. O invasor, por seu turno, assumirá o mesmo perigo enfrentado por aquele cuja propriedade invadiu e a quem subjugou. (Id., ibid., p. 94). Por isso, quando não existe um poder comum capaz de manter os homens numa atitude de respeito, temos a condição do que denominamos guerra; uma guerra de 100 todos contra todos. (Id., ibid., p. 95) . Para que isso não aconteça, um ente de poder absoluto deve ser legitimado por esses homens, de modo que exerça seu poder na preservação da espécie humana barrando a sua autodestruição. A existência desse ente é legitimada por uma espécie de contrato entre os homens. Esse contrato estabelece as normas da convivência social, que, não por acaso, já estavam relativamente dadas na esfera da circulação mercantil simples, sobretudo a liberdade. Os desejos de vida fácil e de prazeres sensuais dispõem os homens a obedecerem a um poder comum, pois fazem-nos renunciar à proteção que poderiam esperar de seu próprio esforço e labor. (...) A razão sugere normas de paz adequadas, que podem ser alcançadas pelos homens mediante o mútuo acordo. Essas normas são conhecidas como leis da Natureza. (HOBBES, 2009, p. 78) 101 . Em outros termos, para Hobbes (2009), a superação do estado de natureza se dá quando os homens voluntariamente alienam-se de seus direitos naturais em favor de um ente de soberania absoluta responsável pela preservação da vida dos indivíduos. Este ente, o Estado, surge por meio de um contrato em que o soberano (Estado) só pode ser questionado individualmente e com a comprovação de que não teria cumprido sua tarefa de proteger a vida do indivíduo reclamante. As características do processo de mercantilização da vida levam Hobbes (2009) a formular a tese do Estado absoluto, o ente em questão102. 100 HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de Rosina d’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009. (Coleção a Obra-Prima de cada Autor. Série ouro, 1). 101 Id., ibid. 102 Neste sentido, consultar MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo. De Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 70 No Leviatã, uma de suas principais obras, Hobbes inicia por aquilo que Macpherson (1979, p. 29)103 denomina de “proposições psicológicas” e que, ao discorrer sobre as sensações, a imaginação, a memória, o apetite e a aversão, demonstraria por dedução a necessidade de um soberano para os indivíduos atomizados, ainda que incompletas: (...) as proposições com as quais Hobbes abre a argumentação de Leviatã, das quais se poderia dizer que são sobre o indivíduo como tal, completamente abstraído da sociedade (...) não contém tudo o que é necessário para a dedução da necessidade do estado soberano. Se, por outro lado, empregarmos a expressão propostas psicológicas para incluir a afirmativa de Hobbes sobre o comportamento inevitável dos indivíduos uns em relação aos outros, em qualquer sociedade (em especial, a proposta de que todo indivíduo procura sempre ter maior poder sobre os outros), ou sua afirmativa semelhante quanto ao comportamento humano na ausência hipotética de qualquer sociedade (i.e., em estado de natureza), nesse caso as propostas psicológicas realmente contém tudo o que é necessário para a dedução da necessidade de um soberano, mas elas não são sobre o bicho humano como tal; foi preciso acrescentar algumas suposições sobre o comportamento humano na sociedade civilizada. É possível partir da luta universal pelo poder na sociedade, ou do estado de natureza para a necessidade do soberano, sem nenhuma outra suposição, mas não é possível partir do indivíduo como sistema mecânico, para a luta universal pelo poder ou para o estado de natureza sem nenhuma outra suposição 104 . Portanto, as proposições de Hobbes (ibid., p. 31) estão pautadas no individualismo em que se encontram os homens em estado de natureza. Suas deduções são hipoteticamente lógicas e não históricas e remetem à defesa do poder monárquico absolutista. A necessidade de preservar a paz e a integridade dos homens também aparece em John Locke (1632-1704). Para este, o Estado tem a atribuição de preservar a liberdade dos homens, tal qual em Hobbes, porém, liberdade em seus direitos de propriedade, pois os homens já seriam livres em seu estado natural. Para ele, o contrato que delega poderes regulatórios ao Estado deve prever a limitação da própria liberdade natural dos homens, justamente, a fim de preservar a propriedade. Locke é reconhecidamente uma referência do liberalismo político105. Para Locke (2006), diferentemente de Hobbes, a liberdade e a igualdade já existiriam no momento anterior ao surgimento do Estado (estado de natureza) e seriam responsáveis pela harmonia entre os homens. Essa harmonia só seria quebrada com a intempérie da violação do direito natural à propriedade. Para protegê-la, garantindo a continuidade da harmonia, é estabelecido um contrato social onde os homens legitimam um corpo político específico (o Estado) que se encarrega de proteger a propriedade privada dos indivíduos. No Capítulo VIII, 103 Id., ibid. Id., ibid. 105 No campo econômico, são notórias suas posições mercantilistas. 104 71 Locke refere-se ao início do que denomina “sociedades políticas”, afirmando que os homens se juntam nessas comunidades e se submetem a um governo com a finalidade de preservar suas propriedades. Se todos os homens são, como se tem dito, livres, iguais e independentes por natureza, ninguém pode ser retirado deste estado e se sujeitar ao poder político de outro sem o seu próprio consentimento. A única maneira pela qual alguém se despoja de sua liberdade natural e se coloca dentro das limitações da sociedade civil é através de acordo com outros homens para se associarem e se unirem em uma comunidade para uma vida confortável, segura e pacífica uns com os outros, desfrutando com segurança de suas propriedades e melhor protegidos contra aqueles que não são daquela comunidade. Esses homens podem agir desta forma porque isso não prejudica a liberdade dos outros, que permanecem como antes, na liberdade do estado de natureza. Quando qualquer número de homens decide constituir uma comunidade ou um governo, isto os associa a eles formam um corpo político em que a maioria tem o direito de agir e decidir pelo restante. (LOCKE, 2006, p. 139)106. A vida em estado natural — estado de natureza, sem a existência do Estado — não assegura a propriedade. Sua construção, assim, se justifica para garantir uma normalidade advinda do exercício do direito sagrado da propriedade. Percebemos, nas formulações de Locke (2006), a nítida influência das relações mercantis de seu tempo. A tendência crescente do trabalho livre e a expansão dos mercados são características que, fundadas também num contrato entre classes, transfundem-se para sua noção de Estado e passam a ser referência para a democracia liberal burguesa107. Isto é, do mesmo modo como os contratos entre indivíduos, nas relações mercantis, podem ser desfeitos sob determinadas condições, também o poder delegado ao Estado para garantir a preservação da propriedade pode ser desfeito a qualquer tempo. A condição para que isso ocorra é o não cumprimento dessa função estatal estruturante. A relação entre propriedade e liberdade é a raiz da sociabilidade pensada por Locke (2006), na qual todas as esferas da vida social passam a ser regidas por contratos garantidores de liberdade econômica: o trabalho, as heranças, o casamento, etc. Portanto, mesmo o Estado tendo poderes coercitivos, a soberania está no contrato social, e, de modo indireto, nos indivíduos, pois esses são portadores de direitos individuais, o que os eleva a condição de cidadãos e não mais súditos. Evidencia-se, ainda em Locke (2006), a distinção entre público (Estado ou 106 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 4. ed., Bragança Paulista: Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006.. 107 Não apenas das relações mercantis, mas destaca-se a experiência da Revolução Gloriosa de 1688 que promoveu o ocaso do absolutismo na Inglaterra instaurando a Monarquia Parlamentar e a Bill of Rights (Declaração de Direitos), em 1689, que consolidava a preponderância do Parlamento na administração do Estado limitando os poderes reais. 72 sociedade política) e privado (mercado ou sociedade civil), porém inter-relacionados e com nítida direção social dada pelo segundo sobre o primeiro108. Essa soberania do povo é implícita em Locke (2006), mas nítida, em Immanuel Kant (1724-1804), o que apenas reafirma um dos princípios basilares da democracia liberal. A Democracia, para Kant, deve ser fortemente regulada, a ponto de determinar quem são os cidadãos que gozam o direito de exercê-la. Baseia-se, deste modo, na força da lei que, para Kant, é tão inviolável, consistindo crime até mesmo seu próprio questionamento, afinal, a lei corresponde à própria soberania do povo. Com efeito, contanto que não haja contradição em que um povo inteiro dê por voto o seu assentimento a uma tal lei, por muito penoso que lhe seja aceitá-la, esta lei é conforme ao direito. Mas se uma lei pública é conforme a este último, por conseguinte, irrepreensível no tocante ao direito, então, está-lhe também ligada a autoridade para constranger e, por outro lado, a proibição de se opor à vontade do legislador, mesmo sem ser pela violência, isto é, o poder no Estado que dá à lei o seu efeito é também irresistível, e não existe nenhuma comunidade que tenha uma existência de direito sem um tal poder, que suprime toda a resistência interna, pois esta teria lugar segundo uma máxima que, uma vez universalizada, aniquilaria toda a constituição civil e o estado em que unicamente os homens podem estar na posse dos direitos em geral. Daí se segue que toda a oposição ao poder legislativo supremo, toda a sedição para transformar em violência o descontentamento dos súditos, toda a revolta que desemboca na rebelião, é num corpo comum o crime mais grave e mais punível, porque arruína o seu próprio fundamento. E esta proibição é incondicional, de tal modo que mesmo quando o poder ou o seu agente, o chefe do Estado, violaram o contrato originário e se destituíram assim, segundo a compreensão do súdito, do direito a ser legislador, porque autorizou o governo a proceder de modo violento (tirânico), apesar de tudo, não é permitido ao súdito resistir pela violência à violência. 109 (KANT, 1993). Logo, notamos que há uma antinomia em Locke (2006) e em Kant (1993) ao estabelecerem o povo como soberano, contudo, limitarem o exercício dessa soberania a uma parte específica desse povo. No raciocínio kantiano, a assertiva “a soberania pertence ao povo” carrega, pois, consigo, as marcas de um certo eufemismo, ao afirmar e negar ao mesmo tempo o exercício dessa soberania. Os não proprietários não dispõem, para Kant (1993), do direito, por exemplo, de votar e serem votados. Um sincretismo conclusivo entre democracia liberal e Estado de Direito se apercebe nas formulações do filósofo prussiano. Notamos até mesmo uma espécie de naturalização das relações sociais classistas emergentes ou de dominação do homem pelo homem de Maquiavel 108 LOCKE, John. Ob. Cit., 2006. KANT, Imannuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de A. Mourão. Lisboa: Eds, 1993. p. 70, 179. 109 73 (2007) a Kant (1993). Não há neles uma consideração acerca das debilidades que as relações sociais fundadas a partir das relações mercantis causam na sociabilidade humana, por estruturarem-se na mais profunda apartação social. Isto aparecerá apenas em Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que denuncia os males que o processo civilizatório sob os auspícios burgueses causa à humanidade110. Rousseau inspira-se basicamente na experiência democrática da República de Genebra, sua cidade natal, que apresenta uma prática diferente da democracia burguesa que se instaura na Inglaterra, na França, após a Revolução de 1830, e na Itália, em 1848 111 . Em Genebra, a soberania estava conferida a uma Assembleia permanente de cidadãos, que representavam a vontade geral do povo. Rousseau sabia que esse sistema seria impraticável em um Estado cujas proporções são maiores do que as de uma cidade, por isso admitia que suas formulações tratavam de um Estado ideal, a que todos deveriam aspirar, mas que nunca existiu e talvez nunca viesse a existir. A importância conferida por Rousseau à Assembleia foi tamanha que ele desconsidera a repartição tripartite de poderes proposta por Montesquieu (Executivo, Legislativo e Judiciário), em defesa da Assembleia como lócus de representação do corpus público. A importância da Assembleia, a partir da maneira como Rousseau a trata, se desdobra em outras vertentes e extrapola sua época, como, por exemplo, quando Lênin assume que nos Sovietes “os poderes legislativo e executivo identificam-se e o poder representativo é dominante”112. Rousseau aproxima-se dos demais contratualistas quando admite a necessidade de um contrato social como forma de garantir unidade e estabilidade à comunidade societal, mas destoa deles, quando defende que esse contrato deve garantir a igualdade como forma de acesso à liberdade plena dos cidadãos, em uma crítica contumaz à propriedade privada. Para Rousseau, a propriedade privada está na gênese da desigualdade entre os homens113. A tradição do direito natural (jusnaturalista) perdurou praticamente durante o século XVII e parte do XVIII até o momento em que a filosofia alemã passa a problematizá-la, tendo, justamente, em Georg Wilhem Friedrich Hegel (1770-1831) seu maior expoente. Diferentemente dos jusnaturalistas, que pensavam um Estado ideal, o filósofo alemão constrói seu pensamento sobre o Estado sob a influência das relações socioeconômicas que vivencia, isto é, a partir da consolidação do capitalismo como modo de produção dominante e é 110 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2009. Nesse sentido, é importante que se estude o pensamento de Benjamin Constant de Rebecque (17671830), que evidencia a generalização do liberalismo como ideal, em toda a Europa, na contramão do que idealizou Rosseau. 112 GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel — as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1980. 113 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Origem e fundamentos da desigualdade entre os homens. MemMartins/Portugal. Publicações Europa-América, 1976. 111 74 sobre este Estado que tece suas considerações modulares em Princípios da Filosofia do Direito114. Admite que a estrutura econômica baseada na propriedade privada (portanto capitalista) é depositária de um caráter civilizatório, conquanto “a propriedade é a personificação da personalidade” (HEGEL, ob. cit.). Por outro lado, Hegel não justifica o sistema generalizado de produção de mercadorias, como Hobbes e Locke, pois considera que a estrutura de tal sistema se constitui entrave ao alcance do interesse comum autêntico, todavia, não considera que a ordem social fundada na propriedade privada deva ser superada. Isto se deve a uma razão simples: Para Hegel, a ordem posta representa o momento da sociedade humana compatível com a possibilidade da realização da liberdade e o Estado é o responsável por essa realização, na medida em que condensa nele a universalidade dos interesses sem, contudo, subtrair as individualidades pessoais, particulares. Afirma: É o Estado a realidade da liberdade concreta. A liberdade concreta consiste em a individualidade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus próprios direitos (nos sistemas da família e da sociedade civil) que, em parte, consciente e voluntariamente como seu particular espírito substancial, agindo para ele como seu fim último. Disto provém que nem o universal tem valor e é realizado sem o interesse, a consciência e a vontade particulares, nem os indivíduos vivem como pessoas privadas unicamente orientadas pelo seu interesse e sem relação com a vontade universal; deste fim são conscientes em sua atividade com a vontade universal; deste fim são conscientes em sua atividade 115 individual. (HEGEL, 1997, p. 211-212) . Conclui: O princípio dos Estados modernos tem esta imensa força e profundidade: permite que o sujeito da subjetividade alcance a extrema autonomia da particularidade pessoal ao mesmo tempo que o reconduz à unidade substancial, mantendo assim esta unidade no seu próprio princípio. (Id., ibid., p. 212)116. Hegel estabelece distinção entre este ente capaz de universalizar os interesses e esta outra esfera, a dos interesses particulares, notadamente inaugurando um conceito de sociedade civil afeto ao segundo e de Estado político referenciado ao primeiro. Notar-se-á, pelos excertos, 114 Vivendo o “capitalismo de Napoleão Bonaparte”, Hegel situa Princípios da Filosofia do Direito à sua época. Refere: “Um segundo motivo para que este esboço fosse impresso e posto, igualmente, ao alcance do grande público: o desejo de que as notas primitivamente destinadas a serem apenas breve alusões a concepções afins ou divergentes, as consequências ulteriores etc., explicadas posteriormente nas próprias lições, sejam desenvolvidas nesta redação a fim de aclarar, algumas vezes, o conteúdo mais abstrato do texto e lograr uma referência mais explícita a ideias conexas e contemporaneamente correntes”. (In: HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Prefácio do Autor. Tradução de Norberto de Paula Lima e Márcio Pugliese. São Paulo: Ícone, 1997. p. 25). 115 Id., ibid. 116 Id., ibid. 75 que não se trata de distinção antagônica, mas sim de um duo-dialético em que se verifica um complexo sistema de mediações. Isto afasta Hegel das teses de elevação do estado de natureza para o estado Social 117 . Essas mediações, protagonizadas pelos atores da sociedade civil hegeliana, como a família, mas, sobretudo, as corporações, respondem pela eticidade nela contida, ao mesmo tempo em que pela universalização da vontade geral. No filósofo alemão não há uma relação antinômica entre vontade singular e vontade universal, na qual a segunda reprima ou recalque a primeira, mas existe um movimento dialético pelo qual a vontade singular dos indivíduos, através da vontade particular das corporações, é aufheben – isto é, conservada, eliminada e elevada a nível superior – na vontade geral da coletividade estatal. O indivíduo, tornando-se membro da corporação, capacita-se a ser cidadão do Estado, sem por isso deixar de se orientar também pelo seu interesse individual, mas reconhecendo que a satisfação desse interesse passa pela articulação dele com os interesses particulares (da 118 corporação) e universais (do Estado). (COUTINHO, 1996, p. 134) . Hegel não trabalha, assim, com os postulados da democracia liberal que convergem para a vontade da maioria entendida como vontade geral. Nesse sentido, como descrevemos antes, se afasta criticamente dos jusnaturalistas, em especial de Rousseau, e, na tentativa de dar objetividade ao seu conceito de vontade geral, de defini-lo e situá-lo concretamente, concebe uma concepção de democracia, de Estado democrático. Coutinho (1996) nos lembra que, ao negar o contratualismo – ou a necessidade de um contrato tácito entre os homens na formação do Estado -, Hegel nega também as formas institucionais de representação e representatividade coletivas, propostas por Rousseau para mediar o alcance da vontade geral. Evidente isto, para Hegel, na medida em que, para ele, o Estado antecede a sociedade civil: Essa negação do contrato, por outro lado, levou Hegel a se contrapor expressamente à ideia da soberania popular e do sufrágio universal igual; para ele, todos os membros de uma sociedade deveriam opinar, mas não sobre o geral e, sim, somente sobre o que lhes diz diretamente respeito, ou seja, deveriam participar apenas no nível de uma assembleia corporativa, não de uma câmara legislativa para a qual cada um votasse ou fosse votado enquanto indivíduo. (Id., ibid. p. 135). 117 Gruppi (1980, p. 24) lembra que “Hegel restabelece plenamente a distinção entre Estado e sociedade civil formulada pelos pensadores do século XVIII, mas põe o Estado como fundamento da sociedade civil e da família, e não vice-versa. Quer dizer que, para Hegel, não há sociedade civil se não existir um Estado que a construa, que a componha e que integre suas partes; não existe povo se não existir o Estado, pois é o Estado que funda o povo e não o contrário. É o oposto da concepção democrática, segundo a qual a soberania é do povo, que a exprime no Estado, mas o fundamento da soberania fica sempre no povo”. 118 COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. 2. ed., São Paulo: Cortez, 1996. 76 Muitos críticos de Hegel, incluindo Marx ou, em outra escala, Sartre (1905-1980)119, identificam o caráter determinista das considerações hegelianas sobre Estado e sociedade, na medida em que m evidenciadas a irrelevância da intersubjetividade dos indivíduos e a dimensão teleológica de suas ações. Ainda assim, podemos atribuir a Hegel a construção de uma consciência sobre a coisa pública. Um ethos público que se sobrepõe ao privado nele emerge como forma embrionária para se pensar tanto modelos de democracia quanto de sociedades emancipadas, em que pese seu “conformismo” ante as relações socioeconômicas do capitalismo emergente de seu tempo. Em resumo, podemos asseverar que é nesse intelectual que se delineia com vigor tanto o uso da “razão” moderna, sobretudo pós-Revolução Francesa, como leit motiv da história humana, quanto a configuração do Estado como objeto de interesse científico e filosófico, por representar a materialização de práticas políticas e sociais contemporâneas. A evolução do pensamento acerca da problemática do Estado, de Maquiavel a Hegel, encontra, pois, sentido, nos processos sociais em que é construída. Isto, levando-se em contra o método histórico-dialético: O princípio dialético não é um princípio geral que se aplique igualmente a qualquer coisa. É verdade que qualquer fato, seja ele qual for, pode ser submetido à análise dialética, como o copo d’água da discussão famosa de Lênin 120 . Mas todas estas análises levariam às estruturas do processo sociocultural e viriam a mostrar que este processo é que constitui os fatos analisados. A dialética toma os fatos como elementos de uma totalidade histórica definida da qual eles não se podem isolar. Ao se referir ao exemplo do copo d’água, Lênin afirma que a totalidade da prática humana deve entrar na “definição do objeto”; a objetividade independente do copo d’água fica, pois, dissolvida. Todo fato só pode ser submetido à análise dialética na medida em que cada fato é influenciado pelos antagonismos do processo social. (MARCUSE, 2004, p. 270)121. Poderíamos ter tornando ainda mais extenso o esboço da interpretação histórica que procedemos, adjetivando a narrativa com a inclusão dos condicionantes sociais — decorrentes da base material da vida e da luta de classes vinculada a tal base — que permitiram aos autores expressar os posicionamentos que tiveram. Contudo, além de nos obrigar a recorrer a inúmeras digressões, tornando exaustiva a narração, não vimos prejuízo na seleção dos elementos marcantes, vinculados diretamente ao que interessa, a esta parte do estudo, que é explicitar o 119 Ver, deste autor: Crítica da Razão Dialética e Questões do Método (qualquer edição). Selected Works, Nova York, 1934, International Publishers, v.ix, p. 62 sgs. (nota original). No Brasil, a menção ao copo d’água, pode ser encontrada em: LÊNIN, V. I. Sobre a emancipação da mulher. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980. 121 MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. Tradução de Marília Barroso. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 120 77 modo como a humanidade empreende, ao longo de sua história, explicações racionais justificadoras de sua existência e dinâmicas sociais, para, com isso, sustentar nossas argumentações sobre o modo como dispensamos, no âmbito do Serviço Social, tratamento a esta problemática geral e particular. 1.2.2 Marx e os marxistas A filosofia hegeliana capilariza-se de tal modo que se torna praticamente leitura obrigatória nos meios acadêmicos e políticos, a partir do início do século XIX; da Alemanha se alastrando para todo o ocidente, em ondas menores. Karl Heinrich Marx (1818-1883) sofre influência direta dessa filosofia, ora aproximando-se dela, ora afastando-se. Inicialmente estuda Direito, mas depois se dedica à História e à Filosofia, de modo que tal dedicação o leva a aprofundar os estudos sobre os constructos hegelianos, tornando-se um crítico destes. Marx não tinha, no centro de suas preocupações teóricas, a problemática do Estado, como teve Hegel em Princípios da Filosofia do Direito. Sua preocupação partia da necessidade de construir uma crítica das críticas que já se faziam a Hegel pelos neo-hegelianos, como Bruno Bauer (1809 – 1872), Arnold Ruge (1802-1880), Max Stirner (1806-1856), mas, principalmente, Feuerbach (1804-1872), com quem, mais tarde, viria a polemizar de modo mais contundente; considerando a crítica como instrumento capaz de elevar o discurso à prática, transformando concretamente a sociedade a qual fornece os elementos para a construção desse mesmo discurso. Portanto, suas preocupações partiam da realidade concreta e objetiva do Estado alemão de sua época, calçado nas relações de exploração do trabalho pelo capital. O incômodo de Marx com Hegel passa pelo fato de que as formulações hegelianas partiam de uma perspectiva burguesa, de uma era pós-napoleônica, que, de certo modo, alimentava parte significativa das aspirações da classe dominante, sobretudo da Alemanha de sua época. Afinal, em Hegel, o Estado contém nele mesmo os ideais da Moral e racionaliza com isso todos os domínios da vida social 122 . Assim, são as forças opressoras originadas nas relações sociais capitalistas que interessam a Marx compreender e combater, sem admitir nenhum tipo de concertação entre opressor e oprimido. Nesse sentido, Coutinho (1997) revela: 122 Consultar: LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal. Liberdade, igualdade, estado. Tradução de Carlos Alberto Fernando Nicola Dastoli e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Unesp, 1998. Biblioteca Básica. Nesta obra, Losurdo demonstra como Hegel se posiciona pela “superação” dos resquícios da ordem feudal, a divisão dos principados neofeudais. Desnuda o “falso dilema” de Norberto Bobbio que insiste em classificar Hegel como defensor do Estado opressor prussiano. 78 Tal como já sugerimos ao analisar as aporias de Rousseau, também aqui as razões dos limites de Hegel – mas também de sua grandeza – podem ser apontadas no ponto de vista de classe que adota em sua obra. Se Rousseau, ao formular sua utopia democrática anticapitalista, expressava a perspectiva de classe dos artesãos e dos pequenos proprietários – e essa perspectiva é responsável tanto por seus méritos quanto por suas limitações – Hegel, ao contrário, adota em sua filosofia política o ponto de vista da classe burguesa tal como essa se havia constituído na época pósnapoleônica. Decerto, como sempre, é preciso concretizar: em função das peculiares condições da Alemanha da época, Hegel busca frequentemente conciliar esse ponto de vista burguês com os interesses das classes dominantes da velha ordem feudal. Vejamos um exemplo dessa conciliação: embora continue atribuindo grande importância aos estamentos (Stände) herdados da época feudal na estruturação do seu Estado “racional”, Hegel afirma claramente que a pertinência a um estamento já não é simplesmente algo “natural”, dado a priori, como no feudalismo, mas, resulta, sobretudo, da "liberdade dos particulares", da mobilidade social trazida pelo capitalismo. Por isso, quando fala em "estamentos" na Filosofia do Direito, ele está frequentemente designando (salvo no caso da aristocracia fundiária) um fenômeno social que se aproxima bem mais da moderna situação de classe, própria da sociedade capitalista emergente, do que da velha ordem hierárquica do Ancien Régime (A burocracia, ou o Mittelstande, por exemplo, é uma condição social aberta a todos os que revelem qualificação para tanto, independentemente do nascimento). Além disso, o fato de ser ele mesmo um "servidor público", um membro da Mittelstande, talvez explique a grande importância que atribui à burocracia no quadro da nova ordem burguesa, uma importância que, de resto, só iria se acentuar no período sucessivo da evolução do capitalismo. Por tudo isso, não me parece equivocado dizer que, enquanto Rousseau expressa uma utopia anacrônica (ainda que plena de implicações políticas positivas para o presente e para o futuro), Hegel descreve na Filosofia do Direito, ao contrário, um Estado análogo – em suas linhas fundamentais – ao Estado burguês moderno realmente existente123. Se estas eram suas preocupações, evidentemente que não é possível estabelecer a crítica que pretende passando ao largo da problemática do Estado. Assim, publica nos Anais FrancoAlemães, em 1844, Sobre a Questão Judaica124 e Crítica da Filosofia do Direito de Hegel125 pensamentos que sintetizam inauguralmente a crítica pretendida. No primeiro, Marx distingue, a seu modo, o que Hegel também fizera: sociedade civil de sociedade política; privado e público. De modo análogo a Hegel, entende sociedade civil como o conjunto das relações econômicas, porém, e aí se afasta de Hegel, social e historicamente determinadas, portanto relações econômicas burguesas, objetivas e concretas, base do tecido societário e a partir do 123 COUTINHO, Carlos Nelson. Hegel e a democracia. Conferência proferida para o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) em 13 de julho de 1997. Disponível em: <www.iea.usp.br/artigos>. Acesso em: 15 fev. 2013. 124 MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. 125 Id. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005. 79 conjunto de mediações que a determinam é que se funda o Estado no campo superestrutural, frontalmente opondo-se à lógica hegeliana de que é o Estado que funda a sociedade civil126. Marx demonstra interação entre as duas esferas, compreendendo que o Estado é expressão da sociedade, portanto, não podem ser entendidos fora dessa natureza relacional. No prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política, é que Marx (2008, p. 47) apresenta formalmente esta conclusão: Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século 18, compreendia sob o nome de “sociedade civil”. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política 127 . Portanto, Marx (2008, p. 47) não apenas afirma que o Estado só pode ser explicado e entendido a partir da sociedade civil (a anatomia da sociedade burguesa a que se refere é a da sociedade civil), como entende que é no Estado em que as formas de consciência são encontradas: (...) na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade [sociedade civil], a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência [Estado]128. E prossegue anunciando o dinamismo das relações socioeconômicas burguesas, capaz de conferir também um movimento dinâmico ao Estado, o que faz deste um ente relacional e transitório: 126 Marx define a estrutura social em dois níveis: a infraestrutura, estrutura ou base que é o lócus onde acontecem as relações econômicas que sustentam toda a dinâmica de uma sociedade. O domínio da infraestrutura é inevitavelmente o exercício de poder próprio da sociedade burguesa. O outro nível é a superestrutura na qual residem as estruturas jurídicas, o Estado e os aparelhos do Direito e as instâncias ideológicas, políticas, morais, etc. da sociedade. 127 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 128 Grifos nossos. 80 O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais de uma sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. (Id.,ibid., p. 48). Esses excertos nos mostram a maneira como Marx realiza o tratamento que dispensa à problemática do Estado. Isto é, partindo o seu raciocínio das condições materiais e objetivas em que se realiza a vida social, o que prossegue é a perspectiva revolucionária da transformação. Portanto, o Estado não é um fim em si mesmo e por isso não necessita ser tratado como instância onde se finaliza a realização da humanidade129. Essa constatação teria levado Marx a não formular uma teoria geral do Estado, mas sim tratá-lo transversalmente na quase totalidade de sua produção. Essa transversalidade, conferida ao Estado por Marx, em suas obras, salta aos olhos, quando o autor problematiza as características fundantes da sociedade capitalista, como, por exemplo, a divisão de classes sociais, a exploração do trabalho pelo capital, os princípios da ideologia e da política (classista) burguesa e a Revolução. No Manifesto do Partido Comunista, texto que constrói em parceria com Friedrich Engels (1820-1895), por exemplo, os autores afirmam: “A história de todas as sociedades que já existiram é a história das lutas de classes”. Desse modo, informam que o Estado burguês é classista, e arrematam: “O poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” 130. Em que pesem as inúmeras reproduções e traduções existentes do Manifesto (até mesmo por seu caráter instrumental-partidário), que podem levar a interpretações diversas, não há como ignorar que essa passagem do opúsculo refere-se ao modo como a burguesia consegue ter no Estado a direção social de seus interesses. 129 Nesta afirmação, identificamos o ineditismo da construção marxiana sobre o Estado por ficar evidente seu distanciamento da maior parte das produções anteriores sobre o tema. Ou seja, para Marx, o Estado não é o instrumento para se alcançar a felicidade, como queria Aristóteles, e nem o Reino dos Céus, como se pensava na Idade Média; não é resultado de um contrato tácito entre os homens com delegação para harmonizar suas relações sociais nem muito menos a expressão máxima da vontade geral, instância universalizadora dos interesses particulares como pensou Hegel. O Estado é tão somente um momento de síntese da superestrutura que tende a ser transformado na medida em que se transformam as relações sociais de produção. 130 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Maria Lúcia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. 81 Como Marx já havia alertado para a permeabilidade do Estado burguês aos interesses de uma classe dominante, a afirmação da dupla Marx-Engels não pode ter seu caráter crítico reduzido a uma interpretação possibilista de Estado asséptico, ou acima das classes. Neste sentido, Trotsky (1879-1940) tece o seguinte comentário sobre a afirmação contundente contida no Manifesto: Nesta fórmula concentrada, que para os dirigentes sociais-democratas aparecia como um paradoxo jornalístico encontra-se, na verdade, a única teoria científica sobre o Estado. A democracia criada pela burguesia não é, como pensavam Bernstein e Kautski, uma concha vazia que se pode, tranquilamente encher com o conteúdo de classe desejável. A democracia burguesa só pode servir à burguesia. O governo de “Frente Popular” dirigido por Blum ou Chautemps, Caballero ou Negrin é tão somente “uma delegação que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Quando esta delegação se sai mal em seus negócios, a burguesia expulsa-a 131 do poder a pontapés. (TROTSKY, 1937 ) . Essa é a tônica, que, embora Trotsky classifique como “teoria científica sobre o Estado”, tem muito mais um aspecto denunciador do que propriamente teórico. Os elementos teóricos que tornam a afirmação racional, lógica e mesmo empírica surgirão, como já dissemos, no estudo detalhado da sociedade burguesa e sua dinâmica de reprodução, e, consequentemente, as formas imanentes de sua superação, este, sim, o objeto real de estudo da vida de Marx, lapidados maduramente em O Capital. Ocorre que a influência da construção marxiana nos domínios da economia, da filosofia, da história, da ciência política e do direito, funda uma escola, uma corrente de pensamento ou, em outros termos, uma tradição que atenderá pelo nome de marxismo, ou, de tão vasta, marxismos, como se referiu Netto (1985, p.8-9) acerca das “vertentes diferenciadas e alternativas de uma já larga tradição teórico-política”, bem ao modo das problematizações próprias da teoria científica. Afinal, conclui Netto: “A hipótese de um marxismo único, puro e imaculado remete mais à mitologia política e ideológica do que à crítica racional” 132. Assim, desde Engels, que construiu com Marx os pilares dessa tradição, até os signatários contemporâneos dessa escola, como Mészáros ou Hobsbawn, o marxismo tem se apresentado vigorosamente como teoria da sociedade burguesa e sua ultrapassagem pela revolução proletária (NETTO, 1985), instigando os que nele se fundamentam a inquerir sobre as 131 Citação retirada do texto A Atualidade do Manifesto do Partido Comunista, escrito por Leon Trotsky como prefácio à primeira edição do manifesto publicada na África do Sul, em outubro de 1937. Pode ser encontrado, no Brasil, na edição de 1998, publicada pela Boitempo Editorial, com a organização de Osvaldo Coggiola e tradução de Álvaro Pina. Todavia, nosso primeiro contato com o texto se deu a partir da edição comemorativa dos 150 anos do manifesto publicada para a Campanha Financeira da corrente O trabalho, do Partido dos Trabalhadores, seção brasileira da 4a Internacional. 132 NETTO, José Paulo. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Coleção Primeiros Passos). 82 questões da vida social, o que inclui, evidentemente, a problemática do Estado e, porque não, do desenvolvimento da sociedade capitalista. A proximidade afetiva e política de Engels com Marx forneceu à obra de Engels uma unidade teórica inalienável ao pensamento do filósofo alemão. Reconhecendo a necessidade de associar o materialismo dialético – o método – à Teoria da História, Engels investiga as origens da família, da propriedade privada e do Estado, publicando em 1884 um livro que leva esse mesmo nome. Coincide com o advento da antropologia e da etnologia. Engels se vale de anotações de Marx sobre a obra A Sociedade Antiga, do etnólogo norte-americano Lewis Henry Morgan e, através do estudo de tribos daquele país, investiga sua organização a partir do direito materno, a posterior apropriação de excedentes de produção como forma primitiva de origem do patriarcado e a consequente formação de um Estado que preserve a ordem mantendo a desigualdade (de gênero) e classes, a partir de um pressuposto simples: De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos: de um lado, a produção dos meios de existência, de produtos alimentícios, habitação, e instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado, a produção do homem mesmo, a continuação da espécie. (ENGELS, 2002, 133 p.10) . Justamente as formas histórica e socialmente determinadas de continuação da espécie humana que levam Engels a aprofundar-se nessa investigação. Por isso que, em seu estudo, a sociedade não é um conjunto formado pelas partes, mas, uma dessas partes, é a família134, ao contrário, a família antecede ao capitalismo, mas encontra nele condições de se transformar em algo funcional e, praticamente, estrutural ao sistema, devido ao seu imbricamento às relações de produção simples e ampliadas: 133 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro, 2002. 134 Já pensada como lócus que organiza os homens em sua constituição como ser humano genérico para a produção e reprodução das condições materiais de sobrevivência, mas também para a reprodução espiritual, isto é, as formas de consciência social: jurídicas, religiosas, artísticas ou filosóficas, por meio das quais os indivíduos tomam consciência dos processos atinentes à reprodução material. Essa consideração, embora diga respeito também à família, a ultrapassa, pois a realização do ser humano genérico como tal não se limita a ela, ao contrário, a extrapola. A família é vista, pois, por Engels, como apenas uma das formas encontradas pelo capital para sustentar seus intentos reprodutivos. Nesse sentido, ver nossa dissertação de Mestrado Trabalho, Família e Ser Social: Elos que Unem a Centralidade do Trabalho às Relações Familiares, defendida no Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da PUC-SP, em 2005. 83 [A família] constitui-se, propriamente, uma das condições históricas encontradas pelo capitalismo no processo de sua formação. Envolvida nesse processo, a família se transforma porque, em última instância, é determinada pelas necessidades de reprodução do modo de produção. Mais ainda, as alterações que sofre implicam diferenciações que correspondem às condições específicas de formação das novas classes. Mas sua forma inicial, derivada de condições históricas específicas, fundada em um tipo característico de divisão sexual do trabalho, certamente influi na forma alterada que assume posteriormente. (DURHAM, 1985, p. 08 apud PAULA, 2008, p. 135 28-29) . Assim, para Engels, a sociedade funda-se, mesmo as sociedades primitivas, quando a divisão social simples e de gênero do trabalho tomam forma como meio de organizar a produção e reprodução das condições de vida material, tendo a família como canal intermediário para esse fim. Nas sociedades primitivas, essa divisão do trabalho não implicava nem a subordinação da mulher ao homem, nem vice-versa, sendo matriarcais; muito menos a apropriação privada dos excedentes de produção. É o desenvolvimento das forças produtivas, com a domesticação e a criação de gado, por exemplo, que leva essa função masculina a ser entendida também como forma de credenciamento ao poder paterno, definindo não apenas a sucessão (herança) como a própria propriedade privada. A autoridade do pai sobre os demais membros da família funda um tipo de dinâmica, nesse espaço privado, que é rapidamente difundida não apenas para todos os outros grupos familiares como também para as relações societais mais amplas, com auxílio de um arcabouço de valores burgueses emergentes. Ocorre que nem todas as famílias são iguais, muito menos as propriedades. Portanto, as dinâmicas familiares e sua formação complexificam-se e, justamente por isso, alteram as relações econômicas – de produção e reprodução social -, na consolidação das classes com inflexões no jogo ético-politico de interesses que essas classes empreendem entre si e entre suas frações. É nesse sentido que o Estado surge como forma de “colocar em ordem” a “desestruturação” da sociedade, percebida em seus grupos de convívio, ação que, segundo Engels, não era necessária nas sociedades tribais. Gruppi (180, p. 30), nesse sentido, lembra: 135 PAULA, Renato Francisco dos Santos. Revisitando o método em Marx sob a motivação da centralidade da família na política de assistência social e no trabalho dos assistentes sociais. In: ______. As coisas e seu lugar: diálogos sobre serviço social, assistência social, direitos e outras conversas. v. 1, São Paulo: Giz Editorial, 2008. 84 Tudo começa quando se diferencia a posição dos homens nas relações de produção. Por um lado temos os escravos, pelo outro, o proprietário de escravos; de uma parte o proprietário da terra, de outra, os que nela trabalham, subjugados pelo proprietário. Quando se produzem essas diferenciações nas relações de produção, determinando a formação de classes sociais e, por conseguinte a luta de classes, surge a necessidade do Estado: a classe que detém a propriedade dos principais meios de produção deve institucionalizar sua dominação econômica através de organismos de dominação política, com estruturas jurídicas, com tribunais, com forças repressivas, etc. Isso implica dizer que o Estado surge como instrumento de dominação, tendo, de modo imanente, o caráter classista em todos os seus equipamentos institucionais. A unidade interna, nos argumentos de Engels referenciada aos estudos de Marx, aparece mais uma vez quando percebemos que tanto em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, quanto na Guerra Civil na França, ou mesmo na Crítica ao Programa de Gotha, o Estado é entendido como um ente que nasceu da necessidade de refrear os antagonismos de classes, resulta que ele é sempre o agente da classe mais poderosa e economicamente dominante a qual, como consequência de sua riqueza, se transforma na classe politicamente dominante e adquire, assim, novos meios para oprimir e dominar as classes dominadas. (ENGELS, prefácio à Crítica do Programa de Gotha). Em síntese, poucos são os marxistas que se aventuraram ou se aventuram a identificar uma teoria orgânica do Estado em Marx. O mais comum é encontrarmos a afirmação da existência de uma teoria orgânica do Estado burguês em Marx, resguardadas as aproximações sócio-históricas empreendidas por Engels ou em suas obras conjuntas. Ocorre que a célebre afirmação de Marx de que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”136 serviu e tem servido, ainda contemporaneamente, tanto para sabermos o que sustenta a prática política (revolucionária ou não) quanto para a construção ou inquisição teórica da História e da realidade, que nada mais são do que as circunstâncias com as quais os homens se defrontam. Em outros termos, estamos dizendo que, sob circunstâncias conjunturais distintas, o espólio marxiano foi devida ou indevidamente apropriado nas inúmeras tentativas de lhe agregar argumentos naquilo que os legatários identificaram como ausência, omissão ou insuficiência em seu arcabouço. É, assim, a problemática do Estado é o caso mais emblemático dessas complementações. Em Lênin, temos uma forma inaugural dessa tentativa, mas ela prossegue – como dissemos, em circunstâncias e objetivos distintos – em Gramsci, em Althusser ou em 136 MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). 85 Poulantzas, para citar apenas os mais visitados (ou mais polêmicos). Com isso, não estamos nivelando ou equalizando essas construções, ao contrário, o que elas trazem de similitude é o Estado como objeto central e o referenciamento explícito a Marx e Engels. Não se furtam à centralidade da luta de classes, como motor da História, e nem aos mecanismos de expropriação do trabalho pelo capital. Contudo, se distinguem quanto a vários aspectos, dentre os quais se destacam: os aspectos ontológicos práticos do desenvolvimento da sociedade burguesa, e as formas distintas de levar a cabo o projeto de transformação radical da sociedade, ou seja, os modos de encaminhar a Revolução, e, consequentemente, proceder à extinção do Estado. Vladimir Ilitch Ulianov Lênin (1870-1924), por exemplo, produz vigoroso ensaio marxista sobre o Estado, em meio à experiência da Revolução Russa de 1917 e em eufórica polêmica com os militantes da Segunda Internacional, sobretudo Karl Kautsky (1854–1938)137. Portanto, O Estado e a Revolução, de Lênin, é um caso exemplar daquelas construções teóricas que dissociam teoria e prática, em especial a prática revolucionária. Tecendo a crítica a Kautsky (e aos que chamou de sociaischauvenistas) Lênin (2007, p. 24) anuncia seus objetivos ao situar seus escritos no contexto em que se inserem: Em tais circunstâncias, e uma vez que se logrou difundir tão amplamente o marxismo deformado, a nossa missão é, antes de mais nada, restabelecer a verdadeira doutrina de Marx sobre o Estado. (...) Assim, apoiados em provas, demonstraremos, à evidência, que o atual “kautskismo” as deturpou 138 . Logo, no seu intuito de combater ao que chamou de deformação do marxismo, Lênin (2007, p. 25) retoma o eixo central do que pensaram Marx e Engels sobre o Estado e em referência direta ao segundo, em seu A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, recupera o caráter do Estado como “produto e manifestação do antagonismo inconciliável das classes”, entendendo este como o “ponto de importância capital e fundamental em que começa a deformação do marxismo”: De um lado, os ideólogos burgueses e, sobretudo, os da pequena burguesia, obrigados, sob a pressão de fatos históricos incontestáveis, a reconhecer que o Estado não existe senão onde existem as contradições e a luta de classes, “corrigem” Marx de maneira a fazê-lo dizer que o Estado é o órgão da conciliação das classes. Lênin não vê em Marx a possibilidade dessa construção teórica (a da conciliação de classes como função do Estado). Para ele, em Marx, “o Estado não poderia surgir nem subsistir 137 Karl Kautsky nasceu em Praga, em 1854, e foi um dos fundadores da social-democracia. LÊNIN, V. I. O estado e a revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado na revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007. 138 86 se a conciliação das classes fosse possível”. O Estado é um instrumento de dominação que, ao institucionalizar os interesses burgueses na sua estrutura, amortece a colisão das classes, mas não as concilia. Esse ponto nevrálgico da análise marxiana será mais tarde retomado por Gramsci, ao tratar da hegemonia como processo, e por Poulantzas, quando trata da influência das instâncias política e ideológica nas estruturas do Estado burguês sob a dominação do econômico. Para Lênin (2007, p. 44), o tratamento dispensado ao Estado, por Marx e Engels, deve servir à elucidação não apenas do modus operandi da Revolução como para a instalação da ditadura do proletariado: A doutrina da luta de classes, aplicada por Marx ao Estado e à revolução socialista, conduz fatalmente a reconhecer a supremacia política, a ditadura do proletariado, isto é, um poder proletário exercido sem partilha e apoiado diretamente na força das massas em armas. O derrubamento da burguesia só é realizável pela transformação do proletariado em classe dominante, capaz de dominar a resistência inevitável e desesperada da burguesia e de organizar todas as massas trabalhadoras exploradas para um novo regime econômico. Ou seja, trata-se da manutenção do Estado como aparelho de dominação, pelo menos no que tange aos momentos afetos à transição do capitalismo para o comunismo, pois o processo revolucionário pressupõe a abolição das classes como tal, logo, Lênin não está falando apenas de uma substituição simples e mecânica do poder burguês pelo poder proletário. Pensando na transição e no Estado como instrumento insuperável desse processo, Lênin (2007, p. 44-45) admite que o “proletariado precisa do poder político [do Estado]139, da organização centralizada da força, da organização da violência, para reprimir a resistência dos exploradores e dirigir a massa enorme da população (...) na edificação da economia socialista”. A ditadura do proletariado é, pois, o início da transição para o comunismo, fazendo as massas converterem-se de classe dominada para classe dominante. Não há, em Lênin, qualquer concessão a reformas ou revisões no âmbito do Estado, ao contrário, o revolucionário russo preconiza a extinção do Estado, pois no limite invoca a supressão das classes sociais140. O poder das argumentações leninistas sobre o Estado foi tamanho que extrapolou os limites da Rússia percorrendo o mundo. Quando atingem a Itália, provocam um jovem comunista italiano, militante do PCI141, e o levam a aprofundar-se sobre os desdobramentos da Revolução. 139 Grifo nosso. A possibilidade revisionista foi dura e criticamente problematizada por Rosa Luxemburg (18711919) em seu ensaio Reforma Social ou Revolução?, de 1899. 141 Partido Comunista Italiano. 140 87 Antonio Gramsci (1891-1937) recupera alguns eixos da ditadura do proletariado em Lênin e assevera que esta não se trata de uma transformação institucional, mas sim de mudanças profundas na estrutura econômica (base) e política o que, por consequência, altera também os paradigmas do pensamento humano na esfera da cultura e das ideologias142. Nesse sentido, Gramsci reconhece em Lênin o uso adequado do materialismo histórico, também como método 143 quando Lênin dissocia a construção do pensamento (a filosofia política) da prática política revolucionária, reconhecendo o marxismo como a filosofia da práxis. Nesse sentido, para Gramsci, filosofia é também ação. Portanto, está sustentando a existência de uma ciência marxista de ação política (CARNOY, 1988, p. 89)144 O princípio teórico-prático da hegemonia tem também ele uma porta gneseológica e, portanto, nesse campo é de se pesquisar o aporte máximo de Illich [Lênin] para a filosofia da práxis. Illich [Lênin] teria feito progredir (efetivamente) a filosofia (como filosofia) tanto quanto fez progredir a doutrina e a prática políticas. A realização de um aparato hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de 145 conhecimento, um fato filosófico. (GRAMSCI, 1975) . Se, de um lado, o filósofo italiano considera úteis as considerações leninistas sobre a práxis para sua formulação da noção de hegemonia, por outro, afasta-se delas, quando distingue, no campo ontológico-prático, hegemonia de ditadura do proletariado. Para Gramsci, Lênin foi um dos primeiros a se referir à noção de hegemonia. Lênin a teria empregado em virtude do estudo da direção do proletariado quando da Nova Política Econômica (NEP) na Rússia146. Entendeu hegemonia como a capacidade de direção política do proletariado sobre as demais classes, em especial o campesinato. Gramsci traz o conceito para as democracias mais complexas do ocidente e relaciona à direção política do proletariado sobre a pequena burguesia. Acresce, nessas considerações, as reafirmações de Marx e Engels, no que tange ao papel das relações de produção baseadas na exploração do trabalho pelo capital, na conformação da sociedade burguesa (a base ou estrutura), contudo, dedica maior ênfase ao papel da superestrutura nesse processo de dominação. 142 Trata-se de uma das muitas distinções entre Lênin e Gramsci. Lênin procederá a uma crítica contundente ao que chamou de “desvio ideológico à esquerda” protagonizado por uma parte dos comunistas alemães, ingleses e italianos, sobretudo. A crítica de Lênin emerge após a Terceira Internacional. Consultar: LÊNIN, V. I. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. Porto Alegre: Anita Garibaldi, s/d. 143 E não apenas como filosofia. 144 CARNOY, Martin. Estado e teoria política. Campinas/SP: Papirus, 1988. 145 GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. Q. 10, 1975. 146 A Nova Política Econômica (NEP) surge na Rússia, após a vitória das teses de Lênin, no X Congresso do PCUS, que sucede ao “comunismo de guerra”. Durante a NEP, previu-se a permissão de certas práticas mercantis na Rússia socialista. Na perspectiva de Lênin, o proletariado urbano teria de dirigir os pequenos camponeses, os agentes dessas relações mercantis. 88 Confere, pois, um papel importante aos aspectos culturais, ideológicos, políticos, religiosos, componentes, segundo ele, da superestrutura, afastando-se, deste modo, das tendências de um marxismo economicista. Para Gramsci, os elementos conjunturais (que são também historicamente determinados) da ideologia, da política, da cultura, das visões de mundo concorrentes – burguesa ou proletária, etc., participam do processo de formação da consciência por meio da qual os sujeitos entendem a si e ao mundo em que vivem. Nesse sentido, o entendimento da centralidade da propriedade privada dos meios de produção na ordem burguesa é necessário, mas não suficiente para entender a sociedade como um todo e os processos sociais pelos quais os indivíduos tomam consciência de si e do mundo, pois o processo de superação de um modo de produção para outro 147 não é uma injunção linear, mecânica, ao contrário, é submetida a toda sorte de contingências sociais148. Ele [Gramsci] atribuiu ao Estado parte dessa função de promover um conceito (burguês) único da realidade e, consequentemente, emprestou ao Estado um papel mais extenso (ampliado) na perpetuação das classes. Gramsci conferiu à massa dos trabalhadores muito mais crédito do que Lênin, ao considerar que eles próprios eram capazes de desenvolver a consciência de classe, porém ele considerou que na sociedade ocidental os obstáculos a tal consciência eram muito mais formidáveis do que Lênin imaginava: não era simplesmente a falta de um entendimento de sua posição no processo econômico que impedia os trabalhadores de compreender o seu papel de classe, nem eram somente as instituições “privadas” da sociedade, como a religião, as responsáveis por manter a classe trabalhadora longe da autoconsciência, mas era o próprio Estado que estava encarregado da reprodução das relações de produção. Em outras palavras, o Estado era muito mais do que o aparelho repressivo da burguesia; o Estado incluía a hegemonia da burguesia na superestrutura. (CARNOY, 1988, p. 90-91). Em outros termos, esses pressupostos permitiram que Gramsci propusesse uma complementação às formulações de Marx, Engels e Lênin, sobre o Estado. Neles, conclui-se a definição do Estado como braço repressor da burguesia sobre o proletariado, sendo, esse, residente numa sociedade civil em que se realiza o “conjunto do intercâmbio material dos indivíduos, no interior de um estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas” (CARNOY, 1988, p. 92). Já em Gramsci, há inflexões desse intercâmbio na superestrutura, fazendo do Estado um Estado ampliado: 147 E a formação social a ele inerente: do primitivismo ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, do capitalismo ao comunismo, etc. 148 Embora atribua relevância aos aspectos da superestrutura, como a ideologia, a política e a cultura, que em Marx estavam na base, Gramsci não abdica da necessidade de uma articulação orgânica entre essas esferas nos domínios do que ele chamara de bloco histórico. 89 O Estado em sentido amplo, com novas determinações, comporta duas esferas principais: a sociedade política (que Gramsci também chama de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado de coerção”), que é formada pelo conjunto de mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência, e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle das burocracias executiva e policial-militar; e a sociedade civil formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, 149 editoras, meios de comunicação de massa), etc. (COUTINHO, 1989, p. 76-77) . Ou seja, o salto gramsciano estabelece a distinção dialética entre sociedade política e sociedade civil, sem dar margem a interpretação de que se constituem em blocos imutavelmente antagônicos, ao mesmo tempo em que evidencia as relações de poder como sua mediação inevitável. Assim, o exercício do poder praticado pelo Estado é mediado por um conjunto de instituições que formam essas duas esferas (sociedade política e civil) e que, para atender aos interesses das classes dominantes, são “sequestradas” por ela na conquista da hegemonia. Seguindo esse raciocínio, o conceito de hegemonia será fundante para toda a argumentação gramsciana. A hegemonia, no caso burguês, é o processo pelo qual o aparato ideológico dominante se difunde no conjunto da vida social e conquista legitimidade, expressando ilusoriamente que, na ideologia burguesa, estão contidos os valores universais de uma civilidade comum a todos. A luta pela hegemonia deve atravessar como um trem desgovernado todas as esferas da vida social para ser legítima. Carnoy (1988, p. 95) explica que Gramsci atribui dois significados principais para a hegemonia: O primeiro é um processo na sociedade civil pelo qual uma parte da classe dominante exerce o controle, através de sua liderança moral e intelectual, sobre outras frações aliadas da classe dominante (...). Ela não impõe sua própria ideologia ao grupo aliado; mas antes representa um processo politicamente transformativo e pedagógico, pelo qual a classe (fração) dominante articula um princípio hegemônico, que combina elementos comuns, extraídos das visões de mundo e dos interesses dos grupos aliados. E o segundo significado está na relação entre as classes dominantes e as dominadas: 149 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci – um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 90 A hegemonia compreende as tentativas bem sucedidas da classe dominante em usar sua liderança política, moral e intelectual para impor sua visão de mundo como inteiramente abrangente e universal, e para moldar os interesses e as necessidades dos grupos subordinados (...) A hegemonia não é uma força coesiva. Ela é plena de contradições e sujeita ao conflito. (Id., ibid., p. 95). Com esse conceito, Gramsci consegue mostrar o quão complexo se tornou o exercício do poder nas sociedades capitalistas, sobretudo as de capitalismo avançado. Complexo porque não se sustenta apenas na coerção física (força) ou apenas no consentimento (consenso). Ao contrário, funciona com a articulação orgânica desses dois modos de exercício de poder. Com a liderança social-moral, a burguesia consegue tornar seu arcabouço de valores – valores burgueses – aceitos pelas massas como sendo seus. Conformam, com o uso das instituições sociais-jurídico-políticas, uma identidade subalterna que transforma o homem em déspota de si mesmo, de modo mais eficiente do que aquele pensado por Marx, quando utilizou essa figura de linguagem se referindo à alienação do trabalho. Com o domínio do Estado, conseguem exercer o monopólio legal da violência, utilizando, quando necessário, a força repressiva do aparato policial-militar. É a junção desses dois componentes de dominação que fazem da hegemonia burguesa o ingrediente indispensável de sua dominação. A conquista da hegemonia por parte da classe dominante é um instrumento tão poderoso e eficaz que consegue legitimar tanto os Estados autocráticos (conseguindo adesão civil popular ao nazismo, ao fascismo, às ditaduras, etc.) quanto às democracias liberais de massas (universalizando os valores do liberalismo, do neoliberalismo, do populismo, do nacionalismo, do desenvolvimentismo, do neodesenvolvimentismo, etc.). Manter essa articulação orgânica entre os instrumentos de repressão não é tarefa fácil, para a classe dominante, nem nas autocracias, menos ainda nas democracias. As oscilações do movimento histórico, motivadas, sobretudo, pela luta de classes que não deixa de existir com a existência de uma hegemonia burguesa, podem induzir a burguesia a utilizar apenas um mecanismo de poder em detrimento do outro. É possível, ainda, que a luta de classes leve a uma intensificação do ativismo político das classes subalternas. Outra possibilidade são as rupturas entre frações da classe burguesa, que podem se sentir preteridas ou mesmo insatisfeitas com a condução do grupo dominante. Temos ainda a possibilidade da separação das classes sociais de seus partidos políticos, de modo que suas lideranças deixem de ser reconhecidas como tal. Enfim, todas essas possibilidades sócio-históricas, dentre outras, levam a uma crise de autoridade, que Gramsci denominou de crise de hegemonia. Essas crises fazem parte da estrutura dos Estados burgueses e são responsáveis pelo dinamismo político em seu interior. 91 [A crise de hegemonia] se caracteriza (...) por um período relativamente longo de maturação, no qual se dá uma complexa luta por espaços e posições, um movimento de avanços e recuos. Como toda a crise, a de hegemonia pode dar lugar a diferentes alternativas, isto é, pode ter diferentes soluções. De imediato, a classe dominante pode ter condições de continuar dominando através da pura coerção; a médio prazo, ela pode certamente recompor sua hegemonia, por meio de concessões, de manobras reformistas, etc., para o que contará com a incapacidade das forças adversárias de apresentar soluções positivas e construtivas. Mas a tendência dominante, ainda que não inevitável, é de que as classes dominadas – favorecidas pelo caráter estrutural da crise – ampliem seu arco de alianças e sua esfera de consenso, invertam em seu favor as relações de hegemonia e, desse modo, ao se tornarem classes dirigentes (ao apresentarem e conquistarem consenso para propostas de solução dos problemas do conjunto da nação), criem condições para chegarem à situação de classes dominantes. 150 (COUTINHO, 1989, p.93) . Para Gramsci, a classe dominante reconhece não apenas a possibilidade da crise, mas a sua inevitabilidade no movimento real de desenvolvimento do capitalismo, ainda que não a admita de pronto. Assim, estão dadas as condições da disputa pela hegemonia, tanto entre as classes fundamentais da sociedade burguesa, quanto entre suas as frações. Gramsci recorre, então, ao conceito de guerra de posição para se referir a tal forma de disputa, e, ainda, faz referência ao papel dos intelectuais orgânicos no processo da condução revolucionária. Lênin, seguindo os ensinamentos de Marx e Engels, propôs, como vimos, que a ascensão proletária deve ser alcançada por meio da tomada violenta do Estado, para, na sequência, extingui-lo. O controle de seu aparelho repressor e coercitivo é, então, condição suficiente para que a luta proletária logre êxito. Esse processo recebe de Lênin o nome de “guerra de movimento”. Gramsci reformula a questão entendendo que o controle do aparato repressivo do Estado não é a condição suficiente para que o movimento operário consolide seu poder sociopolítico. O movimento contra hegemônico deve assegurar também o controle daquilo que ele identificou como componentes elementares da superestrutura: a ideologia, a cultura, a política, a religião, a comunicação, etc. Sem o domínio desses mecanismos, capazes de difundir um pensamento proletário, dificilmente o movimento contra hegemônico logra êxito. A ideia de Gramsci é que a contra hegemonia pode se espraiar e se capilarizar em todo o proletariado, atingindo inclusive militantes menos atuantes e não militantes; portanto, seria um processo gradual que recebe de Gramsci o nome de guerra de posição, como dissemos alhures. Esse raciocínio não significa que Gramsci tenha abdicado por completo da possibilidade estratégica da guerra de movimento. Ao contrário, para demonstrar que também há nela 150 Id., ibid. 92 viabilidade histórica, estabelece que no Oriente a guerra de movimento é mais adequada que no Ocidente. Lá (no Oriente, pensando mesmo na Rússia), a prevalência do poder estatal sobre a sociedade civil é quase absoluta, o que implica a possibilidade de êxito da tomada de “poder” pelo proletariado apenas com a conquista dos aparelhos repressores de Estado. Já no Ocidente, as relações entre Estado e sociedade civil são mais equilibradas, o que significa que a subversão simples, por meio de um ataque violento ao Estado, não daria conta de garantir a manutenção perene do domínio pleno da sociedade. Gramsci pôde formular, de modo positivo, sua proposta de estratégia para os países “ocidentais”. Nas formações “orientais”, a predominância do Estado-coerção impõe à luta de classes uma estratégia de ataque frontal, uma “guerra de movimento”, voltada diretamente para a conquista e conservação do Estado em sentido restrito; no “Ocidente”, ao contrário, as batalhas devem ser travadas inicialmente no âmbito da sociedade civil, visando à conquista de posições e de espaços (“guerra de posição”), da direção político-ideológica e do consenso dos setores majoritários da população, como condição para o acesso ao poder de Estado e para sua posterior conservação. (COUTINHO, 1989, p. 89). Podemos, assim, apreender que a guerra de posição para Gramsci leva em conta as estruturas, a conjuntura e as relações sociais de cada país em particular, o que pressupõe detalhada análise sócio-histórica do estágio de desenvolvimento das forças produtivas locais, associada aos mecanismos que conformam a identidade genérica da sociedade civil que ali se realiza, como meio fundante para subsidiar as estratégias revolucionárias. Ainda, é possível considerar que os enunciados gramscianos induzem a um modo diferente de organização das massas proletárias, na medida em que estas devem se preparar também para o exercício do poder no Estado, substituindo, nas instituições, a cultura burguesa por uma cultura operária irremediavelmente amparada pela aquisição de uma consciência de classe conquistada nesse processo. Além disso, Gramsci confere especial atenção ao papel do partido, de um partido de massas capaz de arregimentar intelectuais orgânicos que emergem no contexto da consciência de sua própria classe social. Esses intelectuais teriam funções análogas às do partido, pois ajudam a construir a contra hegemonia naquilo que compete à difusão direta de um pensamento proletário. Contribuem, sobretudo, para manter alerta a classe trabalhadora quanto às ofensivas desestruturadoras de sua organização, preconizadas por vários processos sociais complexos, destacando-se entre eles a revolução passiva. Nesse processo, seriam concedidos, às classes 93 trabalhadoras, meios para o aprimoramento das suas condições de sobrevivência, nos momentos em que a burguesia se vê ameaçada, desmobilizando os movimentos das massas151. As contribuições de Gramsci à tradição marxista são, ainda hoje, sem dúvida, de capital importância. Formam, junto com as de Lênin, os esforços mais significativos na tentativa de se construir uma “teoria do Estado” no âmbito do marxismo. Porém, como teorias e como esforços não se esgotam em si mesmas, muito menos repousam incontestáveis. Na metade da década de 1960, surge na França uma corrente de pensamento que “buscou harmonizar o pensamento marxista com a natureza aparentemente ‘automática’ e organizada da sociedade capitalista adiantada, uma sociedade onde tanto a classe operária como a burguesia desempenham papéis ‘prescritos’” (CARNOY, 1988, p. 119). É a corrente estruturalista que renova as leituras críticas nos domínios da linguagem (Saussure e Jacobson), da antropologia (Lévi-Strauss), da psicologia (Lacan), do conhecimento e das relações sociais (Focault), dentre outros. A ideia principal era combater o subjetivismo que colocara o homem como sujeito no centro dos sistemas metafísicos (CARNOY, 1988). Assim, a crítica marxista disponível sobre o Estado, na época, não ficou imune a uma “revisão estruturalista”. Essa corrente é de uma importância que não pode ser ignorada, no âmbito dos estudos marxistas, pois promoveu uma verdadeira inquietação nas ciências sociais e políticas de sua época fomentando debates até os dias atuais. Da ‘pena’ do filósofo argelino radicado na França, Louis Althusser (1918-1990), saíram as principais reflexões e polêmicas dessa cena152. Althusser (1985, p. 62-63) identifica que a presença do Estado como categoria analítica, na obra marxiana, é uma presença descritiva e trata a descrição como etapa primeira para o desenvolvimento teórico, mas não deve ser considerada a teoria em si: 151 O conceito de revolução passiva, como demonstramos na primeira parte da tese, é bem mais complexo do que este aqui sumarizado. Gramsci teve por referência, para tratar desta noção, a Unificação Italiana, a Unificação Alemã. Logo, verificamos a dimensão da complexidade histórica que reveste o conceito. Quanto aos intelectuais, no segundo volume dos Cadernos do Cárcere, Gramsci os entende como aqueles que são capazes de dar voz às aspirações da classe. Um dos exemplos que utiliza são os técnicos industriais por defenderem a industrialização em contraponto a membros da hierarquia eclesial, como os padres, por exemplo, por defenderem a propriedade latifundiária. 152 Tornou-se notório o debate entre Louis Althusser e E. P. Thompson. As críticas de Thompson a Althusser podem ser verificadas no ensaio Contra o Estruturalismo de Althusser em O Aristóteles do Novo Idealismo Marxista que compõe sua coletânea Miséria da Teoria (The Poverty of Theory). 94 Quando, ao falarmos da metáfora do edifício [base e superestrutura]153 ou da teoria marxista do Estado dizemos que são concepções ou representações descritivas de seu objeto, não escondemos nenhuma segunda intenção crítica. Pelo contrário, tudo leva a crer que os grandes descobrimentos científicos não podem deixar de passar pela etapa que chamamos uma “teoria” descritiva. Esta seria a primeira etapa de toda teoria, ao menos no campo da ciência das formações sociais. Como tal, poder-se-ia, - e no nosso entender deve-se – encarar esta etapa como transitória e necessária ao desenvolvimento da teoria154. O autor preocupa-se em esclarecer que não está, com essa distinção, subjugando a teoria marxista do Estado. Ao contrário, refere que tenta deixar evidente que a descrição nela contida reflete tanto a empiria (e o real mesmo) quanto as conclusões a que se pode chegar a partir dela. Logo, na teoria descritiva do Estado em Marx e nos marxistas estariam os elementos essenciais e intransponíveis para se avançar na construção de uma teoria geral: Diremos, com efeito, que a teoria descritiva do Estado é justa uma vez que a definição dada por ela de seu objeto pode perfeitamente corresponder à imensa maioria dos fatos observáveis no domínio que lhe concerne. Assim, a definição de Estado como Estado de classe, existente no aparelho repressivo de Estado, elucida de maneira fulgurante todos os fatos observáveis nos diferentes níveis da repressão, qualquer que seja o seu domínio (...). (Id., p. 64). Partindo desse pressuposto — traço comum em Marx, Engels e todos os demais marxistas (a dominação de classes) —, Althusser passa a discorrer sobre o que considera essencial na “teoria marxiana do Estado” e se aproxima de conclusões sobre o que chama de aparelhos ideológicos de Estado, mas, para isso, incorpora em seus argumentos, anteriormente, uma densa reflexão sobre o papel da ideologia na perpetuação das classes e da estrutura do Estado burguês. Vamos ao papel da ideologia e depois retornamos à teoria do Estado. Althusser diz utilizar-se do mesmo procedimento metodológico que infere ter sido utilizado por Marx ao antecipar a formulação da teoria por construções descritivas. Desse modo, descreve o que podemos chamar de “ideologia em geral” (a descrição da ideologia) para depois discorrer sobre a existência em organicidade de uma ideologia em particular, uma teoria sobre a ideologia. Assim, argumenta que a ideologia no sentido lato não tem história. Ela existe em qualquer formação social, independentemente das relações socioprodutivas que se estabeleçam. Aqui, vale um adendo: Althusser parte de um conceito de história tal qual expresso no Manifesto do Partido Comunista, a história como a luta de classes (CARNOY, 1988, p. 121). 153 Grifo nosso. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. 154 95 Portanto, segundo Althusser, a ideologia é inevitável para os homens. Basta que existam homens e relações sociais. Mas o autor de Aparelhos também considera que a existência de ideologias particulares – estas, sim, referidas ao modo de produção específico – assumem formas específicas, materializadas em aparelhos específicos e, em última instância, determinadas pela luta de classes imersa em uma formação social. Portanto, há uma existência material da ideologia condicionada à existência de aparelhos que a porta. (...) uma ideologia existe sempre num aparelho e em suas práticas. Essa existência é material; essa relação imaginária com relações reais (ideologia) é, ela mesma, dotada de uma existência material e esta é a prática da ideologia no seio de aparelhos específicos da sociedade. Assim, Althusser expressa a noção estruturalista de que o conhecimento do funcionamento interno de uma estrutura deve preceder o estudo de sua gênese e evolução. (Id., ibid., p. 121-122). Ao descrever mesmo a lógica de funcionamento da ideologia é que Althusser busca desvendar seus nexos internos. Um dos sentidos atribuído ao estudo das estruturas é, pois, o estudo das relações formais entre os diversos componentes positivos ou negativos (equivalentes ou antagônicos) que formam um determinado fato, ou fenômeno social, que nada mais é do que a própria lógica de funcionamento interno (e externo), à estrutura desse fato ou fenômeno. Portanto, para se certificar da existência e da validade material de aparelhos ideológicos, se faz necessário conhecer a estrutura das ideologias que os sustentam. Carnoy (1988) lembra que, para Althusser, a ideologia funciona como “um mecanismo pelo qual os indivíduos voluntariamente se sujeitam a ela (o consenso hegemônico de Gramsci) e é essa sujeição que os define na própria sociedade”. Isto implica dizer que, para nosso autor, o Sujeito não possui autonomia no processo de construção de suas representações sobre o mundo. Ao contrário, o Sujeito é apenas portador das “relações estruturais nas quais está situado”. Essas relações estruturais têm uma existência material, objetiva: No caso da ideologia, o Sujeito de Althusser “age na mesma medida em que sofre a atuação do seguinte sistema: a ideologia existente num mecanismo ideológico material, prescrevendo práticas materiais governadas por um ritual material, as quais existem nos atos materiais de um sujeito que atua conscientemente segundo suas ideias” (...) Ele sustenta que a ideologia reconhece os indivíduos como sujeitos, subordina-os ao “sujeito” da própria ideologia (por exemplo, Deus, o capital, Estado), garante que tudo seja realmente assim e que, contanto que os sujeitos reconheçam o que são e ajam em consonância com isso, tudo estará bem. (CARNOY, 1988, p. 122). 96 Assim, a existência material e objetiva das relações estruturais que formam a ideologia não pode persistir a não ser no interior de um aparelho ideológico que se configura como ente superior que submete sua vontade aos Sujeitos, o que Althusser denomina de mecanismo de sujeição: O indivíduo é, pois, “livre”, autor e responsável por seus atos, mas, é, ao mesmo tempo, sujeito a uma ideologia que age como uma autoridade superior. O indivíduo é destituído de toda liberdade, exceto a de aceitar a sua submissão. (Id., ibid., p. 122). Desse modo, Althusser reconhece que não é tarefa simples para a burguesia manter o seu poder fazendo uso do mecanismo de sujeição155. Esse mecanismo possui uma arquitetura complexa, e, que, para ter êxito, não pode prescindir de ter espraiado “os valores” que dão conteúdo à visão de mundo burguesa. Esse processo não se dá somente pela tomada do poder do Estado, antes, necessita da instalação dos Aparelhos Ideológicos, “nos quais essa ideologia se realiza, que ela se transforma na ideologia dominante” (Id.). Se afirmamos, antes, que é um processo complexo, cabe-nos considerar que a complexidade a que nos referimos pressupõe conflitos, tensões. É, pois, assim, que a instalação dos aparelhos ideológicos tem como parâmetros a luta de classes, que não é subtraída do mundo dos homens quando a hegemonia burguesa prevalece. Sendo assim, não se subtrai também a necessidade de um Estado como ente regulador das relações sociais na sociedade classista burguesa, o que confere, segundo Althusser (1985), um caráter estrutural ao Estado, já definido anteriormente por Marx e outros marxistas. Por isso, afirma: O Estado é, antes de mais nada, o que os clássicos do marxismo chamaram de o aparelho de Estado. Este termo compreende: não somente o aparelho especializado (no sentido estrito), cuja existência e necessidade reconhecemos pelas exigências da pratica jurídica, a saber: a política – os tribunais – e as prisões; mas também o exército, que intervém diretamente como força repressiva de apoio em última instância (o proletariado pagou com seu sangue esta experiência) quando a policia e seus órgãos auxiliares são “ultrapassados pelos acontecimentos”, e, acima deste conjunto, o Chefe de Estado, o Governo e a Administração. (Id., ibid., p. 62-63). Em resumo, temos que a ênfase conferida por Althusser à ideologia, no contexto da superestrutura, “admite que a reprodução das relações de produção tem lugar através da 155 Diferente de Gramsci, pois quando se refere à disputa por hegemonia, Gramsci confere ao sujeito um papel protagônico calçado nas bases materiais de sua existência. Althusser, de outro modo, confere centralidade à ideologia contida nos aparelhos, o que acaba por determinar toda a estrutura societal. Esse tipo de distinção conduzirá a formulação althusseriana de Estado a um caminho bastante peculiar, no campo da tradição marxista. Essa peculiaridade será assumida pelo Serviço Social nas primeiras aproximações que faz ao “marxismo” e, consequentemente, influirá no modo como os agentes profissionais e intelectuais se apropriarão do Estado como categoria teórico-analítica e como objeto das lutas antissistêmicas que travará na esteira da intenção de ruptura. Trataremos disso no Capítulo IV. 97 ideologia que, no modo capitalista de produção, é, em última instância, realizada no contexto da luta de classes” (CARNOY, 1985, p. 123). Isto posto, podemos retornar às formulações althusserianas sobre o Estado. Althusser, mesmo procedendo a um corte epistemológico na obra de Marx — jovem Marx, vinculado à filosofia, e Marx revolucionário156 — diz resgatar as elaborações marxianas sobre os processos fundantes da produção e reprodução social lembrando que todas as formações sociais reproduzem suas condições e formas de existência a partir do modo como organizam sua produção. Nesse processo, os homens contraem relações sociais, evidenciam-se a divisão social e técnica do trabalho e as classes. Althusser então afirma que são as classes (e o movimento entre elas) que determinam o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Estas, por seu turno, tendem a tornar-se cada vez mais diversificadas, fazendo sempre mais difusa e heterogênea a divisão do trabalho. Para Althusser, a divisão do trabalho é um componente essencial dos processos reprodutivos da sociedade, sujeita a várias mediações, no limite, conformadoras da ideologia dominante. A principal delas é a educação a que os trabalhadores estão submetidos, e que, no capitalismo, diferentemente da escravidão ou da servidão, não está imbricada diretamente à produção, mas fora dela, contando assim com mais uma mediação, protagonizada agora pelas instituições educativas. Esse parece ser um argumento adicional àquilo que Gramsci havia atribuído como responsabilidade ou participação da esfera da cultura (e mesmo da educação) na perpetuação das classes e da ideologia dominante inerente. A educação tem, adicionalmente, um papel decisivo na própria divisão do trabalho, conquanto se estrutura na formação de habilidades variadas, para que os indivíduos ocupem lugares diferentes e tenham, por assim dizer, comportamentos diferenciados na divisão do trabalho. Assim, para Althusser, a educação é também um componente da superestrutura, em reciprocidade orgânica com a base onde os aparelhos ideológicos realizam seu exercício de poder. Logo, a reprodução das relações de produção é “garantida, na maior parte, pela superestrutura ideológica e jurídico-política”. E vai mais além, ao referir que a reprodução das relações de produção “é garantida, na maior parte, pelo exercício do poder do Estado nos aparelhos do Estado, por um lado, o aparelho (repressivo) do Estado, por outro, os Aparelhos Ideológicos do Estado”. (ALTHUSSER apud CARNOY, 1985, p. 125)157. 156 O que deixa de fora do eixo gravitacional de suas formulações, obras capitais como, por exemplo, Manuscritos Econômicos Filosóficos de 1844, fundamental para a compreensão dos processos “alienantes”, “alienadores” e “alienados” típicos da formação social capitalista. 157 Carnoy complementa o raciocínio de Althusser: “Ele diz: ‘na maior parte’, porque as relações de produção existentes são, primeiramente, reproduzidas pelo sistema de punição e recompensa da própria produção pela materialidade dos processos de produção. Mas a repressão e a ideologia estão, 98 Em outros termos, podemos asseverar que Althusser sustenta a superestrutura na base admitindo que a relação orgânico-dialética entre elas confere tanto uma autonomia (relativa) à superestrutura quanto um jogo de ações recíprocas. Assim é que chegamos ao seu entendimento sobre o Estado. Isto é, para Althusser, o Estado sustenta-se na base e é o responsável por “criar”, manter e reproduzir os aparelhos que carregam em si os amplos e complexos mecanismos da ideologia dominante. Além da própria ideologia dominante com o encargo finalístico de manter a dominação burguesa, “capacitando a burguesia para o exercício de seu poder”. O Estado é uma “máquina” de repressão que permite ás classes dominantes (no século XIX à classe burguesa e à “classe” dos grandes latifundiários) assegurar a sua dominação sobre a classe operária, para submetê-la ao processo de extorsão da maisvalia (quer dizer, à exploração capitalista). (ALTHUSSER, 1985, p. 62). Tampouco se opõe ao raciocínio marxista-leninista que preconiza a tomada do Estado como medida transitória para a superação do capitalismo, contudo, fazuma releitura particular desse raciocínio, incorporando a noção de aparelho ideológico e de aparelho de Estado que desenvolve. Althusser entende que a transição proposta por Marx e Engels ratifica sua distinção entre Estado e aparelho do Estado, pois a tomada do Estado pelo proletariado não implica linearmente a extinção do primeiro, mas sim a substituição do domínio burguês pelo domínio proletário nos aparelhos. Somente a conclusão do motim comunista é que levaria ao fim do Estado e de todos seus aparelhos. O papel do aparelho repressivo do Estado consiste essencialmente, como aparelho repressivo, em garantir pela força (física ou não) as condições políticas da reprodução das relações de produção, que são em última instância relações de exploração. Não apenas o aparelho de Estado contribui para sua própria reprodução (existem no Estado capitalista as dinastias políticas, as dinastias militares, etc.) mas também, e sobretudo, o Aparelho de Estado assegura pela repressão (da força física mais brutal às simples ordens e proibições administrativas, à censura explicita ou implícita, etc.) as condições políticas do exercício dos Aparelhos Ideológicos do Estado. (ALTHUSSER, 1985, p. 74). Aspecto importante se evidencia nesse excerto. A distinção entre aparelho repressivo de Estado e aparelhos ideológicos do Estado tem como pano de fundo não apenas as funções imediatas e reprodutivas de um e outro, mas, também, o lugar que ocupam na trama societária. Isto é, Estado permanece referenciado à esfera pública, logo, todo seu aparato responsável pela naturalmente, presentes na produção”. O que nos leva a insistir: novamente o sujeito se coloca como componente secundário em todo o processo. 99 repressão é do domínio público (e legitimado socialmente para esse fim), já os aparelhos ideológicos de Estado existem, fundamentalmente, no mundo privado158. Assim, há uma unidade a ser percebida no primeiro e uma pluralidade no segundo. Embora seja uma distinção importante, não ocupará por muito a caneta de Althusser. Suas preocupações voltam-se mais para as funções do aparelho repressor do Estado e dos aparelhos ideológicos do que necessariamente para o lugar que ocupam. Assim, as relações que se estabelecem entre esses dois tipos de aparelhos são mais importantes de serem evidenciadas, pois são nelas que se verifica o modo como as classes disputam o poder. Ademais, há uma unidade conferida à pluralidade dos aparelhos ideológicos de Estado, dada pela ideologia dominante e pelas condições criadas pelo Estado em sua função repressiva. A centralidade conferida à ideologia, no pensamento de Althusser, não é apenas o núcleo central da escola que ajuda a fundar – o marxismo estruturalista – como também é fonte de inspiração para seus alunos. Dentre eles, destaca-se um jovem grego, membro do Partido Comunista da Grécia, que, exilado em Paris, tomou contato com as ideias do mestre, mas não demorou muito em traçar seu próprio caminho. Nicos Poulantzas (1936 – 1979), lamentavelmente, não pôde explorar todo seu potencial intelectual, por ter morrido jovem, aos 43 anos de idade, cometendo suicídio em Paris. Isso significa que tratar de seu legado é tratar de uma trajetória inconclusa, tal qual seu mestre, que embora tenha tido mais anos de vida que o aluno, foi acometido de tragédias pessoais que o impediram de avançar em suas obras. A análise da produção tanto de Althusser quanto de Poulantzas atesta um percurso evolutivo, de amadurecimento teórico, que nos permite relativizar parte das negatividades atribuídas ao estruturalismo-marxista pelos que advogam por outras correntes dessa tradição, tanto no campo da produção acadêmica, quanto na prática política. Um motivo para tal perspectiva é notada quando passamos em exame e em modo comparativo obras como Aparelhos Ideológicos de Estado, de 1970 e Ce qui ne peut plus durer 158 Althusser (1985, p. 67-68) dá alguns exemplos de aparelhos ideológicos de Estado explicando: “Designamos pelo nome de aparelhos ideológicos do Estado um certo número de realidades que apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Propomos uma lista empírica, que deverá necessariamente ser examinada em detalhe, posta a prova, retificada e remanejada. Com todas as reservas que esta exigência acarreta podemos, pelo momento, considerar como aparelhos ideológicos do Estado as seguintes instituições (a ordem de enumeração não tem nenhum significado especial): AIE religiosos (o sistema das diferentes Igrejas); AIE escolar (o sistema das diferentes “escolas” públicas e privadas); AIE familiar; AIE jurídico; AIE político (o sistema político, os diferentes partidos); AIE sindical; AIE de informação (a imprensa, o rádio, a televisão, etc.); AIE cultural (Letras, Belas Artes, esportes, etc.)”. Esta lista, ressalvadas as condições apresentadas pelo autor, expressa parte do conjunto de “sujeitos coletivos” reconhecidos por Gramsci como “aparelhos privados de hegemonia”, contudo, quando alçados à relação e à processualidade histórica da formação e conformação do Estado, se distinguem. Para Althusser, os AIEs possuem relação “umbilical” com o Estado. Já em Gramsci ao “aparelho privado de hegemonia” implica autonomia em relação ao Estado em sentido stricto. 100 dans le Parti Communiste159, de 1978 (uma preocupação inédita de Althusser com as coisas do Partido) (NETTO, 2010)160 e O Estado, o Poder, o Socialismo, de 1978 (que registra inflexão gramsciana de Poulantzas) com tudo o que ambos produziram nas fases primeiras de suas trajetórias intelectuais. Como citamos, a interrupção prematura da vida e obra desses autores não nos permite certificar o rumo que seus programas teóricos tomariam, contudo, é possível partir tanto do percurso que traçaram como do que nos deixaram como registro mais maduro para que não os deixemos de fora do processo analítico que empreendemos. No caso de Poulantzas, isso nem seria possível, considerando que suas formulações maduras são nucleares para nossas análises sobre o tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teórico-prática do Estado. Nesse sentido, nosso passeio pelas considerações clássicas marxistas sobre o Estado prossegue resgatando o Poulantzas de Poder Político e Classes Sociais, de 1968, e o de O Estado, o Poder, o Socialismo, de 1978, registrando-se um lapso temporal de dez anos. A inquietação que motiva o programa teórico de Poulantzas é centralmente a problemática teórico-prática do Estado. Mais especificamente do Estado capitalista, partindo, assim, de uma crítica mais contundente que a de Gramsci e de Althusser à visão instrumentalista do Estado. Como vimos, a ideia do Estado-instrumento é aquela ancorada de modo largo no excerto retirado do Manifesto do Partido Comunista: “O poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” 161. Lido com a abstração do contraditório e de mediações centrais, portanto, sem o foro da totalidade, esse excerto do Manifesto opõe frontalmente e de modo simples burguesia e proletariado e não se admite nenhuma autonomia do Estado, nem mesmo relativa, com relação à classe dominante. Poulantzas discorda desta leitura e, no texto de 1968, especifica seu entendimento sobre a polêmica, afirmando de imediato reconhecer a autonomia relativa do Estado capitalista, ainda numa impostação estruturalista: 159 “Isso não pode perdurar no Partido Comunista” (tradução livre). NETTO, José Paulo. Pósfacio. In: COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão. 2. ed., São Paulo: Expressão Popular, 2010. 161 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Maria Lúcia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. 160 101 Por autonomia relativa deste tipo de Estado, entendo, aqui não diretamente a relação das suas estruturas com as relações de produção, mas a relação do Estado com o campo da luta de classes, em particular a sua autonomia relativa em relação às classes ou frações de bloco no poder e, por extensão, aos seus aliados ou suportes. Esta expressão encontra-se nos clássicos do marxismo, designando o funcionamento do Estado em geral no caso em que as forças políticas presentes estão “prontas a 162 equilibrar-se”. (POULANTZAS, 1977, p. 252) . Assim, apenas anuncia a polêmica que envolve sua problematização nada autoexplicativa, o que o impele a esclarecer: Emprego-o, aqui, em um sentido simultaneamente mais amplo e mais estreito, para designar um funcionamento específico do Estado capitalista. Espero, por isso mesmo, marcar nitidamente a distância que separa esta concepção do Estado de uma concepção simplista e vulgarizada, que vê no Estado o utensílio ou o instrumento da classe dominante. Trata-se, pois de apreender o funcionamento específico do tipo capitalista de Estado relativa aos tipos de Estado precedentes, e demonstrar que a concepção do Estado em geral como simples utensílio ou instrumento da classe dominante, errônea na sua própria generalidade, se revela particularmente inapta para apreender o funcionamento do Estado capitalista. (Id., ibid., p. 252). Identificar uma função instrumental do Estado, para Poulantzas, não é defini-lo. O Estado deve ser contextualizado163. O Estado e os elementos de sua constituição, reprodução e metamorfoses são de capital importância para o tratamento analítico de qualquer processo social geral ou particular. Considerações conceituais, sobre uma formação social qualquer, requerem, antes, as explicitações de seus elementos constitutivos e suas formas de organização – sejam políticas, ideológicas, culturais, em última instância, determinadas pelo econômico164. 162 POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977. Do mesmo que a produção do autor, também deve ser contextualizada. Não se pode perder de vista que Poulantzas escreve no momento m que os partidos comunistas europeus ocidentais abandonam gradativamente o programa da revolução, isto é, o eurocomunismo, ao propalar o “pluralismo político”, também se reveste de ambiguidade, tanto por ser entendido como alternativa ao stalinismo quanto por receber a alcunha de revisionista. Essa disputa e movimentação ideopolíticas marca sobremaneira a produção de Poulantzas nesta fase. 164 O conceito de “última instância” será amadurecido por Poulantzas no percurso que separa Poder Político e Classes Sociais de O Estado, o O poder, o Socialismo, definindo “última instância” como uma espécie de “matriz” que determina essencialmente o restante das coisas, e que, ao mesmo tempo, mantém uma organicidade dialética radical (como raiz) com elas. Algo próximo do asseverado por Chasin (2000, p. 38): “... estamos aqui, completamente afastados de uma concepção em que a determinação em última instância do estado pelo econômico seja uma forma de pensar a relação como uma sorte de distanciamento e afrouxamento da determinação econômica. Ao contrário, última instância significa determinação essencial, raiz para além da qual nada há a buscar, terminação precisamente porque ela é a radicalidade das coisas e sua gênese. Que medeie aí uma gama de mediações e a determinação fundamental não seja entendida mecanicamente também é uma clara evidência”. (In: CHASIN, José. A 163 102 No caso específico da formação social capitalista, se faz mister estabelecer os nexos causais entre a formação social específica e o tipo de Estado que lhe confere legitimidade, mas sempre exercendo uma função particular de constituir o fator de coesão dos níveis desta mesma formação social (POULANTZAS, 1977, p. 42). Desses níveis, evidente que a instância econômica assume o papel dominante, contudo, é no conjunto das lutas por poder, hegemonia, luta entre e intraclasses que as transformações políticas ocorrem e materializam não apenas o Estado, mas as classes em si motivando a história, no confronto. Em outros termos, afirma Poulantzas (1977, p. 43): Com efeito, já podemos descobrir um índice desta função do Estado no fato de que, para além de fator de coesão da unidade de uma formação, é também a estrutura na qual se condensam as contradições entre os diversos níveis de uma formação. O Estado é assim o lugar no qual se reflete o índice de dominância e de sobredeterminação que caracteriza uma formação, um dos seus estágios ou fases. Por isso, o Estado aparece como um lugar que permite a decifração da unidade e da articulação das estruturas de uma formação (...). É a partir da relação entre o Estado, fator de coesão da unidade de uma formação, e o Estado, lugar de condensação das diversas contradições entre as instâncias, que podemos assim decifrar o problema política – história. Esta relação designa a estrutura do político, simultaneamente como nível específico de uma formação e como lugar das suas transformações, e a luta política como “motor da história” tendo como objetivo o Estado, lugar de condensação das contradições entre instâncias defasadas por temporalidades próprias. Portanto, o Estado seria um importante vetor de comunicação ou uma espécie de transmissor que veicula as contradições de um nível específico para outro nível específico da formação social. Suas artérias, determinantes para que o Estado funcione como fator de coesão, são fundadas por instâncias da vida social, como a política, a ideologia, a cultura, determinadas pela última, que é a econômica. Nesse sentido, Poulantzas vai além da formulação gramsciana sobre hegemonia, entendendo que o Estado consegue se fazer valer como representante da vontade geral, difundindo os valores burgueses como civilizatórios e desprovidos de conteúdo classista, mas seu principal feito, para Poulantzas, é conseguir unidade política entre as frações de classe burguesa configurando um bloco no poder165. A unificação da burguesia (ainda que sempre miséria brasileira: 1964 – 1994 – do golpe militar à crise social. Santo André/SP: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000). 165 Estabelecem-se aí atração e retração entre Gramsci e Poulantzas, relação que mais tarde será transformada em extensão do pensamento do segundo sobre o primeiro. Gramsci trata da luta por hegemonia no seio da sociedade civil, sem, contudo, subtrair mediações ininterruptas que articulam nexos, portanto, a luta mesma dos aparelhos privados de hegemonia na esfera superestrutural, portanto, no Estado. O Poulantzas de Poder Político e Classes Sociais, por seu turno, avança considerando os processos de luta no interior do Estado, porém, busca detalhes desse processo na dinâmica que coesiona e fragmenta as classes protagonistas do confronto, transmutando as contradições dele emanadas de um 103 provisória) no âmbito do Estado também funciona como exemplo para toda a sociedade, condicionando uma espécie de concertação entre burguesia e proletariado no âmbito das instituições públicas e mantendo o poder de classe da primeira sobre a segunda. Essa concertação ancora-se nos estatutos da igualdade formal, base estruturante dos Estados capitalistas, de regime democrático liberal, sobretudo. É por essa razão que Poulantzas dedica especial atenção às transformações que ocorrem nas estruturas jurídico-políticas do Estado, na intenção de denunciar que as instituições do Estado capitalista tratam os cidadãos de modo vazio, isto é, sem considerá-los inseridos na estratificação social das classes. A acomodação provisória das relações capital-trabalho convence de tal maneira as massas (por meio do mecanismo de sujeição sugerido por Althusser) que faz com que o direitopositivo, pai do postulado positivista da neutralidade, se legitime como normatizador supremo da sociedade em seu conjunto, portanto, acima das classes, mascarando que sua formatação obedece aos interesses da classe dominante. E, sendo norma jurídica, deve ser obedecida por todos (novamente o poder coercitivo do Estado). Nessa unidade ideopolítica, existente no âmbito das relações entre o Estado e a luta de classes, reside a grande função do Estado burguês. Nos seus termos, refere: Isto conduz, ao nível das relações entre Estado e a luta política de classes, a um resultado aparentemente paradoxal, mas que constitui, de fato, o “segredo” desse Estado-nacional-popular-de-classe: o poder institucionalizado do Estado capitalista de classe apresenta uma unidade própria de classe, precisamente na medida em que se pode apresentar como um Estado nacional-popular, como um Estado que não representa o poder de uma classe ou de classes determinadas, mas sim a unidade política de agentes privados, entregues a antagonismos econômicos, os quais o Estado se apresenta com a função de ultrapassar, unificando esses agentes em um corpo “popular-nacional”. (POULANTZAS, 1977, p. 272)166. E o autor prossegue afirmando que a estratégia do Estado se apresentar como Ser acima das classes relaciona-se diretamente a uma “função ideológica” precisa, responsável por lhe conferir legitimidade, mas adverte: nível para outro das instâncias que compõem esta “superestrutura”. O intuito é expressar o modo como se constitui o “bloco no poder”. O que, a primeira vista, pode parecer um antagonismo, mais tarde será um ponto fulcral de aproximação entre os dois intelectuais. 166 Essa função do Estado levantada por Poulantzas fica sobremaneira evidenciada nos momentos em que o capitalismo necessita de medidas estatais planejadas para alavancar seu desenvolvimento. Veremos, mais adiante, a infalibilidade dessa função, no Capítulo 2, quando tratarmos do papel do Estado tanto na “criação” quanto na manutenção e difusão da ideologia nacionalista como pano de fundo estratégico para o desenvolvimentismo em todas suas fases na história brasileira. 104 Função ideológica que não deve, aliás, ser confundida com a intervenção do ideológico na própria organização desse Estado, isto é, na instauração dos agentes na qualidade de sujeitos jurídico-políticos e na constituição do corpo nacional-popular. (Id,, ibid., p. 273). Poulantzas preocupa-se em esclarecer que, com tais afirmações, não está superdimensionando a instância ideológica em detrimento das múltiplas determinações da vida social que funcionam sob a dominância do econômico, mas o modo como a ideologia se apresenta na organização do Estado não pode se confundir com o Estado ideológico (o caráter da ideologia na sua generalidade). Se isso ocorrer, fica fracassada a sua argumentação da autonomia relativa do Estado ante as classes. No desvendamento da ideologia reside, assim, uma das chaves heurísticas que permite elucidar a função de coesão social do Estado: Em uma palavra, o Estado “representante” da unidade política do povo-nação refletese, não obstante, em todo um quadro institucional real que tende a funcionar efetivamente, de acordo com a situação concreta das forças presentes, no sentido de uma unidade própria do poder de Estado e de uma autonomia relativa a respeito das classes dominantes. Se é verdade que não podemos superestimar esse quadro institucional, e que é sempre necessário ter em vista o que ele esconde, não podemos, por outro lado, negligenciar a eficácia específica que, conjugado com a função ideológica de legitimidade do Estado, apresenta em relação à sua unidade própria e a sua autonomia relativa. (Id., ibid., p. 273). Na expectativa de aprofundar o problema da unidade do Estado, o autor inclui em seu texto considerações sobre os elementos que compõem a democracia política dos Estados capitalistas e que participam do processo ideopolítico de deflagração desta mesma unidade, como a representatividade, o interesse geral, a opinião pública, o sufrágio universal, as liberdades públicas, enfeixando-os no estudo do conceito de soberania popular e no conceito de formação de povo. Não nos compete, para este texto, acompanhar o autor nesses argumentos; antes, cabe-nos prosseguir um pouco mais no tratamento que dispensa à problemática da unidade do Estado. Com o intuito de mostrar a complexidade dessa problemática, Poulantzas também se atém a não deixar margens para que a unidade a que se refere, galvanizada pela ideologia, seja compreendida como sinônimo de homogeneidade no interior das classes fundamentais. O autor menciona uma disputa de hegemonia intraclasses, que no limite não corrói o bloco no poder, ainda que possa, em conjunturas históricas específicas, lhe causar fissuras. 105 Determinamos, além disso, o tipo de relações entre as classes ou frações de classe que fazem parte do bloco no poder. Contrariamente a certas noções que Marx emprega – de fusão ou de síntese, por exemplo -, o bloco no poder constitui uma unidade contraditória das classes ou frações dominantes, unidade dominada pela classe ou fração hegemônica. Essa unidade do bloco no poder é constituída sob a égide da classe ou fração hegemônica que polariza politicamente os interesses das outras classes ou frações que fazem parte dela (...) as relações entre as diversas classes ou frações desse bloco não podem consistir em uma partilha do poder político institucionalizado, de que a classe ou a fração hegemônica possuiria apenas uma parcela mais importante que as outras. (Id., ibid., p. 293-294). E prossegue: Em outras palavras, se a concepção de um poder de Estado dividido em parcelas não é valida para as relações: classes dominantes - classes dominadas, ou ainda: classes dominantes e classes-apoio ou aliadas, também não é para as relações entre classes e frações que constituem o bloco no poder. Tanto assim que a representação da correspondência entre o Estado e os interesses específicos da classe ou fração hegemônica, na medida em que polarizam os das outras classes ou frações do bloco no poder, sustenta essas análises de Marx. É sempre a classe ou fração hegemônica que, em última análise se revela detentora do poder de Estado na sua unidade, e de modo tão explicito que surge, muitas vezes em Marx, como a classe ou fração “exclusivamente dominante”. (Id., ibid., p. 294). E conclui: Unidade política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica significa, assim, unidade do poder de Estado, na sua correspondência com os interesses específicos desta classe ou fração. (Id., ibid.). Fica evidente, pelos excertos apresentados, que não se trata, para Poulantzas, do falso princípio democrático burguês que diz: “No consenso, todos serão contemplados”. Ao contrário, não há repartição fraterna do bolo do poder do Estado. As frações de classes burguesas que não têm hegemonia no Estado também não tem o atendimento direto e inequívoco dos seus interesses, o que causa fissuras na unidade classista. A unidade recompõe-se quando se garante o espraiamento dos interesses da classe ou fração dominante para toda a sociedade, atingindo a classe operária na criação e disseminação de um perverso sentimento de “integração” destes ao corpo societário, por meio dos estatutos do direito positivo, da igualdade formal, do sentimento de nação unificada onde todos estão sob o jugo do mesmo conjunto de direitos e deveres, independentemente da classe a que pertencem. Essa integração favorece a unidade, ao mesmo tempo em que consolida a já clássica separação do trabalhador de seus meios de produção, naturalizando o antagonismo de classes. Em outros termos, o Estado desempenha a dupla função de cindir e agregar, ou seja, legitima a 106 separação do trabalhador de seus meios de produção, criando indivíduos atomizados, juridicamente legitimados e os reunifica sob a pecha de Estado-nação. Por isso, para Poulantzas, a legislação burguesa desempenha papel fundamental para o exercício do poder do Estado incidindo diretamente nas relações sociais de produção, na instância econômica da vida social, na infraestrutura167. É importante ressaltar, mesmo sob o risco de estarmos sendo repetitivos, que o modo como Poulantzas descreve os mecanismos que conferem unidade à classe dominante e a recomposição de suas frações no bloco no poder, serve, para esse autor, como meio de comprovar sua tese da autonomia relativa do Estado, inclusive fazendo uso da ideologia como antes já discorremos. Se hegemonia não é homogeneidade e não há repartição do poder entre as frações de classe burguesa, logo, o Estado burguês é um espaço imanente de conflitos e tensões. Poulantzas (1977, p. 295) deixa clara a incapacidade de a burguesia eliminar essa contradição interna, afirmando: Entregues a si mesmas, as classes e frações ao nível da dominação política, não só se esgotam em fricções internas, como se afundam, a maior parte das vezes, em contradições que as tornam incapazes de governar politicamente. Mesmo se essas contradições, no conjunto das relações de classe de uma formação capitalista, são contradições secundárias, e raramente aspectos secundários da contradição principal, nem por isso o seu impacto deixa de se revelar capital. Conjugadas com a contradição principal, ou com o aspecto principal desta última, essas contradições originam, dado o seu funcionamento de classe, uma situação sempre instável da dominação ao nível político. Com isso, busca mostrar que, às vezes, o Estado burguês precisa sacrificar a si mesmo para manter seu poder e o da classe que representa. Isto é, o Estado acaba por exercer sua autonomia relativa quando contraria os interesses da classe ou fração de classe no poder, “concedendo” à classe dominada alguns benefícios, seja atendendo a suas reivindicações, seja se antecipando a elas. Evidentemente que esta aparente subversão do Estado burguês logo se transforma em benefício para a classe dominante, tal qual explícito no 18 Brumário de Luís Bonaparte, e numa aproximação relativa ao conceito de Revolução Passiva em Gramsci. Nesse sentido, Poulantzas (1977, p. 281) escreve: 167 A articulação entre a base e a superestrutura. 107 Essa autonomia relativa permite-lhe [ao Estado] precisamente intervir, não somente com vista a realizar compromissos em relação às classes dominadas, que, a longo prazo, se mostram úteis para os próprios interesses econômicos das classes e frações dominantes, mas também intervir, de acordo com a conjuntura concreta, contra os interesses a longo prazo desta ou aquela fração da classe dominante: compromissos e sacrifícios por vezes necessários para a realização do seu interesse político de classe. Basta mencionar o exemplo das chamadas “funções sociais” do Estado, que atualmente assumem uma importância crescente 168 . Em síntese, notamos que o texto de 1968 é influenciado pelos estatutos da escola estruturalista, pois confere centralidade - relativa em Poulantzas e total em Althusser - à estrutura em detrimento da presença protagônica do sujeito-político e suas ações teleológicas. Isso leva à ratificação do Estado entendido mesmo como uma “estrutura” que tem por função garantir a coesão social articulando os dispositivos ideológicos, políticos, jurídicos, etc. de uma formação social de um nível a outro. A inflexão que o levará a aprimorar tal posição está registrada no texto de 1978, O Estado, o Poder, o Socialismo, mas não se faz sem mediações. Entre um texto e outro, Poulantzas produziu ensaios, artigos e protagonizou até calorosos debates 169 que o teriam levado a abandonar o conceito de Estado como estrutura, tendo passado a considerar o Estado como aparelho, para finalmente conceber, na obra citada, o Estado como relação, cuja função essencial é econômica, o que, de certo modo, não o faz abandonar a percepção da existência de aparelhos de Estado com finalidade repressivas, todavia, constituintes de uma forma política determinada em processo de luta entre classes e frações. (Quadro 1). 168 É outra característica que compõe o escopo do desenvolvimento capitalista que emerge nas fases de desenvolvimentismo, como mostraremos no Capítulo 2. 169 Na revista Crítica Marxista 27, encontramos também a transcrição do histórico debate entre Nicos Poulantzas e Ralph Miliband, certamente o mais conhecido de seus embates, mas há outros, como o que trava com o sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso sobre o conceito de classe social. Ver: CARDOSO, Fernando Henrique. Althusserianismo ou marxismo? A propósito do conceito de classes em Poulantzas. In: ZENTENO, Raúl Benítez (Org.). As classes sociais na América Latina: problemas de conceituação. Tradução de Galeno de Freitas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. Mas não apenas. A evolução do pensamento de Poulantzas parte, ainda, de uma autocrítica ao “estruturalismo” que tratou o Estado como uma “estrutura invariante que produz, através do direito e do burocratismo burguês efeitos ideológicos funcionais para a reprodução do sistema social” (CODATO, 2008) e de uma crítica a autores como Bobbio, os eurocomunistas, dentre outros. Ou seja, sua produção está completamente imersa na movimentação teórica dinâmica de seu tempo. 108 Quadro 1 - Trajetória intelectual de Nicos Poulantzas (o conceito de Estado capitalista) Periodização 1a fase Obras Principais Conceito de Estado Função do Estado Extinção do Estado Poder político e classes sociais (1968) Estrutura Política: coesão (dos níveis de uma formação) social Destruição do aparelho do Estado Texto de transição O problema do Estado capitalista (1969) [artigo] Fascismo e ditadura (1970) Aparelho Político-ideológica: coesão de uma formação social dividida em classes 2a fase As classes sociais no Contradição intra e Aparelho/relação capitalismo de hoje interaparelhos (1974). A crise das ditaduras (1975) As transformações Modificação na Relação Econômica: 3a fase atuais do Estado constituição (e não correlação de forças (1976) [artigo] O apenas reprodução) das em favor das massas Estado, o poder, o relações de produção dentro e fora do Estado socialismo Fonte: CODATO, Adriano. Poulantzas, o estado e a revolução. Revista Crítica Marxista, n. 27, 2008. p. 72170. Textos de transição Sendo relação, o Estado possibilita uma correlação de forças, e a transição socialista passa necessariamente pelo fortalecimento das massas proletárias nessa correlação. Em seus termos: O Estado, no caso capitalista, não deve ser considerado como uma entidade intrínseca mas, como aliás é o caso do “capital”, como uma relação, mais exatamente como a condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classe, tal como ele expressa, de maneira sempre específica no seio do Estado (...) Mas o Estado não é pura e simplesmente uma relação, ou a condensação de uma relação; é a condensação material e específica de uma relação de forças entre classes e frações de classe. (POULANTZAS, 2000, p. 130-131)171. A consideração madura de Poulantzas aproxima mais sua produção da realidade do Estado capitalista contemporâneo. Tanto que, em seus argumentos, incluem-se considerações inéditas para um marxista sobre o pessoal de Estado e se dedica ainda a questões da Administração pública e o Partido, momento em que, lamentavelmente, sua vida e obra se interrompem. 170 O autor da categorização expressa no Quadro 1 alerta para os limites e riscos de uma exposição como esta: “ (...) quando se trata de uma obra de pensamento, ‘não se pode’, sem ser reducionista, ‘tratar como simples elementos de informação etnográfica’, isto é, como elementos descritivos, menores ou acidentais, ‘os traços culturais que ela mobiliza’. Essas características, que estão presentes na obra de um autor e que definem sua singularidade, só fazem sentido, (...) no contexto da própria obra em que elas estão inseridas. Além disto, é preciso considerar, numa leitura mais contextual, o conjunto de obras a que a obra em questão faz referência, e as relações que definem a posição do seu autor tanto no espaço político quanto no espaço intelectual. Uma análise bem mais completa que a realizada aqui deveria ter presente todos esses determinantes”. (In: CODATO, Adriano. Poulantzas, o estado e a revolução. Revista Crítica Marxista, n. 27, 2008, p. 72). 171 POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 109 Poulantzas insere-se num quadro de marxistas contemporâneos que se dedicaram a “tecer considerações teóricas sobre o Estado e não somente contra ele”, e isso se deve à emergência do Estado Social como um fenômeno inevitável de seu tempo e que, como tal, não pode ser ignorado. Neste sentido, Pereira (2008, p. 107-108)172 afirma: A presença insofismável do Estado Social exigiu também reavaliações na concepção marxista desse Estado, detectadas nas análises pioneiras de autores contemporâneos como John Saville, James O’Connor e o primeiro Claus Offe (...). Tais autores, em vez de se prenderem à noção de Estado restrito, presente no pensamento marxiano do século XIX, passaram a considerar um arco mais amplo de intervenção estatal, dando importância ao seu caráter contraditório e sua dimensão política ativa. Um pensador marxista que pode ser considerado referência dessa nova abordagem (...) é Antonio Gramsci, sobre quem recai o mérito de ter teorizado a respeito do Estado Ampliado e da autonomia relativa deste, no que foi seguido e aperfeiçoado (em certos aspectos) por Nicos Poulantzas173. Com isso, não se quer dizer que esses estudiosos contemporâneos tenham rechaçado a perspectiva de “bem-estar social” de Marx, mas sim que, confrontados com fenômenos e processos inusitados no século XX, passaram a atualizar e ampliar o legado teórico marxista, mesmo não apresentando uma contribuição homogênea. [Assim, a literatura marxista foi se preocupando com questões mais densas]. Passou a pôr em relevo a autonomia relativa do Estado e as contradições — principal e secundária — na relação entre Estado e Sociedade (à guisa de Poulantzas); as contradições e crises fiscais do Estado (O’Connor) e os mecanismos internos que garantem ao Estado o caráter de classe (Claus Offe) 174. O Estado Social não é objeto de nossas considerações primeiras, contudo, convocamos o excerto de Pereira (2008) para evidenciar que a problemática teórico-prática do Estado no pensamento de Poulantzas se constrói em consonância com as dinâmicas sócio-históricas que se registram em seu tempo. Essas considerações são adotadas por nós como o caminho mais adequado para garantir coerência entre uma concepção de Estado e de luta antissistêmica e uma concepção de projeto profissional que alia as possibilidades dadas pela natureza da profissão a um projeto societário alternativo a ordem do capital. Ao final deste item e no capítulo 4, retomamos esta posição. A escalada de maturação teórica envolvendo mestre e discípulo no campo da tradição marxista não se resume a Althusser e Poulantzas. O filósofo húngaro Georg Lukács (18851971) e seu legatário mais proeminente, o filósofo também húngaro István Mészáros (1930 – atual), representam o que há de mais profícuo e significativo desse tipo de relação. 172 PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Ob. Cit., 2008. Id., ibid. 174 Id., ibid. 173 110 Ao tratarmos desses dois marxistas contemporâneos, estamos também tratando da perspectiva ontológica do ser social como tratamento dos campos categoriais fundantes marxianos. Isto é, lidamos tanto com uma forma específica de análise, que goza de prestígio limitado ante as incursões de prevalência pós-modernas da contemporaneidade, quanto de autores cujo eixo gravitacional de suas formulações não passa, de modo direto e derradeiro, pela problemática do Estado, como os demais interlocutores da presente argumentação175. Netto (2004, p. 145) refere que o cariz ontológico do pensamento lukacsiano [e por extensão, de Mészáros] incompatibiliza sua obra (...) posterior aos meados dos anos 30 — e, notavelmente, as derradeiras construções sistemáticas de Lukács, a Estética e a Ontologia... — com a ambiência cultural contemporânea. Os traços constitutivos dessa ambiência colidem frontalmente com os componentes estruturais do pensamento maduro de Lukács, direta ou mediatamente vinculados à impostação ontológica: a ambiência dominante hoje na cultura de oposição é visceralmente avessa às preocupações ontológicas176. Isso não quer dizer que a escola lukacsiana não seja profícua na explicitação dos dilemas contemporâneos. A afirmação do autor vai exatamente ao sentido contrário. A impostação ontológica permite desvendar a complexidade das relações que se estabelecem no metabolismo societário dinâmico negando as superficialidades e efemeridades privilegiadas no tempo presente, pois permite que a totalidade dessas relações seja desvendada a partir do estudo do Ser enquanto Ser: concebido como tendo natureza comum, que é inerente a todos os seres e, ao mesmo tempo, particular e singular. Difere, desse modo, da metafísica, indo para além dela177. Esse caminho eleito por Lukács (iniciemos por ele) não se deu como escolha autônoma de sua consciência178. Faz parte do processo mesmo de sua trajetória política179. Nesse sentido, é comum se estabelecer um corte epistemológico em sua produção, conhecido como fases do jovem Lukács e do Lukács maduro. Alguns de seus antagonistas chegaram a distinguir, no 175 Porém, não significa que tenham ignorado a problemática. Mészáros, mais que Lukács, dispensou dedicação contundente à problemática do Estado, o que não retira a natureza ontológica (do ser social) de suas análises, nem de modo contrário. 176 NETTO, José Paulo. G. Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: ______. Marxismo impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004. 177 Além da metafísica, difere também do neopositivismo e das perspectivas, mesmo que críticas, epistemológicas, em que o desenvolvimento da ciência ocorre independentemente e de forma autônoma em relação ao seu objeto. Também se diferencia das perspectivas fenomenológicas em que a existência do Ser é sintetizada na sua imediaticidade, desconsiderando a gênese e a historicidade. 178 Como nenhuma “escolha” dessa natureza se dá por esse caminho. Antes, a base dinâmica, material e objetiva das relações societais é que a funda, como afirmara Marx, quando se referiu ao fato de que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”. 179 Consultar: LÖWY, Michael. Pour une sociólogie des intellectuels revolutionnaires; I´evolution politique de Lukacs, 1909 – 1929. No Brasil, publicado sob o título A Evolução Política de Lukács (19091929), pela Editora Cortez, em 1998. 111 campo da tradição marxista, como Althusser, por exemplo, o Lukács filósofo, do revolucionário. O fato é que a obra lukacsiana, como contribuição ao tratamento da problemática do Estado, no âmbito da tradição marxista, é eivada de polêmicas, circunscritas, sobretudo, ao período de História e Consciência de Classe. E isso não é por acaso. Esse é o momento em que o autor se aproxima de um tratamento particular do tema e é, do mesmo modo, o momento no qual seu pensamento mais se distancia dele próprio. Isto é, em História e Consciência de Classe, de 1923, Lukács procede a uma aproximação acrítica da obra de seu professor e amigo Max Weber, que o leva a concordar, por meio da teoria dos tipos ideais de Weber, com este último, que o Estado burguês é um ente análogo à empresa capitalista. Assim, o desenvolvimento capitalista criou um sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse à sua estrutura, um Estado correspondente, entre outras coisas. A semelhança estrutural é, de fato, tão grande que nenhum historiador realmente perspicaz do capitalismo moderno poderia deixar de constatá-la. Max Weber descreve o princípio fundamental desse desenvolvimento da seguinte maneira: “Ambos são, antes, bastante similares em sua essência fundamental. O Estado moderno, de um ponto de vista sociológico é uma ‘empresa’ tal como uma fábrica; é justamente o que tem de específico no âmbito histórico. E as relações de dominação na empresa também estão, nos dois casos, submetidas a condições da mesma espécie”. (LUKÁCS, 2003, p. 214-215)180. Acabam por justificar a ordem do capital na medida em que conferem à racionalização dos processos produtivos uma autonomia com relação ao complexo social em que ela se constrói. Nem mesmo a luta de classes comparece como um fator determinante ao desenvolvimento capitalista nesse recorte que fazem da realidade181. Lukács torna-se, com isso, precursor do que se convencionou chamar de “marxismo weberiano”182. 180 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 181 Paço-Cunha (2011) resgata o significado dessa aproximação retomando a crítica empreendida em Para Além do Capital, de Mészáros, que nos mostra, por exemplo, um dos muitos traços que atestam a continuidade da obra de Lukács empreendida por ele. Sobre a crítica de Mészáros, refere: “O peso da influência weberiana é particularmente revelador a este respeito” [em História e Consciência de Classe]. Mészáros salienta a “aprovação incondicional” de Lukács em relação à “afinidade estrutural entre o Estado capitalista e as empresas na sociedade de mercadorias” (p. 330 e 407) a partir das passagens de História e Consciência de Classe, especificamente do famoso capítulo sobre a reificação. Lá aparecem os efeitos dos tipos ideais, a partir dos quais, “sociologicamente falando, o Estado moderno é uma ‘empresa’ (Betrieb) idêntica a uma fábrica: esta, exatamente, é sua peculiaridade histórica” (WEBER, 1997, p. 40). Com essas passagens, as quais atestam a recepção aberta da analogia entre Estado e Empresa, Mészáros argumenta que “longe de identificar as especificidades históricas reais do ‘moderno capitalismo’, como Weber alega, sua principal preocupação é a radical obliteração delas sob um acúmulo de características funcionais superficiais” (1995, p. 331; 2002, p. 408). As críticas de Mészáros pesam sobre a “mera analogia”, a “identidade mecânica” entre estado e empresa e as consequentes mistificações dessas formas 112 Contudo, a trajetória de Lukács é construída em um processo de densidade histórica e política que o permite avançar em forma e em substância, liberando-o da aproximação weberiana rumo à perspectiva ontológica183. Ao primar pelos rumos de uma ontologia crítica do ser social, resgata a essencialidade do pensamento marxiano, por meio de fidelidade ao método184, o que o leva a fazer uso nuclear da categoria totalidade. Desse modo, suas preocupações transcendem os recortes particulares que se dirigem a propriedades parciais de um complexo social, dando um giro ontológico denso na sua interpretação da produção marxiana. Desde então [meados dos anos 1930], na obra lukacsiana, a questão da efetividade, da gênese e da historicidade concretas do ser social passou a constituir o núcleo irradiador e articulador da reflexão teórica, implicando consequentemente, para retomar a formulação derradeira de Lukács, numa explícita “oposição entre gnosiologia e ontologia”; em poucas palavras, desde então a direção ontológica determinou o deslocamento do trato epistemológico, agora destituído do privilégio de operação intelectiva fundante e disposto na arquitetura teórica num nível distinto daquele que lhe cabia na filosofia ocidental especialmente desde Kant (e que, antes deste giro, também desfrutara de privilégio na obra do próprio Lukács). (NETTO, 2004, p. 146)185. Assim, a obra de Lukács, que parte da Estética e se consagra na Ontologia do Ser Social, abandona, nos dizeres do próprio autor, as objetivações de caráter institucional como objetos de interesse científico, para se dedicar às formas superiores do conhecimento e do tratamento do Ser enquanto Ser: “racional-burocráticas” em que, também argumenta ele, “o objetivo de Weber é a representação tendenciosa das relações capitalistas como horizonte intransponível da própria vida social” (1995, p. 332; 2002, p. 409), retirando de cena “precisamente a verdadeiramente relevante categoria das classes em luta” (p. 333, p. 410, grifo do autor). (In: PAÇO-CUNHA, Elcemir. (Auto)Crítica do marxismo weberiano: de Lukács a Meszáros. Revista Verinotio de Filosofia e Ciências Humanas, n. 13, ano VII, abr. 2011). Publicação semestral, ISSN 1981-061X. 182 No entanto, é importante situar que História e Consciência de Classe constituiu-se como um texto importante ao debate marxista dos anos 1920. Ele sugere uma retomada das obras de Marx. A trajetória intelectual de Lukács tem como referência uma crítica constante à ordem social e está diretamente vinculada as lutas de classe na Hungria, no final da segunda década do século XX. Isto não se pode perder de vista. 183 Estamos sendo exaustivamente reducionistas nessas afirmações. A evolução política, e, consequentemente, os constructos teóricos de Lukács informam uma das mais brilhantes trajetórias na construção do resgate dos postulados marxianos. Portanto, sugerimos que um aprofundamento expositivo dessa iniciativa deva ser realizado, tanto por nós, em outro momento, quanto pelo leitor que assim desejar fazê-lo. 184 O que, para Lukács, é a própria ortodoxia marxista. 185 NETTO, José Paulo. G. Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: ______. Marxismo impenitente: contribuição à história das idéias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004. 113 (...) de acordo com o objetivo de nossas investigações, só nos ocupamos com a ciência e com a arte, e temos deixado conscientemente de lado as objetivações de caráter institucional, como o Estado, o sistema jurídico, o partido, as organizações sociais, etc. Seu estudo teria complicado excessivamente nossa análise, mas não teria alterado em nada o resultado final. (LUKÁCS, 1970) 186. Leitura apressada desse processo poderia inferir que se trata de um tratamento fragmentado da realidade, por parte de Lukács, contudo, a maneira como aborda a relação entre a ciência (o conhecimento científico) e a estética, inevitavelmente, o impele a considerar, de algum modo, a existência dos complexos sociais objetivados institucionalmente como mediações contidas no processo de formação da consciência, sobretudo, quando se refere à cotidianidade, ainda que na teoria das esferas de objetivação genérica, seguida depois pela escola de Frankfurt, se conceba a ciência e a arte como instâncias relativamente autônomas em relação à luta de classes187, porém, recompõe-se sempre a totalidade. O que estamos dizendo é que, quando Lukács estabelece que o conhecimento científico tem como ponto de partida as necessidades da vida cotidiana, ele se remete a um conhecimento que, de per si, não é capaz de criar a realidade. Por isso que resgata o trabalho como categoria fundante do ser social e o evidencia como ato teleológico. Do mesmo modo, não se furta de tratar os processos de estranhamento e alienação que sofre o trabalho desde o início do estabelecimento das relações mercantis. na economia mercantil desenvolvida pelo capitalismo, o trabalho deixa de ser determinado primordialmente pelas forças somáticas e intelectuais do trabalhador (...) o problema é o grau de abstração, a alienação no que se refere à prática imediata da vida cotidiana. (Id., ibid.) 188. Ao mesmo tempo em que denuncia a alienação do cotidiano, a interação do trabalho com a ciência amplia as mediações que tanto podem levar à reiteração dessa alienação quanto a sua elevação a um patamar superior de consciência. Tanto os trabalhadores ficam presos à 186 LUKÁCS, Georg. Introdução à estética marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. 187 LUKÁCS, Georg (1966). Estética: La peculiaridad de lo estético. V. 1: Questiones Preliminares y de Principio. Traduzido do original em alemão por Manuel Sacristán. Barcelona (España), Grijalbo; (1967), Estetica: La peculiaridad de lo estetico. V. 3: Categorias Psicológicas y Filosóficas Básicas de lo Estético. Traduzido do original em alemão por Manuel Sacristán. Barcelona (España), Grijalbo; (1967), Estetica: La peculiaridad de lo estetico. V. 4: Questiones Liminares de lo Estético. Traduzido do original em alemão por Manuel Sacristán. Barcelona (España), Grijalbo; (1972). Estetica: La peculiaridad de lo estetico. V. 2: Problemas de La Mímesis. Traduzido do original em alemão por Manuel Sacristán. Barcelona (España), Grijalbo, 2. ed.; e HELLER, Agnes (1984). Everyday Life. Traduzido do original em húngaro por G. L. Campbell. London (England), Routledge & Kegan Paul; (1994). Sociología de la Vida Cotidiana. Barcelona (España), Península, 4. ed. 188 Id. Introdução a estética marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. 114 cotidianidade devido à agudização das formas de divisão social e técnica (mecanização) do trabalho, quanto é possível, pelo processo de suspensão dessa mesma cotidianidade, transformar em reflexo científico o que nela está oculto. Esse processo tem mesmo suas bases materiais, de modo que Lukács utiliza quase como analogia o mito da mercadoria, de Marx, para explicá-lo189. Por isso, concluímos que, mesmo não se dedicando à problemática do Estado, Lukács fornece bases fundamentais para o entendimento das formas de relações sociais mais amplas, mediadas pelo conhecimento e pela estética, que possibilitam alcançar o processo de humanização e civilização emancipatórios, e pressupõem, para tanto, o fim das formas de opressão e dominação do homem pelo homem, do qual o Estado é um agente fundamental. Nesta linha, Mészáros admite assumir o espólio de Lukács que, ao contrário do que se espera de uma herança, não consistiu em algo pronto que este pudesse desfrutar, mas sim de uma tarefa, deixada inacabada pelo mestre, a qual o receptor deveria dar prosseguimento. Em se tratando de filósofos de tamanha envergadura, nota-se que não se trata de empreendimento trivial. Mészáros coloca-se, assim, o desafio de dar prosseguimento ao desejo interrompido de Lukács de escrever O Capital de nosso tempo. Para isso, não parte de um marco zero. Resgata as pistas deixadas pelo mestre e com elas passa a inquirir o tempo presente, saturado de novas determinações190. 189 No livro I, volume I, de O Capital, Marx assim se refere à alegoria fantasmagórica da mercadoria: “A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. (...). Há uma relação física entre coisas físicas. Mas, a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (...) Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias”. In: MARX, Karl. O capital. Livro I, v. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p. 81. 190 Iamamoto (2007) assim sumariza esses tempos: “A efetiva mundialização da ‘sociedade global’ é acionada pelos grandes grupos industriais transnacionais articulados ao mundo das finanças. Este tem como suporte as instituições financeiras que passam a operar com o capital que rende juros (bancos, companhias de seguros, fundos de pensão, fundos mútuos e sociedades financeiras de investimento), apoiadas na dívida pública e no mercado acionário das empresas. Esse processo impulsionado pelos organismos multilaterais captura os Estados nacionais e o espaço mundial, atribuindo um caráter cosmopolita à produção e consumo de todos os países; e, simultaneamente, radicaliza o desenvolvimento desigual e combinado, que estrutura as relações de dependência entre nações no cenário internacional. O capital financeiro assume o comando do processo de acumulação e, mediante inéditos processos sociais, envolve a economia e a sociedade, a política e a cultura, vincando profundamente as formas de sociabilidade e o jogo das forças sociais. O que é obscurecido nessa nova dinâmica do capital é o seu avesso: o universo do trabalho — as classes trabalhadoras e suas lutas —, que cria riqueza para outros, experimentando a radicalização dos processos de exploração e expropriação. As necessidades sociais das maiorias, a luta dos trabalhadores organizados pelo reconhecimento de seus direitos e suas refrações nas políticas públicas, arenas privilegiadas do exercício da profissão [dos assistentes sociais], sofrem uma ampla regressão na prevalência do neoliberalismo, em favor da economia política do capital. Em outros termos, tem-se o reino do capital fetiche na plenitude de seu desenvolvimento e ação”. (In: 115 Como o conhecimento na ótica marxiana instiga e provoca o ser cognoscente a portar-se como sujeito, ante a processualidade real da história, a obra de Mészáros, em constante movimentação, acompanhando a dinâmica do seu tempo, é uma rica fonte de informação e crítica ao “incomensurável dinamismo totalizador do capital”, em seus termos. Para Além do Capital torna-se seu cartapácio atual de monta maior, onde ficam explicitadas das determinações mais gerais aos detalhes mais recônditos do funcionamento sociometabólico do capital, tanto naquilo que ele carrega de inequívoco, estrutural, quanto ao que surge no sistema de inovações provocado pelo avanço do controle metabólico das interações entre o homem e a natureza. Desse modo, a distinção que opera entre capital e capitalismo serve, de um jeito definitivo — para sua coleção de argumentos —, para mostrar tanto os limites que a identificação entre ambos ocasiona à luta antissistêmica quanto para descortinar as contradições imanentes do capital que se materializam na forma específica que encontra para reproduzir-se, que é o capitalismo. Afirma: Antes de mais nada, é necessário insistir que o capital não é simplesmente uma “entidade material” — também não é, como veremos na Parte III, um “mecanismo” racionalmente controlável, como querem fazer crer os apologistas do supostamente neutro “mecanismo de mercado” (a ser alegremente abraçado pelo “socialismo de mercado”) — mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico. (MÉSZÁROS, 2002, p. 96). Portanto, o capital, para Mészáros, é um sistema poderoso e abrangente, tendo seu núcleo constitutivo formado pelo tripé capital, trabalho e Estado, sendo que essas três dimensões fundamentais são materialmente constituídas e inter-relacionadas, sendo impossível superá-lo sem a eliminação do conjunto dos elementos que compreende esse sistema. (ANTUNES, 2002, p. 3)191. A partir dessa lógica, dedica-se a evidenciar o modo como o capital contemporâneo exponencia os níveis de expropriação do trabalho e prossegue investigando o modo como o Estado não apenas é utilizado pelo capital para essa empreitada quanto participa ativamente do processo. Para Mészáros, o sistema do capital não teria outra maneira para preencher suas funções sociometabólicas sem a “extração máxima do trabalho excedente dos produtores de qualquer IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007. p. 106-107). 191 ANTUNES, Ricardo. Resenha de para além do capital. Disponível em: <www.boitempoeditorial.com.br>. Acesso em: 16 fevereiro de 2013. 116 forma compatível com seus limites estruturais” (Id., ibid., p. 99). Para isso, impõe a divisão social hierárquica do trabalho como relacionamento determinado de poder e a apresenta como justificava ideológica absolutamente inquestionável e pilar do reforço da ordem estabelecida (Id.). Para esta finalidade, as duas categorias claramente diferentes da “divisão do trabalho” devem ser fundidas, de modo que possam caracterizar a condição, historicamente contingente e imposta pela força, de hierarquia e subordinação como inalterável ditame da “própria natureza”, pelo qual a desigualdade estruturalmente reforçada seja conciliada com a mitologia de “igualdade e liberdade” — “livre opção econômica” e “livre escolha política” segundo a terminologia de The Economist — e ainda santificada como nada menos que ditame da própria razão (...). Com relação à sua determinação mais profunda, o sistema do capital é orientado para a expansão e movido pela acumulação. (Id., ibid., p. 99-100). Se, para Mészáros, o capital é um sistema de mediações de segunda ordem (de caráter antagônico e potencial destrutivo), o trabalho é, desse modo, a nucleação das mediações de primeira ordem — as atividades produtivas — sob o qual o capital se assenta. As dimensões constitutivas desses dois sistemas são inconciliáveis, ativando, assim, o espectro da incontrolabilidade do capital numa forma que faz prever a autodestruição (tanto de si mesmo quanto da humanidade em geral). O autor afirma que não é possível, para o capital, um controle duradouro de si próprio, no máximo, ajustes limitados circunscritos à dinâmica de expansão e acumulação192. Arrola, deste modo, o que chama de “desafios estruturais de controle no sistema de capital”, sumarizando esses desafios em três grandes ordens de limites antagônicos: Primeiro, a produção e seu controle estão radicalmente isolados entre si e diametralmente opostos. Segundo, no mesmo espírito e surgindo das mesmas determinações, a produção e o consumo adquirem uma independência e uma existência separada extremamente problemáticas, de modo que, no final, o “excesso de consumo” mais absurdamente manipulado e desperdiçado; concentrado em poucos locais, encontre seu corolário macabro na mais desumana negação das necessidades elementares de incontáveis milhões de pessoas. E, terceiro, os novos microcosmos do sistema do capital combinam-se em alguma espécie de conjunto administrável, de maneira que o capital social total seja capaz de penetrar (...) no domínio da circulação global (...) na tentativa de superar a contradição entre produção e circulação. (MÉSZÁROS, 2002, p. 105). 192 Ajustes dos quais o (neo)desenvolvimentismo faz parte. 117 É nesse sentido que o Estado moderno participa da aventura destrutiva do capital como seu complemento imprescindível: corrigindo as falhas estruturais do sistema. Nessa ótica, não é possível conceber o capital sem o Estado, afinal, este é uma “estrutura política compreensiva de mando do capital, um pré-requisito para a conversão do capital num sistema dotado de viabilidade para sua reprodução, expressando um momento constitutivo da própria materialidade do capital” (ANTUNES, 2002; MÉSZÁROS, 2002, p. 121). O Estado moderno constitui a única estrutura corretiva compatível com os parâmetros estruturais do capital como modo de controle sociometabólico. Sua função é retificar — deve-se enfatizar mais uma vez: apenas até onde a necessária ação corretiva puder se ajustar aos últimos limites sociometabólicos do capital — a falta de unidade em todos os três aspectos referidos na seção anterior [citados no excerto anterior] 193 . (MÉSZÁROS, 2002, p. 107). Além do mais, dada a modalidade única de seu metabolismo socioeconômico, associada a seu caráter totalizador (...) estabelece-se uma correlação anteriormente inimaginável entre economia e política (...) O Estado moderno imensamente poderoso — e igualmente totalizador — se ergue sobre a base deste metabolismo socioeconômico que a tudo engole, e o complementa de forma indispensável (e não apenas servindo-o) em alguns aspectos essenciais. (Id., ibid., p. 98). Portanto, o Estado não é um ente superestrutural, relativamente autônomo, erguido sob as condições históricas que determinam o grau de desenvolvimento das forças produtivas, e que fica à espera das ordens do capital para realizar suas funções. Antes, o Estado como estrutura de comando político do sistema sociometabólico do capital, é, ao mesmo tempo, constituinte [como momento de síntese] da sua própria base. Se tal base está referida ao complexo de mediações de primeira ordem, a função do Estado de retificar as disfunções do sistema sociometabólico, decorrentes do choque entre seus microcosmos constitutivos, é função que nasce no seio do próprio processo de constituição desse sistema e não fora dele. Em termos coloquiais: O Estado não presta assistência técnica externa ao capital quando de suas crises, ele é, pois, o próprio mecanismo reparador das falhas contidas na estrutura mesma do capital, constituído na dinâmica expansiva de acumulação e autrodestruição do sistema194. 193 Grifo nosso. Mas há que se entender o termo “mecanismo” não como um instrumento, mas como algo inerente ao processo de reprodução do capital. A gênese do Estado fundamenta-se no antagonismo das classes sociais. Ou seja, a relação entre o Estado e a economia não é de mera instrumentalização, mas de essencialidade para a sobrevivência das classes em luta, e, portanto, da própria humanidade. Contudo, essa gênese também indica o limite do Estado, que é sua existência fundamentada nos conflitos de classe e, portanto, em uma sociedade emancipada; superando a existência das classes sociais, supera-se a própria necessidade material do Estado. 194 118 Argumento que faz cair por terra tanto a interpretação liberal da supremacia (autonomia) mercadológica quanto a crítica de esquerda, que alega favorecer, o Estado, pontualmente, o capital com medidas político-econômicas regressivas, apenas por aliar-se à classe dominante. O capital plasmado mesmo no Estado, torna ambos processos mais complexos do que as inferências imediatas a seu respeito pressupõem. A análise do Estado, sob o signo do capitalismo monopólico não fica restrita a Gramsci, Poulantzas ou Mészáros. A seu modo, Ernest Ezra Mandel (1923 – 1995) também trata do Estado em seus particularismos contemporâneos 195 , situando-o num momento de elevada industrialização mundial com inflexões decisivas em toda a economia, em especial o modo como o domínio burguês se manifesta na regulação estatal, que é análoga à regulação (ou a falta dela) da própria economia burguesa196. Mesmo com esse recorte temporal, Mandel mantém o eixo central da tradição marxista que entende as vinculações (i)mediatas do Estado burguês com a classe dominante e as adequações que procede para o melhor atendimento de seus interesses: O que é válido em relação às tentativas privadas dos monopólios de regular a economia aplica-se igualmente à regulamentação do Estado. (...) Já tentamos mostrar, no capítulo 15, que o Estado no capitalismo tardio continua sendo o que era no século XIX – um Estado burguês que em última instância só pode representar os interesses da classe burguesa (“o capital como um todo), sobretudo de seu estrato socioeconômico dominante. (MANDEL, 1982, p. 385)197. Para Mandel, no capitalismo tardio, as funções do Estado atinentes ao atendimento dos interesses da classe dominante estão diretamente ligadas a essa função reguladora, correspondendo, portanto, às necessidades de “expansão, circulação e acumulação de capital”, não se furtando assim de ter, esse processo, como base constitutiva, as relações de produção fundamentais originadas no trabalho humano. Sendo assim, classifica as principais funções do Estado burguês em: 195 Sofrendo as consequências do II Pós-Guerra. Segundo Mandel: “As funções superestruturais que pertencem ao domínio do Estado podem ser genericamente resumidas como a proteção e a reprodução da estrutura social (as relações de produção fundamentais), à medida que não se consegue isso com os processos automáticos da economia. Por isso nem todas as funções do Estado são hoje ‘puramente’ superestruturais, como não o eram nas formações sociais pré-capitalistas” (In: O Capitalismo Tardio, p. 333). 197 MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Coleção Os Pensadores). 196 119 1. Criar as condições gerais de produção que não podem ser asseguradas pelas atividades privadas dos membros da classe dominante; 2. Reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou de frações particulares das classes dominantes ao modo de produção corrente através do Exército, da polícia, do sistema judiciário e penitenciário; 3. Integrar as classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade continue sendo a da classe dominante e, em consequência, que as classes exploradas aceitem sua própria exploração sem o exercício direto da repressão contra elas (porque acreditam que isso é inevitável, ou que é ‘dos males o menor’, ou a ‘vontade suprema’, ou porque nem percebem a exploração). (Id., ibid., p. 333-334). A síntese dessas funções, em Mandel (1982, p. 337), o leva a contrapor-se tanto às perspectivas gramscianas, quanto às categorias do jovem Poulantzas. Do primeiro, destoa de sua noção de hegemonia como forma de direção política classista radicando o entendimento de hegemonia como dominação198. Do segundo, diverge sobre a autonomia relativa do Estado e suas funções políticas. Refere: A autonomização do poder do Estado na sociedade burguesa é decorrência da predominância da propriedade privada e da concorrência capitalista; mas essa mesma predominância impede que essa autonomização deixe de ser relativa. A razão disso é que as decisões do “capitalista total ideal”, enquanto transcendem os interesses competitivos conflitantes de capitalistas específicos, têm efeitos importantes sobre esses interesses199. Se, para o jovem Poulantzas, de Poder Político e Classes Sociais, o Estado capitalista contemporâneo goza de autonomia relativa, no sentido de tornar coesiva as frações de classe burguesa no bloco no poder, sendo mais do que um simples aparelho da fração monopolista do capital, para Mandel, o Estado é uma forma maximizada do capitalista particular: capitalista total ideal, que assume sempre como consequência de suas decisões o cumprimento dos interesses das diferentes frações do capital. Isso explica madelianamente, as disputas que se travam no interior das instituições. Para Mandel, Poulantzas pecou por ter supervalorizado as funções políticas do Estado e ignorado que a propriedade privada e a concorrência, como bases estruturais do sistema, impedem a autonomia do Estado mesmo que relativa. 198 Ver: MANDEL, Ernest. Crítica do euro-comunismo. 1978. Fotocopiado. Também o historiador inglês Perry Anderson travou polêmica contra o conceito de hegemonia de Gramsci em seu artigo As Antinomias de Gramsci. Nele, argumenta que o termo já era utilizado pelos bolcheviques e mencheviques para se referir à “ofensiva” social-democrata, que propunha a união dos operários com os camponeses na luta contra o czarismo. Refere que Gramsci não teria conseguido dar maior coesão/unidade ao termo, pois não o circunscrevera de modo preciso nem na sociedade civil e nem na sociedade política. 199 MANDEL, Ernest. Ob. Cit., 1982. 120 Nesse sentido é que Mandel avança, com relação a seus antecessores, no que tange à explicitação do modo manipulador do capitalismo tardio 200 . Nesse sentido, sua construção teórica é ressonante com a própria construção marxiana, encontrada em O Capital e que trata particularmente da construção dos processos de alienação do trabalho na deturpação deste como modo fundante do ser social. Para Mandel, as formas de dominação do Estado burguês de capitalismo tardio estão cada vez mais renunciando ao uso direto da força em favor de formas de coerção ideológicas, justamente pela necessidade instransponível que tem, o capital, do trabalho livre. Mas essa renúncia também favorece a consolidação do liberalismo como substância de sustentação do Estado burguês, pois permite a reiterada minimização de suas funções: O governo do capital se distingue de todas as formas pré-capitalistas de governo pelo fato de não se basear em relações extraeconômicas de coerção e dependência, mas em relações ‘livres’ de troca que dissimulam a dependência e sujeição econômicas do proletariado (separação entre meios de produção e subsistência) e lhe dão a aparência de liberdade e igualdade. (Id., ibid.., p.336). E prossegue: Como essas relações de troca em geral foram internalizadas pelos produtores diretos, especialmente no período do capitalismo ascendente, quanto mais desimpedidas a dominação econômica e a expansão do capital, tanto mais a burguesia poderia absterse do uso direto da coerção das armas contra a classe operaria e tanto mais era possível reduzir o poder do Estado às funções mínimas de segurança 201. (Id., ibid., p. 336). Se os excertos mandelianos que citamos até agora estão em consonância com a sua matriz teórico-metodológica, é na continuação de seus argumentos que encontraremos os nexos explícitos de formulação de sua teoria do Estado. 200 Por modo manipulatório do capitalismo contemporâneo, estamos entendendo o aperfeiçoamento das instâncias que formam a sociedade capitalista (econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas, culturais, etc.) sob a ótica das classes dominantes contemporâneas. Esse aperfeiçoamento dá-se em decorrência do espetacular avanço e desenvolvimento das forças produtivas nos fins do século XX e início do século XXI, que sustentaram a mundialização ou a circulação do capital, inaugurando uma aldeia global de interrelações e interdependências sob a determinação da esfera econômica, contudo, com inflexões nos campos da política, da ideologia e da cultura, sendo esta última uma das principais formas de difusão do pensamento burguês mundial entre as massas e de conformação de uma subjetividade capitalista. Elementos para essa consideração podem se encontrados em Habermas em sua teoria do agir comunicacional, mas o tratamento desse processo como “capitalismo manipulatório” pode ser visto em ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade – O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010 e COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política a dualidade de poderes e outros ensaios. 2. ed., São Paulo: Cortez, 1996. 201 Essa redução do Estado, mais tarde será confirmada como um dos pilares ideopolíticos de implantação do neoliberalismo. 121 Mandel (1982, p. 335-336) prossegue por considerar o isolamento das esferas pública e privada como peculiaridade da sociedade burguesa decorrente da “generalização sem igual da produção de mercadorias, da propriedade privada e da concorrência de todos contra todos”. Portanto, considera difícil ou mesmo impossível que um capitalista isolado possa representar os interesses gerais do capital, diferentemente do que ocorreu no Estado feudal, quando o rei exercia tal poder de representação. Daí, Mandel distingue Estado de Governo, citando Kautsky: ‘A classe capitalista reina, mas não governa. Contenta-se em dar ordens ao Governo.’ A concorrência capitalista determina assim, inevitavelmente, uma tendência à autonomização do aparato estatal, de maneira que possa funcionar como um ‘capitalista total ideal’, servindo aos interesses de proteção, consolidação e expansão do modo de produção capitalista como um todo, acima e ao contrário dos interesses conflitantes do ‘capitalista total real’ constituído pelos ‘muitos capitais’ do mundo real. (Id., ibid., p. 336). De fato, percebemos duas consequências desse processo nada triviais. De um lado, notamos uma função, atribuída ao Estado, de lidar com os conflitos de interesses das classes, mas não das classes fundamentais, antagônicas, burguesia e proletariado, mas sim das frações da classe burguesa 202 . Isto é, considerando a tendência exponencial da concorrência entre os próprios capitalistas e a variedade de interesses que encerram – uns representam o capital industrial, outros o comercial, outros o capital bancário, e assim por diante -, o Estado tende a ser o grande harmonizador desses interesses, tendo como fim último a reprodução ampliada e genérica do capital, beneficiando os capitalistas no seu conjunto, ainda que haja prevalência de uma fração sobre outra. 202 O modo como os capitalistas ampliariam a concorrência, inclusive entre si, já havia sido anunciado por Marx, em suas considerações sobre o processo de acumulação primitiva, no Livro I de O Capital. Refere: “Desintegrada a velha sociedade, de alto a baixo, por esse processo de transformação, convertidos os trabalhadores em proletários e suas condições de trabalho em capital, posto o modo capitalista de produção a andar com seus próprios pés, passa a desdobrar-se outra etapa em que prosseguem, sob nova forma, a socialização do trabalho, a conversão do solo e de outros meios de produção em meios de produção coletivamente empregados, em comum, e, consequentemente, a expropriação dos proletários particulares. O que tem de ser expropriado agora não é mais aquele trabalhador independente e sim o capitalista que explora muitos trabalhadores. Essa expropriação se opera pela ação das leis imanentes à própria produção capitalista, pela centralização dos capitais. Cada capitalista elimina muitos outros capitalistas”. (In: MARX, Karl. O capital. Livro I, v. II, Capítulo XXIV: A chamada acumulação primitiva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971). 122 O capital é incapaz de produzir por si mesmo a natureza social de sua existência em suas ações; precisa de uma instituição independente, baseada nele próprio, mas que não esteja sujeita a suas limitações, cujas ações não sejam determinadas, portanto, pela necessidade de produzir (sua própria) mais-valia. Essa instituição independente, ‘ao lado, mas fora da sociedade burguesa’, pode, baseada simplesmente no capital, satisfazer as necessidades imanentes negligenciadas pelo capital. O Estado não deve ser visto, portanto, nem como um simples instrumento, nem como instituição que substitua o capital. Só pode ser considerado uma forma especial de preservação da existência social do capital ‘ao lado, mas fora da concorrência’. (ALTVATER apud MANDEL, 1982, p. 336). E, por outro lado, é responsável pela manutenção da ordem burguesa, pelo controle ideopolítico da massa subjugada203. Tal controle pode, desta forma, ser sustentado na ideia de um Estado acima das classes. Ou seja, a heterogeneidade dos interesses burgueses passa a ser identificada com a heterogeneidade dos interesses de toda a sociedade. A rigorosa utilização do Estado burguês como arma dos interesses de classe dos capitalistas é escondida tanto dos atores quanto dos observadores e vítimas dessa tragicomédia pela imagem mistificadora do Estado como árbitro entre as classes, representante do ‘interesse nacional’, juiz neutro e benevolente dos méritos de todas as ‘forças pluralistas’. (Id., ibid., p. 347). Com tal legitimidade, o Estado credencia-se para regular a vida social, e, nessa regulação estende seu braço de modo oscilante, ao sabor das conjunturas, ora interferindo na economia – para preservar os interesses dos proprietários -, ora interferindo na organização civil da sociedade. Esta última função (intervir na sociedade) é até mesmo entendida como uma necessidade premente, considerando que a organização da classe trabalhadora afeta o desenvolvimento livre e desimpedido do capital. 203 Mandel alerta: “O capitalismo tardio caracteriza-se pela combinação simultânea da função diretamente econômica do Estado burguês, do esforço para despolitizar a classe operária e do mito de uma economia onipotente, tecnologicamente determinada, que pode supostamente superar os antagonismos de classe, assegurar um crescimento ininterrupto, um aumento constante do consumo e, assim, produzir uma sociedade ‘pluralista’. A função objetiva da ideologia ‘economicista’ é, sem dúvida, tentar desmantelar a luta de classe do proletariado. Mas a necessidade objetiva dessa ideologia corresponde exatamente à compulsão cada vez maior do Estado em intervir na economia capitalista tardia, e ao perigo de que essa intervenção eduque a classe operária em relação a todas as formas econômicas e sociais da sociedade cuja riqueza produz – potencialmente – uma ameaça terrível ao capitalismo tardio”. (In: O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 341). 123 O principal objetivo da política econômica burguesa não é mais anular os antagonismos sociais, mas sim descarregar sobre os assalariados os custos do reforçamento de cada indústria capitalista nacional na luta concorrencial. O mito do pleno emprego permanente está desvanecendo. Aquilo que a sedução e a integração política não conseguiram realizar efetiva-se agora pela reconstrução do exercito industrial de reserva e pelo cancelamento das liberdades democráticas do movimento dos trabalhadores (entre outras, a repressão estatal à greve e ao direito de greve). A luta pela taxa de mais-valia desloca-se para o centro dinâmico da economia e da sociedade, como ocorreu entre a virada do século e a década de 30 [do século XX]. Por conseguinte, uma explicação do capitalismo tardio deve incluir também uma análise critica do papel desempenhado pelo Estado burguês tardio e pela ideologia burguesa tardia na luta de classes contemporânea. (MANDEL, 1982, p. 332). Nesse excerto, fica evidente, ainda, a fúria expansionista do capital. Isto é, não se trata apenas de barrar os movimentos operários como forma de manter a coesão social, mas, ao mesmo tempo, deve dispensar atenção aos proprietários nacionais, considerando a ampliação da concorrência externa (resultado da desterritorialização crescente do capital). Logo, o Estado também deve intervir na manutenção dos capitalistas individuais204. Isso implica dizer que embora o Estado difunda a ideia de que a manutenção da lógica burguesa leva a estágios crescentes e prósperos de desenvolvimento ininterrupto, este mesmo Estado (e sua burguesia correspondente) sabe que isso é um mito e que as crises fazem parte dessa lógica. Assim, a regulação voltada para a defesa dos interesses também dos capitais nacionais tem o intuito de preservá-los das crises cíclicas quando, não muito, o Estado os presenteia com espécies de bônus em forma de acessos aos fundos públicos e financiamentos a juros baixos pelos bancos públicos em nome do incentivo ao desenvolvimento. Assim, há no Estado uma tendência de intervir sempre mais em esferas originalmente produtivas da economia, a fim de criar condições de produção que já não podem ser garantidas pelo capital privado. Essas condições vão desde a infraestrutura real e a esfera da educação e administração, até certos ramos da produção de matérias-primas, do sistema de transporte e mesmo até ramos da produção que ‘avançam’ demais tecnologicamente (usinas de energia nuclear, por exemplo). (Id., ibid., p. 389). Essa tendência identificada por Mandel deve, contudo, ser referenciada conjunturalmente, pois, por mais que contenha elementos gerais que sobrevivem em qualquer tempo histórico do capitalismo, ela possibilita identificar na história os momentos onde esta função é racional e deliberadamente planejada e executada, condição essencial para o desenvolvimento em ação: o desenvolvimentismo. 204 Raciocínio que retomamos no Capítulo III, ao tratar do advento do (neo)desenvolvimentismo no Brasil. 124 Sem dúvida, de modo estrutural, o Estado desempenha a função clássica de manter e dar suporte às esferas produtivas fundamentais, tanto que, em momentos de crise nas bases de acumulação, esses investimentos são receitados como remédios para superação dessas crises, vide as fórmulas keynesianas e neokeynesianas, de que trataremos mais adiante, e isso implica a valorização direta do capital que possui base produtiva e de acumulação em seus próprios territórios nacionais. Outrossim, com o avanço do processo de desterritorialização, que converge na mundialização do capital, essa função do Estado tende a ser relativizada ou, de certo modo, deslocada para os fóruns de decisão econômica globais em detrimento dos fóruns locais205. Se o processo clássico de intervenção na produção fundamental foi invocado nos anos 30, perdurando como paradigma até meados dos anos 80, essa invocação requisita novos elementos, a partir da revolução tecnológica e do neoliberalismo dos anos 90 até os dias atuais, culminando no processo de transnacionalização das economias. O papel que tem a política ‘nacional’ monetária e de crédito de moderar o ciclo industrial sofre a ameaça de ser decisivamente reduzido. Essa ameaça também está se tornando realidade na medida em que a ‘onda longa’ de expansão acelerada, sob condições de uma nova revolução tecnológica, levou a uma nova fase de concentração e de centralização aceleradas de capital, que transformou a firma multinacional na forma organizacional decisiva da empresa do capitalismo tardio. (Id., ibid., p. 392). E prossegue: O Estado burguês tardio tem muito menos influencia sobre essa forma organizacional do que sobre os trustes e monopólios ‘nacionais’ do período anterior. Assim como o crescimento das forças produtivas sobrepuja o Estado nacional, também sobrepuja gradualmente o papel do Estado no controle do ciclo industrial e na promoção e no crescimento de melhorias econômicas. Quanto mais os monopólios pensam que se subtraíram à lei do calor em nível nacional, tanto mais tornam-se sujeitos a ela em nível internacional. (Id., ibid., p. 392). A internacionalização da concorrência cria uma aldeia de capitalistas globais, ao mesmo tempo em que agudiza as diferenças e desigualdades de desenvolvimento entre os países. A subordinação dos países com menor grau de desenvolvimento aos países de capitalismo avançado é inevitável, nessa ordem, pois o capital justifica, mesmo moralmente, que a socialização de seu modus operandi e de sua ideologia inerente são as condições civilizatórias 205 E mesmo as tentativas de se estabelecer relações capitais em grandes blocos regionais não têm logrado êxito, a exemplo não apenas do Mercosul, mas da própria comunidade europeia nesta segunda década do século XXI. 125 para desenvolver-se no tempo corrente, o que se constitui mais num ideal do que em realização, como demonstra Celso Furtado em seu O Mito do Desenvolvimento206. A oferta de mão de obra e de commodities passa a ser, assim, a mola propulsora da concorrência entre os países com menor grau de desenvolvimento, e, nessa lógica, dependentes. Importante ressaltar que as relações entre países ricos e pobres, ou desenvolvidos e dependentes, não se limita à esfera de circulação mercantil, de mercadorias. Além do aparato ideológico, como frisamos, invade os domínios da política e da formulação de políticas, do aparato jurídiconormativo até os modelos mesmo de administração dos próprios Estados nacionais. Isso reforça o citado princípio da desterritorialização: Sua conduta [a das empresas multinacionais] corresponde simplesmente à lógica de um modo de produção baseado na propriedade privada e na concorrência, e não numa ‘soberania nacional’ que em última instância deve subordinar-se aos interesses globais do capital. Essa mesma lógica não leva apenas a evitar perdas, mas também a maximizar os lucros – em outras palavras, leva à especulação monetária que tem por finalidade conseguir ganhos financeiros rápidos e, consequentemente, a constantes transferências internacionais de somas enormes de capital-dinheiro. (Id., ibid., p. 330331). O quadro da análise mandeliana é, sem dúvida, fundamental para o entendimento do Estado burguês, no contexto do capitalismo tardio. Sua análise não se centra na problemática do Estado, propriamente, mas no referenciamento preciso das manifestações gerais e particulares de um Estado histórica e socialmente determinado, qual seja, o Estado burguês do final do século XX, com foco nas suas funções relativas à acumulação. Evidenciam-se, assim, o desenvolvimento capitalista como sinônimo de acumulação e o desenvolvimentismo como meio pelo qual o Estado viabiliza o cumprimento dos interesses da classe dominante de tempos em tempos. Percebemos, nesse rápido passeio pelas construções teórico-metodológicas e ideopolíticas do Estado, dos jusnaturalistas aos filósofos marxistas, que os autores foram tendencialmente se afastando da definição abstrato-geral do Estado e se aproximando mais propriamente da identificação de suas funções e funcionamento mesmo. Desde a descrição, identificada por Althusser como momento primeiro da construção da teoria, até a generalização do capitalista singular no Estado de Mandel, as problematizações sobre o tema têm avançando inevitavelmente para prescrever diferentes formas de ser do Estado, como, por exemplo, o Estado de transição ou o Estado socialista, como também a sua superação. 206 FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. 126 Recorremos, deste modo, a aproximações sucessivas, identificadas no lastro da tradição marxista para recolher aquilo que nos interessa enquanto elementos essenciais de uma concepção de Estado, considerando o caráter inacabado de uma teoria geral do Estado neste campo. Contudo, mesmo sob o risco de parecer reducionistas, arrolamos de modo sumário características que passaremos a considerar em nossa elaboração, sem prejuízo de outras que possam vir a se agregar posteriormente: 1. O Estado é um ente social e historicamente determinado, de natureza fundamentalmente relacional; 2. Sua existência está condicionada ao uso da razão. Isto é, só existe no âmbito do projeto da racionalidade humana, em sua dimensão política. Fora disso, não se realiza, é etéreo e amorfo; 3. Só pode ser entendido se referenciado a uma formação social específica. Isto é, adquire a identidade da sociedade em que se insere. Identidade está vinculada ao modo como se estabelecem as relações sociais — consequência direta dos processos de produção e reprodução da vida social — e a maneira como as disputas de poder são travadas nessas relações; 4. Portanto, sua existência não pode ser desvinculada do surgimento das classes, nem da dinâmica que estabelecem entre si e suas frações; 5. Por ser relacional, não há consenso sobre apresentar autonomia, ainda que relativa, ante a dinâmica das classes sociais; 6. Além de ser revestido ideologicamente pelo formato que assume, oscila entre papéis protagônicos, ou marginais, no processo de criação e difusão da ideologia dominante, sem abrir mão desse papel em nenhuma condição histórica; 7. Sua participação nos processos de reprodução das relações sociais é, em algumas análises, orientada pela classe dominante; em outras, é a própria classe dominante plasmada em sua forma. Alterna, assim, intervenções ora drásticas, ora moderadas, na vida socioeconômica, sempre com o fim último de manter os níveis exponenciais de expansão e acumulação capitalistas; 8. O monopólio legal da violência é uma característica própria intransponível, razão da sua autojustificação; 9. O caráter contraditório de sua existência reflete-se, dentre outras formas, no fato de possuir intrinsecamente as condições para sua manutenção perpetuadora como também de sua superação, para alguns, e extinção, para outros. Contradição essencial do sistema do capital incorporada pelo Estado burguês, ou inexorável a ele. Portanto, desse modo, é indispensável para a transição socialista. Não há, por outro lado, consenso sobre as 127 formas de encaminhamento dessa transição, gerando as mais profícuas polêmicas no campo da tradição marxista. 10. Acompanhando a evolução humano-social, os Estados migraram de simples organizações locais para conglomerados complexos mundializados. Portanto, suas formas contemporâneas não conseguem abdicar das relações imbricadas que se estabelecem na aldeia global. Essas características mostram a heterogeneidade interna (e externa, por ter condicionantes materiais — históricos e sociais — claros) da problemática teórico-prática do Estado. Da filosofia política clássica à ciência econômica contemporânea. Diante de tamanha diversidade conceitual, cumpre-nos, por fim, explicitar que não entendemos o Estado como uma hipostasia da superestrutura, ou como um ente aprisionado no âmbito superestrutural, que sobrevive à espera das ordens burguesas voltadas à satisfação de seus interesses de acumulação crescente. Nem mesmo consideramos o estudo da problemática teórico-prática do Estado como circunscrito ao método. O tratamento que dispensamos ao Estado procura associar três modos distintos e relacionáveis de conhecimento: o conhecimento filosófico sobre ele construído, contido nos clássicos do marxismo; a justaposição entre teoria marxista e teoria socialista, portanto, o conhecimento político próprio das esquerdas marxistas; e o conhecimento científico “exigido para conquistar o objeto de pesquisa (O Estado capitalista) das sociologias não marxistas” (CODATO, 2008, p. 84-85). Nesse entendimento, a concepção de Estado capitalista não se dissocia da dinâmica da transição socialista, pois não há como ignorar a existência do Estado no processo de constituição de uma sociedade que, ao mesmo tempo em que avança em conquistas civilizatórias — todas elas referidas ao avanço das forças produtivas —, generaliza a expropriação do trabalho e repõe, no mesmo processo, fissuras que permitem a sua superação. Portanto, o Estado plasma-se no processo de lutas que friccionam a relação orgânica e dialética entre estrutura e superestrutura, como mediação de interesses econômicos, políticos, ideológicos, culturais, consequentes e que, em última instância, podem ser direcionados para a conquista da emancipação humana. O erro comum consiste em considerar que o tratamento do Estado como relação abrange concessões reformistas e mistificadoras à ordem do capital. Ao contrário, tal tratamento nos permite, pois, percorrer trajeto analítico similar ao de Marx, quando desvendou o mito da mercadoria e, nesses aprofundamentos, nos ensinou que o Capital é antes de mais nada uma relação social. Desse modo, o poder do Estado, por analogia, é “visto como uma forma-política determinada (isto é, ‘condensada’) pelas relações de força — instáveis, cambiáveis, provisórias — entre as classes implicadas nas lutas políticas” (Id., ibid., p. 83). 128 1.2.3 A tradição liberal Se, na tradição marxista, as motivações para pensar o Estado partem do estudo do poder e das categorias a ele vinculadas, na tradição liberal, o eixo estruturante clássico parece ser mesmo as questões afetas à “liberdade”. Nada mais lógico, considerando que as revoluções que se deram desde o século XVI 207 , ao consolidar a Democracia liberal como regime político dominante, trouxeram consigo a liberdade como elemento imprescindível de uma luta pela substituição do absolutismo monárquico por sociedades pautadas na “livre concorrência”, onde o “trabalho livre” é apenas o seu maior expoente. A liberdade a que se referiram os pioneiros da tradição liberal é a que se faculta aos indivíduos no plano formal. É a garantia de que os cidadãos podem agir de modo desimpedido na conformação de seus interesses particulares. Essa noção de liberdade, aqui muito sumarizada, baliza a construção do Liberalismo como seu desdobramento no campo jurídico-político de ordenamento das sociedades modernas e democráticas que surgem, em processo, desde o final d século XVI 208 , como já apontado. Contudo, a clareza acerca do seu potencial e significado torna-se um ideal hegemônico, na Europa de século XVIII, antes, durante e depois da irrupção da Revolução Francesa. Mas depois dela é que se alastra não mais como ideal, mas como experiência real. É o momento em que é derrotada a fase democrática da Revolução Francesa – a de Robespierre, em 1793 – e tende-se a formar sociedades liberais do tipo que surgirá na França após a revolução de 1830, ou no Piemonte (e depois na Itália toda, com a unificação do país) em 1848. Na Inglaterra a partir da revolução de 1689, sempre existira uma sociedade liberal. (GRUPPI, 1980, p.21). 207 A exemplo da Revolução Inglesa, de 1640 a 1688; a Americana, de 1776; e a Francesa, de 1789 a 1799. 208 Bobbio afirma que é muito difícil precisar a origem e definir o liberalismo como fenômeno histórico, assim, destaca três ordens de fatores que explicitam tal dificuldade, mas que numa “história paralela de diversos liberalismos” podem nos ajudar a compreendê-lo: “1. A história do liberalismo acha-se intimamente ligada à história da democracia (...), pois o Liberalismo é justamente o critério que distingue a democracia liberal das democracias não liberais (plebiscitária, populista, totalitária). 2. O Liberalismo se manifesta nos diferentes países em tempos históricos bastante diversos, conforme seu grau de desenvolvimento; daí ser difícil individuar, no plano sincrônico, o momento liberal capaz de unificar histórias diferentes, e 3. Não é possível falar numa ‘história-difusão’ do Liberalismo, embora o modelo de evolução política inglesa tenha exercido uma influência determinante, superior à exercida pelas Constituições francesas da época revolucionária. Isto porque, conforme os diferentes países, que tinham diversas tradições culturais e diversas estruturas de poder, o Liberalismo defrontou-se com problemas políticos específicos, cuja solução determinou sua fisionomia e definiu seus conteúdos, que muitas vezes são apenas uma variável secundária com relação à essência do Liberalismo”. (In: BOBBIO, Norberto, et al. Dicionário de política. 13. ed., Brasília: UnB, 2007). 129 E toda essa força não se dá apenas pela extraordinária capacidade revolucionária da burguesia209, mas sim porque conta também com programas teóricos bem elaborados por seus intelectuais e estadistas defensores210. Um deles, que pode ser considerado como precursor dessa tradição, é Henri-Benjamin Constant de Rebeque (1767 – 1830). Um pensador franco-suíço que organiza teórica e politicamente uma das primeiras distinções entre Estado e sociedade civil na perspectiva liberal. Parte de uma comparação entre as antigas sociedades gregas e romanas e as sociedades que denomina modernas, com um olhar voltado preponderantemente para a Inglaterra. Nessa comparação, salienta que nas sociedades antigas o poder do Estado era inevitável e quase absoluto, pois as liberdades dos cidadãos só podiam ser exercidas na esfera pública. Era na esfera pública que os cidadãos decidiam, nas assembleias, as questões decisivas para todo o corpo societário, logo, os cidadãos que se dedicavam a isso deviam, desse modo, estar liberados para essa função, o que exigia uma espécie de subsociedade formada por aqueles que desempenhariam as funções produtivas – os escravos. A coesão social nesse tipo de sociedade, segundo Constant, em seu livro Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos, de 1819, era garantida por uma obrigação moral severa, a que identificou como “exercício cidadão”. Isto é, exercer a cidadania significa “investir pesado” na participação nessa esfera pública com o objetivo último de preservar a ordem. Além disso, ressaltava que, em sociedades pequenas e homogêneas, a liberdade exercida na esfera pública tinha os limites relacionados à pouca quantidade daqueles que podiam efetivamente exercer essa cidadania. Em linhas gerais, Constant considerava esse tipo de modus operandi de sociedade um estilo tirânico, pois toda a liberdade que deveria ser concedida no âmbito privado da vida social estava submetida a essa espécie de vontade geral. Por isso mesmo, polemiza com Rousseau, considerando que os princípios de igualdade preconizados por ele (Rousseau) destroem a liberdade. Com esse raciocínio, Constant elabora aquele que seria o eixo estruturante da tradição liberal clássica, qual seja, “a identificação entre propriedade e liberdade, isto é, a liberdade como diferença, e não como igualdade” (GRUPPI, 1980, p. 20). Na sociedade dos Modernos, para Constant, deve prevalecer a ordem preconizada a partir das garantias individuais, sobretudo as econômicas, regidas por uma legislação que, além de preservá-las, deve proteger os indivíduos contra a interferência estatal na esfera da vida 209 É bastante conhecido de todos que, após consolidada a Revolução Burguesa, a burguesia transformase em classe dominante, sendo assim conservadora, e não mais revolucionária, como fora antes. 210 Hobsbawn, ao se referir a o caráter da dupla revolução, afirma: “(...) foi o triunfo não da ‘indústria’ como tal, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da sociedade ‘burguesa’ liberal; não da economia moderna’ ou do ‘Estado moderno’, mas das economias e Estados em uma determinada região geográfica do mundo (...)” (In: A era das revoluções 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. 130 privada. Defende a organização política representativa, sobretudo, nas sociedades maiores, limitando a participação direta dos cidadãos na vida pública, pois não havendo escravos, a maior parte dos cidadãos deve estar liberada para o trabalho livre. Constant tambem é defensor da supremacia do mercado como ente regulador do conjunto das relações sociais, ao evidenciar que a liberdade mercantil se sobrepõe à guerra, ou seja, as nações devem estar em paz umas com as outras para proceder livremente as transações comerciais. Com a guerra, não tem como haver liberalismo. Mesmo com essas ideias, Benjamim Constant não é o único pioneiro do liberalismo clássico mais visitado. Esse título cabe também ao históriador-aristocrata Alexis Henri Charles Clérel, visconde de Tocqueville, ou apenas Alexis de Tocqueville (1805 – 1859). Filho de família aristocrática, Tocqueville carregava consigo uma aparente contradição. Defende ao mesmo tempo a aristocracia e as instituições democráticas. Contradição apenas aparente, pois sua defesa da liberdade formal não alcança as formas mais elaboradas de exercício direto da liberdade individual na vida pública, o que leva inevitavelmente à igualdade, coisa que tanto teme. Aliás, a igualdade propalada pelos defensores de uma democracia não liberal 211 , legatários de Rousseau (ou não), é motivo das preocupações de Tocqueville, do mesmo modo que Constant enxerga na igualdade a raiz de um poder tirânico. Suas ideias contribuíram para levar a sociedade a promover um arranjo de coisas aparentemente inconciliáveis, como afirma Gruppi (1980, p. 22-23): A corrente democrática, que se afirmou na Revolução Francesa com Robespierre, na verdade foi derrotada na história da Europa. Neste continente, após as décadas de 1860 e 1870, teremos regimes liberais; teremos uma fusão de liberalismo e democracia, isto é, uma ampliação do sufrágio universal, da igualdade jurídica. Uma mistura de liberalismo e democracia que, no entanto, reafirma sempre o direito da propriedade, tutela sempre a iniciativa economica e o desenvolvimento capitalista. A solubilidade entre democracia e liberalismo não foi simbiótica, isto é, embora o arranjo que une as duas concepções possa ter provocado aparente harmonia social, a essência disforme de cada uma delas permaneceu inalterada. Isso fez e faz com que o liberalismo, como regime ideopolítico, seja um eterno por vir, obrigando os liberais a estarem sempre em estado de alerta e, nas fissuras que surgem desse processo, promovendo sua reparação. Essa característica da instabilidade do arranjo que promoveram já lhes fora anunciada em seu próprio seio. O italiano Benedetto Croce (1866 – 1952) mesmo sendo um liberal e vivendo em uma época em que “não há mais distinção entre Estado de Direito Liberal e Estado Democrático” (Id., ibid.), preocupa-se em deixar evidentes as diferenças fundamentais entre um modo e outro de sociedade. 211 Pautada nos estatutos da igualdade formal. Não percamos isso de vista. 131 Para ele, os elementos históricos que causaram a fusão do liberalismo com a democracia concentram-se na luta de ambos contra a monarquia absoluta e o clericalismo e com a defesa que empregam da liberdade individual, da igualdade civil e política e da soberania popular. Mas é justamente nessas aparentes amálgamas que residem diferenças substantivas. Croce afirma que não há consenso entre liberais e democratas sobre os conceitos de: indivíduo, igualdade, soberania e povo. Para os democratas, os indivíduos eram seres iguais, a quem – como eles diziam – devia-se propiciar uma igualdade de fato. Já para os liberais os indivíduos eram pessoas iguais como homens, portanto sempre dignos de respeito, mas não eram iguais como cidadãos (...) Além disso, para os liberais o povo não era uma soma de forças iguais (conforme pensavam os democratas), mas sim um mecanismo diferenciado, válido em cada uma de suas peças e em sua associação, com uma unidade complexa, com governantes e governados, com classes dirigentes abertas e móveis mas sempre necessárias para as tarefas do poder. (GRUPPI, 1980, p. 23). Quanto ao conceito de soberania, refere: A soberania para os liberais, era do conjunto (síntese), e não das partes analisadas separadamente; isto é, a soberania encarnava-se na síntese política (dos governantes, não dos governados). Para os liberais deve existir uma classe dirigente (...) que é a elite da cultura [mas na verdade é a elite da base econômica]212. (Id., ibid., p. 23-24). Essas distinções colocadas à luz, por Croce, serviram mais para fortalecer o arranjo do que suplantá-lo. As fragilidades desse arranjo foram alvo de especulações, umas mais sérias, outras nem tanto, mas que extrapolaram o feudo da democracia-liberal e possibilitaram análises de importância capital para as ciências sociais e políticas, alternando entre a sua autojustificativa, a crítica reformista e a crítica revolucionária. Um nome clássico e indispensável para esse tipo de envergadura teórica e política é, sem dúvida, o do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), reconhecido como o mais importante intelectual a pensar a problemática da coesão social, na perspectiva da autojustificativa, como antes mencionado. Tendo essa problemática como um dos eixos fundantes de sua trajetória teórica, os estudos durkheimianos influenciaram e ainda influenciam não apenas os campos do pensamento sobre o Estado, mas as questões próprias da ciência social. Por hora, nos interessa seu pensamento acerca do Estado e da sociedade. Se, para Marx, o trabalho é a categoria que nos funda enquanto seres sociais, portanto, imanente ao gênero humano, para Durkheim, uma importância parecida lhe será conferida. Para 212 Grifo do autor. 132 ele, o trabalho é responsável por galvanizar a coesão social. Isto é, em seu livro Da Divisão do Trabalho Social de 1893 argumenta que a modernização dos meios produtivos, com a industrialização, redundou num exponencial crescimento da especialização do trabalho. Essa diversificação, convertida em especialidades cada vez mais singulares, é uma forma superior de promoção inequívoca da solidariedade entre os homens, tornando harmônicas suas relações e coesa a sociedade. O autor distingue a solidariedade pelo trabalho das sociedades menos desenvolvidas, ou menos complexas, daquela solidariedade que emerge em sociedades complexas. Nas primeiras, embora possa haver uma divisão social simples do trabalho, os indivíduos estão aptos a realizar a maior parte das tarefas necessárias à sua sobrevivência. A organização desses coletivos humanos está assegurada muito mais pelos costumes, pela crença, pelas tradições, do que por uma relação de dependência recíproca. Durkheim nomeia isso como solidariedade mecânica. Já no segundo tipo de sociedade – as mais complexas –, a solidariedade, portanto, a coesão, é assegurada pela interdependência que se estabelece entre os homens a partir da complexidade dos processos produtivos, que decorre da divisão crescente do trabalho. A divisão social crescente do trabalho é uma constatação que se verifica também em Marx, contudo, para Marx o crescimento exponencial do caráter coletivo do trabalho encerra em si a contradição fundamental do modo capitalista de produção, qual seja, quanto mais o caráter coletivo do trabalho aumenta, cresce em proporções maiores a expropriação desse mesmo trabalho (e do trabalhador como agente intercambiante orgânico dessa relação) pelo capital. Essa contradição, para Durkheim, não é o problema a ser enfrentado. Ao contrário, desse tipo de solidariedade, que o autor Da Divisão do Trabalho Social denomina de “solidariedade orgânica”, emerge uma necessidade de regulação moral capaz de harmonizar o processo desigual de entrada e manutenção dos homens no “mundo do trabalho”. Isto é, a regulação da relação capital-trabalho não passa de uma questão moral, resolvida, deste modo, com instituições criadas (ou reformadas) para esse fim, com base em normas integradoras. Essas instituições e as normas morais têm por objetivo promover a integração adequada dos indivíduos ou grupos ao convívio social, havendo inclusive meios para requalificar os comportamentos desviantes ameaçadores da paz social. Nesse sentido, Durkheim, em O Suicídio, discorre sobre o que chama de anomia, conceito que associa e identifica o funcionamento inadequado da sociedade à patologia. Com essa noção de coesão social, Durkheim habilita-se a tratar do Estado. Entende, assim, o Estado como o ente “que concerta e expressa a vida social” justamente por ser o responsável por resguardar o exercício dessa moral integradora a que se referiu anteriormente. Isto é, o Estado está acima das classes. 133 Como educador Durkheim enxergava na educação pública o veículo responsável por formar a consciência dessa moral integradora sem “ideologismos” ou “confessionalismos”, portanto, sendo o Estado responsável por essa educação não se opõe ao indivíduo, ao contrário, lhe fornece as possibilidades de integração. Nessas possibilidades, está incluída sua libertação do poder autoritário dos grupos de socialização, como a família, a Igreja e as corporações profissionais. Mas isso não significa uma satanização desses grupos por parte de Durkheim. Trata-se apenas de colocar as coisas no seu devido lugar, isto é, a esses grupos caberia a nobre função de acompanhar a dinâmica do governo, informando e promovendo algumas formas de participação dos cidadãos na vida pública, mais ou menos limitadas. Além desses grupos, essa função é afeta ao âmbito da educação civil, dos jornais, mas, sobretudo, das corporações de ofício organizadas, isto é, dos grupos de associação profissional. A estes estaria reservada a tarefa de impedir que a autoridade conferida ao Estado extrapolasse seus limites, cerceando a liberdade. Durkheim dá extrema importância à organização corporativa nas sociedades modernas. Nele descobriremos uma enunciação descritiva de Estado Corporativo, e em análise eminentemente superestrutural, a preocupação se volta para o esclarecimento de sua função [...] Durkheim traça não somente as linhas básicas do movimento histórico das corporações, como ainda tenta demonstrar sua viabilidade no início deste século. Critica economistas liberais por verem inevitavelmente as corporações como sobrevivências do passado, as quais deveriam sofrer inteira eliminação. (VIEIRA, 1981, p. 18)213. A urgência da organização corporativa na sociedade moderna impõe-se, para Durkheim, por motivos morais e não econômicos. Acredita que uma função social somente se mantém com a disciplina moral, e, diante do egoísmo do industrial e do operário, do comerciante e do empregado, fica completamente demonstrada a imperiosidade da regulamentação da vida econômica [...] que encontra sua mediação exata (o freio a um possível autoritarismo) nas corporações (VIEIRA, 1981). “Reveste-se desta maneira a corporação de uma função de controle da estabilidade social” (Id., ibid., p. 18 ). Por esse motivo, e não por outro, é que Durkheim desenvolve a noção de anomia para designar comportamentos antissociais ou desviantes em relação às normas estabelecidas pelo organismo social, cuja força moral das corporações evitaria os abusos estatais e privados214. Por isso, Vieira (1981) assevera que Durkheim concebe uma sociedade pluralista de grupos 213 VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & Companhia. São Paulo: Cortez, 1981. 214 Pois foi baseado na noção durkheimiana de anomia que um conjunto de políticas sociais foi construído no Brasil pós-1930, durante a Era Vargas. Algumas dessas características permanecem até os dias atuais. No caso da assistência social, tal marca começa a ser superada (ao menos no desenho da política e nos comandos de sua gestão) com a instituição do Suas, o que não o isenta de tensionamentos e contradições. 134 secundários protetores dos interesses individuais, enquanto o Estado se afigura como individualista, sem estar confinado à administração de uma justiça totalmente negativa, reconhecendo-se o direito e o dever de desempenhar um papel mais amplo em todas as esferas da vida coletiva, sem ser mística. Considerando o Estado como órgão especial, destinado a gerar representações de valor coletivo, o pensamento durkheimiano dirige-se ao intervencionismo estatal na sociedade, sem recorrer à integral homogeneidade215. Caberia ainda às corporações organizar a base de representação política da sociedade, tanto nas eleições quanto na manutenção do poder democrático, mais coeso. Em síntese, encontramos em Durkheim uma noção de Estado funcional e corporativo. Ainda no rol dos constructos teóricos e políticos que extrapolam a tradição liberal, mesmo que possam provocar influência ou inflexões, encontramos as formulações do sociólogo alemão Maximilian Karl Emil Weber, ou simplesmente Max Weber (1864 – 1920). Este bem mais pessimista com relação ao Estado do que Durkheim. Para o autor de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, a integral recorrência às corporações na estrutura do Estado (inclusive nas eleições), como sugeriu Durkheim, ao fazer do Estado uma entidade corporativa apenas o inviabilizaria, pois não daria conta de adequar-se à época de profundas transformações econômicas e tecnológicas (Id., p. 21). Weber não era contrário às corporações, mas criticava sua identificação integral no aparelho do Estado, como estrutura: Esta identificação, imprescindível para uma lei eleitoral destinada a ordenar a representação corporativa, não chegaria a definir coisa alguma a respeito da função econômica e social, alteradas com o progresso material. Não é difícil concluir disto que, mudadas as funções, muda em consequência o significado de tarefas apenas formalmente idênticas. (Id., ibid., p. 21-22). Weber referenciou grande parte de seus estudos à Alemanha de sua época, unificada por Otto von Bismarck. O Estado alemão, para Weber, era composto de uma estrutura quadripartite de poder: os junkers, que eram os grandes proprietários de terra; os grandes industriais; a elite do serviço público (os grandes burocratas); e o Exército. Os dois últimos detentores do maior poder. Weber conferiu importância singular ao estudo da burocracia, por considerá-la como uma forma peculiar de exercício de poder que, para ser positiva, tem de ser racional; caso contrário, tende a extrapolar seus domínios e tornar-se tirânica: 215 O autor ainda completa: “O corporativismo renovado de Durkheim procura sua gênese nas antigas corporações, isto é, nas associações de mercadores e artesãos, localizadas em determinada cidade e destinadas a regular o exercício da profissão, o tempo de trabalho, a qualidade da produção e o combate à fraude”. 135 Para Weber a ação da burocracia, que é racional quando limitada a sua esfera, torna-se irracional quando atinge outras esferas. O burocrata pode ser ótimo funcionário, cumpridor de seus deveres; será, porém, um péssimo estadista. (TRAGTENBERG, 2006, p. 175)216. Mas, então, do que trata a burocracia, para Weber? Tragtenberg (ibid., p. 171) esclarece: Burocracia é igual à organização. É um sistema racional em que a divisão de trabalho se dá racionalmente com vistas a fins. A ação racional burocrática é a coerência da relação entre meios e fins visados (...) implica predomínio do formalismo, de existência de normas escritas, estrutura hierárquica, divisão horizontal e vertical de trabalho e impessoalidade no recrutamento dos quadros. Trata-se, pois, do tipo de dominação que Weber denominou de dominação legal, pois conta com um aparato normativo que difere substancialmente da dominação carismática ou da dominação tradicional217. Portanto, o Estado é, para Weber, uma organização longeva, garantida pela burocracia, e que transcende os projetos políticos que disputam o governo. O que diferencia o Estado dos demais tipos de organização sociais e políticas, conclui, é um poder peculiar, o monopólio legal da violência. Tal poder, consentido pela sociedade, é sustentado por um aparato jurídico-administrativo moldado em conformidade com o estágio de desenvolvimento da sociedade em questão e exercido por fluxos burocráticos precisos. Não por acaso, Weber é referência para a construção de diversos fluxos da burocracia estatal contemporânea. Se, de um lado, Weber, ou mesmo Durkheim, se dedicaram a pensar o Estado sob macronarrativas, de outro, intelectuais com formação econômica, em sua maioria, dispuseramse a tratar e entender o Estado a partir da maneira como a sociedade burguesa se organiza para acumular. Pensadores de uma política econômica que desse conta de alienar as resultantes da contradição entre capital-trabalho, suas preocupações centraram-se em conferir eficiência ao papel do Estado em ser importante indutor da acumulação, reprodutor de capital, ainda que para isso fossem contrários à existência do próprio Estado, em certa medida. Adam Smith (1723 – 1790), por exemplo, defendeu que as funções do Estado seriam restritas a: 216 TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo: Unesp, 2006. Weber ocupou-se de explicar cada um dos tipos ideais de dominação. A dominação tradicional é signatária do conformismo. 217 136 manter a segurança, administrar a justiça e cuidar de algumas instituições públicas. A intervenção estatal em outros setores seria inútil e prejudicial. Para o autor de [A Riqueza das Nações]218, a liberdade deveria ser almejada, ainda que implicasse em desigualdade. Por isso, é considerado o pai da Economia Liberal. (SECURATO, 2007, p.34)219. É da fonte de Adam Smith que brota a ideia do trabalho como valor, apropriada de modo distinto em Durkheim e em Marx, mas, em Smith, a divisão do trabalho aparece como a única fonte de crescimento. Smith também dividiu o progresso em três etapas: caça e pastorícias pré-feudais, sociedade agrícola e sociedade comercial. A passagem de uma para outra se daria através de transformações na propriedade (Id., ibid., p. 34). Propriedade que Smith defendia veementemente, pois, com a propriedade se estabelece a desigualdade e esta, vista por ele de modo positivo, é condição para o incentivo ao trabalho, um mecanismo contra a indolência. Essa consideração, acrescida de outras de caráter político, fazem da obra de Adam Smith muito mais que tratados pragmáticos de economia. Com certa licenciosidade, poderíamos lançá-las ao status de sistemas filosóficospois suas análises incorporam um tipo de sistema de subjetividades da natureza humana e próprias à sociabilidade capitalista ou da sociedade comercial, caso queiramos fazer uso de seus próprios termos. Analisando o campo da motivação pelas paixões e vontades humanas a concorrência é muito mais que uma manifestação concreta do modo como circulam as mercadorias, ela é antes um componente da essência empreendedora do homem e de sua liberdade. Neste excerto, extenso, porém importante, do primeiro volume de A Riqueza das Nações, isto nos parece ficar explícito: No caso de quase todas as outras raças de animais, cada indivíduo, ao atingir a maturidade, é totalmente independente e, em seu estado natural, não tem necessidade da ajuda de nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade quase constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a autoestima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer - esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. (SMITH, 1988, p. 24-25)220. 218 Grifo nosso. SECURATO, José Cláudio. Economia: história, conceitos e atualidades. São Paulo: Saint Paul, 2007. 220 SMITH, Adam. A riqueza das nações. Livro I, v. I, São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Economistas). 219 137 E prossegue: Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimonos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles. Ninguém, a não ser o mendigo, sujeita-se a depender sobretudo da benevolência dos semelhantes. Mesmo o mendigo não depende inteiramente dessa benevolência. Com efeito, a caridade de pessoas com boa disposição lhe fornece tudo o de que carece para a subsistência. Mas embora esse princípio lhe assegure, em última análise, tudo o que é necessário para a sua subsistência, ele não pode garantir-lhe isso sempre, em determinados momentos em que precisar. A maior parte dos desejos ocasionais do mendigo são atendidos da mesma forma que os de outras pessoas, através de negociação, de permuta ou de compra. Com o dinheiro que alguém lhe dá, ele compra alimento. A roupa velha que um outro lhe dá, ele a troca por outras roupas velhas que lhe servem melhor, por moradia, alimento ou dinheiro, com o qual pode comprar alimento, roupas ou moradia, conforme tiver necessidade (Id., ibid,, p. 24-25). Deste modo, se há no homem um impulso natural à troca de vantagens por interesses particulares, há também no mercado uma vocação para esse tipo de autorregulação. O bem-estar geral não seria, assim, garantido pela solidariedade, mas sim pelo egoísmo, pois, na medida em que cada um busca maximizar a realização de seus interesses particulares, impulsiona, por seu turno, o progresso econômico de toda a sociedade. Uma espécie de mão invisível se encarrega de ajustar essa marcha do individualismo ao todo social. Vejamos, em suas próprias palavras: Ora, a renda anual de cada sociedade é sempre exatamente igual ao valor de troca da produção total anual de sua atividade, ou, mais precisamente, equivale ao citado valor de troca. Portanto, já que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo. Nunca ouvi dizer que tenham realizado grandes coisas para o país aqueles que simulam exercer o comércio visando ao bem público (SMITH, 1988, p. 437 )221. 221 SMITH, Adam. Ob. Cit., 1988. 138 Nas formulações de Adam Smith, podemos perceber tanto uma concepção liberal de Estado opositora a qualquer emergência de um ethos público por ele impulsionado, quanto os fundamentos de uma teoria para o desenvolvimento econômico do modo capitalista baseada numa fórmula que não relaciona o valor de uso ao valor de troca222. Smith retém a mesma explicação dos economistas da escola fisiocrata (F. Quesnay e outros) de que o crescimento econômico depende do excedente de riquezas acumulado a cada período e do seu emprego produtivo no período seguinte. O excedente é gerado pelo aumento da produtividade do trabalho impulsionado, por sua vez, pela divisão do trabalho. A expansão dos mercados favorece a divisão do trabalho. Em suma, o crescimento econômico depende de poupança, investimento e aumento de produtividade. Basicamente, a mesma conclusão da moderna teoria do crescimento econômico. (FEIJÓ, 2007, p. 227)223. Smith preocupou-se tanto em enaltecer a supremacia do mercado em detrimento do intervencionismo estatal quanto em estabelecer uma “teoria do valor” originada no modo como entendia o trabalho. De acordo com essa teoria, o trabalho é considerado o “dinheiro” da compra inicial que era pago por todas as coisas, ou seja, o pré-requisito para qualquer mercadoria ter valor era que esta fosse produto do trabalho humano. Nessa direção, o preço desse produto seria a soma de três componentes: o salário, os lucros e os aluguéis. (SECURATO, 2007, p. 34)224. 222 Segundo Securato, a teoria de Smith é substancialmente frágil, pois estabelece que “os três componentes dos preços – salários, lucros e aluguéis – são eles próprios preços ou derivam destes. Ou seja, não dá para explicar os preços em geral por uma teoria que os define através de outros preços. Smith afirmava que o valor de uso e o valor de troca não estavam sistematicamente relacionados. O segundo ponto fraco desta teoria era o fato desta levar a conclusões sobre o poder aquisitivo da moeda e não mencionar os valores relativos de mercadorias distintas. Para Smith, a melhor medida do valor em uma troca era a quantidade de trabalho contida em uma mercadoria. Como o trabalho exercia um papel fundamental no processo de enriquecimento, Adam Smith defendia que o valor de troca deveria ser igual ao salário, embora se tenha verificado que o valor de troca é diferente do preço. Portanto, o preço não pode ser definido apenas pelo valor do trabalho contido na mercadoria, mas deve também incluir o salário, o lucro do capital e a renda”. (In: Economia: história, conceitos e atualidades. São Paulo: Saint Paul, 2007). Em Salário, Preço e Lucro, Marx utiliza o conceito de preço de produção, no lugar do conceito de Smith de preço natural (preço ao qual a receita da venda é suficiente apenas para dar lucro). E em O Capital define “o valor como objetivação do trabalho abstrato em mercadorias, medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário [e] diz que o valor se expressa em dinheiro como preço. (...) No Capítulo III do Livro I, Marx afirma a possibilidade de uma “incongruência quantitativa” entre o preço e a grandeza de valor, e não restringe esta possibilidade à ocorrência de oscilações do preço em torno do valor” explicitando uma dinâmica não alcançada em Smith. (In: NETO, João Machado Borges. As várias dimensões da lei do valor. Revista Nova Economia disponível em: <http://www.face.ufmg.br/novaeconomia/sumarios/v14n3/140305.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2012). 223 FEIJÓ, Ricardo. Desenvolvimento econômico, modelos, evidências, opções políticas e o caso brasileiro. São Paulo: Atlas, 2007. 224 SECURATO, José Cláudio. Ob. Cit., 2007. 139 E, ainda, considerava o rendimento como a soma dos salários com os lucros e as rendas, dividindo o salário em: salário dos ocupados na produção e salário dos trabalhadores não produtivos. A renda seria igualada ao preço, subtraído da soma dos salários com os lucros, ou seja, Renda = Preço — (Salários + Lucros) (Id., ibid.). Uma fórmula que justifica, por tornar natural, a expropriação do trabalho, afinal, nesta lógica, a evolução dos salários acompanha o movimento desejado à economia pela mão invisível, retrai-se se a economia retrair-se e expande-se se a economia expandir-se. E tudo isso, obviamente, sem a interferência do Estado. Ainda que não tenha estabelecido relações diretas com todos eles, Smith influenciou pensadores que vieram depois dele, e, noutros casos, sofreu influência de alguns de seus contemporâneos. Destacam-se John Law (1671–1729); Thomas Malthus (1766–1834); Jean Baptiste Say (1767-1832); David Ricardo (1772-1823) e Stuart Mill (1806–1873); e que tiveram em comum o mérito de definir a economia partindo do fluxo que considera estruturantes as leis que regem a formação econômica, a acumulação, a distribuição e o consumo. Essas leis ancoram-se no contexto de uma concorrência perfeita, em que as condições naturais do livre mercado – laissez-faire – são mantidas pela mão invisível smithiana, maximizando o bem-estar econômico, e, como não poderia deixar de ser, sem a interferência maléfica do Estado. Com efeito, David Ricardo é sempre lembrado nos textos das ciências econômicas como um dos economistas que, ao assumir o legado de Smith, incorporou a ele novos elementos. Juntos, são os maiores representantes da chamada escola econômica clássica. Para Ricardo, o trabalho é o único fator de produção225, o que significa que os países não precisam possuir iguais condições de produção para realizarem transações no comércio internacional. Segundo ele, dois países podem beneficiar-se com o comércio, se cada um tiver uma vantagem relativa na produção. Os países exportarão os bens produzidos com o trabalho interno, de modo relativamente eficiente, e importarão bens produzidos pelo trabalho interno, de modo relativamente ineficiente, ou seja, o padrão de produção de um país é determinado pelas vantagens comparativas. Nessas transações, o Estado tem um papel importante, porém não determinante, afinal, a costura política necessária à realização do comércio exterior não tem como se furtar da participação estatal, mas os trâmites econômicos não lhe dizem respeito. 225 Os estudos econômicos recentes consideram que a organização econômica sustenta-se sob a égide das unidades produtivas, das famílias e do governo: “As unidades produtivas desempenham papel essencial porque realizam a reunião dos recursos de capital (de propriedade de outras unidades produtivas, de propriedade das famílias, ou de propriedade do governo) com a força de trabalho proporcionada pelas famílias, para, balizadas pelas regras estabelecidas pelo governo para harmonização das relações dentro da sociedade, produzirem bens e serviços que se destinam ao consumo ou uso das famílias, do governo, de outras empresas. Constitui-se, dessa maneira, aquilo que se denomina de sistema econômico. (In: MUNHOZ, Dércio. Introdução à economia. Brasília, 2007. Apostilado). 140 Em franco diálogo adesista com Malthus, Ricardo foi um crítico contundente da intervenção estatal no campo da reprodução social da classe trabalhadora. Ambos defenderam os interesses de latifundiários e industriais, difundindo a lógica (no caso de Ricardo, muito mais no campo da dedução do que da empiria) de uma evolução social insustentável. Isto é, a população mundial tende a crescer em proporções geométricas enquanto a produção de alimentos, na melhor das situações, em proporções aritméticas. Esse descompasso entre oferta e demanda só pode ser administrado se cada indivíduo consumir o absolutamente necessário a sua sobrevivência, podendo, ainda, a humanidade, contar com a fome e com guerras como meios para barrar o crescimento populacional iminente. Os esforços das organizações de trabalhadores, como os sindicatos, ou do governo, com suas políticas assistenciais, tendem a ser meros paliativos, cujos resultados agravam ainda mais o caos anunciado por manter as condições de sobrevivência da população. Isso porque Ricardo não considera a terra como um componente na determinação do valor. Prevê que a vida das pessoas é vivida em terras cada vez menos férteis, com perda crescente de suas capacidades produtivas aumentando os custos de vida e diminuindo a capacidade de consumo. Em sua teoria do valor, considera que o valor é definido pela quantidade de trabalho necessário à produção de determinados bens, não dependendo da disponibilidade, da abundância, mas sim do modo e das dificuldades ou facilidades encontradas em seu processo de produção, o que circunscreve sua teoria à aplicação de valor apenas para bens reproduzíveis, isto é, um bem escasso tem valor por sua escassez e não pelo tempo de trabalho nele utilizado. Nota-se, então, que, assim como Smith, o pensamento econômico de Ricardo vai ao encontro das aspirações de uma classe que busca legitimidade ideocultural na economia política capitalista e a conseguem, pois influenciam gerações de economistas e estadistas liberais e, mais recentemente, neoliberais226 e desenvolvimentistas, de certo modo227. 226 Merecem destaque, até por terem sido citados, os economistas John Law, que é responsável pela criação do “sistema bancário” e das primeiras formas de “mercado de ações”. Stuart Mill, por incorporar o princípio filosófico do utilitarismo à economia, e Jean Baptiste Say, responsável por um dos arranjos teóricos mais utilizados na economia liberal, que diz que, para que haja demanda efetiva, é necessária uma oferta prévia, ou, como se lê na crítica keynesiana à Lei de Say, a oferta cria sua própria demanda e demanda por outros produtos. 227 Em Marx e a Decadência Ideológica da Burguesia, texto que compõe a coletânea Marxismo e Teoria da Literatura (São Paulo: Expressão Popular, 2009), Lukács afirma que Smith e Ricardo buscaram desvendar a realidade de sua época. Contudo, no que se assistiu após 1848, foi a conversão dos economistas burgueses à defesa da ordem, buscando justificá-la, sobretudo. Com isso, abandona-se a descoberta da realidade. Na resenha da edição brasileira, Sartori aponta: “Com isso, o autor húngaro mostra como, com a passagem da burguesia à posição defensiva diante do proletariado, há uma mudança qualitativa na ideologia burguesa: para o autor, antes de 1848, houve a economia clássica, a democracia e a busca de uma compreensão da história; depois, disso, mas principalmente depois da repressão brutal da Comuna de Paris, aparecem, não autores honestos como Smith e Ricardo, mas a economia vulgar, não a democracia, mas o liberalismo e, por fim, não a busca de uma compreensão das origens históricas da sociedade capitalista, mas a procura pela justificativa das relações sociais existentes. Isso é chamado por Lukács de “decadência ideológica da burguesia” – enquanto a burguesia tivesse tido um papel 141 Ainda entre os pioneiros da Economia Política Clássica, encontramos as formulações do inglês Alfred Marshall (1842 – 1924), líder da escola neoclássica de Cambridge. Marshall aprimora Smith e Ricardo, tornando mais práticos seus conceitos, inclusive o da mão invisível. Em Princípios de Economia, sua obra de 1890, enaltece a autorregulação do mercado, como resume a estudiosa de seu pensamento, Joan Robinson (1982 apud SECURATO, 2007): As forças do mercado distribuíam os recursos da melhor maneira possível entre os diversos usos alternativos. Daí o conceito de distribuição de renda baseado na justiça natural. Isto é, a contribuição dos trabalhadores para a produção se refletiria nos salários, enquanto que a contribuição do capital para a produção estaria nos lucros. Isso seria justo, direito e natural 228. Diferentemente de Ricardo, Marshall é mais voltado à empiria. Utiliza recorrentemente a matemática nos modos em que explica os fenômenos que problematiza, abandonando a dedução do primeiro. Por isso mesmo, atribui-se a Marshall a utilização dos métodos matemáticos/analíticos na Economia moderna. Importante contribuição para a Ciência Econômica foi sua síntese conciliadora das duas teorias que se antagonizavam em seu tempo: a da economia política clássica e a da escola marginalista. Para a primeira, o valor se define pelo custo do trabalho, isto é, [o valor] se agrega ao trabalho durante o processo produtivo, já, para a segunda, o valor se define em conformidade com a utilidade que a mercadoria produzida encerra para o consumidor, ou seja, define-se por sua utilidade marginal. Para superar esse impasse, Marshall admite a variável tempo na definição do valor. O tempo — períodos longos ou períodos curtos — permite determinar tanto os custos de produção quanto a utilidade (marginal) na formação do valor das mercadorias. Mas a importância de Marshall não se restringe à sua matemática econômica. O diferencial de sua produção está no caráter social que tenta imprimir a ela. Aparentemente um contrassenso, o matemático Marshall utilizava a teoria econômica para problematizar as questões sociais de seu tempo e tentar respondê-las à luz da economia. A pobreza, o papel da mulher no trabalho, dentre outros temas sociais, podem ser encontrados em sua obra. progressista, teria consigo um ímpeto honesto no sentido de se perceber dos nexos reais presentes na sociedade existente, mesmo que, como disse Marx acerca de Ricardo, isso possa ter beirado o “cinismo”. No entanto, segundo Lukács, quando a burguesia já se confronta com o proletariado no seio da sociedade civil burguesa já consolidada, para a burguesia, perceber-se dos nexos presentes na sociedade capitalista é ver-se como uma força já destituída de um ímpeto efetivamente revolucionário e progressista. Nisso, o autor húngaro aponta uma relação entre os fenômenos ideológicos, dentre eles a arte e a literatura, e o desenvolvimento das contradições da sociedade civil-burguesa. E a questão se liga, inclusive, ao realismo, na medida em que, na época, se deixa de lado a busca do reflexo adequado da realidade e, segundo Lukács, “paralelamente a este desprezo pelos fatos históricos, pelas forças reais motrizes da história, surge uma tendência à mistificação”. 228 SECURATO, José Cláudio. Ob. Cit., 2007, e citação extraída de Marshall – Princípios de economia. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Coleção Pensadores Econômicos). 142 Contudo, essa inovação não o fez admitir um caminho estatizante ou socializador dos meios de produção como alternativa ao enfrentamento da “questão social”. Antes, sua humanização da economia é uma forma de ratificar ainda mais a autorregulação promovida pelo predomínio do mercado, ainda que admita a interferência estatal para além das áreas de atuação fundamentais arroladas por Adam Smith. Para Marshall a degradante condição de pobreza, contraditoriamente ancorada na produção e concentração da riqueza, pode ser atenuada com o aprimoramento do sistema de livre mercado, com apoio de medidas estatais e de associativismo civil como sindicatos e movimentos sociais destinados a este fim. As ideias de Marshall pareceram tomar maior vulto ante as de Smith e Ricardo e ressoam mais tarde em alguns de seus destacados alunos, como Keynes, Pigou ou Joan Robinson. Desse modo, a Ciência Econômica de cariz liberal passa não só a ter novos interlocutores como também a flertar com outras referências teóricas e metodológicas. Nessa abertura, o austríaco Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) admite a influência de Karl Marx e de Leon Walras229 em seus estudos econômicos. Atacando veementemente o primeiro, porém convergindo com ele na “predição” do fim do capitalismo e seguindo os passos do segundo, sobretudo em seus raciocínios matemáticos, Schumpeter vai da economia ao direito e do direito à sociologia. Uma de suas obras principais, no campo da Economia, Teoria do Desenvolvimento Econômico, de 1911, aborda questões como: 229 Leon Walras foi um economista francês, nascido em 1834 e falecido em 1910. Conhecido no âmbito da teoria econômica pelos importantes contributos que deixou na análise do conceito de utilidade marginal e do equilíbrio geral de uma economia. A forte utilização da matemática em seus estudos foi um traço marcante de Walras, fato que o tornou conhecido, juntamente com Vilfredo Pareto, como fundador da escola matemática da Economia. Walras é também considerado um marginalista, na medida em que utilizou e desenvolveu em seus estudos o conceito de utilidade marginal, como fonte do valor dos bens e serviços de uma economia. No entanto, aquele que é considerado como principal contributo de Walras para a ciência econômica é o seu trabalho nivela respeito da teoria do equilíbrio geral, ou seja, da forma como determinada economia, na qual existe uma multiplicidade de bens, pode atingir o equilíbrio geral. Embora não totalmente coroado de sucesso, os estudos de Walras, nesse nível, partiram da criação de um sistema de equações simultâneas, em que o número de equações era igual ao de variáveis desconhecidas. Resolvido o sistema, obter-se-ia os valores das quantidades e preços de equilíbrio. A determinação individual da quantidade e do preço foi um dos contributos do raciocínio de Walras. Sua principal obra foi Élements d'Économie Politique Pure, publicada em 1903, e que contém versão simplificada dos seus estudos realizados anteriormente (na última década do século XIX). (In: Infopédia [Em linha]. Portugal, Porto: Porto Editora, 2003-2012. Disponível em: < www.infopedia.pt/$leon-walras>. Acesso em:> 22 ago. 2012). 143 O estudo de um modelo econômico estacionário, fundamentado em um fluxo circular da vida econômica; o “empreendedorismo” na figura do empresário inovador e analisando a relação entre a inovação e a criação de novos mercados; a distinção entre crescimento e desenvolvimento; a importância do crédito no crescimento econômico idealizando o moderno banco de desenvolvimento; a relativização do crédito ao consumidor como elemento essencial ao processo econômico; a impossibilidade da transmissão “genética” do espírito empreendedor; a discussão da teoria do juro, relacionando esse fenômeno com o processo de desenvolvimento e tratou, por fim, dos ciclos econômicos, isto é, dos períodos de prosperidade e recessão econômica, comuns no processo de desenvolvimento capitalista. (SECURATO, 2007, p. 3839)230. A influência de Walras talvez tenha incidido sobre Schumpeter mais do que se tem registro. A recorrência aos recursos matemáticos fez com que ele se referisse ao desenvolvimento do capitalismo sempre com o uso de métodos e instrumentos lógicos, racionais e pragmáticos. Com o sucesso disso, torna-se um dos fundadores da Sociedade de Econometria, e torna-se seu presidente de 1937 a 1941 (Id., ibid.). A formação liberal de Schumpeter o acompanha em suas elaborações teóricas, de modo que mantém viva a doutrina da não interferência do Estado na economia. Isso o leva, inclusive, a polemizar com seu contemporâneo Keynes, quando propõe que, diante da Grande Depressão, nada deveria ser feito, isto é, a depressão seguiria seu próprio curso, até exaurir-se (GALBRAITH, 1989)231. Schumpeter foge da ortodoxia econômica liberal de sua época criticando a escola clássica do século XVIII e adotando em seus estudos sobre o desenvolvimento capitalista uma espécie de evolucionismo. Para isso, dedica-se a pensar também o socialismo e a democracia, o que inevitavelmente o leva a fazer considerações sobre o Estado. Tece, desse modo, detalhes sobre suas funções, além de dizer que o Estado não deve interferir no mercado, máxima já apregoada por seus antecessores e parte de seus contemporâneos liberais. Na primeira parte do seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia, de 1942, constrói crítica irônica e ambígua sobre a doutrina marxista. Dedica-se a destruir o marxismo como programa teórico-científico, lançando-o ao campo das profissões de fé e do panfletarismo: 230 SECURATO, José Cláudio. Ob. Cit., 2007. É importante lembrar que Keynes, como veremos mais adiante, foi o propositor da intervenção estatal na economia como forma de postergar a crise. (In: GALBRAITH, J. K. O pensamento econômico em perspectiva: uma história crítica. São Paulo: Pioneira; Editora da USP, 1989). 231 144 Uma conquista puramente científica, mesmo que fosse muito mais perfeita que a de Marx, nunca teria alcançado tal imortalidade no sentido histórico. Tampouco bastaria seu arsenal de palavras de ordem partidárias. Parte de seu êxito, se bem que muito pequena, pode, na verdade, ser atribuída à grande quantidade de frases candentes, acusações apaixonadas e gesticulações coléricas que, prontas para serem usadas em qualquer palanque, ele [Marx] colocou à disposição de seu rebanho. (SCHUMPETER, 1984, p. 21)232. Mas admite, ao mesmo tempo, que em Marx estariam presentes fundamentos importantes do desenvolvimento capitalista, cuja centralidade da explicitação de seus motivadores econômicos não reduz tais fundamentos à economia, mas, antes, os contextualiza nela de modo a entender a maneira como os grupos e classes sociais explicavam para si mesmos sua própria existência, localização e comportamento, atingindo, assim, as esferas das religiões, a metafisica, as escolas de arte, as ideias éticas, os desejos políticos, etc. (Id.). Refere. (...) a explicação do papel e do mecanismo dos motivos não econômicos e a análise da forma pela qual a realidade social se reflete nas psiques individuais são um elemento essencial da teoria [marxista]233 e uma de suas contribuições mais significativas. (Id., ibid., p. 27). Alguns autores chegam, inclusive, a afirmar certa afinidade metodológica entre eles, como é o caso de José de Jesús Rodrígues Vargas que, em sua tese de doutoramento, identifica ao menos cinco similaridades entre os dois autores, afirmando: Existe una afinidad tan cercana de Schumpeter con Marx que alguno piensan que es proclive al marxismo o al socialismo. Schumpeter toma de Marx la metodología y asume principios teóricos que lo llevan a sacar conclusiones similares; puede ser muy fácil para los investigadores académicos que parten de Schumpeter deslizarse a la fuente principal, a Marx para poder entender mejor el desarrollo capitalista, en caso de que no teman ser señalados de marxistas; los “evolucionistas” de hoy son schumpeterianos pero también recurren a Marx; mientras que los marxistas, en general, son más reacios a retomar a Schumpeter, además de las trabas ideológicas y dogmáticas, puede creerse que algunas teorías schumpeterianas están mejor explicadas en la teoría original, la marxista. (VARGAS, 2005)234. 232 SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984. 233 Grifo nosso. 234 VARGAS, José de Jesús Rodríguez. La nueva fase de desarrollo económico y social del capitalismo mundial. Tese (Doutorado)- División de Estudios de Posgrado, Facultad de Economía, Universidad Nacional Autónoma de México. (ISBN: 94-689-5228-1). Disponível em: <http://www.eumed.net/tesis/jjrv/>. 145 E prossegue: Un segundo punto de coincidencia es sobre el desarrollo capitalista basado en la acumulación, con perturbaciones e interrupciones, que tiende al equilibrio y desequilibrio, es decir, la recurrencia de los ciclos. Económicos (...) La tercera, es que la competencia capitalista es parte esencial para ambos autores. Para Marx es el “fuego” que anima al capitalismo (decía que es “el motor esencial de la economía burguesa”), es una lucha incesante y de aniquilación, mientras que Schumpeter, ve la competencia como la “destrucción creadora” de las empresas, es el “dato de hecho esencial”, “en ella consiste en definitiva el capitalismo y toda empresa capitalista tiene que amoldarse a ella para vivir” (...) Una cuarta, es respecto al cambio tecnológico -la nueva maquinaria o el mejoramiento y reemplazo del capital fijo- es básico para Marx en la comprensión de los ciclos industriales y en el progreso capitalista, en tanto para el austriaco, es la innovación -por cierto, normalmente se usa como “innovación tecnológica” o cambio tecnológico, aunque no se refiere únicamente a la técnica- el “impulso fundamental que pone y mantiene en movimiento a la máquina capitalista” (...) En ambos existe una teoría de los ciclos, basada en la observación y racionalización de la realidad, lo que muestra una apreciación teórica e histórica muy creíble del proceso histórico del capitalismo y del mecanismo interno esencial. (Id., ibid.). E conclui: Una última coincidencia es que la teoría siendo una abstracción, una generalidad, es fundamental para la comprensión de los fenómenos. Los economistas del siglo XIX todos compartían el mismo método y en general, también posiciones parecidas con respecto al ciclo. (Id., ibid.)235. Semelhanças ou diferenças à parte, o fato é que Schumpeter atribui um papel protagônico para a burguesia na transformação da sociedade, por suas ações inovadoras (inovação é uma categoria constante em Schumpeter), na fase de ascensão do capitalismo, na sua evolução para o capitalismo monopolista e no seu próprio ocaso. Uma das interpretações mais utilizadas do evolucionismo schumpeteriano, notadamente propalada pelos neoschumpeterianos, é aquela que refere que o espírito empreendedor ou inovador se transfere do burguês para os trabalhadores das empresas e o empreendimento passa de individualizado a socializado. Com essa alteração, o eixo estruturante do capitalismo, a propriedade privada, se esvazia em razão e sentido. Um novo tipo de controle estatal no sistema econômico emerge atenuando a liberdade de contrato entre particulares, aqui sim bem diferente de Marx. 235 VARGAS, José de Jesús Rodríguez. Ob. Cit. 146 Colocado em outros termos, a escola schumpeteriana verifica que, no capitalismo, há um processo evolutivo de inovação e de destruição criadora, marcado por uma instabilidade imanente. A inovação tecnológica, impulsionada pela criatividade do empresário, partindo do modelo estacionário, é fulcro da estabilidade econômica quando ainda é recente, contudo, depois de absorvidas pela sociedade, essas mesmas inovações estimulam o processo recessivo. Uma concertação entre Estado e mercado é aceita mais pelos neoschumpeterianos do que por ele próprio, mas, no final, convergem na existência de um paradigma que, baseado na interferência do Estado, a limita e controla racionalmente, e desse paradigma uma crise se lhe advém, após esse suposto caos: a revolução e a emergência de um novo paradigma236. Nesse sentido, Schumpeter apresenta sua conclusão sobre uma nova lógica social, que deixa em aberto ser ou não o socialismo tal qual formulado pelos autores socialistas clássicos: (...) o capitalismo, embora economicamente estável, e mesmo adquirindo estabilidade, cria, ao racionalizar a mente humana, uma mentalidade e um estilo de vida incompatíveis com suas próprias condições, motivos e instituições sociais fundamentais, e se transformará, ainda que não por necessidade econômica e mesmo provavelmente com algum sacrifício do bem-estar econômico, numa ordem de coisas que será ou não chamada de Socialismo, dependendo de uma simples questão de gosto e terminologia. (SCHUMPETER apud CARNEIRO, 2003, p. 87)237. Essa afirmação torna evidente que suas preocupações são mais econômicas do que políticas, na medida em que marginaliza a necessidade de uma elaboração mais contundente sobre as demais instâncias que compõem uma ordem societária como a ideologia, a política, a cultura, etc. 238 que, inevitavelmente, nos levam saber se essa nova ordem pode ou não ser chamada de socialista. Mas essa marginalização é só aparente, pois a Democracia, como a manifestação política de um modelo econômico, é objeto de estudo que se materializa em seu livro de 1942 e de lá podemos realizar inferências sobre o que pensa Schumpeter do Estado. Enquanto o tradicionalismo científico em torno das questões do Estado sugere um caminho intelectual que leva à problematização do Estado na sua conformação abstrata e posteriormente material, em primeira instância, e o tratamento de suas formas políticas como os regimes políticos que lhe preenchem de modo secundário, Schumpeter realiza um processo inverso. Ele trata da Democracia e suas características e expressões materiais fundantes para daí sugerir as funções e o papel do Estado. 236 Aqui se faz analogia direta ao conceito de paradigma de Thomas Khun e a revolução é referida apenas no sentido de transformação radical das estruturas de um sistema econômico posto. 237 CARNEIRO, Ricardo. Os clássicos da economia. v. 2, São Paulo: Ática, 2003. A citação completa pode se encontrada também no Economic Journal, v. 38, 1928, p. 386, sob o título A Instabilidade do Capitalismo. 238 Exemplo da presença de categorias não econômicas, no legado de Schumpeter, é seu conhecido artigo Ciência e Ideologia. 147 Mas isso não é uma opção de método, em primeira análise, é antes um posicionamento teórico-político que entende ser o regime (neste caso, a Democracia) definidor do Estado e não o contrário. Sob suas aspirações liberais, evidencia os limites da Democracia em ato análogo aos limites do próprio Estado. Tanto que o esclarecedor excerto que aqui segue é retirado do subcapítulo de Capitalismo, Socialismo e Democracia, que trata justamente das “condições para o êxito do método democrático” e nos evidencia que sua concepção de Estado limita este ao pragmatismo técnico da execução das diretrizes e vontades emanadas do povo medidas pelas instituições democráticas: Mais uma vez, a condição em questão pode certamente ser satisfeita por uma limitação correspondente das atividades do Estado. Mas seria um equivoco sério do leitor pensar que tal limitação esteja necessariamente implícita. A democracia não exige que qualquer função do Estado esteja sujeita a seu método político. Por exemplo, na maioria dos países democráticos garante-se aos juízes grande medida de independência em relação aos órgãos políticos. Outro exemplo é a posição do Banco da Inglaterra até 1914. Algumas de suas funções eram, de fato, de natureza pública. Não obstante, essas funções eram atribuídas ao que legalmente era apenas uma empresa de negócios, suficientemente independente do setor político para ter uma política própria. Certos órgãos federais nos Estados Unidos também servem de exemplo. A Comissão de Comércio Interestadual incorpora uma tentativa de estender a esfera da autoridade pública sem estender a da decisão política. Ou, para apresentar ainda outro exemplo, alguns Estados norte-americanos financiam universidades estaduais “sem quaisquer controles”, o que quer dizer, sem interferir, o que em certos casos significa uma autonomia praticamente completa. Assim, pode-se fazer entrar quase qualquer tipo de negócio humano na esfera do Estado sem que se torne parte do material da competição pela liderança política, ou seja, aquele ponto além do qual implica passar a medida que garante o poder e estabelece o órgão que deve tê-lo, bem como o contato implícito no papel governamental de supervisor geral. É claro que essa supervisão pode degenerar em influência viciosa. O poder do político de designar os funcionários dos órgãos públicos não políticos, se usado sem consciência, frequentemente será suficiente para corrompê-los. Mas isso não afeta o principio em questão. (SCHUMPETER, 1984, p. 364)239. O regime democrático, seja ele presidencialista ou parlamentarista republicano ou monárquico, na acepção das linhas gerais dos pensadores do século XVIII, tem como pressuposto fundamental a realização do bem comum alcançado pela execução das aspirações do “povo”. Para isso, se faz necessária a existência de cidadãos, dentre os populares, ou não, que recebem a delegação de representar e executar essa vontade-geral. Segundo a análise de Schumpeter, essa dinâmica confere, às assembleias, câmaras, ou aos parlamentos, um sentido técnico de existência, pois mesmo que seus componentes possam 239 SCHUMPETER, Joseph Alois. Ob. Cit., 1984. 148 ter pontos de vista individualmente diferentes, no final deve prevalecer o que interessa à vontade-geral, ao bem comum e o governo, do mesmo modo, submete-se a pôr em prática o desejo coletivo. A filosofia da democracia do século XVIII pode ser enunciada na seguinte definição: o método democrático é o arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo. (Id., ibid., p. 313)240. Schumpeter inicia por discordar desses princípios afirmando a existência inequívoca deles, mas questionando sua factibilidade: Afirma-se, então, que existe o Bem Comum, o farol óbvio da política, que é sempre simples de definir e que qualquer pessoa normal pode ver através da argumentação racional. Não há, portanto, qualquer desculpa para não vê-lo, e na verdade qualquer explicação para a presença de pessoas que não o veem, exceto a ignorância — que pode ser removida —, a estupidez e o interesse anti social (...) Quando aceitamos todas as suposições feitas por essa teoria da política, ou nela implícitas, a democracia, na verdade, adquire significado perfeitamente inequívoco, e não há qualquer problema com ela, exceto o de como leva-la a efeito. (Id., ibid.). Enumera um conjunto de razões pelas quais a doutrina democrática clássica não se realiza plenamente. Primeiro, assevera que a existência do bem comum se ancora num sistema de valores que deve ser aceito por todos, na sociedade, para que, a partir dele, se determinem os parâmetros do que será considerado bom ou ruim e isso consiste já numa primeira dificuldade. Mesmo que se convencionem os parâmetros de bem ou mal, bom ou ruim, ainda assim há divergências no modo como esses valores devem ser alcançados. Não obstante todos terem que se unir em torno da manutenção e possível ampliação do bom e da extinção do ruim. 240 Id., ibid. 149 Além disso, esse bem comum implica respostas definidas a todas as perguntas, de modo que todo fato social e toda medida tomada ou a ser tomada podem, inequivocamente, ser classificadas como “boas” ou “ruins”. Todas as pessoas têm, portanto, de concordar, ao menos em principio, em que há também um Bem Comum do povo (= vontade de todos os indivíduos razoáveis), exatamente coincidente com o bem, ou interesse, ou bem-estar, ou felicidade comuns. A única coisa, excetuando-se a estupidez ou os interesses sinistros, que possivelmente pode trazer discordância e responder pela presença de uma oposição é uma diferença de opinião quanto à velocidade em que o objetivo, ele mesmo comum a quase todos, deve ser alcançado. Assim, todos os membros da comunidade, conscientes de tal objetivo, conhecendo seu próprio pensamento, discernindo o que é bom do que é ruim, tomam parte, ativa e responsavelmente, na ampliação do primeiro e na luta contra o segundo, e todos os membros assumem juntos o controle dos negócios públicos. (Id., ibid., p. 313). Mas Schumpeter não para aí nesse primeiro argumento. Refere que, para o sucesso das convenções sociais que os cidadãos estabeleceram, ainda que representados, estes deveriam ter plena consciência de seus atos e opiniões e possuir um onisciente repertório de informações sobre todos os assuntos da vida social. Ademais, admite que o processo que faz formar as opiniões individuais ou coletivas é entrecortado e está sujeito a muitas variáveis, dentre as quais aquelas de cunho não racional, o que pode pôr em risco, de fato, o caráter de vontade geral das decisões tomadas241. Esse caráter só será confirmado com o passar do tempo. Em primeiro lugar, não existe algo que seja um bem comum unicamente determinado, sobre o qual todas as pessoas concorrem ou sejam levadas a concordar através de argumentos racionais. Isso se deve, basicamente, não ao fato de algumas pessoas poderem desejar coisas diferentes do bem comum, mas ao fato muito mais fundamental de que, para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum está fadado a significar diferentes coisas. Esse fato, oculto ao utilitarista pela estreiteza da visão que ele tinha do mundo das valorações humanas, introduzirá brechas em questões de princípios, que não podem ser reconciliadas através de argumentos racionais, pois os valores supremos — nossas concepções do que devem ser a vida e a sociedade — estão além do alcance da simples lógica. Em alguns casos, tais brechas podem ser transpostas por compromissos; em outros, não (...). Mesmo que um bem comum suficientemente definido — tal como, por exemplo, o máximo utilitarista de satisfação econômica — se mostrasse aceitável para todos, isso não implicaria respostas igualmente definidas para as questões isoladas. (Id., ibid., p. 314). Também considerou a complexidade das sociedades contemporâneas como um fator de óbice à realização da democracia de postulados clássicos. Em sociedades rudimentares, 241 Schumpeter não era entusiasta do assembleísmo ou das multidões. O irracionalismo humano, para ele, aumenta na proporção em que a própria população aumenta. 150 primitivas e homogêneas, ela teria mais chance de sucesso, sobretudo, por possibilitar o acesso à informação construída na vida cotidiana, próxima aos indivíduos. Há padrões sociais em que a doutrina clássica realmente se adapta aos fatos com um grau de aproximação suficiente. Como já se disse, é o caso de muitas sociedades pequenas e primitivas que, na realidade, serviram como protótipos aos autores de tal doutrina. Pode ser o caso de sociedades que não sejam primitivas, desde que não sejam muito diferenciadas e que não abriguem problemas sérios. A Suíça é o melhor exemplo. Há bem pouco sobre o que brigar num mundo de camponeses onde, excetuando-se bancos e hotéis, não existe qualquer indústria capitalista e onde os problemas da política pública são tão simples e tão estáveis que se pode esperar que uma esmagadora maioria os compreenda e chegue a um acordo sobre eles. Mas, se podemos concluir que em tais casos a doutrina clássica se aproxima da realidade, temos de acrescentar imediatamente que isso ocorre não porque ela descreva um mecanismo efetivo de decisão política, mas apenas porque não há grandes decisões a se tomar (Id., ibid., p. 334). Schumpeter simplifica a democracia tratando-a como método e não como conjunto de princípios. Alguns denominam esse pensamento de democracia procedimental. Atribui a si mesmo a formulação de respostas aos impasses que a doutrina clássica levanta, quando confere centralidade aos procedimentos operativos da democracia: (...) o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população (...) [Assim] 242 dispomos de um critério razoavelmente eficiente pelo qual podemos distinguir os governos democráticos de outros (...) Estamos agora em posição um pouco melhor, em parte porque resolvemos chamar a atenção para um modus procedendi cuja presença ou ausência é, na maioria dos casos, fácil de verificar. (Id., ibid., p. 336-337). Descartando qualquer possibilidade de cumprimento dessa vontade geral, que, para Schumpeter, é um ideal e não realidade, o autor assevera que a teoria clássica dá créditos às iniciativas dos cidadãos, sintetizados num sujeito coletivo bem maior do que eles de fato podem arcar, não obstante ignorar a diferença inconciliável de perfis: uns são líderes outros não; há disputas para se tornar representante do povo no âmbito da política, que nada mais são do que disputas pelo poder; e, enfim, toda sorte de contingências que tornam as relações sociais imperfeitas e improváveis243. 242 Grifo nosso. Schumpeter afirma: “É verdade que a administração de alguns desses negócios exige aptidões e técnicas especiais, e portanto deve ser confiada a especialistas que as têm. Mas isso não afeta o princípio, pois esses especialistas simplesmente agem de maneira a realizar a vontade do povo, exatamente como o médico age de maneira a realizar a vontade do paciente de ficar são. É também verdade que, numa 243 151 (...) a teoria incorporada nessa definição nos dá todo o espaço necessário para um adequado reconhecimento do fato vital da liderança. A teoria clássica não fazia isso; como vimos, atribuía ao eleitorado um grau completamente irrealista de iniciativa, que praticamente significava ignorar a liderança. Mas os coletivos agem quase que exclusivamente através da aceitação da liderança — esse é o mecanismo dominante em praticamente qualquer ação coletiva que seja mais que um reflexo. As proposições sobre o funcionamento e os resultados do método democrático que levam isso em conta são infinitamente mais realistas do que as que não o fazem. Não se deterão na execução de uma volonté générale, mas caminharão no sentido de mostrar como ela emerge ou como é substituída ou falseada. O que chamamos de Vontade Manufaturada não é mais externa à teoria, uma aberração a cuja ausência erguemos nossas preces piedosas; ela entra na própria teoria. (Id., ibid., p. 337-338). Ou seja, em última análise, o limite da democracia é estabelecido pela capacidade do povo aceitar ou não quem governa. Esse pragmatismo schumpeteriano também atingiu as instituições políticas. O partido, por exemplo, se transforma num meio para o exercício de poder, em que sua programática ideopolítica não é o que o define, mas sim as regras do jogo que disputa para alcançar esse poder. O partido é, assim, um representante do que Schumpeter denominou de liderança competitiva. O Estado e sua administração são meros desdobramentos dessa disputa. Pois todos os partidos, é claro, em algum momento farão um estoque de princípios ou plataformas; e esses princípios ou plataformas podem ser tão característicos do partido que os adote e tão importantes para seu sucesso quanto o são as marcas dos produtos vendidos por determinada loja. Mas a loja não pode ser definida em termos de suas marcas e um partido não pode ser definido em termos de seus princípios. Um partido é um grupo cujos membros se propõem agir combinadamente na luta competitiva pelo poder politico. Se não fosse assim, seria impossível que diferentes partidos adotassem exatamente ou quase exatamente o mesmo programa. (Id., ibid., p. 353). Schumpeter aproxima-se de Marx na predição do fim do capitalismo, ainda que não se arrisque a alcunhar a sociedade, que se coloca como alternativa, de socialista. Contudo, rende-se adotando mesmo o socialismo como a designação que emprega, pois necessita de um referencial ideopolítico e metodológico para elaborar suas teses. Mas é mesmo sobre a Democracia e não o tipo de Estado – ainda que possamos retirar elementos para essa definição no programa teórico de Schumpter — que ele se detém como comunidade de qualquer tamanho, especialmente se apresenta o fenômeno da divisão do trabalho, seria altamente inconveniente para cada cidadão isolado ter de entrar em contato com todos os outros cidadãos sobre todos os assuntos a fim de fazer sua parte no governo ou administração. Será mais conveniente reservar apenas as decisões mais importantes para o pronunciamento dos cidadãos isolados — digamos, por referendo — e tratar do resto através de uma comissão apontada por eles — uma assembleia ou parlamento cujos membros serão selecionados por voto popular” (Ob. Cit.). 152 forma de blindar seu pragmatismo. Para ele, a Democracia apresenta elementos invariáveis que a tornam aderente a vários tipos de Estado. Estabelece esse raciocínio para demonstrar sua viabilidade, como possibilidade e não como exigência, também no socialismo244. A Democracia, como método, conteria, em qualquer contexto: a) Material humano: “as pessoas que dirigem as máquinas partidárias (...) eleitas para o parlamento (...) de qualidade suficientemente alta” (...) disponíveis para a vocação política, que se proponham para eleição; (Id., ibid., p. 361). b) Limitação do alcance efetivo das decisões: o alcance depende não apenas, por exemplo, do tipo e da quantidade de questões que podem ser manejadas corretamente por um governo sujeito à tensão da luta incessante por sua vida política; depende também, em qualquer espaço e tempo dados, da qualidade dos homens que formam tal governo e do tipo de máquina política e do padrão de opinião pública com que eles têm de trabalhar (Id.,ibid., p.363); c) Burocracia eficiente e racional: o governo democrático deve dispor dos serviços de uma burocracia bem treinada e de boa posição e tradição, dotada de forte senso de dever e de não menos forte espirit de corps (...). Ela também deve ser suficientemente forte para guiar e, se necessário, instruir os políticos que encabeçam os ministérios. Ela deve ser um poder em si mesma (Id., ibid., p. 365); d) Autocontrole democrático: tudo que interessa aqui é que a prática democrática bem-sucedida em sociedades grandes e complicadas tem invariavelmente se rebelado contra a ‘direção política pelo banco de trás’ — a ponto de recorrer à diplomacia secreta e a mentir sobre intenções e compromissos —, o que requer do cidadão um bocado de autocontrole para evitar (Id., ibid., p. 366); e) Respeito às diferenças e tolerância: “a concorrência efetiva pela liderança exige grande dose de tolerância quanto às diferenças de opinião (...) o que significa a disposição de subordinar suas próprias opiniões”. (Id., ibid., p. 367). 244 Schumpeter refere-se, deste modo, à aderência física da democracia: “Se um físico observa que o mesmo mecanismo funciona diferentemente em diferentes tempos e lugares, conclui que seu funcionamento depende de condições que lhe são estranhas. Só podemos chegar à mesma conclusão. E é tão fácil ver quais são essas condições quanto foi ver quais eram as condições sob as quais se podia esperar que a doutrina clássica da democracia se adaptasse, de maneira aceitável, à realidade. Essa conclusão nos compromete definitivamente com aquela visão estritamente relativista que vem sendo indicada todo o tempo. Exatamente como não há qualquer argumentação favorável ou contrária ao socialismo para todos os tempos e lugares, não há qualquer argumento absolutamente geral que seja favorável ou contrário ao método democrático”. (Ob. Cit., p. 361). 153 Em síntese, Schumpeter refuta a teoria clássica do século XVIII, mas demonstra que, com suas alterações pragmáticas, o método democrático tende a ser bem-sucedido, mesmo nos seus muitos limites. Nota-se, na construção do pensamento liberal, nítido deslocamento das questões conceituais do Estado e da sociedade para as questões econômicas, mais notadamente da política econômica capitalista, evidenciando de modo crescente a supremacia do mercado em detrimento da autonomia (relativa ou interdependente) do Estado. Em resumo, verificamos que a tradição liberal, mas também seus antagonistas apresentam imensa heterogeneidade, desde o modo como se estruturam os pensamentos até as maneiras de implementá-los. Nota-se, ainda, que há uma interdependência entre as instâncias ideológicas, políticas, sociais e culturais encontradas nos processos de reprodução da vida social, fatalmente referenciadas no modo de produção — portanto, na produção mesma — que levam a instância econômica a determinar não apenas o conjunto dessas relações imbricadas, como as formas que assumem os Estados e as classes. Mas essa é uma conclusão possível, apenas, após a análise dos conteúdos internos, tanto da tradição marxista quanto do pensamento liberal. Em linhas gerais, a tradição liberal tende a negar a interdependência entre as instâncias da vida social que citamos, sobretudo, a relação sinérgica entre economia e política. Como vimos em vários de seus pensadores, a política, e, nela, o Estado, tem suas funções reduzidas à missão de organizar os indivíduos atomizados. Isto é, ainda que o Estado, no plano político, possa exercer um conjunto de atividades que podem aumentar ou diminuir, conforme a conjuntura dos interesses de quem lhe domina, o sentido dessas atividades é sempre buscado no fim último de organização asséptica dos indivíduos visando à acumulação. O modo capitalista, portanto, busca disseminar que não há uma correlação intrínseca nem entre as instâncias e nem com os indivíduos entre si e com essas mesmas instâncias. A única admissão dos indivíduos agregados como possível corpo social coletivo se dá pelas relações que estes estabelecem com o mercado, ou seja, as relações de troca, mercantis, reforçando o fetiche da mercadoria. A tradição marxista, por seu turno, com uma ampla distinção interna, responde à problemática, sempre por meio de articulação de categorias convocadas pelo pensamento, mas que repousam sob uma base material, e isso remete, na maioria das vezes, às relações classistas. “O fato de a divisão em classes ter seu fundamento na produção faz com que as lutas políticas tenham destino paralelo à importância que esse plano possui dentro da estrutura social capitalista” (SADER, 1993, p.111-112)245. 245 SADER, Emir. Estado e política em Marx. São Paulo: Cortez, 1993. 154 E como não se faz economia ou política desprovida de ideologia, é no plano ideológico que a burguesia, como se mostrou de Benjamin Constant a Shcumpeter, funda e propaga a separação das instâncias e dos indivíduos, perpetuando o fragmento; o marxismo, por sua vez, as agrega, na perspectiva da totalidade social. Portanto, fica evidenciado que, embora o debate sobre a problemática do Estado tenha ocupado lugar central nas formulações que levantamos, ela é apenas parte e expressão das lutas políticas que se travam na sociedade. “O Estado, como soma de todos os fenômenos políticos, ganha suas formas históricas das condições gerais das relações de produção na sociedade. Vale dizer, ele é função do grau de desenvolvimento das lutas de classe em cada formação social” (Id,, ibid.). As perspectivas de desenvolvimento dos Estados e das sociedades emergem também num campo de disputas mediadas pela concertação inevitável entre econômico e político, com ênfases históricas diferenciadas e afetas ora ao pragmatismo das estratégias de desenvolvimento ora aos rumos conceituais e filosóficos dos destinos das sociedades que evoluem. Deste modo, Estado – Desenvolvimento – Capitalismo fazem parte de um mesmo complexo tenso e contraditório. É o que passamos a tratar agora. 155 Capítulo II DESENVOLVIMENTO E CAPITALISMO: ESBOÇO DE INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA O trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. Karl Marx Como já esclarecido, o que discorremos no primeiro capítulo nos serviu como base para afirmar que, diante do corpo de argumentos que adotamos como recurso às nossas análises, não podemos conceber o Estado, qualquer que seja o fulcro de sustentação ideopolítica no campo da teoria social crítica, de modo dissociado das relações de produção que tipificam a formação social em que se assenta. Mais especificamente: o Estado capitalista é impensável fora das relações de tipo capitalista que se estabelecem em seu interior. Portanto, quando falamos em desenvolvimento capitalista tratamos também das transformações do Estado capitalista, em nível superestrutural, mesmo que as nuanças do desenvolvimento do Estado possam ser secundarizadas ante a prevalência das mudanças que ocorrem na estrutura socioeconômica da vida social. O que nos interessa é colocar em exame essa simetria e, em conformidade ao que nos revela a tradição marxista, argumentar que o desenvolvimento é condição de existência do capitalismo, o qual conta sempre com a participação do Estado, por vezes como coadjuvante, normalmente nas fases de estabilidade ou como protagonista, em especial, nos momentos de crise. Não obstante, a interferência estatal nos níveis de desenvolvimento capitalista, quando racionalmente planejada, com seus níveis de interveniência acima do que corriqueiramente se assiste, com abrangência em todas ou em quase todas as áreas de acumulação (de produção direta e/ou de capitais), com finalidades específicas previamente planejadas e, por fim, com apelos que constroem a adesão popular, de massas, são características que permitem a mutação do substantivo desenvolvimento para o adjetivo desenvolvimentismo. Este último, também uma necessidade imanente do capital, para garantir sua perpetuação como relação social246, mas que ocorre de forma episódica, sem se descolar de sua base estruturante. Não reside nessa ideia-força a originalidade de nossos argumentos. Ao contrário, mesmo um leitor iniciante, porém atento, de O Capital, verificará os meandros desse processo. 246 Esta é uma das muitas considerações capitais de Marx. Para ele, o “capital” não se confunde com o “dinheiro” ou um objeto simples, antes, o capital é uma relação social. Movimento que acontece no processo de mercantilização da vida, próprio do modo de produção capitalista. 156 A lógica é simples e pode ser assim resumida: ao desmistificar o sentido da mercadoria como forma elementar da produção capitalista, Marx demonstra que seu valor não é apenas determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, ainda que tenha nele (no tempo de trabalho) sua forma de valor originária, mas considera a variável trabalho humano na sua composição. Evidente que o dispêndio de força humana na produção não é alheio a essa mesma produção, contudo, há que se referenciar o contexto em que ela ocorre. Assim, o empreendimento do trabalho humano produz uma mercadoria socialmente útil, portanto, uma mercadoria que possui um valor de uso. No contexto em que essa mercadoria se insere, o das relações de produção capitalistas, ela apresenta utilidade não apenas para seu produtor – na maior parte dos casos não é mesmo para seu produtor –, mas sim para um terceiro que a adquirirá para seu consumo, logo, essa mercadoria traz consigo, além do valor de uso um valor de troca. É este que passa a prevalecer como forma dominante no capitalismo para a determinação da equivalência entre as mercadorias. A questão do intercâmbio simples de mercadorias estaria, com esse raciocínio, inauguralmente desvendada, caso não existissem mediações essenciais nesse processo que não podem ser ignoradas. Ou seja, a produção de mercadorias no capitalismo, ao carregar consigo a prevalência de seu valor de troca, em detrimento do valor de uso, pressupõe a mediação do dinheiro como modo de equivalência, ao mesmo tempo em que este tem, em si mesmo, a propriedade de engendrar-se dinheiro. Portanto, o dinheiro surge de modo já mitificado, como facilitador das relações de troca, mas serve ainda para saldar dívidas ou simplesmente ser guardado. A elucidação dessa contradição fundamental da mercadoria possibilitou que Marx avançasse na resolução de outro dilema. Como um investidor, ou simplesmente o dono dos meios de produção, pode receber mais do que investiu se há equivalência entre os valores estabelecidos nas trocas?247 É aí que Marx resgata a centralidade do trabalho humano para a produção de mercadorias248 e mostra como o dinheiro se converte em capital. Ou seja, o dono dos meios de produção (ou mesmo o burguês que investe), para ser o que é, não parte de um marco zero. Ser dono ou proprietário de máquinas, ou de dinheiro para investir, pressupõe a existência de uma reserva de dinheiro (ou de mercadorias excedentes que foram trocadas por dinheiro) prévia. 247 A objetividade e concretude da acumulação exponencialmente crescente saltavam aos olhos de Marx e de todos que viveram em sua época, considerando as enormes transformações na indústria e no comércio, ainda consequências da Revolução Industrial. 248 Para Marx, o trabalho humano não se resume à atividade mecânica de produção de mercadorias. É mais que isso. O trabalho é tratado ontologicamente por Marx como o processo que garante o metabolismo orgânico dos homens com a natureza. Esse processo é melhor trabalhado no item 2.1 desta tese. 157 Essa reserva anterior não apenas mantém as máquinas em funcionamento como paga o trabalho destinado à produção de novas mercadorias. Essas novas mercadorias têm de ser úteis para alguém, caso contrário não há justificativa para sua produção. Isso impõe a necessidade imediata da circulação dessas mercadorias, sob pena de o proprietário perder seu investimento. Portanto, o mais importante para o capitalista não é a produção (o trabalho concreto), mas sim a circulação, o que o leva a incutir maior valor no chamado trabalho abstrato, aquele que inclui todas as dimensões reificadas do processo produtivo. Com a venda de suas mercadorias, o proprietário recebe de volta não apenas o equivalente ao seu investimento, mas um adicional. Esse adicional pode ser entendido como resultado de seu trabalho no âmbito do gerenciamento da produção, da circulação e do consumo: a mais-valia. Isso é possível graças à existência de uma mercadoria particular, indispensável desse processo: a força de trabalho. A força de trabalho tem seu valor de troca definido de acordo com o tempo socialmente necessário para a produção das mercadorias, contudo, como essa mercadoria especial só se concretiza tanto por sua venda quanto pela expropriação dos modos e meios necessários para a consecução de suas tarefas, seu proprietário se faz livre para explorá-la ao máximo. Esse processo mostra que o capital aparece como algo que se autorreproduz, afinal, todos os proprietários terão como finalidade última extrair a mais-valia e os trabalhadores, por seu turno, a intenção de tornarem-se um dia proprietários249. Sob essa roda viva se sustenta a espoliação do trabalho, base para o desenvolvimento capitalista. Em outros termos: a extração da mais-valia como ideal no capitalismo leva ao aumento da produtividade e o aumento da produtividade só é possível com o desenvolvimento de tecnologias que renovem os meios de produção. Esse processo, por sua vez, só é possível com o aprimoramento do trabalho como meio de libertação do homem das suas formas primitivas de relação com a natureza. Implica, pois, todo esse processo, que o desenvolvimento está no cerne das contradições do modo de produção capitalista, pois é, ao mesmo tempo, condição para a manutenção das relações sociais a ele inerentes quanto para a criação das condições de sua superação. O primado do trabalho como mola propulsora do desenvolvimento capitalista é presente em toda a obra de Marx, resvalando em Engels e, de modo crítico, em Lênin, Gramsci, seguindo-se em vários outros marxistas, inclusive latino-americanos. Ou seja, a explicação marxista para o desenvolvimento capitalista não se reduz à exposição racional e crítica da mercadoria, porém encontra nela pressupostos fundamentais. 249 Também não discorreremos sobre a alienação do trabalho; fenômeno que caracteriza a subordinação do trabalho ao capital. Por hora, é importante notar que ela faz parte do processo a que nos referimos. Ver item 4.2.1. 158 Marx, em O Capital, ocupa-se em desmistificar os argumentos dos economistas burgueses que retiram do trabalho sua centralidade relativa ao desenvolvimento e o entendem como um processo afeto ao crescimento dos fatores de produção e da riqueza mensurável de um país. No Capítulo XXIII, A Lei Geral da Acumulação Capitalista, introduz, dizendo: “Não se alternando a composição do Capital, a procura da força de trabalho aumenta com a acumulação” (p. 712)250. Desse pressuposto, já constante desde o Livro I251, elabora um raciocínio que redunda em mostrar a contradição fundamental do modo capitalista, que consiste na expropriação crescente do trabalho, em paralelo ao crescimento dos níveis de acumulação e apropriação privada dos frutos desse mesmo trabalho, concluindo que a organicidade do desenvolvimento do capitalismo se funda no mito do próprio desenvolvimento, na medida em que este não apresenta condições objetivas de socializar os ganhos do trabalho com a classe que vive do trabalho. Ao demonstrar que, na dialética produção-reprodução social, as relações sociais que dali se contraem são sempre desfavoráveis aos trabalhadores e ao demonstrar também que essa dialética se sustenta em complexos amplos de alienação, a exposição marxista do desenvolvimento capitalista extrapola a predominância dos motivos econômicos e atinge a história como um dos níveis consequentes de sua racionalidade. De certo modo, encontraremos um evolucionismo relativo, na análise de Marx sobre o desenvolvimento capitalista, quando este se dedica a apresentar o crescimento das forças produtivas associado à luta de classes como mola propulsora da história responsável por substantivas transformações políticas que levam a sucessões de modos de produção e de formações sociais. Na introdução da Contribuição à Crítica da Economia Política, afirma: Em grandes traços, podem ser os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno designados como outras tantas épocas progressivas da formação da sociedade econômica (...) Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. (2008, p.48)252. 250 MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. II, Capítulo XXIII: A Lei Geral da Acumulação Capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. 251 No Livro I, encontramos o esclarecimento sobre o sentido e a razão histórica do trabalho para Marx nesta conhecida passagem: “Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças (...) Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza”. Esta formulação passa a ser o eixo fundante de toda lógica marxiana. 252 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução e introdução de Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 159 A abordagem de tipo evolucionista sugerida neste e em outros excertos, em especial no Manifesto de 1848, foi objeto de diversas considerações com destaque para aquelas formuladas no contexto da II e III Internacionais Comunistas, em atitude de cotejamento direto não apenas com O Capital, mas com obras de predominância historicista, como O 18 Brumário de Luís Bonaparte e As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, por exemplo. Na leitura que fazem dessas obras, os marxistas da II e alguns poucos da III Internacionais, reivindicam a linearidade da história como razão para o desenvolvimento da sociedade humana, a partir das inflexões evolutivas no âmbito das forças produtivas253. O mecanicismo decorrente dessas análises não encontra ressonância nem mesmo em Marx, pois, em seus estudos maduros, deixa evidente que, embora as transformações evolutivas no âmbito das relações de produção possam estar no cerne do desenvolvimento da sociedade humana, a passagem de uma formação social a outra não implica no desaparecimento unívoco de todas as características e relações socioprodutivas do modo anterior. Ainda que, de modo residual, o velho permanecerá presente no novo, contribuindo não apenas para sua caracterização como sociedade mais complexa, mas também como forma empírica de sustentação de novos tipos de conservadorismo. Lênin nos parece ser o marxista mais contundente na crítica ao determinismoevolucionista. Em Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, obra que já citamos, o revolucionário russo identifica as principais características de uma nova etapa do desenvolvimento capitalista que se anuncia marcada pelos altos níveis de concentração de capital possibilitada pelos monopólios. Sua crítica contundente ao mito do desenvolvimento capitalista vem quando assevera que a substituição do modo tradicional da economia calçada no tripé produção – distribuição – consumo cuja finalidade é a manutenção da livre concorrência pautada pela exportação de mercadorias pelo modo monopolista - imperialista sustentado na circulação de capital, agudiza a desigualdade nos modos de desenvolvimento entre as nações (e também no interior de uma mesma nação). Afirma: 253 Nesse sentido, consultar: HOBSBAWN, Eric J. História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 160 O que caracterizava o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre concorrência, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital. O capitalismo é a produção de mercadorias no grau superior do seu desenvolvimento, quando até a força de trabalho se transforma em mercadoria. O desenvolvimento da troca, tanto no interior como, em especial, no campo internacional, é um traço distintivo e característico do capitalismo. O desenvolvimento desigual, por saltos, das diferentes empresas e ramos da indústria e dos diferentes países é inevitável sob o capitalismo. (LÊNIN, 1979, p. 88)254. Assim, Lênin começa por explicitar não apenas a ideia força com a qual temos trabalhado desde o início de nossas argumentações de que o desenvolvimento é imanente ao capitalismo, como também evidencia a imanência da desigualdade nele. Vai mais além. Refere que a fase monopolista do imperialismo capitalista se traduz politicamente na partilha do mundo pelas grandes potências consolidando a dependência socioeconômica, política e cultural dos países da periferia capitalista255. Outros marxistas, como Gramsci e Trotski, também contribuíram com a crítica marxista do desenvolvimento capitalista. O primeiro, como também já vimos de modo panorâmico, ao (re)construir a categoria de revolução passiva evidencia como a transição de uma formação social para outra — analisando emblematicamente o caso italiano — se dá num efeito simbiótico entre as características do modo antigo com as do modo novo, isto é, uma relação entre revolução e restauração. Já o segundo, tratando das particularidades da Rússia czarista, que unia em si mesma setores industriais modernos e setores de baixo desenvolvimento de forças produtivas. Trotski identificou tal processo como uma espécie de desenvolvimento desigual e combinado 256 generalizável para países cujas condições históricas apresentassem as semelhanças fundamentais. As considerações de Lênin (1979) e as de Marx, expressas no livro III de O Capital, antecipam as fases posteriores do capitalismo que, em escala global, levará sua tendência 254 Grifos nossos. LÊNIN, Vladimir. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Rio de Janeiro: Globo, 1979. 255 Nesse sentido, Lênin refere: “Ao falar da política colonial da época do imperialismo capitalista, é necessário notar que o capital financeiro e a correspondente política internacional, que se traduz na luta das grandes potências pela partilha econômica e política do mundo, originam abundantes formas transitórias de dependência estatal. Para esta época são típicos não só os dois grupos fundamentais de países - os que possuem colônias e as colônias -, mas também as formas variadas de países dependentes que, dum ponto de vista formal, político, gozam de independência, mas que na realidade se encontram envolvidos nas malhas da dependência financeira e diplomática (...). Este gênero de relações entre grandes e pequenos Estados sempre existiu, mas na época do imperialismo capitalista tornam-se sistema geral, entram, como um elemento entre tantos outros, na formação do conjunto de relações que regem a “partilha do mundo”, passam a ser elos da cadeia de operações do capital financeiro mundial” (Ob. Cit., 1979). 256 TROTSKI, Leon. História da revolução russa. v. I. Rio de Janeiro: Saga, 1967. 161 expansiva às últimas consequências 257 . O modo financista em que aparece na contemporaneidade mantém o núcleo duro do desenvolvimento capitalista, qual seja, a expropriação, e não elimina suas contradições essenciais, gerando crises cíclicas e sistêmicas que requisitam o desenvolvimentismo como estratégia de restauração conservadora. Na dinâmica interna das relações sociais capitalistas, na sua face monopolistafinancista, em cotejamento com seu movimento global estrutural, residem especificidades históricas que nos permitem retomar a crítica ao desenvolvimento(ismo) tradicional e contemporâneo, como forma de desmistificar a desigualdade estrutural anunciada por Lênin, ancorada na livre circulação de capital. Assim, os complexos sociais fundamentais — Estado e Sociedade Civil — são convocados como categorias essenciais à elucidação das dinâmicas do desenvolvimento capitalista. 2.1 Estado e desenvolvimento De todos os campos da teoria social, o campo que se filia à tradição marxista, sem dúvida, é um dos mais fecundos em debates, quase sempre acalorados, sobre aspectos específicos ou gerais dos fenômenos sociais a que os intelectuais se propõem a analisar. Na década de 1950, ocorreu o conhecido debate internacional sobre a transição do feudalismo para o capitalismo258, em que tomaram parte Paul Sweezy, Maurice Dobb, H. K. Takahashi, Christopher Hill, Georges Lefebvre, A. Soboul e Giuliano Procacci 259 . Divergiam fundamentalmente sobre os condicionantes essenciais da transição que levara ao fim gradativo e processual do modo feudal de organização da produção. O ponto de convergência entre eles está no fato de admitirem que o capitalismo revoluciona não apenas as características fundamentais dos modos de produção que o antecedem, como também se faz acompanhar de um padrão de sociabilidade que se difunde de modo ágil e rápido. Portanto, ainda que não haja consenso sobre a “certidão de nascimento” do capitalismo, é inegável que, desde que esse modo de produção se torna dominante, não abandona mais suas inerentes estratégias de legitimação. Essas estratégias ganham espaço de formulação e são disseminadas na instituição dos Estados burgueses. No capitalismo tardio, em sua feição monopólica, as características genéricas ganham ainda mais força e tornam naturais para as massas, pela dominação que exercem a burguesia e o 257 Na América Latina, a crítica marxista ao desenvolvimento capitalista pode ser encontrada em vários autores, inclusive brasileiros, que vão desde os já citados Florestan Fernandes ou Celso Furtado; mas uma contundência maior deste tema é verificada em José Carlos Mariátegui e Ruy Mauro Marini. 258 Grifo nosso. 259 HOBSBAWM, Eric. Do feudalismo para o capitalismo. In: A transição do feudalismo para o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 162 Estado burguês, suas crises cíclicas alternadas pelos períodos de ondas longas expansivas, como demonstrara Mandel260. No período entre guerras, nos países de capitalismo avançado, a difusão desse modo de produção consolidou Estados sob o signo da democracia liberal de massas. Essa combinação entre a base material de sustentação do capital com o tipo de Estado que legitima vem sendo propalada como o último estágio possível de desenvolvimento da história humana261. No Brasil, desde os anos 1970 esse processo ideopolítico toma fôlego e se naturaliza não apenas no reformismo e contrarreformismo como também nas características particulares do desenvolvimento capitalista brasileiro como o patrimonialismo, o clientelismo, o fisiologismo político, o mandonismo local, dentre outras expressões do poder de classe burguês. Alvo de estudos, por parte de intelectuais dos mais variados campos do conhecimento, a democracia liberal de massas, expressão de um tipo particular de Estado burguês, tem ressaltado, em algumas produções, aquilo que parte dos autores identifica como sendo suas benesses. Por vezes, ignoram seus limites civilizatórios, quando não muito caem na armadilha do fim da história ou se rendem ao institucionalismo. Parte dessa guinada à direita deve-se – pelo menos no entendimento de nossa argumentação – ao abandono gradual de problematizações totalizadoras acerca do Estado capitalista tanto na ciência política quanto na prática política. Mas não entendamos esse abandono como um esvaziamento completo. Se é correto perceber que se abre tal lacuna, também pode ser correto observar que as tendências do conhecimento pós-moderno preenchem o vazio com incursões sobre aspectos particulares, imediatos e efêmeros sobre a democracia liberal e seus componentes constituintes. De um lado, nota-se uma adesão ao pragmatismo do funcionamento da máquina estatal, de modo a despolitizar o Estado e as relações sociais a ele inerentes, a exemplo das produções de Bresser Pereira sobre reforma do Estado quando ministro do Presidente FHC262, por outro lado, voltam-se as atenções à supremacia do mercado, isentando-o, falaciosamente, de relações 260 Essas “ondas” referem-se aos períodos em que o capitalismo se apoia na extraordinária evolução das forças produtivas, para ampliar sua concentração de modo desterritorializado. Nesse sentido, Mandel afirma: “Essa expansão (boom do pós-guerra) tinha dado um impulso poderoso a um novo avanço das forças produtivas, a uma nova revolução tecnológica. Propiciou um novo salto para a concentração de capitais e a internacionalização da produção, as forças produtivas ultrapassando cada vez mais os limites do Estado burguês nacional (tendência que começou a se manifestar desde o início do século, mas que se amplificou consideravelmente desde 1948)”. (In: MANDEL, E. A crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo: Ensaios, 1990. p.11-12). 261 As teses que anunciam o fim da História são um bom exemplo. A versão de Francis Fukuyama é o exemplo mais conhecido entre nós. 262 BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Crise econômica e reforma do estado no Brasil: para uma nova interpretação da América Latina. São Paulo: 34, 1996. Id. A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Cadernos do Mare n. 1, Brasília, 1997. Id. Um novo estado para América Latina. Novos Estudos, n. 50, São Paulo: Cebrap, março de 1998. Id. Reforma do estado e administração pública gerencial. 3. ed. Rio de Janeiro. Fundação Getulio Vargas, 1999. 163 com o Estado, tanto por parte dos liberais defensores do laissez-faire quanto dos críticos da mão invisível, sustentando as construções teóricas pós-modernas, como dissemos. Contudo, para nós, é no interior do Estado e da sociedade civil – aqueles que para Lukács são os dois complexos sociais fundamentais, em relação – que se evidenciam as sínteses da dinâmica social com precisão. Para Mészáros (1993), é no Estado “onde a super estrutura política e jurídica na rede de inter-relações dialéticas entre a base material de uma determinada sociedade e suas várias instituições e formas de consciência são localizadas”263. E tais formas não são alheias ao jogo que se estabelece entre as classes. Ao contrário. Poulantzas264 afirma que as classes consubstanciam no Estado uma condensação de relação de forças que condicionam a relação com a sociedade por meio do complexo produtivo (relações de produção), as instituições, a política e a ideologia. Desse modo, as análises, na perspectiva da totalidade social, são fundamentais para se entender o Estado e, com isso, compreender a sociedade e suas formas de organização, como, por exemplo, a democracia liberal de massas. É nesse sentido que Ianni (1989, p. 7) afirma: A análise do Estado é uma forma de conhecer a sociedade. Se é verdade que a sociedade funda o Estado, também é inegável que o Estado é constitutivo daquela. As forças sociais que predominam na sociedade, em dada época, podem não só influenciar a organização do Estado como incutir-lhe tendências que influenciam o jogo das forças sociais e o conjunto da sociedade265. 263 MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo: Ensaio, 1993. 264 POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. No geral, uma aproximação entre a concepção poulantziana de Estado como condensação de correlações de forças às formulações que dão destaque ao caráter opressor do Estado em defesa da propriedade privada como as de um Mészáros, ou mesmo de um Mandel, tende a ser vista, em um primeiro impacto, como a aproximação “impossível” ou, no melhor dos casos, “eclética”. Contudo, do ponto de vista daquilo que se observa na formatação dos Estados capitalistas pós-mundialização, vemos uma complexificação das relações que se estabelecem entre as frações da classe burguesa, e, deste modo, complexificam-se também as disputas entre os aparelhos privados de hegemonia na sociedade civil em um movimento simétrico, recíproco, simultâneo às disputas que ocorrem em nível superestrutural, não como simples reflexos, mas como parte constituinte dessas mesmas disputas, afinal, é no domínio da superestrutura que residem os elementos que garantem a permanência e continuidade da hegemonia burguesa, como o espraiamento de sua ideologia, por exemplo, ou no caso do “nacionalismo” como um componente imprescindível para o “desenvolvimentismo” voltado à acumulação, portanto, ao reforço do caráter opressor do Estado, todavia, um fenômeno de imanência relacional, pois o nacionalismo não pode ser entendido de modo descolado do processo de lutas que engendram a formação de Estados nacionais e suas classes. Por isso, a aproximação que efetuamos, com as devidas cautelas, não é um somatório linear, ao contrário, apenas reflete a busca das considerações essenciais no pensamento de cada autor que demonstram nada mais que a dialética e a contradição existente na realidade social tal qual ela é. Considerar de modo estanque tanto o Estado quanto a sociedade civil implica retirar os antagonismos e a dinâmica dialética da realidade. No caso do Serviço Social, uma análise com esses elementos se torna ainda mais complexa, na medida em que as políticas sociais são convocadas como um elemento mediativo essencial, na relação que se estabelece entre o Estado e as classes. No Capítulo 4 trataremos melhor desse assunto. 265 IANNI, Octavio. Estado e capitalismo. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 1989.. 164 É nesse caminho que os Estados contemporâneos se instituíram em suas características fundamentais, após a insurreição de 1789, resguardadas suas particularidades históricas (econômicas, políticas, culturais, ideológicas, etc.), e que vem provocando mudanças nas estruturas dos Estados burgueses até os dias atuais, e que nos serve para ratificar a construção engels-marxista que o aponta como transitório. Transitório na perspectiva da conquista de uma ordem societária alternativa à ordem do capital, mas permanente, caso nos referenciemos aos padrões burgueses que preconizam o desenvolvimento de suas sociedades de mercado. Assim, desenvolver-se é parte e condição de existência do Estado burguês. 2.1.1 Desenvolvimentismo no Brasil A palavra desenvolvimento, via de regra, está associada a processos evolutivos. O dicionário Caldas Aulete nos informa que desenvolvimento é a “ação ou resultado de desenvolver(se)”. Isso confere ao substantivo qualidade genérica que nos permite utilizá-lo referido a qualquer contexto em que uma evolução se apresente. Isto é, permite utilizar o vocábulo em inúmeras situações, mas todas elas referidas a processos e não a algo estanque. Por isso, o termo desenvolvimento carrega consigo a propriedade de adequar-se a qualquer processo da vida social, pois esta pressupõe um imanente evolver, ininterrupto. Com a sacralização do capitalismo, o termo desenvolvimento foi sendo identificado e associado cada vez mais com o contexto econômico da sociedade, de modo a levar o dicionário a incorporar um segundo significado à palavra: “crescimento global de um país ou região, acompanhado de melhoria das condições de vida da população”. É um sentido um pouco mais preciso, diante do componente genérico, embora intransponível, que é o desenvolvimento para o sistema de acumulação capitalista e dele não se dissocia; em suma, o desenvolvimento torna-se um conceito econômico e não apenas um componente do nosso léxico. Como conceito econômico, notamos que o dicionário não está se referindo ao crescimento global de um país ou região, acompanhado de melhoria das condições de vida da população de países ou regiões quaisquer. Refere-se, pois, a países que apresentam, no conjunto de suas forças produtivas, condições adequadas para superar um modo social de vida vigente considerado ultrapassado, e, pressionado pela evolução dessas forças e a luta de classes a ela inerente, tende a substituí-lo por novos padrões produtivos e novas relações sociais, configurando não apenas a evolução civilizatória que representa, mas também suas crises estrutural e cíclica. Deste modo, o termo desenvolvimento, associado à evolução social capitalista, apresenta a tendência dominante da hipertrofia de seus aspectos civilizatórios, escondendo a expropriação em que se baseia. Em níveis globais, justifica a barbárie no modo capitalista, mas, 165 em síntese, se refere sempre a fissuras consideráveis nos modos vigentes de organização da vida social. Para Ianni (1989, p. 97), trata-se de um processo de ruptura com o presente: Em alguns casos a ruptura é total, como ocorre nas nações que optam pelo desenvolvimento segundo o modo socialista de organização da produção. O socialismo consubstancia a teoria, o movimento de ideias, a concepção da história desta alternativa. Em essência, implica a negação plena do presente, isto é, do modo capitalista de produção, em sua forma colonial, semicolonial ou realizada. Em outros casos dá-se apenas uma interrupção ocasional, uma quebra transitória daquelas relações da nação consigo mesma e com o exterior266. Assim, podemos facilmente identificar a origem do desenvolvimento em ação como conceito generalizado e condição inerente à evolução humano-social, o que inevitavelmente nos leva ao desenvolvimentismo, nos marcos da revolução técnica e científica que marcou a transição do século XVIII para o XIX, conhecida como Revolução Industrial. A partir daí, a industrialização coloca-se como condição essencial para o desenvolvimento, sustentando as teses de autojustificativa e autorreprodução do capitalismo, amparadas por medidas estatais denominadas de desenvolvimentistas. A instituição do capitalismo como modo de produção dominante, ratificada pela industrialização e pelos ideais emergentes na insurreição burguesa, vem acompanhada de um corolário político e ideológico que coloca o desenvolvimentismo como elemento constituinte dos processos reprodutivos do capital e análogo ao desenvolvimento humano, portanto civilizatório, e que, como tal, deve ser almejado por todos. No limite, estamos falando do processo de acumulação de capital e as formas de sociabilidade que lhe dão legitimidade, fulcro do desenvolvimento (IANNI, 1989) nas suas formas históricas singulares — comercial, industrial, monopolista ou financista —, como demonstraremos nos itens 3.1 e 3.2. Por isso, não é de se estranhar que os dicionários não se furtem a circunscrever o sentido do desenvolvimento em geral – conjunto de melhorias que levam ao progresso e ao bem-estar social geral – ao desenvolvimento econômico. Desse modo, os problemas afetos ao desenvolvimento motivaram, desde sempre, economistas e cientistas sociais em especial, não apenas a constituírem-no como tema de interesse científico, como também a disputarem, na esfera política, as diferentes e divergentes teses e empreendimentos sobre o tema, como herança e consequência das análises que se fizeram desde os clássicos aos contemporâneos levantados aqui em todo o Capítulo I. No Brasil, adquiriram notoriedade ao tratar das questões afetas ao desenvolvimento (o subdesenvolvimento e o desenvolvimentismo) intelectuais como Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, 266 IANNI, Octávio. Ob. Cit., 1989. 166 Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini, etc., mas, sobretudo, Celso Furtado, em perspectivas bastante diferenciadas, o que torna o debate sobre a temática ricamente heterogêneo. Este último, chega a desenvolver, como núcleo duro de seu programa teórico, a tese de que o subdesenvolvimento é um fenômeno histórico singular, sustentado num mito que propaga a difusão generalizada do desenvolvimento como possibilidade e meta de uma racionalidade coletiva moderna. Para Furtado o desenvolvimento é um mito, pois, de um lado, os padrões capitalistas de produção e consumo em que se sustenta esgota as disponibilidades de recursos necessários à sobrevivência e, por outro, a maioria dos países da periferia capitalista é excluída dos benefícios do crescimento quando ele ocorre no centro (...) não se elevando de forma significativa com a industrialização (FURTADO, 1974)267. Contudo, isso não significa que Furtado tenha se omitido de pensar possibilidades para um desenvolvimento de tipo brasileiro, ou mesmo latino-americano. Passando em exame os momentos em que o Brasil apresenta ciclos desenvolvimentistas, veremos como esse intelectual se destaca por suas contribuições, que não se limitam ao campo das elaborações teóricas, alcançando mesmo a gestão pública e suas formas de materialização, na medida em que, mesmo crítico, propõe estratégias para o desenvolvimento daquelas que a Cepal considerou como nações de capitalismo periférico. Do subdesenvolvimento ao desenvolvimentismo – o desenvolvimento em ação – o que está em jogo é o conjunto de políticas que impulsionam o crescimento econômico com medidas de predominância estatal em conjunturas políticas adversas. Por isso mesmo, o epicentro do desenvolvimento capitalista reside na junção do desenvolvimento técnico-científico com a alteração que provoca, na esfera das relações socioculturais em dado momento histórico. Ciclicamente se repetindo em outros momentos, quando se apresentam essas mesmas condições, equivalendo a novos tipos de transformações socioculturais e econômicas. Além da industrialização, o desenvolvimentismo capitalista clássico admite, via de regra, um intervencionismo estatal orientado para o crescimento – quase sempre com investimentos em infraestrutura e medidas de ampliação do consumo -, e o nacionalismo. Portanto, a identidade do desenvolvimentismo está ontogeneticamente vinculada ao capitalismo, mas é na sua feição monopólica que mais se evidencia, pois se verifica em suas medidas uma espécie de concertação entre o Estado e o mercado, em seus processos particulares de reestruturação decorrente de suas crises cíclicas, que encontra, nesse mesmo capitalismo dos monopólios, condições adequadas tanto de propagação de seu corolário ideopolítico quanto das 267 FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. Uma tese diferente sobre a insustentabilidade do padrão capitalista de desenvolvimento também pode ser encontrada em: MÉSZÁROS, István. Produção destrutiva e estado capitalista. São Paulo: Ensaio, 1989. O autor discorre sobre o que chama de “desperdício catastrófico”. 167 formas de produção e reprodução social, capazes de parametrizar os mercados e os Estados268. Portanto, o desenvolvimento e as crises fazem parte de um mesmo insidioso esquema269. Em outros termos, se entendermos as crises estruturais como aquelas que causam rupturas no modo sistêmico de evolução do capitalismo, por vezes até alterando posições no jogo dos mercados mundiais, ou, como sintetizou Mészáros (2002): Crise estrutural (ou sistêmica) refere-se a uma condição que “afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada” (...) Põe em questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por algum complexo alternativo (...). Uma crise estrutural não está relacionada aos limites imediatos, mas aos limites últimos de uma estrutura global. E entendermos ainda que essas fissuras na ordem podem partir de funcionalidades (ou áreas) específicas do sistema e que, em efeito cascata, podem provocar a erosão de todo o complexo social em que se assenta, passaremos a compreender o desenvolvimentismo (materializado no arcabouço das medidas desenvolvimentistas), como um elemento intrínseco tanto das crises quanto das alternativas que se colocam à sua superação, pois, como enfatiza Ianni (1989, p. 97)270, o desenvolvimento nos moldes capitalistas é “apenas uma interrupção ocasional, uma quebra transitória daquelas relações da nação consigo mesma e com o exterior”, de natureza fundamentalmente econômicas. Contudo, não basta haver medidas de incremento à economia para provocar o desenvolvimentismo. Como aparato dos Estados de democracia liberal, é necessário que haja sua legitimação social. Portanto, por ser, o desenvolvimentismo, um processo que sustenta a ruptura com o passado nos dizeres de Ianni (1989), ele também é a “ideologia dessa ruptura parcial, frustrada, das nações que optam pelo desenvolvimento capitalista” e se associa a componentes ideopolíticos, de acordo com o que se lhe permite a conjuntura e a estrutura históricas. Nesse sentido, Ianni (1989, p. 98) refere: 268 O keynesianismo é o melhor exemplo, mas podemos citar também o advento do fordismo e a acumulação flexível como formas singulares de expressão do modo de produção capitalista, em suas fases monopolista e financista, que causaram mudanças, quando emergiram, nos padrões socioeconômicos vigentes, alterando o comportamento dos estados e dos mercados. 269 As crises cíclicas caracterizam-se também por apresentarem condições históricas de “reparo”. Isto é, diferem das crises estruturais, pois estas estão afetas ao impulso sociometabólico autodestrutivo do capital. Mandel tratou das crises cíclicas e Mészaros das crises estruturais. Desse modo, a leitura dos dois marxistas é recomendável. 270 IANNI, Octávio. Ob. Cit., 1989. 168 Implica uma concepção abstrata da história em que as contradições essenciais do sistema submergem nas soluções verbais da ideologia burguesa. A industrialização de tipo capitalista, como ocorre no Brasil, produziu-se com o desenvolvimentismo, que é seu ingrediente ideológico fundamental. Nacionalista ou associado ao capital externo, esse desenvolvimentismo faz parte da corrente de ideias característica dessa etapa de transição do sistema econômico-social nacional. No processo de conversão do capital agrícola, comercial e bancário em capital industrial, essa doutrina constitui-se como uma visão prospectiva da civilização industrial. Tradicionalmente, a doutrina Cepalina271 tem orientado o processo de desenvolvimento dos países que lhe são membros, ditando, sobretudo, as medidas necessárias para o empreendimento. Por isso, o desenvolvimentismo é praticamente um monopólio de seu léxico. No “dicionário” da Cepal, o desenvolvimentismo é associado e, por muitas vezes, confundido com algumas de suas medidas estruturais, que podem ou não estar associadas, ou implementadas em conjunto ou em separado, com a própria industrialização, o intervencionismo e protecionismo, o fomento estatal pela via da criação ou fortalecimento de empresas e bancos públicos, políticas expansionistas orientadas para o crescimento e incentivo ao consumo, aumento dos investimentos em infraestrutura, dentre outras medidas, galvanizadas ideopoliticamente pelo nacionalismo em suas muitas variações. Não é por acaso que essas medidas se confundem com o próprio desenvolvimentismo. Numa visão, ainda que panorâmica, pelas experiências desenvolvimentistas mundo afora, perceberemos que são medidas recorrentes, portanto, podem ser consideradas como célula mater do desenvolvimentismo. Como vimos, Octavio Ianni (1989) nos lembra que esse processo reveste-se de componentes ideológicos que sustentam sua autolegitimação – condição essencial para sua existência -, mas o autor também nos recorda que o papel do Estado é fundamental para que um governo possa ser considerado desenvolvimentista, pois não há desenvolvimentismo sem uma racionalidade configurada em forma de “política” que contemple as metas desejadas e espraie para toda a sociedade que o cumprimento dessas metas é algo análogo à conquista do bem-estar geral. 271 Refere-se à Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), órgão das Nações Unidas e responsável por “monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção e contribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as demais nações do mundo (...) Promover o desenvolvimento social e sustentável”. Funciona também como “centro de excelência, encarregado de colaborar com seus Estados-membros na análise integral dos processos de desenvolvimento. Esta missão inclui a formulação, seguimento e avaliação de políticas públicas e a prestação de serviços operativos nos campos da informação especializada, assessoramento, capacitação e apoio à cooperação e coordenação regional e internacional”. Disponível em: <http://www.eclac.org/brasil/>. Acesso em: 15 ago. 2012. 169 Desse modo, estes empreendimentos não preenchem apenas a agenda governamental, mas se tornam a razão de ser do próprio governo e de modo abstrato do próprio Estado. O autor lembra, por exemplo, que o Programa de Metas (1956-1960), da era Kubitschek, não apenas explicitava as medidas deliberadas do governo como florescia como “fenômeno ideológico”: Na ocasião em que foi posto em prática esse programa, desencadeou-se uma ampla campanha de formação e orientação da opinião pública, de modo a criarem-se as “expectativas e disposições” coletivas para a realização do esforço nacional destinado a implantar a indústria de base. Associa-se o progresso material com o bem estar coletivo, poupança, investimentos produtivos e elevação geral do nível de vida (Id., ibid., p. 99). Mas, no Brasil o refinamento político que une as estratégias do núcleo duro do desenvolvimentismo, com as ideologias burguesas que o sustentam, antecedem a conjuntura de Juscelino. 2.1.2 Momentos de síntese da acumulação capitalista: o desenvolvimentismo brasileiro Em nossa história, o desenvolvimento peculiar de nosso capitalismo, no contexto latinoamericano, sempre foi alvo de estudiosos de nossa sociologia quanto de nosso pensamento econômico, como reiteradas vezes afirmamos. Seja qual for a natureza da análise, a questão do desenvolvimento não se subtrai e por uma motivação simples: o desenvolvimento capitalista peculiar brasileiro carrega consigo a propriedade de constituir-se como eixo aglutinador do debate sobre nossa economia política apenas pela inevitabilidade das categorias que congrega. Não há um consenso sobre uma possível historiografia do pensamento econômico brasileiro com viés desenvolvimentista, ainda que possamos apontar alguns esforços, nesse sentido272; assim, optamos por evidenciar os momentos em que projetos de desenvolvimento são levados a cabo redirecionando a economia e inflexionando a política, o que denominamos momentos de síntese. Esses momentos, já muito estudados, colocam a produção socioeconômica -acadêmica - científica brasileira no rol das produções significativas sobre o desenvolvimento capitalista periférico superando o binômio desenvolvimento - subdesenvolvimento, ao evidenciar a miríade de possibilidades de concertação capitalista em sua evolução a partir de nossas particularidades. 272 Celso Furtado é responsável pelas primeiras aproximações rumo à construção de um pensamento econômico brasileiro. Contudo, na contemporaneidade, é possível considerar como análises historiográficas do desenvolvimento capitalista brasileiro, com destaque ao desenvolvimentismo, os trabalhos de SZMRECZANYI, Tamás; COELHO, Francisco da Silva (Orgs). Ensaios de história do pensamento econômico no Brasil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2007 e LOUREIRO, Maria Rita. 50 anos de ciência econômica no Brasil: pensamento, instituições e depoimentos. Petrópolis: Vozes, 1997. Ainda que tais autores não se entendam como “desenvolvimentistas”. 170 Da Colônia aos dias atuais, projetos econômicos tem balizado nosso desenvolvimento de maneiras diferenciadas. Optamos por elencar esses momentos e não empreender uma historicização – sem abrir mão do nível histórico da análise – para que possamos mais adiante verificar o processo de rupturas e continuidades que marca o momento presente. Nos momentos de síntese, estão arrolados os principais fatos e as ideias que lhes conferem lógica interna e história própria, o que nos permitirá, a partir do exame dos grupos e ambientes sociais em que são gestados, conferir importância ao produto sócio-histórico que dali emerge mediado pelos agentes e pelas instituições em relação. 2.1.2.1 Expressões inaugurais: protoformas No Brasil, a substituição de um padrão de desenvolvimento por outro, ancorada no que se evolui nas forças produtivas, é um componente que podemos perceber, ao passar em exame aquilo que os historiadores chamam de Movimentos de Rebeldia, já no período Colonial273. Ou, se tomarmos a defesa da industrialização, como mote principal desse desenvolvimento, encontraremos em Alberto de Seixas Martins Torres, o Alberto Torres (1865 – 1917), ou em Rui Barbosa de Oliveira, o Rui Barbosa (1849 – 1923), ideias precursoras de um desenvolvimentismo de tipo brasileiro (FONSECA, 2004)274 . Nas revoltas nativistas, ou nas revoltas emancipacionistas, dois elementos que se tornarão típicos do desenvolvimentismo brasileiro se destacam, embora, nas segundas, de uma forma mais acabada que nas primeiras: o nacionalismo e o liberalismo. O confronto entre as perspectivas de desenvolvimento que emergem nas revoltas emancipacionistas contra os comandos portugueses trouxe consigo a ideia da soberania nacional e, com isso, confrontaram o principal empecilho ao desenvolvimento imposto pelos portugueses: o avanço do trabalho livre. A incorporação do trabalho livre, bem como a 273 As lutas contra o controle monopólico da Coroa Portuguesa tinham a influência das insurreições libertacionistas internacionais, mas, no Brasil, foram acrescidas de componentes locais. A Revolta de Amador Bueno, em 1641, em São Paulo, é um marco no chamado movimento nativista, seguida depois da Guerra dos Emboabas, em Minas Gerais (1707 a 1709); da Revolta dos Mascates, em Pernambuco (1710 a 1711); e dos Motins do Maneta, na Bahia (em 1711, houve dois motins, um em outubro e outro em dezembro). Esses movimentos foram marcados por “reivindicações” muito pontuais contra a Coroa Portuguesa, mas já demonstram divergência de interesses no que tange às formas de exploração da riqueza brasileira ou, em outros termos, sobre o modo de produção colonial. Representam uma espécie de ruptura, mesmo parcial, da fração da classe dominante naquele momento histórico. Às revoltas nativistas, seguem os chamados Movimentos Emancipacionistas, que, ainda que fossem motivados por questões pontuais, trouxeram consigo ideais de libertação mais claros. Muitos deles já difundindo a existência de uma “identidade brasileira” incapaz de ser subjugada por Portugal. Destacam-se, a Conjuração Mineira, de 1789; a Conjuração Carioca, de 1794; a Conjuração Baiana, de 1798; a Conspiração dos Suaçunas, em 1801; e a Revolução Pernambucana; de 1817. (In: FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2003). 274 FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil. Revista Pesquisa & Debate, v. 15, n. 2 (26), p. 225-256, Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política. Departamento de Economia da PUC-SP, São Paulo, 2004. 171 superação dos modos absolutistas da Coroa Portuguesa implicava uma revisão nas regras do comércio e da exploração de riquezas, ainda que o abolicionismo não tenha sido tema consensual entre os liberais do Brasil Colônia e uma parte da mão de obra já não era exclusivamente escrava. O fato é que a emergência de um sentimento nacional legítimo surge pari passu com as reivindicações de um capitalismo mais moderno, pautado nos postulados liberais avançados que se assistiam em outros países. Esses postulados já pressupunham, além da industrialização (no caso brasileiro, se tratava de uma defesa da indústria), o intervencionismo estatal como seu meio indutor e o estabelecimento de relações mercantis internacionais de cunho expansionista. O mercado interno – industrial e agrícola – seria, nessa lógica, a força motriz de uma economia que deveria articular-se e não opor-se aos mercados complementares estrangeiros. Evidentemente que essas ideias, no Brasil, não se tornaram de pronto hegemônicas, contudo, os defensores da indústria de base 275 tinham no nacionalismo um potente álibi ideológico, que poderia ser fortalecido com o auxílio de um Estado mais liberal e menos absolutista. Dos industriais nacionalistas mais radicais aos mais moderados, a defesa da estruturação da indústria brasileira com o apoio do Estado relegara a segundo plano a política de mão de obra e as chamadas condições institucionais, que incluem “os processos sociais, políticos e culturais (...) essenciais à interpretação dos processos econômicos e, (...) os modos de apropriação, as estruturas de dominação, as relações de classe, o imperialismo e suas modalidades recentes” (IANNI, 1989, p. 11) 276 , entre outras, não são sequer mencionadas. Cipriano José Barata de Almeida (1762 – 1838), o Cipriano Barata, destaca-se como porta-voz desse nacionalismo liberal influenciando a imprensa e a política de sua época277 e inaugurando uma espécie de xenofobismo tupiniquim. Corroborando suas ideias, Manuel Alves Branco (1797 – 1855), então ministro da Fazenda implanta, em 1844, a considerada primeira medida protecionista brasileira. A Tarifa Alves Branco, como ficou conhecida a medida, aumentou as taxas de importação de uma série de produtos sem similares nacionais para 30% e os com similares nacionais para 60%, despertando a ira de fornecedores europeus, sobretudo os britânicos, e da decadente aristocracia brasileira, que passaria a pagar mais caro para ostentar seus bens importados. 275 Indústria de base é a que produz o material que sustenta outras indústrias ou empresas, que podem ser as próprias máquinas ou mesmo a matéria-prima. 276 Ianni está se referindo ao processo de expansão controlada das forças produtivas, em que o mercado impede a criação de uma espécie de capitalismo de Estado, de modo a favorecer que o intervencionismo estatal incida no aumento exponencial da acumulação de capital. Na era Kubistchek, isso é mais visível, contudo, no período a que estamos nos referindo, as características fundantes dessa dinâmica já estão dadas. 277 Neste sentido consultar: LEITE, Renato Lopes. Republicanos e libertários. Pensadores radicais no Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; e VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. 172 Na intenção de equilibrar a balança comercial, acaba por induzir a substituição de importações ao mesmo passo em que desperta um ciclo monopolista de industrialização aproveitado estrategicamente pelo barão de Mauá, como já nos é de conhecimento278. Em 1860, o governo cede à pressão externa e reduz as tarifas. Embora praticadas em outros países, essas medidas foram consideradas avançadas demais para a época, por alguns brasileiros, e, por isso, encontraram todo tipo de resistências. A principal delas vinha da burguesia agrária que, embora também fosse signatária do nacionalismo, não via nessas medidas a vocação para o desenvolvimento brasileiro independente. Ao contrário, se havia um setor que deveria funcionar como mola propulsora do desenvolvimento, este não era o industrial, mas sim o agrícola, verdadeira vocação de um país com tantas riquezas naturais como o Brasil. O setor primário encontrava sua defesa em Alberto Torres (1865-1917), Américo Werneck (1855-1927) e Eduardo Frieiro (1889 – 1982), só para citar os mais conhecidos. A marca do nacionalismo agrário consistia em enaltecer o setor primário como a vocação da economia brasileira, em associação a certo ufanismo que glorificava a natureza privilegiada do país. Assim, com base na ideia de vantagens comparativas 279, aconselhava-se a especialização primária devido ao fato de os recursos naturais serem fator abundante, enquanto a mão de obra e capital eram escassos. Américo Werneck, mineiro autor de diversas obras sobre temas econômicos publicadas principalmente na última década do século XIX, na mesma linha de Alves Branco, não via oposição entre agricultura e indústria, mas entendia que o governo deveria concentrar mais atenção na primeira, condenando o crescimento da época do Encilhamento280 como artificial e responsabilizando o protecionismo como causa da inflação (FONSECA, 2004, p.5)281. Fonseca refere ainda que, além de Werneck, Eduardo Frieiro negava a urbanização, o protecionismo e a inflação, aspectos que associava à sociedade industrial e que emergiam em 278 CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Grifo nosso. A teoria das vantagens comparativas foi formulada por David Ricardo (1772-1823) em seu livro The Principles of Polítical Economy and Taxation. Para ele, os países não precisam possuir iguais condições de produção para realizar transações no comércio internacional. Dois países podem beneficiar-se com o comércio, se cada um tiver uma vantagem relativa na produção. Ou seja, a razão da produtividade é determinante para o comércio e não os custos absolutos da produção. Os países exportarão os bens produzidos com o trabalho interno de modo relativamente eficiente e importarão bens produzidos pelo trabalho interno de modo relativamente ineficiente, ou seja, o padrão de produção é determinado pelas vantagens comparativas. 280 Grifo nosso. Encilhamento é como ficou conhecida a política econômica de marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente de nossa República, que visou “superar” a falta de dinheiro circulante no País com o incentivo à indústria e ampliação das formas de emissão de papel-moeda. O resultado não foi só apenas a colocação no mercado de muito mais papel-moeda do que o necessário, sob o lastro da dívida pública como também a desvalorização da moeda (mil réis) pelo surto inflacionário que criara. 281 FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil. Revista Pesquisa & Debate, v. 15, n. 2 (26), p. 225-256, Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política, Departamento de Economia da PUC-SP, São Paulo, 2004. 279 173 detrimento da humana vida do campo. Alberto Torres, por seu turno, se dedicava ao mesmo ufanismo, acusando o capital estrangeiro de “dilapidar o país e drenar suas riquezas” (Id., ibid.). Alberto Torres foi um dos ideólogos mais importantes a influenciar a geração nacionalista das décadas de 1920 e 1930, inclusive do Estado Novo, apesar de seu anti-industrialismo. Em momento em que os nacionalistas dividiam-se entre esquerda e direita em consonância à polaridade internacional entre comunismo e fascismo, ao mesmo tempo em que vários movimentos artísticos eclodiam, todos marcados por nacionalismos de diversos matizes – o Modernismo, a Antropofagia, o Pau-Brasil, o Anta -, Torres sempre perfilou-se ao lado mais conservador, embora repudiasse também o fascismo: qualquer receita para o Brasil não poderia vir de fora. Ufanista, enaltecia as matas virgens, as riquezas naturais e a superioridade da vida do campo, sugerindo que deveria “regressar o homem ao trabalho da produção – as indústrias da terra”, pois o “Brasil tem por destino evidente ser um país agrícola: toda a ação que tenta desviá-lo deste destino é um crime contra sua natureza e contra os interesses humanos”. (TORRES, 1938, p. 214 apud FONSECA, 2004, p. 6)282. Não demora muito para que os defensores do desenvolvimento pela via da industrialização encontrem uma alternativa para acomodar seus interesses com os da burguesia nacionalista agrária. Diante dos postulados da recém-proclamada República e dos desdobramentos da crise do Encilhamento é inevitável a acomodação das frações de classe que compunham o bloco no poder. Alguns [defensores da indústria] como Serzedelo Correa, general paraense e Ministro da Fazenda de Floriano Peixoto, mencionavam que o Brasil precisava romper sua situação colonial, própria dos países exclusivamente agrários. Como a maioria dos outros defensores da indústria, Correa não chegava a criticar a agricultura: defendia a complementaridade entre esta e as atividades industriais, não propunha a substituição de uma por outra (...) O grande vilão, objeto de críticas mais ásperas, era o comércio (FONSECA, 2004, p. 7)283. Mas Correa não é uma voz ressoante. Os defensores da indústria são muito mais pragmáticos, embora recorram também a um tipo de nacionalismo como suporte ideopolítico que não rejeita o capital estrangeiro, ao contrário, muitos deles propõe a associação dos capitais nacional e estrangeiro como forma de alavancar a indústria (Id.). 282 TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro. Introdução a um programa de organização nacional. São Paulo, 1938. 283 FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Ob. Cit., 2004 174 A maior parte dos defensores da indústria lamentava a omissão dos governos e propugnava maior intervencionismo, inclusive tarifas, mas julgava desaconselhável medidas radicais que pudessem prejudicar as relações com os grandes centros que, além de mercados consumidores, eram supridores tanto de bens de capital como de financiamento, todos realisticamente lembrados como indispensáveis à industrialização. (Id., ibid., p.8). Podemos perceber aqui certa diferença entre esses republicanos “defensores da indústria” e seus antecessores. As práticas do livre comércio e a lei das vantagens comparativas são criticadas, sem a menor chance de conciliação entre as teses. O intervencionismo estatal em defesa da indústria é admitido e defendido em instituições importantes como a Associação Industrial do Rio de Janeiro ou no Senado da República284. Criticam o xenofobismo indicando que o País deve aprender com as experiências de outros países. O pragmatismo desse grupo redunda também na defesa da revisão da política aduaneira e, de certa forma, limita suas aspirações ao aprimoramento da dinâmica e dos processos produtivos. Segundo Fonseca (2004, p.9), outro grupo é que demonstra preocupação com “o crédito, com o déficit público e com os empréstimos como elementos indispensáveis para alavancar a economia (...) e defendidos como política anticíclica, a la Keynes”. Estes são os chamados papelistas: Sua importância muitas vezes é negligenciada, pois os nacionalistas e defensores da indústria são muito mais citados. Todavia não se deve subestimar sua importância, pois os papelistas afrontavam um principio basilar da política econômica clássica: o das finanças sadias, materializado pelo equilíbrio orçamentário. Enquanto os intervencionistas discutiam quando e em que condições poderia ou não o Estado intervir na economia, recorrendo a argumentos doutrinários ou axiológicos (...) os papelistas rompiam em algo mais simples: na operacionalização da política econômica, trazendo a baila menos os fins últimos da ação estatal e mais a forma com que esta é executada. (Id., ibid., p. 9). Por isso, nas protoformas do desenvolvimentismo brasileiro, vamos encontrar um debate nada marginal sobre as diretrizes de conversibilidade da moeda, pois é na dinâmica da conversibilidade que reside o único ponto de consenso entre as várias correntes que pelejam pela condução do Brasil ao desenvolvimento: o equilíbrio das contas públicas285, mas é nela 284 Fonseca lembra do Manifesto da Associação Industrial do Rio de Janeiro, que cita os Estados Unidos como paradigma da convivência de um sistema protetor com o liberalismo de suas instituições, e lembra também do discurso de Amaro Cavalcanti no Senado, em 23 de julho de 1892, que recorre a autores clássicos como Adam Smith e Stuart Mill, mostrando que estes admitiam a intervenção governamental pró-crescimento. 285 Fonseca (2004, p. 9) lembra também que os papelistas tiveram atuação importante no debate que se fazia à época nas faculdades de Direito que polarizava “os jus-naturalistas, defensores do direito natural e 175 também que está a origem da contenda. Os papelistas enxergam dificuldades em se manter o padrão-ouro no Brasil, justamente por ser um País pouco monetarizado286. Souza Franco (ministro da década de 1850), o barão de Mauá, os viscondes de Cruzeiro e de Ouro Preto, João Alfredo e o conselheiro Lafaiete estão entre os papelistas mais destacados. Não radicalizam contra os padrões de conversibilidade da moeda, contudo, defendem flexibilidade no uso do ouro como âncora, aumentando um pouco seu lastro, o que difere, por exemplo, de Rui Barbosa, que negava qualquer regra de conversibilidade (FONSECA, 2004). Em síntese, o autor afirma: Para os metalistas, a prioridade da política econômica era a estabilização e a política cambial — e, portanto, a definição da taxa de câmbio —, seu epicentro. Defensores do padrão ouro, estabeleciam a relação entre política monetária e balanço de pagamentos: metais preciosos ingressariam naturalmente no país se a economia fosse saudável e qualquer oferta de moeda sem lastro causaria inflação. A política monetária deveria ser subordinada à política cambial. Via de regra os metalistas apoiavam-se nos grandes mestres da Economia Clássica, como Smith, Ricardo e Say. A taxa de juros era entendida como fenômeno real, a lá Ricardo, dependente da taxa de lucro. Maior oferta de moeda não alterava o nível de atividade (...). Já a preocupação maior dos papelistas, dos mais moderados aos mais radicais, era com o nível de atividade econômica. Sua pergunta mais frequente, qual o nível de oferta monetária mais condizente com o ânimo dos negócios, consistia verdadeira heresia para os metalistas. Mauá, um de seus primeiros defensores, defendia o que se convencionou denominar “requisito da elasticidade”: a oferta de moeda deveria ser flexível ou elástica a ponto de não interferir negativamente nas atividades produtivas. Menos teóricos e mais pragmáticos, apresentavam-se como coerentes com o bom senso: simplesmente o governo deveria ajudar, e não prejudicar a economia (FONSECA, 2004, p.12). Esse debate trata, na verdade, de uma disputa pelo deslocamento do epicentro que permite controlar o equilíbrio econômico. Para uns, a taxa de câmbio, para outros — os papelistas —, a taxa de juros. A baixa monetarização do Brasil, um País predominantemente agrícola com uma forte cultura de entesouramento dificulta a circulação da moeda, assim: de matriz liberal-iluminista e os positivistas” e que o orçamento equilibrado era, de fato, o único ponto de consenso entre eles. 286 O padrão-ouro é como ficou conhecido o sistema monetário que destacava a relação entre a moeda e os níveis de preço, obrigando os bancos a converter as notas bancárias por ele emitidas em ouro ou prata conforme o desejo de seus clientes. Isto é, a moeda passa a ser conversível, sendo referenciada nas reservas de ouro. 176 O crescimento tornava-se a variável central da economia, uma vez que a política cambial deveria subordinar-se à política monetária, e esta às necessidades impostas pela produção. Assim, a conversibilidade era vista como uma medida artificial, prejudicial ao ânimo dos negócios; o câmbio alto não deveria ser buscado por uma conversibilidade artificial, mas pela prosperidade da nação. Daí decorria que as dificuldades do balanço de pagamentos não deveriam ser enfrentadas com medidas restritivas, mas com mais crescimento. (Id., ibid., p.11). O autor reafirma que os papelistas, com as ideias aqui sumarizadas, representam um capítulo importante da história do desenvolvimentismo no Brasil. Em certa medida, antecipam o keynesianismo, mas são importantes também por (...) romper com princípios básicos da teoria econômica convencional, afrontando dogmas quase consensuais, como a conversibilidade e o papel passivo da política monetária (...) por inaugurar uma concepção de política econômica que a torna responsável pelo crescimento: o Estado poderia e deveria atuar como agente anticíclico. Quebrada esta primeira barreira, no desenvolvimentismo ia-se além: a tarefa era o crescimento de longo prazo, capaz de gerar mudanças estruturais de maior vulto e reverter os péssimos indicadores sociais: o desenvolvimento. Embora não se propusesse ainda medidas de envergadura próprias ao desenvolvimentismo do século 20, como empresas estatais e bancos de desenvolvimento, enfocava-se por primeira vez a produção como a variável essencial da economia, a razão de ser da política econômica, subordinando a ela as políticas monetárias, cambial e creditícia. Redefinir este papel do Estado, ampliando-o, era imprescindível para a emergência do desenvolvimentismo. (Id., ibid., p. 11). Todas as correntes — os nacionalistas, os defensores da indústria e os papelistas — voltam-se fundamentalmente para a economia, mas é na política que buscam pôr em prática suas ideias e ideais. Não há como ser diferente, pois mesmo os liberais mais radicais nunca abdicam totalmente do Estado como um agente que faz parte do jogo. Sendo assim, na esfera política, se dão as disputas entre os diferentes grupos, mas também entre protagonistas de um mesmo grupo, apresentando, deste modo, as variações internas que aqui, de modo muito breve, já apresentamos. Ocorre que a esfera política brasileira nem sempre foi do modo como a conhecemos hoje. E essas iniciativas inaugurais do desenvolvimentismo brasileiro encontram um ambiente político estruturado de uma forma que influenciará as estratégias de desenvolvimento que se sucedem, pois é responsável, ao mesmo tempo, por um dos maiores problemas que o desenvolvimento brasileiro terá de enfrentar: as desigualdades regionais. E isso não se dá apenas porque as regiões brasileiras desenvolveram-se de modo desigual, mas também porque nossa história construiu uma geopolítica desigual amparada, sobretudo na forte lógica estadualista presente na gênese da Republica e da Federação e, de 177 algum modo, como espólio de um Estado patrimonialista, a exemplo das Capitanias Hereditárias. É nesse sentido que Fonseca (2004) destaca a importância de uma quarta corrente de pensamento contida nas protoformas do desenvolvimentismo brasileiro: o positivismo. Segundo o autor, essa corrente manifesta sua hegemonia no Direito positivo. Isto é, predominando, na Primeira República, partidos estaduais, predominam também Constituições estaduais. Desse modo, os positivistas, mesmo com diferenças internas, conseguem manter relativa unidade ideológica na formatação dessas Constituições e de todo o direito delas decorrentes287. O positivismo político domina a cena nos grandes centros econômicos, como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, enquanto que, neste último, “através da liderança de Júlio de Castilhos, tornou-se ideologia oficial do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e da Constituição Republicana estadual” (Id., ibid.). Esta estabelecia a “ditadura científica” de Comte, com supremacia do Executivo, ao retirar do Legislativo — a Assembleia dos Representantes —, o direito de fazer leis, que caberia ao Presidente do Estado. Sua função, ao se reunir apenas dois meses por ano, era fiscalizar as contas públicas e garantir a moralidade da administração, com poderes sobre o orçamento, mas teoricamente, mais um órgão técnico que político. (Id., ibid., p. 13). Os positivistas, embora defendam como os liberais o direito de propriedade, o associam à análise das circunstâncias. Isto é, em determinadas situações, o Estado é autorizado a intervir em nome do bem comum. O exemplo típico é a estatização das estradas de ferro do Rio Grande do Sul, no governo de Borges de Medeiros. A justificativa é de que as empresas estrangeiras, além de cobrarem caro pelos serviços, não davam conta da manutenção e ampliação necessárias à malha ferroviária (Id., ibid.). São responsáveis, de certa forma, pela difusão da lógica de laicização do Estado, partindo do suposto de que cabe a este contribuir para o progresso de toda a sociedade administrando a educação e a evolução moral do povo e dando o melhor exemplo de lisura no trato da coisa pública, sobretudo, pelo princípio da impessoalidade. 287 O autor destaca como correntes internas do positivismo três vertentes: “O positivismo religioso (a ‘Religião da Humanidade’, apregoada por Comte ao final da vida, e que inspirou a criação de templos positivistas); o científico (apregoando as vantagens do método indutivo, a crítica à metafisica e a supremacia do saber científico sobre o religioso ou filosófico, com a criação de uma ciência social positiva — a Física Social); e o político, aconselhando regras para a boa administração das finanças e da política, o de maior influência no Brasil e na América Latina e, principalmente, na gênese do desenvolvimentismo” (FONSECA, 2004, p.13). Quando tratarmos da relação entre o Serviço Social e o desenvolvimentismo brasileiro, veremos que a influência dessa corrente para o estabelecimento e manutenção dessa relação não se deu de modo segregário às três vertentes. Ao contrário, o Serviço Social brasileiro fundamentou sua autojustificativa, em suas origens, no positivismo como um todo, unindo, através da propagação de princípios morais, o positivismo religioso, com o cientifico e o político. 178 Apesar de defensores do intervencionismo por razões pragmáticas, este estava limitado, na prática pelo preceito das “finanças sadias”. Conquanto se afastasse do laisses-faire, o positivismo frequentemente recorria a critérios éticos como regras para a “boa administração”. Os governantes não deveriam gastar mais do que arrecadassem, dando exemplo à sociedade. Da mesma forma, não deveriam se comprometer com empréstimos, a não ser em casos excepcionais, bem como deveriam ser extremamente cautelosos na concessão de crédito, pois poderiam privilegiar grupos específicos ou pessoas particulares, quebrando a regra da impessoalidade e neutralidade do Estado (id., p. 15). Como antes, permanece sendo a defesa do equilíbrio das contas o ponto de convergência entre os positivistas e os liberais que, de certa forma, utilizavam esse argumento na ofensiva contra os papelistas. O Rio Grande do Sul é citado por Fonseca (2004) como o caso emblemático da implementação do positivismo político ortodoxo associado ao que de outras correntes interessava à produção e ao “progresso”. Primeiro, a distinção, na esfera pública, entre público e privado, era o mote que justificava medidas que romperiam com qualquer indício do passado Imperial em que não se sabia exatamente onde terminava um e começava o outro, ao mesmo tempo, o pragmatismo dessa corrente admitia o intervencionismo, como já dissemos, mas limitado à austeridade que impunha racionalidades fiscal e tributária. Essa corrente dedicou-se também, do ponto de vista político, a pensar a gestão pública como reguladora de uma parte importante das relações capital - trabalho. Fica muito evidente a influência de Comte (neste caso, associada ao funcionalismo durkheimiano), nessa regulação expressa, sobretudo nas protoformas de uma legislação trabalhista, ainda que esta não fosse a intenção dos governos positivistas, como o governo gaúcho, por exemplo. Os positivistas reconheciam a “ordem capitalista” como geradora do abismo social brasileiro tal qual os positivistas europeus identificaram na Revolução Industrial a origem e a agudização das desigualdades. E tal qual seus similares europeus, viam no crescimento do liberalismo ortodoxo — que passa ao largo das desigualdades como problema coletivo e público, e para alguns sequer é um problema — as brechas para uma insurreição comunista. O governo gaúcho de Borges de Medeiros utiliza uma tática populista que será adotada por Vargas anos depois, quando recebe os grevistas da paralisação de 1917 e atende suas reivindicações no intuito de dar exemplo para a iniciativa privada. 179 Se o tratamento dispensado aos grevistas contrasta com a repressão violenta verificada em outros pontos do país, isto não significa que este tenha sido o comportamento do governo gaúcho em outras greves nem que houvesse uma predisposição do PRR para legislar sobre direitos trabalhistas, em busca de sua universalização. O servir de exemplo ao setor privado aponta justamente neste sentido: o Estado não deveria intervir diretamente na “questão social”, como ocorreu no Brasil a partir de 1930, mas lançar mão de instrumentos indiretos como a persuasão, para conscientizar e induzir os empresários a uma atuação que, em vez de fomentar os conflitos, procurasse uma harmonia entre capital e trabalho, em consonância as ideias de Comte e Saint-Simon (id., p. 16-17). O curioso é que a bancada do PRR na Câmara Federal posicionava-se contrária à regulamentação do trabalho, exceto para acidentes de trabalho, proteção às mulheres e “menores”. Essa bancada tinha como um de seus membros mais proeminentes Getúlio Vargas. Fonseca (2004) resume a importância do positivismo para a formação do desenvolvimentismo brasileiro, pois este: pragmaticamente ampliava a agenda do Estado, aceitando sua participação quando houvesse “necessidade social” — expressão ampla o suficiente para abranger o próprio desenvolvimento econômico e acolher suas principais propostas (...) por acenar a um futuro a ser buscado, com a história correndo a seu favor — daí progressista —, ao entendê-la como um processo evolutivo e conclamando os governantes para sua construção. Assim, mais que com ideias específicas, como o nacionalismo e a defesa da indústria, o positivismo contribuiu para algo mais sofisticado e definidor, que é uma mudança de postura dos governantes, pois supunha uma visão globalizante do processo histórico, a qual lhe dava um sentido (id., p. 17). Demonstra ainda, o autor, que o mesmo Vargas que na bancada federal de seu partido se posicionou contrário às concessões trabalhistas legislativas, muda a postura quando assume a presidência do Estado gaúcho, em 25 de janeiro de 1928, e promove habilidosamente uma concertação entre as “quatro correntes formadoras do desenvolvimentismo” 288 o que inevitavelmente implica também uma nova concertação das relações entre Estado, economia e sociedade (ibid.). Propalada a ideia de que a razão da existência de um país (ou de um estado, nesse país) é desenvolver-se, estabelecem-se, assim, as bases justificadoras do fortalecimento do Estado289. Torna-se legítima a primazia do Estado ante a economia e a sociedade. Primazia que, como se nota em alguns interregnos de nossa história, se confunde com autoritarismo e possibilita a manutenção de políticas econômicas de desenvolvimento, mas altera as bases 288 Os nacionalistas, os defensores da indústria, os papelistas e os positivistas. Vargas tentará outra articulação na esfera política, quando se colocará a Washington Luís como alternativa à contenda entre São Paulo e Minas Gerais, na disputa pela indicação à Presidência da República, mas não terá êxito. 289 180 políticas democráticas e organizativas do País, que é exatamente o que Vargas fará em seus dois governos como Presidente da República. Vargas, para acomodar interesses, dilui características das correntes ideopolíticas mantendo o que lhes era mais caro naquele momento ou levando-as a concessões. Consegue difundir o desenvolvimento como um objetivo maior e de responsabilidade de todos. Assim, inaugura um fenômeno novo com essa concertação (...) pois ao abandonar os princípios do orçamento equilibrado, da parcimônia com relação a crédito e a empréstimos e, inclusive, ao defender o aumento cada vez maior da presença do Estado na organização dos produtores e dos trabalhadores, fatalmente não se pode mais falar em positivismo. As regras moralistas do “conservar melhorando” e a evolução gradual do progresso vão sendo substituídas ou adaptadas para se conciliarem com o objetivo maior do desenvolvimento. Este vai se tornando um fim em si mesmo: esquecem-se os velhos dogmas em prol das exigências impostas pela “complexidade da vida social”: ou seja, precisavam-se nova ideias, pois se estava em nova época. O desenvolvimentismo, com isto, constrói sua imagem de modernidade e contemporaneidade, propondo-se inserido e à frente de seu tempo (...) (ibid., p. 17)290. Seu discurso é impregnado de mensagens subliminares, que inflam pelo otimismo no futuro e, ao mesmo tempo, agradam as correntes. Por exemplo, a substituição do progresso positivista pela ideia de “marcha pelo desenvolvimento” não desagrada aos positivistas, ao contrário, agrega ação ao seu sentido, o sentimento de que algo está acontecendo. Do mesmo modo, o recurso ao termo “civilizador” era um forte apelo que o credenciava a classificar como atrasado qualquer pensamento ou ação que impedisse a marcha. Com isso, metamorfoseiam-se o positivismo e o papelismo. A ortodoxia do segundo ancorada na ideia de “propugnar meio circulante para fomentar os negócios da lavoura” ou “estimular as contrações da produção resultantes dos ciclos econômicos” não são mais unívocas (id.). Antes, passam a compor o corolário do objetivo maior de todos que é o desenvolvimentismo, admitindo para isso o intervencionismo quase irrestrito do Estado. 290 Em mensagem à Assembleia de Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, em 1928, Vargas declara: “É preciso amparar a produção, estimular a indústria, desenvolver a circulação de riqueza, disseminar a instrução, cuidar do saneamento público rural e urbano, facilitar a exploração de terras, desenvolver a agricultura, melhorar a pecuária, desbravar o caminho para a marcha do Rio Grande do Sul, no sentido de sua finalidade civilizadora”. (VARGAS, 1928, apud FONSECA, 2004, p. 18). 181 A noção de uma política econômica heterodoxa, desvinculada das regras clássicas, justificava-se frente o objetivo maior do desenvolvimento, associando um instrumental de curto prazo para viabilizar o projeto de longo prazo (...) a superação do papelismo se dá com o próprio abandono do padrão ouro a partir da I Guerra e da crise de 1929. Como ser “papelista” sem existirem metalistas? A ortodoxia, em matéria de política econômica, recorrerá a outros argumentos para afirmar pontos como a neutralidade da moeda, a passividade da política monetária e as regras de equilíbrio orçamentário e de balanço de pagamentos. Os adversários serão outros. Polemizará, a partir daí com os desenvolvimentistas, como demostram os debates de Roberto Simonsen com Gudinn, a partir da década de 1940, ou mesmo a controvérsia sobre monetaristas e estruturalistas sobre inflação, nas décadas seguintes (id., p. 18). O discurso conciliatório de Vargas não deixava de dar a devida importância àquilo que ele considerava, na época, como essencial a uma política econômica desenvolvimentista: o crédito291. Não havia, não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil grandes defensores do padrão ouro como antigamente, sobretudo, em decorrência da crise que eclodiria em 1929, mas que já começava a mostrar sinais de aproximação. Com isso, Vargas fez o que popularmente pode ser ilustrado como “matar dois coelhos com um único golpe”: justificava o intervencionismo sustentado na heterodoxia econômica e favorecia o crédito como meio de superar os limites do crescimento: 291 Fonseca (2004) cita que, em 1927, Vargas escreve no Correio do Povo (3/12/1927, p. 2) o seguinte texto: “É um conceito vulgar que se impõe como um aforismo. Todo o desenvolvimento econômico deve ter por objetivo tomar a riqueza abundante pelo trabalho e ensinar o homem a usar essa riqueza pela cultura. Mas, se o dinheiro metálico é a medida dos valores, ele, no conceito corrente dos economistas, pela escassez de seu volume e pelas dificuldades de sua condição física, já não satisfaz à exigência do progresso econômico. Com a imposição da própria necessidade, surgiu um elemento imaterial destinado a atingir os limites da flexibilidade, que é o crédito. Ele se expressa por um estado de confiança e segurança econômica. A relação mercantil, diz um financista moderno, criou a operação sem dinheiro pela simples promessa de pagamento, que, por sua vez, se converte em riqueza, estimulando o trabalho e se transmutando em novos valores”. 182 Indo além do discurso, a importância do crédito e do papel do Estado no fomento à produção materializou-se com a criação do Banco do Estado do Rio Grande do Sul em 22 de junho de 1928 (...). Este deveria assumir o papel de estímulo às atividades produtivas, ter uma “organização mais ampla de um banco de Estado” 292 . Sua finalidade era “fazer a defesa de nossa produção, constituindo um propulsor da riqueza e do progresso” (id., p. 18). Operando uma lógica simples, a criação do banco estadual tem também efeito simbólico importante. Os bancos estaduais já estavam servindo em São Paulo, Minas Gerais e no Espírito Santo — para citar os mais importantes da época — como agentes financeiros fundamentais no apoio à oscilante produção, sobretudo a cafeeira. No Rio Grande do Sul, já nasce com o intuito de fomentar financeira e economicamente atividades produtivas diversas e ainda agir no mercado de capitais modestamente. Pela proposta do governo, o banco deveria contar com uma carteira hipotecária e uma carteira econômica. À carteira hipotecária caberia, dentre outras incumbências, conceder empréstimos aos produtores em prazo de até 30 anos, tendo como garantia suas propriedades, além de financiamentos de curto prazo de capital de giro, de armazenamento e venda da produção. Já a carteira econômica caberia realizar empréstimos sobre warrants 293 e sobre notas promissórias para agricultores, pecuaristas e municípios, além do próprio Estado (id., p. 19). As medidas arroladas vão se configurar mais tarde como de um núcleo duro do desenvolvimentismo, na sua fase de implantação nacional, com Vargas na Presidência da República. Muitos historiadores identificam uma associação de populismo e nacionalismo no 292 É a protoforma do que se poderia chamar de “banco de desenvolvimento”. Os bancos de desenvolvimento, tal qual os conhecemos hoje, serão aprimorados, no Brasil, após a implementação de medidas para estancar os efeitos da crise de 1929. A definição corrente de banco de desenvolvimento é: “Instituições financeiras controladas pelos governos estaduais, e têm como objetivo precípuo proporcionar o suprimento oportuno e adequado dos recursos necessários ao financiamento, a médio e a longo prazos, de programas e projetos que visem a promover o desenvolvimento econômico e social do respectivo Estado. As operações passivas são depósitos a prazo, empréstimos externos, emissão ou endosso de cédulas hipotecárias, emissão de cédulas pignoratícias de debêntures e de Títulos de Desenvolvimento Econômico. As operações ativas são empréstimos e financiamentos, dirigidos prioritariamente ao setor privado”. (Resolução CMN 394, de 1976). Disponível em: <www.bcb.gov.br/pre/composicao/bd.asp>. Acesso em: 31 ago. 2012. 293 Warrant, no mercado de capitais, é um título que garante ao seu titular o direito (não a obrigação) a comprar um determinado ativo, ao qual está subjacente, a um preço preestabelecido (preço de exercício, ou strike price) e numa data preestabelecida (data da maturidade). Ou seja, o warrant é um caso particular de opção. Trata-se, portanto, de uma garantia que permite exercer um direito conferido pelo warrant, uma opção não padronizada. O ativo subjacente pode ser ações, índices de ações, obrigações, taxa de câmbio ou futuros. O preço de exercício é o predeterminado. A data de maturidade (vencimento) é a data de exercício do direito de compra ou venda (de acordo com o tipo de warrant). No entanto, há tipos de warrants que permitem um exercício anterior à data da maturidade (warrants americanos).Warrant é uma palavra anglo-saxônica que significa razão, justificação, autoridade, prova, autorização legal, mandado de captura, garantia, penhor, ordem de pagamento, certificado ou diploma. Disponível em: <www.thinkfn.com/wikibolsa/Warrants>. Acesso em: 31 ago. 2012 . 183 discurso e na postura varguistas, já sentidos em sua atuação à frente do governo gaúcho, todavia, como já evidenciamos, o arranjo que promove entre distintas correntes ideopolíticas lhe confere um uso particular do sentido de populismo e de nacionalismo. A criação do banco gaúcho, por exemplo, mostra que embora (...) [a criação do Banco] 294 possa servir como símbolo de uma nova postura do Estado com relação a economia, não se pode associa-la a uma ideologia nacional radical. Ao contrário, a integralização de seu capital inicial contou com renegociação de empréstimos externos com a Compagnie Française du Port de Rio Grande do Sul de 67.933.000 francos (US$ 2,7 milhões de dólares) e de Labenburg, Thalmann & Cia Ltda, contraídos em 1921 e 1926, respectivamente de US$ 7,88 milhões e de US$ 20,5 milhões. Reafirmava-se o nacionalismo pragmático dos precursores da defesa da industrialização, o qual via de regra considerava como bem-vindo o capital estrangeiro que viesse colaborar para a realização do projeto (id., p. 19). A experiência gaúcha, embora não encontre muitas citações nos compêndios que tratam do desenvolvimentismo nacional pode, como fizemos, ser tomada como exemplo mais factível de como se foram criando condições para a evolução não só de um ideário, mas de políticas desenvolvimentistas, o que, num amplo exercício de generalização, pode demonstrar aspectos importantes do desenvolvimento do próprio capitalismo brasileiro. Nessa história também se encontram traços embrionários das experiências que se seguiram nos 50 anos seguintes, com o primeiro e o segundo governo de Vargas. Se sairmos da experiência gaúcha, é mais comum encontrarmos referências que tratam da transição do modelo agrário-exportador para o de industrialização, certificadas a partir da produção cafeeira concentrada no sudeste brasileiro, sua crise, o modelo de substituição das importações até chegarmos ao Estado Novo, e, somente a partir daí, o reconhecimento formal de grande parte dos historiadores do início de nossa história desenvolvimentista. Mas essa é muito mais uma escolha afeta à necessidade de recorte temporal do que necessariamente a negação de protoformas desenvolvimentistas, numa regressão maior de tempo, sem prejuízo do caráter relevante que a crise cafeeira e seus desdobramentos adquirem em nossa história. Para que possamos traçar um quadro mais geral, optamos por abordar ambos os tempos e processos. 294 Grifo nosso. 184 2.1.2.2 A crise do café A cafeicultura foi um dos pilares mais importantes de sustentação da economia brasileira, desde 1840295. A euforia em torno da produção desse produto levou a um caminho já conhecido dos capitalistas que ascendem quando se aquecem determinados mercados: produzir mais do que se pode vender. Dinâmica que acaba por demonstrar a fragilidade e os limites da Lei de Say. O Brasil, com a vastidão de suas terras — e a concentração nas mãos de poucos — tinha uma capacidade muito maior de produzir do que a dos compradores consumirem. A não expansão do mercado consumidor internacional (já que a produção estava quase inteiramente voltada para a exportação) leva não apenas à queda dos preços como também ao desequilíbrio no balanço de pagamentos. Como parte da solução do problema, uma articulação entre capitais — bancário, estrangeiro e agrícola — foi pensada. Isto é, os bancos estaduais ficavam autorizados a contrair empréstimos no exterior e comprar parte da produção excedente. Alguns autores, como Neto (2004) 296 , identificam esse momento como de incentivo à expansão e criação de bancos estaduais, como f ocorreu com os bancos de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Mas essa medida deu apenas um fôlego momentâneo à crise, que passou a se agravar com os impactos da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). A criação do Instituto do Café foi uma tentativa de apoiar com fomento e regulação a atividade cafeeira que não estancava seu declínio. Países como os Estados Unidos, França, Itália, Holanda e Alemanha, que representavam 84% do mercado consumidor de café brasileiro, diminuíram ou cancelaram suas compras, não apenas pela crise, mas pela qualidade do café brasileiro, que caía. Para se ter uma ideia, em 1929, os produtores brasileiros ainda estavam exportando a safra de 1927, enquanto que a safra de 1928 ficara estocada. Essa experiência demonstrava a todos que pudessem admitir, a irracionalidade da falta de planejamento com vistas a equilibrar oferta e demanda297. Se a situação brasileira fosse um caso isolado, provavelmente empréstimos estrangeiros dariam conta de sanar o caos, ainda que isso aumentasse nossa dependência. Mas esse não era o cenário mundial. Em outubro de 1929, ocorre uma das mais drásticas quedas nas Bolsas de Valores em Wall Street levando à bancarrota milhões de cidadãos americanos298. Com isso, o governo brasileiro tem recusado pelo governo norte-americano um empréstimo de US$ 50 milhões, valor para ser utilizado como apoio aos cafeicultores. A 295 No final do século XIX, o Brasil já era considerado o principal produtor d café, responsável por ¾ das exportações mundiais (SECURATO, 2007, p. 233). 296 NETO, Yttrio Corrêa da Costa. Bancos oficiais no Brasil: origem e aspectos de seu desenvolvimento. Brasília: Banco Central do Brasil, 2004. Disponível em: <www.bcb.gov.br/htms/public/BancosEstaduais/livros_bancos_oficiais.pdf>. Acesso em 31 ago. 2012. 297 Nesse sentido, pode-se consultar: FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2003. Em especial, a quinta parte: Economia de Transição para um Sistema Industrial. 298 O dia 24 de outubro de 1929 ficou conhecido como a quinta-feira negra. 185 alternativa veio de uma companhia privada, a Schroeder and Company, que concedeu empréstimo de US$ 10 milhões, ao Banco do Estado de São Paulo, para serem utilizados no Instituto do Café, como tentativa de estancar a crise dos fazendeiros paulistas. Paliativa, a medida não evita o colapso social que se segue. Há registros de todas as ordens de assassinatos, suicídios, extorsões, cometidos por burgueses em declínio repercutidos também nas classes trabalhadoras urbana e rural que só viam aumentar o desemprego e a pauperização299. Esse cenário econômico repercute no cenário político influenciando a política do cafécom-leite. De acordo com essa política, os estados de São Paulo e Minas Gerais se revezariam na indicação do Presidente da República, desde o Pacto de Ouro Fino, de 1912. Como o paulista Washington Luís era o presidente em exercício, o próximo seria o mineiro Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, contudo Luís insiste na indicação de seu afilhado político Júlio Prestes, num momento em que São Paulo não estava tão seguro em sua pujança econômica, com a crise, o que abre brecha para Getúlio Vargas, que até então parecia ser aliado de Luís, pois fora seu ministro da Fazenda até o final de 1927, quando deixa o governo para assumir a presidência do Estado do Rio Grande do Sul e se destacar na cena política nacional. Vargas decide concorrer à Presidência da República por uma aliança entre mineiros e gaúchos, que recebe o nome de Aliança Liberal. Em seu programa, a Aliança mantinha compromissos políticos e ideológicos com as oligarquias regionais e acenava também à classe média. Propunha um incentivo à produção nacional, que não se reduzisse ao cultivo do café e ,num rompante populista, confrontavam o descaso de Washington Luís com a “questão social”, afirmando que esta era um problema que deveria ser enfrentando pelo poder público e não pela polícia, como Luís afirmara em discurso recente. Ainda assim, a força da oligarquia cafeeira, associada ao governo federal, mesmo que descontente com ele, elege, em 1o de março de 1930, Júlio Prestes, gerando indignação em vários estratos da oposição, com destaque para um grupo de tenentes-civis que passariam a se organizar para resolver o que consideravam impasse, através da luta armada. A morte de João Pessoa, governador da Paraíba, por João Dantas, seu adversário político, é apontada por diversos historiadores como o estopim da Revolução de 1930, motivada pelos insatisfeitos com o governo e que coloca Vargas no poder em 3 de novembro desse mesmo ano, marcando o fim da Primeira República. 299 No Rio de Janeiro, a indústria Oswaldo Tardim & Cia decreta falência, acompanhada de inúmeras outras empresas tradicionais da época. Em São Paulo, o empresário Abelardo Laudel de Moura, de 28 anos, tenta matar a esposa com uma navalha, mas não consegue. Ainda assim, degola o filho de 2 anos e a filha e, em seguida, se suicida, motivado pela perda de seus bens com a crise. A tragédia ficou conhecida como o crime da Rua Piauí, bairro de Higienópolis. Há muitos outros relatos que mostram o caos que se instalou nesse contexto de crise. 186 Um novo tipo de Estado nasceu após 1930, distinguindo-se do Estado oligárquico não apenas pela centralização e pelo maior grau de autonomia como também por outros elementos. Devemos acentuar pelo menos três dentre eles: 1. a atuação econômica, voltada gradativamente para os objetivos de promover a industrialização; 2. a atuação social, tendente a dar algum tipo de proteção aos trabalhadores urbanos, incorporando-os, a seguir, a uma aliança de classes promovida pelo poder estatal; 3. o papel central atribuído às Forças Armadas — em especial o Exército — como suporte da criação de uma indústria de base e, sobretudo como fator de garantia da ordem interna. (FAUSTO, 2003, p. 327)300. Tentando juntar estes elementos em uma síntese, poderíamos dizer que o Estado getulista promoveu o capitalismo nacional, tendo dois suportes: no aparelho do Estado, as Forças Armadas; na sociedade, uma aliança entre a burguesia industrial e setores da classe trabalhadora urbana. Foi desse modo, e não porque tivesse atuado na Revolução de 1930, que a burguesia industrial foi promovida, passando a ter vez e força no interior do governo. O projeto de industrialização (...) foi, aliás, muito mais dos quadros técnicos governamentais do que dos empresários (id. p., 327)301. 2.1.2.3 A Era Vargas A Era Vargas, como ficou conhecido o período em que Vargas esteve no poder por 15 anos, portanto de 1930 até 1945, marca um ciclo importante da história do desenvolvimentismo brasileiro. A estratégia de incentivar a diversificação das atividades produtivas foi aos poucos mostrando resultados, ao mesmo tempo em que Vargas consegue conciliar-se com a oligarquia cafeeira federalizando, por exemplo, os problemas do café quando transfere as responsabilidades do Instituto do Café do Estado de São Paulo para o Conselho Nacional do Café. A estratégia de substituição de importações, embora não seja criação do legado varguista, assume nesse momento uma expressão particular para o projeto de desenvolvimento. A crise de 1929 dificulta as importações, ao mesmo tempo em que encontra uma indústria de base com sinais de expansão, sobretudo, no eixo Rio-São Paulo e uma capacidade ociosa de vários setores, principalmente o têxtil. Contudo, tais dificuldades não atestam a desintensificação industrial. Ao contrário, as taxas de crescimento anual da indústria seguem superando o crescimento da agricultura (FURTADO, 2003)302. (Tabela 1). 300 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2003. Id., ibid. 302 FURTADO, Celso. Ob. Cit., 2003. 301 187 Tabela 1 - Taxas anuais de crescimento econômico – Brasil – 1920 a 1945 Anos Agricultura Indústria 1920 – 1929 4,4% 2,8% 1933 – 1939 1,7% 11,2% 1939 - 1945 1,7% 5,4% Fonte: DINIZ, Eli. Empresário, estado e capitalismo no Brasil 1930-1945, p.67. Apud FAUSTO, Boris. Ob. Cit., 2003. As taxas de crescimento anual da indústria nos permitem entender melhor o processo de industrialização posterior a 1930. Elas indicam um considerável avanço entre 1933 e 1939 e um ímpeto menor entre 1939 e 1945. Isso significa que a indústria se recuperou rapidamente dos anos de depressão iniciados em 1929, apesar de não se poder falar de uma consistente política industrializante, por parte do governo. (FAUSTO, 2003, p. 391). A não renovação do equipamento industrial e as perturbações no comércio internacional, resultantes do início da Segunda Guerra Mundial, concorreram para que as taxas de crescimento caíssem entre 1939 e 1943. Lembremos porém que esse foi um período importante, do ponto de vista qualitativo, para a sustentação do processo de industrialização e sua expansão no após-guerra (Id., Ibid.). Mas a intenção da Aliança, já anunciada na campanha, de diversificar a produção para além da prioridade que se dava ao café, transforma-se em realidade, sobretudo, numa produção agrícola voltada também para o mercado interno. O algodão, por exemplo, aumenta sua importância devido ao incentivo que se oferta à indústria têxtil e a produção de arroz, feijão, carne, açúcar, mandioca, milho e trigo sobe de 36%, em 1925-1929, para 48,3%, entre 1939 e 1943, no valor total das lavouras brasileiras. Também como parte do núcleo duro dessa primeira fase do desenvolvimentismo varguista, os investimentos em infraestrutura não passaram ao largo das estratégias do governo. Com a Vale do Rio Doce, a Cia. Siderúrgica Nacional, entre outras empresas e medidas, a diversificação das atividades industriais foi impulsionada, fazendo com que novas atividades de base, como metalurgia, mecânica, material elétrico e material de transporte aumentassem sua participação no valor adicionado da indústria303. O traço distintivo deste e do outro período varguista, o de 1951 a 1954, foi sem dúvida a ampliação do entendimento acerca das estratégias e alcance da política econômica. Isto é, Vargas não tarda a descobrir, como já fizera no governo do Rio Grande do Sul, que a aliança 303 Valor adicionado representa a diferença entre o valor da matéria-prima e o valor final do produto, resultante do processamento industrial. Fausto (2003, p.393) reforça: “As indústrias tradicionais — principalmente têxtil, vestuários e calçados, alimentos, bebidas, fumo e mobiliário —, apesar de constituírem ainda 60% do valor adicionado da indústria, tiveram sua participação relativa diminuída, pois, em 1919, representavam 72% desse valor. O crescimento das indústrias química e farmacêutica — inclusive perfumaria, sabões e velas — foi extraordinário, triplicando sua participação entre 1919 e 1939”. 188 com a classe trabalhadora é capaz de surtir efeitos maiores e melhores para o seu governo e para seu projeto de desenvolvimento do que aquelas medidas afetas ao âmbito da coesão social, de caráter positivista-funcionalista que utilizara no Rio Grande do Sul. Desse modo, potencializa o aspecto estruturante das políticas sociais, pois nelas estão contidas as formas essenciais de reprodução social com impactos diretos, como já dissemos, na coesão social, mas também na sustentação de uma economia cujo mercado precisa se versatilizar. Porém, atenção: o aspecto estruturante das políticas sociais, tanto no varguismo quanto em outros momentos na história do capitalismo mundial, só se evidenciam ao se descortinar o mito de que a política social e a política econômica formam unidades distintas ou antagônicas. Ao contrário, Compondo uma unidade, tanto a política econômica quanto a política social podem expressar mudanças nas relações entre as classes sociais ou nas relações entre distintos grupos sociais, existentes no interior de uma só classe. De outra parte, através de ambas aquelas políticas, é possível evidenciar-se a atuação do Estado no sentido de incentivar e ampliar o capitalismo monopolista no Brasil. Porém, embora constituindo um todo, elas formalmente se distinguem e às vezes dão a enganosa impressão de que tratam de coisas bem diferentes. (VIEIRA, 1983, p.10)304. [A Política Social] Trata-se de estratégia voltada para o chamado desenvolvimento econômico e, consequentemente, para atuar na correlação de forças sociais, segundo as determinações daquele desenvolvimento. Considera-se, portanto, que qualquer política social aplicada pelo governo representa de certa maneira as relações entre o Estado e a Economia, durante a época em questão. Assim como a política econômica, também a política social revela, em seu nível lógico e em seu nível histórico, as transformações havidas nas relações de apropriação econômica e no exercício da dominação política, presentes na sociedade brasileira. (Id., Ibid., p.10)305. Desse modo, a Educação, como política social, passa a ocupar lugar estratégico na agenda governamental, com o intuito de potencializar a formação de cidadãos capazes de responder ao ciclo de desenvolvimento proposto com a criação, em novembro de 1930, do Ministério da Educação e Saúde. Preocupação parecida invade a área da Saúde, que começa a contar com medidas de implantação de uma política sanitária voltada, sobretudo, aos mais pobres. Mas é mesmo no campo da política trabalhista que Vargas imprime sua marca na agenda social. Entendendo o caráter político que reveste o mundo do trabalho, o primeiro governo Vargas associa a institucionalização de direitos trabalhistas à repressão a partidos e 304 VIEIRA, Evaldo. Estado e miséria no Brasil de Getúlio a Geisel 1951 a 1978. São Paulo: Cortez, 1983. 305 Id. 189 organizações de esquerda, com um foco todo especial no Partido Comunista Brasileiro (PCB). A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio envolve a criação das Leis do Trabalho e a regulação estatal da ação sindical, enquadrando a liberdade associativa dos trabalhadores e criando o sindicalismo patronal e de Estado. Esses 15 anos de poder varguista não foram mantidos facilmente. Vários acontecimentos de caráter político o marcaram, mas todos relacionados aos experimentalismos econômicos que ali se aplicaram: a Constituição de 1934, que institui o federalismo, anuncia eleições diretas e secretas a partir de 1938, o voto feminino, a representação classista no congresso e os direitos trabalhistas. De 1934 a 1937, o governo constitucional amplia seu braço repressor com duras ofensivas contra organizações da esquerda comunista, dando finalmente um golpe, em 1937, cancelando as eleições previstas para 1938 e instituindo a ditadura do Estado Novo306. De inspiração fascista, a Constituição de 1937 centraliza o poder nas mãos do Presidente, que suprime partidos, suspende as atividades do parlamento e cerceia a liberdade de expressão e imprensa com a criação de um departamento estatal voltado à censura. Ainda assim, Vargas mantém o ritmo das reformas econômicas e sociais numa clara demonstração de que o desenvolvimento capitalista só não pode abrir mão do trabalho livre, mas pode fazê-lo com a democracia. Assim, cria o salário-mínimo, em 1940, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, e mantém o controle sobre a atividade sindical. Portanto, concluímos que: No Brasil (...) não se pode falar de política social sem se remeter à questão do desenvolvimento econômico. No âmbito do capitalismo, tal desenvolvimento representa transformação quantitativa e qualitativa das relações econômicas, decorrente de processo de acumulação particular de capital. A situação favorável a este desenvolvimento é gerada não somente pela denominada iniciativa privada, mas também pela atuação do governo. Portanto, sendo fundamental a participação do Estado brasileiro no processo de desenvolvimento econômico, facilmente se percebe a relevância das várias políticas adotadas por ele, em especial a nível econômico e a nível social (VIEIRA, Ibid., p.10)307. O processo de industrialização teve prosseguimento com a substituição de importações nos setores de bens de consumo não duráveis e de bens intermediários. O Estado, como indutor desse processo, cria a Companhia Vale do Rio Doce, a Siderúrgica Nacional e uma empresa para refino do petróleo. 306 O que nos permite falar em Estado Corporativo. Segundo. O demiurgo do Estado Corporativo no Brasil foi Oliveira Vianna. Vargas enquadra-se, então, como um gestor da “máquina pensada por Vianna”. (In: VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna e Companhia. São Paulo: Cortez, 1981.). 307 VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1983. 190 Mas foi mesmo a dubiedade de Vargas no plano interno (a associação do paternalismo estatal com a repressão) e externo (a demonstração de simpatia pelo fascismo italiano sem ruptura com a política e o governo norte-americanos) que levariam os militares a derrubar, em 1945, ano que coincide com o fim da II Guerra Mundial, a ditadura varguista308. Nesse interregno, Dutra vence as eleições de dezembro de 1945 e fica até a volta de Getúlio, pelo voto, em 1951. Ao voltar à Presidência pelo voto, Vargas encontra um País diferente daquele que deixara em 1945. O intervencionismo estatal no campo econômico-financeiro deveria ser redimensionado e isso já era por ele anunciado desde a campanha. O controle da inflação, o desequilíbrio no balanço de pagamentos, que impedia o aumento da capacidade de importação, a redução dos investimentos em infraestrutura, dentre outras situações da ocasião, legitimaram o nacionalismo econômico que já implementara antes e que agora deveria ser revisitado. Por tudo isso, o governo getulista precisou intervir vigorosamente no domínio econômico, apresentando em 1951 o Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico – Plano Lafer, cujos recursos procederiam do Fundo de Reaparelhamento Econômico, que seria dirigido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), criado em 1952 (...) O plano propunha investimentos em indústrias básicas, nos setores de transporte, de energia, de frigoríficos e na agricultura, durante cinco anos (Vieira, Ibid., p. 32)309. Isso não significou, porém, um abandono, por Vargas, da iniciativa privada. Utilizando de sua capacidade de conciliação já exaustivamente comprovada, o estatismo varguista incomodava em níveis toleráveis a classe proprietária brasileira, afinal, tanto em seus discursos quanto nos conteúdos do próprio plano ficavam evidentes os ganhos tanto para industriais 308 No campo marxista, prevalecem as teses que identificam Vargas como “bonapartista”, em detrimento das perspectivas que o enquadram como uma variação do fascismo. Ruy Mauro Marini, em A dialética do Desenvolvimento Capitalista no Brasil (In: SADER, Emir (Org.). Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes/ Laboratório de Políticas Públicas (LPP), 2000), esclarece essa definição. Associa-se, à leitura de Marini, os escritos de Trotsky sobre “bonapartismo” nos trabalhos de Ianni e Weffort sobre o “populismo”. (In: DEMIER, Felipe. Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro in outubro. São Paulo, 2005. p. 59-78 e ____. Do movimento operário para a universidade: Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro. Dissertação (Mestrado)- PPGH/UFF. Mimeografado). Nesses textos, além de elucidações sobre o Vargas “bonapartista” também fica claro o significado do “populismo” que é atribuído ao seu governo. 309 Neste momento em que uma das estratégias do desenvolvimentismo tradicional consiste em criar e/ou fomentar órgãos estatais que funcionem tanto como agentes indutores das atividades produtivas e financeiras, preconizadas pelo projeto de desenvolvimento, quanto como empresas estatais com capacidade de produção e concorrência maior do que as das empresas atomizadas no âmbito privado. Deste modo, Vieira (1983) nos lembra da criação do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE), da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), do Plano Nacional de Eletrificação e Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras), dentre outras empresas menores. 191 quanto para agricultores. A defesa era, sobretudo, para uma maior produção de bens, de modo a diversificá-la cada vez mais reduzindo a importação de produtos aqui fabricados. O protecionismo também foi praticado, nessa fase, sob a justificativa de que a indústria brasileira ainda não possuía condições de competir em pé de igualdade com as estrangeiras. Quando isso acontecesse, o Estado retiraria gradativamente seu intervencionismo. Esse protecionismo veio associado ao incentivo à produção de matérias-primas necessárias à alimentação da indústria de bens de consumo. A marca social de Vargas permanece também nessa segunda fase, contudo, desta vez, parece centrar esforços naquilo que de fato surtirá efeitos mais imediatos no plano de desenvolvimento econômico. O ensino técnico-profissionalizante cresce; o incentivo à contratação de mão de obra mais qualificada também cresce; os setores de serviços e de assistência técnica são também incentivados; tudo isso é pensado para também interferir nos níveis inflacionários e na redução do custo de vida, sendo, este último, um problema recalcitrante nos discursos de Vargas. Só o salário-mínimo, a invenção de que mais se orgulhara, aumenta quatro vezes, sob sua gestão, o que não reduz a pressão inflacionária, embora compense as perdas parciais no poder aquisitivo da população pobre. Essa contradição leva o governo a formular um programa de combate à inflação, o Plano Aranha: Já havia, sem dúvida, desde 1952, severa condenação à elevação dos preços das mercadorias no primeiro ano do governo de Getúlio. Dizia-se que, para enfrentar o aumento nos preços, “apenas aumentou o salario mínimo, que só atinge a parte muito pequena da população”. Subira no Rio de Janeiro, por exemplo, o preço de inúmeros produtos (...) Também ficaram mais caros os alugueis de casa, bem como as passagens de bondes, de ônibus e de trens. Um exame do primeiro ano do governo de Vargas indicava como único possível êxito o “recuo das emissões”. Colocando em dúvida até mesmo esse resultado, ressaltava que as reservas cambiais quase chegaram ao fim, enquanto se registrava um déficit de três bilhões de cruzeiros na balança comercial, sem formar-se estoques importantes em gêneros de primeira necessidade (...) (Vieira, Ibid., p. 35-36)310. A formulação de planos emergenciais parece ser não só uma forma predominante de resposta governamental aos problemas do desenvolvimento socioeconômico no Brasil como, por aqui, se institui como um pilar dos nossos ciclos desenvolvimentistas, pois é o que se nota de Vargas a Dilma311. No caso da alteração de rota provocada pelo abandono do Plano Lafer e a adoção do Plano Aranha — analogamente à substituição de um ministro da Fazenda por outro, Horácio Lafer por Oswaldo Aranha — fica evidente a ausência de um projeto maior e consistente de desenvolvimento que pressuporia um modelo de Estado e dele o modo como este 310 311 VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1983. Ou, pelo menos, o que estamos tentando evidenciar nesta tese. 192 Estado estabeleceria suas relações com a sociedade no seu conjunto. Por isso, o Plano Aranha é duramente criticado pelas oposições, sobretudo por não responder a medidas consideradas necessárias pela ortodoxia econômica como a restrição de crédito e nova sistemática de controle cambial. Vargas insiste no seu nacionalismo econômico, alegando que todas suas medidas visavam a conquista da autonomia econômica e financeira do Brasil, desagradando sempre os investidores estrangeiros aqui instalados; mas como suas provocações nacionalistas não extrapolavam o âmbito do discurso, a política econômica de relações internacionais seguia seu curso. Na prática, o que se fazia era sempre o acolhimento do privado e estrangeiro como necessário ao desenvolvimento do público e nacional: A emancipação econômica seria obra do trabalho e de capitais brasileiros, ao menos no principio com a ajuda do capital estrangeiro. Pelo fato de os investimentos externos figurarem como apoio, seria impossível admitir, segundo Vargas, compromissos nacionais indevidamente contraídos, bem como transferência para fora do país de lucros oriundos de capitais nacionais. Getúlio entendia a emancipação econômica como um perene processo de desenvolvimento, e sua noção de industrialização abrangia o desenvolvimento econômico. Portanto, realizar o desenvolvimento econômico suscitava o desígnio de emancipação econômica do Brasil, além de significar predominantemente industrializa-lo. A trajetória ideológica de Getúlio mostrava então que a industrialização conduziria diretamente ao surgimento de um capitalismo nacional 312 , com a consequente emancipação econômica da nação (VIEIRA, Ibid., p. 38). A conjuntura desse segundo governo Vargas não é a mesma do Estado Novo, e nem poderia sê-la. Portanto, a manutenção de sua ideologia nacionalista se restringe àquilo que é fundamental ao fortalecimento da indústria, entendido por Vargas como o meio mais eficaz de se alcançar a tal autonomia, afinal, a liberal-democracia em vigor parecia não abrir espaço para um Estado autocrático burguês como fora o Estado Novo. No plano internacional, um conjunto de dificuldades coloca-se no caminho de Vargas, em especial no âmbito das relações com os Estados Unidos. Embora os investimentos norteamericanos no Brasil não tenham diminuído, entre 1950 e 1954, o aumento de remessas para o estrangeiro decorrentes dos lucros de seus investimentos por aqui aumentavam a níveis insuportáveis. A exportação do café não estanca seus níveis de queda e o combate à inflação se torna mais difícil. Tudo isso com rebatimento direto nas condições de vida da população brasileira, dificultando a manutenção da euforia nacionalista. 312 Grifo nosso. 193 Mas é preciso ressaltar que a inviabilidade deste nacionalismo, e do próprio governo getulista em continuar, não se explica apenas pelas dificuldades oriundas da crise econômica interna e pelos embaraços nascidos do investimento estrangeiro. Explicase, sobretudo através da enorme capacidade de pressão sobre o poder instituído, atingida pelos grupos mais conservadores da sociedade brasileira, frontalmente contrários ao nacionalismo econômico e à participação das massas populares no jogo político, mesmo segundo o estilo getulista. Se bem que por pouco tempo naquela época, a mobilização política em benefício do nacionalismo de Vargas sofreu o impacto da agitação do radicalismo conservador (VIEIRA, Ibid., p. 41). O conservadorismo reinante na época de que estamos tratando apresenta resquícios fortes tanto de um legado colonialista (e coronelista, por assim dizer) quanto traços dominantes de perspectivas fascistas. Portanto, não é difícil perceber porque as mudanças provocadas por Getúlio, sobretudo, no campo social-trabalhista, mas também de modo claro na estrutura jurídico-política do Estado, incomodavam tanto a esses setores. A ideia de progresso social, sempre presente nos discursos de Vargas, remetia diretamente à noção funcionalista de paz ou harmonia social e que pressupõe, para sua realização, um pacto relativamente estável entre classes e frações de classes sociais. O modelo desenvolvimentista do segundo Getúlio, deste modo, aprofunda essa concertação da relação entre o Estado e as classes, promovendo uma relativa ascensão das classes populares no jogo político, tanto pela sua importância como base de sustentação da estrutura produtiva necessária ao desenvolvimento pelo trabalho, quanto pelo discurso e incorporação das suas necessidades de reprodução social no âmbito do Estado com inflexões no mundo do trabalho privado313. O suicídio de Vargas, em 1954, põe fim ao nacionalismo peculiar que inaugura314, mas não ao nacionalismo em geral, pois as bases de um desenvolvimentismo brasileiro já estão dadas e não serão desperdiçadas por Juscelino Kubistchek em seu Plano de Metas para o desenvolvimento e a tentativa de consolidação de um capitalismo brasileiro de tipo moderno. 2.1.2.4 O Plano de Metas de Juscelino Kubistchek O vultoso desenvolvimentismo de Juscelino é, sem dúvida, o que mais se destaca quando o assunto é o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. E não se dá por um possível ineditismo nas suas ações, mas sim pelo fato de que as condições históricas em que assume o 313 Essas lições varguistas serão utilizadas no projeto de desenvolvimento que se impõe ao Brasil a partir de 2003, particularmente em sua primeira fase, ainda que o Presidente Lula, seu principal articulador, negasse qualquer influência varguista em sua política básica, como veremos mais adiante. 314 Outras expressões nacionalistas são percebidas em João Goulart ou em Jânio Quadros, por exemplo, contudo, a menção que fazemos a Vargas se deve à natureza tipicamente desenvolvimentista das medidas que tomou em seus governos. 194 governo brasileiro estão pautadas em um legado que lhe permite avançar nas estratégias de desenvolvimento. Ou seja, a implantação da indústria de base em Vargas, por exemplo, é uma das condições que o favorecem. Contudo, a incisividade das medidas de seu governo puderam levar a cabo duas ordens de implicações decorrentes da atuação do Estado como agente indutor do desenvolvimento capitalista: a renovação das formas de acumulação de capital e o reordenamento funcional do mundo do trabalho motivado pelos incrementos à produção. A combinação desses aspectos estruturais da ordem posta na conjuntura dos anos 1950-1960 teve como amálgama o desenvolvimento industrial que, segundo Ianni (1989), se transformou “na problemática maior, para todas as classes sociais”315. Juscelino, desde os discursos que fazia antes de se tornar Presidente da República enaltece a importância do planejamento estatal. Algumas atividades do Estado, segundo Ianni, são suficientes para revelar a importância que ele adquiriu “na formulação das possibilidades reais de transformação e expansão das forças produtivas” orientadas para o desenvolvimento planificado: O Plano Salte, o Programa de Metas, o Plano Trienal, a Petrobras, o Banco do Nordeste, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e, ainda, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, todos são criados a partir de 1948. E todas as transformações mais notáveis da economia brasileira desde então estão relacionadas com o funcionamento destes órgãos governamentais, criados especialmente para estimular o crescimento e a diversificação do sistema produtivo nacional (IANNI, 1989, p. 19-20)316. Pelas épocas, observa-se que esses órgãos não são criação do governo juscelinista. Antes, já fazem parte do projeto de desenvolvimento varguista, assumem vigor no governo Café Filho, que antecede o de JK, mas é apenas com a planificação do desenvolvimento, aplicada neste último, que suas funções como agentes concertadores do capital desenvolvimentista (público e privado) se tornam efusivamente evidentes. Em JK, pouco se observa das tendências desenvolvimentistas que animavam o debate sobre o desenvolvimento brasileiro da República a Vargas. A preponderância da industrialização como mola propulsora do desenvolvimento subsume todas as demais correntes ao industrialismo, sem prejuízo da permanência de algumas características fundantes do 315 Segundo Ianni (1989, p. 19), a centralidade da indústria no padrão de desenvolvimento proposto por JK transforma-se em problemática para todas as classes sociais “pelo que envolve na repartição da renda, nas relações das forças políticas, na supremacia das forças econômicas internas ou externas, na liderança política da nação, os caminhos e o futuro da industrialização tornaram-se a área privilegiada dos debates e choques entre as classes sociais, ou os seus grupos com interesses divergentes”. 316 IANNI, Octávio. Estado e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. 195 positivismo e do papelismo, mas isso não se dá apenas pelo tipo de inclinação política de JK317. Essa condução encontra legitimidade e justificativa tanto num cenário internacional propenso à aliança tática e estratégica entre Brasil e Estados Unidos quanto à difusão ideológica da industrialização, como passaporte único ao desenvolvimento e à contemporaneidade. O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), ainda que mantivesse certa autonomia ante o governo, funciona como importante centro propagador da ideologia desenvolvimentista-industrialista de JK. Um e outro [governo e Iseb] diluíam as diferenças de classe em nome das necessidades do País. Ambos restringiam à mera industrialização e ao intenso aumento de produtividade a concepção de desenvolvimento. Ambos queriam dizer que o desenvolvimento apenas deveria ocorrer dentro do domínio da lei, com patrões e empregados resolvendo pacificamente seus litígios, através de instituições criadas para esta finalidade. Tratavam, enfim, de uma ideologia da ordem, destinada a inspirar a industrialização do Brasil. De sua parte, Juscelino, procurava empreender seu projeto industrialista, orientado para diversas regiões do território brasileiro, até mesmo para aquelas que dispunham de condições mais difíceis para isto. De acordo com ele, a industrialização envolvia crescente elevação de produtividade (VIEIRA, Ibid., p. 88)318. 317 Alguns autores chegam, inclusive, a afirmar que, em JK, o nacionalismo característico de Vargas se transforma em nacional-desenvolvimentismo, cuja diferença fundamental do segundo para o primeiro é que este não só aceita, mas considera fundamental um arranjo quase simbiótico entre o Estado, a empresa privada nacional e o capital estrangeiro, mesmo em áreas consideradas estratégicas para a “soberania” de um país, como a infraestrutura básica e a indústria de base. Isso fica evidente em JK, quando se verifica a injeção de capitais estrangeiros para o desenvolvimento de seu projeto de revitalização da indústria automobilística, na área dos transportes aéreos, estradas de ferro, eletricidade e aço. Já o nacionalismo, cuja maior expressão se dá no processo de substituição de importações, embora admita a presença e participação do capital estrangeiro, impõe a ele muitos condicionantes. Além disso, sustenta a intervenção e o controle estatal nas áreas estratégicas, como infraestrutura, transporte, telecomunicações, energia, etc., sempre em nome da autonomia do país como elemento indispensável ao corolário da busca pelo desenvolvimento. A obra de Celso Furtado, produzida entre 1953-1955, é emblemática ao demonstrar as características fundantes do nacional-desenvolvimentismo. Nesse sentido, consultar: OLIVEIRA, Francisco de. Viagem ao olho do furacão: Celso Furtado e o desafio do pensamento autoritário brasileiro. In: A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, ou BIELCHEWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. 318 Vieira ainda assevera que “(...) o pensamento desenvolvimentista revestia-se dos critérios de veracidade e de objetividade, assumindo ao mesmo tempo o caráter de práxis. A nível lógico, partia-se do pressuposto de que, na efetivação do desenvolvimento brasileiro, a aliança de classes aconteceria política e ideologicamente. Garantida, portanto, a nível lógico, a paz social, representada pela ausência de luta de classes e de perigosa luta ideológica, bastava somente vislumbrar o significado da prática respectiva. Assim, a nível histórico, concedia-se ao desenvolvimento a força capaz de incentivar e de provocar a industrialização. Entendendo-se a ideologia do desenvolvimento como dominante no País, entendia-se simultaneamente que os interesses básicos das massas populares já estavam representadas nela, pondo-se de lado a possibilidade de estas massas terem um projeto próprio para satisfazer suas carências. Por conseguinte, a aliança de classes, o desaparecimento de graves antagonismos ideológicos e a firme crença no desenvolvimento conduziriam tranquilamente à industrialização no Brasil”. (In: VIEIRA, Evaldo. Estado e miséria no Brasil: de Getúlio a Geisel. São Paulo: Cortez, 1983). 196 Mas, para isso, se fez necessária a retomada de algumas medidas de contenção inflacionária, pois sem elas não seria possível nem aumentar a produtividade e nem abrir as “portas do País ao capital estrangeiro”. O programa anti-inflacionário somava-se à decisão de abrir a economia brasileira ao capital estrangeiro, permitindo-lhe, sobretudo incentivos especiais. (...) O chamado incentivo especial aos investidores externos aí queria dizer, antes de tudo, a concessão às empresas estrangeiras da faculdade de importar sem cobertura cambial. Mas em momentos distintos, outorgou-se ao capital externo outros tantos privilégios, como, por exemplo, o deslocamento das exportações para o mercado livre, a diminuição de câmbio para as remessas de lucros e as facilidades dadas às empresas estrangeiras pelas instituições de crédito (VIEIRA, ibid., p. 83)319. Prova disso é que a eleição de JK à Presidência da República foi saudada com vigor pelo governo norte-americano, que via em sua recorrente apologia à planificação da Economia brasileira num sentido liberal oportunidades tanto para a ampliação de mercado consumidor como para a instituição de vantagens fiscais e tributárias na importação de commodities. O desenvolvimento planificado de JK tem no Programa de Metas sua maior expressão. Ao final de sua execução, o programa deveria ter dotado o País de uma infra e superestrutura industrial capaz de modificar sua conjuntura econômica: O Programa de Metas do Presidente Juscelino Kubitschek combinava recursos públicos e privados na realização de seus projetos, os quais deveriam concretizar-se em épocas distintas, uns ainda dentro de seu governo e outros a 5 a 10 anos mais tarde. Tal Programa continha 30 setores tidos como prioritários, para onde se concentrariam maciços investimentos. Os 30 setores estavam distribuídos da seguinte forma: 5 metas para a energia, 7 metas para transportes, 6 metas para alimentação e 12 metas para indústria de base. Procurando atingir estas metas, por meio da execução de obras e através da ampliação ou do estabelecimento de indústrias e de serviços essenciais, Kubitschek visava acima de tudo a promover o “equilibrado desenvolvimento econômico do País”. (VIEIRA, ibid., p. 85)320. A racionalidade imposta à gestão pública no governo de JK suplantou o debate político, colocando em seu lugar o burocratismo e o tecnicismo. Reduzindo todo um complexo processo de desenvolvimento à industrialização, a única preocupação social no planejamento estatal era com uma residual qualificação de trabalhadores para atuar na indústria, o que foi chamado de infraestrutura educacional. A política social, em JK, não apresenta nem mesmo autonomia relativa à política econômica. Sociabilidade e acesso à satisfação de necessidades de 319 320 VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1983. Id., ibid. 197 sobrevivência, por mais fundamentais que fossem, eram decorrência pura e simples do desenvolvimento industrial e econômico pautados pelo aumento da produtividade. Os investimentos que se fizeram no campo da habitação popular, da previdência social, da saúde e da educação voltavam-se para os objetivos claros da manutenção e reposição da força de trabalho, portanto, com foco nos trabalhadores produtivos e suas famílias. Essa menção se faz importante, pois a marginalidade da política social em JK é um traço que o distingue tanto de seus antecessores, como Vargas, e também de seus sucessores, como os presidentes militares, ainda que estes últimos concebessem a política social como elemento estratégico para o doutrinamento que incutiram na população, ela se fez presente por melhorias sentidas, sobretudo, na estrutura da educação básica e fundamental (controlada) e da saúde. Mesmo com esse cenário, é difícil não compreender a lógica do desenvolvimento juscelinista considerando os resultados do Programa de Metas Entre 1955 e 1961, o valor da produção industrial, descontada a inflação, cresceu em 80%, com altas porcentagens nas indústrias do aço (100%), mecânicas (125%), de eletricidade e comunicações (380%) e de material de transporte (600%). De 1957 a 1961, o PIB cresceu a uma taxa anual de 7%, correspondendo a uma taxa per capita, ou seja, por habitante, de quase 4%. Se considerarmos toda a década de 50, o crescimento do PIB brasileiro per capita foi aproximadamente três vezes maior que o do resto da América Latina. (FAUSTO, 2003, p. 427)321. As possibilidades da mobilidade social foram alimentadas pelo acesso ao consumo de bens antes acessíveis apenas aos estratos mais ricos da sociedade. Assim como a casa própria representou o sonho dos norte-americanos no american way life, o automóvel simbolizava o sonho brasileiro. JK cria, neste sentido, o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia) para incentivar a produção de automóveis no Brasil. O boom da indústria de automóvel amplia, sobretudo, no ABC paulista o operariado industrial, acelerando a urbanização, como também difunde o mito do transporte particular em detrimento dos investimentos em transporte coletivo para as massas. Ainda assim, o trabalho nessas indústrias representava, para a população, oportunidade de sobreviver em melhores condições de bem-estar. Merece destaque ainda o ousado projeto de transferência da capital do País do Rio de Janeiro para o Planalto Central. A construção de Brasília – inaugurada em 21 de abril de 1960 – foi alvo de inúmeras controvérsias, mas todas elas secundarizadas pela euforia com que o projeto foi tratado pelo governo. Desse modo, o sonho de uma nova vida transportou milhares de trabalhadores de várias regiões do País, sobretudo do Nordeste, para participar da empreitada. 321 FAUSTO, Boris. Ob. Cit., 2003. 198 É importante salientar que a programática de desenvolvimento construída em JK com base na concertação entre o capital nacional e o estrangeiro coincide com a jovialidade do Fundo Monetário Internacional (FMI). Isto é, o FMI foi criado em 1946, como uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de promover a cooperação monetária internacional, entre outros objetivos. As relações amistosas entre o Brasil e os Estados Unidos, na primeira fase do governo JK, favoreceram os créditos concedidos ao País pela intermediação desse Fundo. Contudo, os gastos governamentais com a construção de Brasília e com a sustentação do Programa de Metas redundaram em déficits no orçamento público exponencialmente crescentes. Associa-se a isso a não contenção da inflação e a redução da capacidade arrecadatória do Estado devido aos incentivos dados às empresas estrangeiras, tem-se como resultado o desequilíbrio do balanço de pagamentos e o aumento da dívida pública e da dependência do Estado. Juscelino procede alterações em sua equipe econômica e tenta colocar em prática um novo plano de estabilização. O plano propunha seguir com restrições a ortodoxia econômica do FMI, que é assim resumida por Fausto (2003, p. 434): (...) visa obter o equilíbrio das contas externas (...) estimulando as exportações através da liberalização do câmbio. Para isso propõe, de início uma desvalorização cambial e o abandono do controle cambial pelo governo através de taxas de câmbio diferenciadas – os chamados câmbios múltiplos. Ao mesmo tempo, trata-se de pôr fim ao déficit público através do corte de gastos e/ou aumento da receita do Estado 322. Essas medidas redundam diretamente em recessão e desemprego, além de não se ter a garantia de que lograrão êxito mesmo no longo prazo, pois um conjunto de fatores relacionados à economia mundial se atrelam a elas como intervenientes consideráveis. Assim, um impasse entre o Brasil e o FMI arrasta-se durante quase todo o ano de 1958 e início de 1959, quando, em junho deste ano, JK resolve romper com o FMI abandonando a fase final do plano de estabilização e pondo fim ao ciclo de crescimento que iniciara. Essa ruptura, dentre outros aspectos que não nos compete arrolar, sugeriam uma aproximação tanto de JK quanto de sua base aliada ao PTB e aos comunistas, gerando uma instabilidade política que só teria fim com o golpe civil-militar de maio de 1964. 2.1.2.5 O desenvolvimentismo autocrático burguês Os governos militares, de Castelo Branco (1964-1967) a João Figueiredo (1979-1985), beneficiam-se do espólio desenvolvimentista de JK, ainda que na história econômica do país o 322 Id., ibid. 199 período autocrático burguês goze de significativa independência analítica ante os demais períodos. As medidas econômicas, com a mão pesada do governo Castelo Branco, já não estavam de modo linear ligadas a um projeto deliberado de desenvolvimento, embora seja inconveniente desatrelá-las disso. Antes, buscavam retomar a estabilidade combatendo a inflação, mas, sobretudo, intencionam controlar o caos econômico deixado por Goulart como forma de suprimir a ameaça comunista. Nesse sentido, o governo revoga a lei de remessa de lucros (proposta por João Goulart), beneficiando o capital estrangeiro investido no Brasil; estabelece o controle sobre os salários; institui a correção monetária, operação destinada a atualizar o poder aquisitivo da moeda, segundo índices determinados pelo governo; cria o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), em substituição ao antigo sistema de estabilidade e de indenização dos trabalhadores demitidos; funda o Banco Nacional de Habitação (BNH) que, obtendo recursos do FGTS, deve financiar a construção de casas populares; e cria o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária e o Estatuto da Terra. Essas medidas convergem, no âmbito do Programa de Ação Econômica do Governo Castelo Branco (Paeg), para a busca e ampliação do apoio social à administração castelista e propõe até mesmo o diálogo com todas as camadas populares (VIEIRA, 1983, p. 203) 323 . Curiosamente, o Plano alcança propostas de reforma agrária. O Paeg cumpre seus objetivos. A combinação do corte de despesas e aumento da arrecadação reduz o déficit público anual de 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB), em 1963, para 3,2%, em 1964, e 1,6%, em 1965. A forte inflação de 1964 tende a ceder gradativamente, e o PIB volta a crescer, a partir de 1966 (FAUSTO, 2003). Essas medidas logram êxito tanto pelo modo autoritário como são praticadas, ou seja, os sacrifícios sociais da classe trabalhadora não puderam ser contestados ao mesmo tempo em que a Aliança para o Progresso, do Presidente norte-americano Kennedy, liberou o FMI para ajudar o Brasil em seus intentos (idem). Estavam dadas as condições para acontecer o Milagre Brasileiro. O extraordinário desenvolvimento da economia, no período Médici (1969-1973), pode receber tal acunha, pois conseguiu combinar o crescimento econômico com taxas baixas de inflação. Delfim Neto, então ministro da Fazendo, toma a frente do I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) (1972 – 1974) aproveitando a conjuntura internacional favorável. Nova abertura liberalizante se processa e inúmeras empresas multinacionais se instalam no País. Como os governos anteriores, o Plano também abrange investimentos em infraestrutura, como usinas hidrelétricas e a expansão da Petrobras, Vale do Rio Doce e Telebrás. O crescimento do PIB e a ascensão de uma nova classe média justificavam a euforia do momento. 323 Id., ibid. 200 O “milagre” concentra-se, sobretudo, no aumento das exportações agrícolas; a expansão da indústria e incentivos ao desenvolvimento regional da Amazônia e do Centro-Oeste, contudo, não previram estratégias distributivistas. Delfim Neto alegava que não se podia colocar a distribuição na frente da produção sob pena de distribuir o que ainda não existe, tornando célebre a sua afirmação: “é necessário fazer o bolo crescer para depois distribui-lo”. O milagre não se sustenta por muito tempo, pois a agudização dos níveis de dependência da economia brasileira a torna vulnerável às variações do câmbio. Com a crise do petróleo, de 1973, a moeda brasileira não só se desvaloriza em relação ao dólar como também faz aumentar nosso endividamento externo. Celso Furtado, em O Brasil Pós-Milagre (São Paulo: Paz e Terra, 1981), anuncia: “Em síntese, nesse período, não obstante um considerável aumento do produto interno, não se assinala, na economia brasileira, nenhum ganho de autonomia na capacidade de autotransformação, nem tampouco qualquer reforço da aptidão da sociedade para autofinanciar o desenvolvimento”. O declínio do surto desenvolvimentista também se reflete na vida política do País acirrando o conflito de classes, levando o Presidente Médici a anunciar uma abertura “gradual e segura” do regime. O último presidente militar, João Figueiredo (1979-1985), encarrega-se da transição. O fato é que o desenvolvimento ocorrido no período autocrático burguês é apontado por vários autores, dentre muitos aqui já citados, como o período que chama a atenção do capitalismo mundial para o Brasil e o coloca como possível potência econômica no continente num futuro de longo prazo. Todavia, essa expectativa se confinava muito mais ao campo das justificativas ideopolíticas para as experimentações macroeconômicas que por aqui se fizeram do que necessariamente uma aposta real. O ufanismo da ditadura expresso no “ame-o ou deixeo” incute em muitos corações e mentes que o Brasil seria o país do futuro. Esse caminho pareceu pavimentar o que Marini, em adaptação da tese trotskista para América Latina, denomina de desenvolvimento desigual e combinado324. Em síntese: 324 Consultar: MARINI, Rui Mauro. América latina: dependência e integração. São Paulo: Página Aberta, 1992 e ______. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1973. 201 A ampliação do capitalismo no Brasil representa aqui o cerne do desenvolvimento. E o Movimento de 1964 abriu totalmente este processo aos monopólios internacionais. Isto quer dizer que as carências do mercado interno se colocaram em segundo plano, preponderando os interesses do mercado externo. Rompia-se assim a tentativa de combinar a ideologia nacionalista com o capitalismo internacional. E, se a internacionalização da economia brasileira trouxe benefícios, até para certos grupos sociais durante algum tempo, há indícios seguros de que relegou e explorou a grande massa popular. O tal de desenvolvimento interdependente serviu sobretudo à burguesia do monopólio, aliás nem sempre fiel a seus protetores (VIEIRA, 1983, p. 211)325. 2.1.3 Um interlúdio para a redemocratização: protoformas do ajuste neoliberal O fim da ditadura civil-militar no Brasil se deve, sobretudo, a uma espécie de consenso entre as frações da classe dominante pelo retorno à democracia, em que pese toda a mobilização e lutas travadas por amplos setores da sociedade. Seu legado ainda se faz presente tanto nas estruturas institucionais do Estado quando na difusão dos valores e modos que determinam a sociabilidade burguesa brasileira. Ainda assim, consideramos os anos 1980 como época fecunda em experimentalismos macroeconômicos e também de uma reversão cultural explícita que vem influenciando as relações sociais até os dias atuais, mesmo que a Cepal classifique a década como “perdida”. Recebe o legado de sua década sucedânea e registra a intensificação da migração ruralurbana; a diversificação das atividades econômicas produtivas; um modesto, porém contundente, incremento nas atividades de gestão do mercado financeiro; novas oportunidades de trabalho nos setores secundário e terciário; e acentuação no trabalho feminino326. O início dos anos 80, se não assiste a um crescimento expressivo da economia, registra um crescimento vertiginoso da população. Segundo censo de 1980, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira cresceu de 93,13 milhões, em 1970, para 119 milhões. As atividades industriais intensificaram-se e, em 1980 o PIB brasileiro foi de 163 bilhões de dólares. O Brasil figurava como a 12a economia do mundo. Os dados da época (fim dos anos 70 e início dos 80) apontam para uma eufórica arrancada do crescimento econômico, com o aumento das exportações, gerando superávits na balança comercial, além da cobertura dos serviços da dívida pelos influxos do capital estrangeiro. Contudo, a lógica do “produtivismo” dos anos 70 implicava a criação de condições necessárias 325 VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1983. Segundo Montali, em 1960, as mulheres representavam 17% da População Economicamente Ativa (PEA), proporção que passou a 20,9%, em 1970; a 27,4%, em 1980; e a 35%, em 1985. A proporção de mulheres na PEA urbana cresceu de 33,6%, em 1981, para 37,8%, em 1990, e sua taxa de atividade saltou de 33,7%, em 1981, para 40,1%, em 1990 (In: MONTALI, Lilia. Família e trabalho na conjuntura recessiva: crise econômica e mudança na divisão sexual do trabalho. Tese (Doutorado)- Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1995. p.23. 326 202 para o investimento (subordinadamente externo) acumulando capital que, em tese, deveria significar investimentos em solo nacional. Com isso, tem-se a conivência em estrangular a vida econômica presente (e de várias gerações) para lograr um futuro de desenvolvimento sustentado. Essa ideia defendida por personalidades como Mário Henrique Simonsen e Delfim Neto, durante todo o período militar, entraria em derrocada327 na crise de 1981-1983, pois o aumento exponencial da concentração de renda, incidindo diretamente no aumento da desigualdade e da pobreza, não permitia a sustentação de tal tese. Tabela 2 - PEA versus PNB/ano – Brasil – 1976 a 1978 População economicamente ativa Quota do PNB por ano 50% mais pobres 17,71% | 14,91% | 11,6% 30% imediatamente acima 27,92% | 22,85% | 21,2% 15% da camada média 26,60% | 27,38% | 28,0% 5% mais ricos 27,69% | 34,86% | 39,0% Fonte: Revista Isto É, 9 de agosto de 1979. (1976, 1977, 1978). Com a explicitação evidente da contradição mais elementar do capitalismo: o aumento exponencial da riqueza em consonância com a expropriação do trabalho, não foi possível, aos governos em exercício, manter o controle das massas. Assim, sãoexpressivas as votações nos candidatos da oposição, nas eleições de 1974, 1978 e 1982, e as mobilizações em prol dos sindicatos, associações de professores e estudantes, o posicionamento da Igreja através de seus setores progressistas, e as constantes greves de operários. Mesmo na conjuntura economicamente favorável do período posterior (1984-1986), a contradição fundamental de sustentabilidade do capital via mercado permanece. Ou seja, a população economicamente ativa aumenta 328 , assim como a participação das mulheres no mercado de trabalho salta de 33,1%, em 1984, para 35,1%, em 1988, também a taxa de desocupação quase se equipara à dos homens, 4,1% contra 4,3%, mas os salários baixos e a dupla jornada permanecem. Esse período é caracterizado, por muitos estudiosos, como o início concreto da redemocratização. 2.1.3.1 O Plano Cruzado (1986) Em 1984, a campanha pelas Diretas Já é organizada por um comitê supra-partidário e pressiona o Congresso a colocar em votação a emenda proposta pelo deputado federal, pelo 327 Derrocada que ocorre com a crise econômica seguinte, mas a concepção enquanto pilar da economia burguesa permaneceria viva como elemento fundante da ideologia liberal renovada nos anos 90. 328 A taxa de atividade da PEA de 1981 salta de 53,4 para 56,1, em 1985 (IBGE, 1987). 203 PMDB-MT, Dante de Oliveira. A emenda obtém 298 votos a favor e 65 contra. Há ainda três abstenções e 113 ausências. É importante lembrar que as ausências e os votos contrários eram todos do PDS, partido liderado até hoje pelo então deputado paulista Paulo Salim Maluf, porém, atualmente sob a sigla PP (Partido Progressista). Derrotada, a emenda não consegue os 2/3 de votos necessários para sua aprovação, fazendo permanecer ainda as eleições indiretas. Na iminência da sucessão presidencial, Paulo Maluf polariza com Tancredo Neves as candidaturas. Maluf, notadamente candidato do sistema, e Tancredo acaba por se configurar como candidato da oposição, ainda que com um leque ambíguo de alianças. O período fica conhecido como Nova República. A eleição indireta para presidente acontece em 15 de janeiro de 1985 e indica a vitória de Tancredo Neves. O acontecimento é marcado como um fato importante da história do País, sendo televisionado e acompanhado pelo povo com forte interesse. Eram recorrentes as promessas dos políticos da oposição, agora vitoriosa, de que esta seria a última eleição indireta. Os desafios do novo presidente, além de (re)instaurar a democracia no País, eram muitos e de naturezas diferenciadas. De um lado, as aspirações populares pelo retorno à democracia incluíam o desejo da melhoria das condições de vida, o aumento do nível de emprego e melhores salários, o controle da inflação e da crise recessiva; por outro lado, o novo governo deveria se preocupar com os desmandos dos organismos internacionais, principalmente o FMI, com as renegociações da dívida externa e a revisão das relações exteriores do País com o resto do mundo. O apelo clássico para adesão às propostas reformistas é enfatizado pelo discurso dos novos donos do poder: Um novo pacto social precisa ser feito para livrar o País das estruturas e das práticas autoritárias de outrora. Evidencia-se novamente a utilização do “social” como estratégia para ocasionar mudanças sem subverter a ordem. As mudanças devem ocorrer sem perturbar a paz social. Ocorre que o presidente eleito nem chega a tomar posse. Tancredo Neves morre em 21 de abril de 1985. A comoção que se instala no País personifica a figura do Presidente no já conhecido messianismo político, ao mesmo tempo em que exige, principalmente das esquerdas, mobilizações no sentido de inserir cada vez mais mecanismos de participação democrática e popular na vida do País. O vice-presidente José Sarney assume a Presidência sem ao menos desfrutar da frágil estabilidade econômica do período iniciado, pois a necessidade de um reordenamento institucional no País abala os ânimos tanto do mercado financeiro, quanto do setor produtivo, acarretando recordes nos níveis inflacionários e desaceleração das atividades produtivas. O número de falências e concordatas sobe para a casa dos 8%. A gravidade da situação econômica do País desencadeia um amplo movimento de reivindicações e protestos, abalando a esperança na Nova República. 204 Com isso, em 28 de fevereiro de 1986, por meio do Decreto-Lei 2.283, o governo do Presidente José Sarney cria um plano de estabilização econômica, chamado Plano Cruzado. Criado em 1986, implementava as seguintes medidas: a desvalorização da moeda nacional em três algarismos e a substituição do Cruzeiro; a moeda nacional passa a se chamar Cruzado, sendo que cada um Cruzado corresponde a um mil cruzeiros; o congelamento dos preços fixados em 28 de fevereiro de 1986, com vigência de um ano; o congelamento dos salários, pela média dos últimos seis meses, além de um abono de 8% a todas as categorias como forma de reposição salarial; a transferência para o setor privado de inúmeras empresas estatais; o corte de 20% nos investimentos do governo e, ao mesmo tempo, a definição das áreas sociais como de investimento prioritário. A ideia é reestabelecer o crescimento econômico do País, combater a inflação e distribuir melhor a renda. De imediato, o apoio popular é percebido. A medida de congelar os preços estipulados em tabela a partir do governo agrada às famílias pobres, em especial, pois a instabilidade do período anterior não lhes dava condições sequer de planejar minimamente o orçamento doméstico. Assim, a palavra fiscal era utilizada como sinônimo de direito. As pessoas fiscalizavam de fato os comerciantes que desrespeitavam as regras estabelecidas. Evidente que numa democracia burguesa, isto é, numa sociedade de classes, os interesses logo começam a entrar em disputa. A desaceleração no âmbito produtivo, principalmente no setor alimentício, leva, ao mesmo tempo em que trouxe de volta à mesa do trabalhador, produtos como carne, leite e queijo, ao aparecimento de novos produtos, ou melhor, produtos maquiados. Os produtores, para não reduzir sua margem de lucros, lançam novos produtos no mercado que substituem os antigos e carecem, portanto, de novos preços. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) pressiona o governo a descongelar gradativamente os preços. Instaura-se uma velada crise política e o governo, após as eleições de novembro do mesmo ano, lança o Plano Cruzado II, que radicaliza o primeiro. Promove uma série de aumento de preços, faz a inflação [controlada artificialmente] voltar, o que esfacela a economia popular. O controle artificial da inflação e as medidas decretadas pelo Plano Cruzado garantem um “novo, porém breve, suspiro” de Estado Social para a sociedade brasileira sem, contudo, provocar qualquer mudança estrutural que significasse reversão da ordem burguesa. O governo se sente à vontade para promover alterações no plano econômico por decretos-lei. Assim, o Plano Cruzado II, torna-se um dos mais duros pacotes econômicos já lançados no País. Estabelece aumentos de preços deteriorando a economia popular. Em 20 de janeiro de 1987, o governo suspende o pagamento dos juros da dívida externa, declarando moratória. 205 2.1.3.2 O Plano Bresser (1987) A popularidade do Presidente entra em declínio e com isso reformas ministeriais são feitas. Em abril de 1987, Dílson Funaro é substituído por Luís Carlos Bresser Pereira e em junho do mesmo ano anuncia-se o Plano Bresser, com as seguintes medidas: congelamento dos preços por dois meses, elevação de tarifas e impostos, extinção do gatilho salarial329, eliminação dos subsídios do trigo e adiamento das obras de grande porte, como a Ferrovia Norte-Sul e o polo petroquímico do Rio de Janeiro. No plano da política externa, retomam-se as negociações com o FMI, suspendendo a moratória. Medidas insuficientes que não impediram que a inflação atingisse, em 1987, a extraordinária meta de 366%. 2.1.3.3 O Plano Verão (1989) Em 1989, tem-se novo ministro da Fazenda. Maílson da Nóbrega, seguindo a tradição de seus antecessores, anuncia o Plano Verão e muda novamente a moeda. Lança o Cruzado Novo (agora com três zeros a menos) e mais arrocho salarial. Em nome do desenvolvimento (agora social e não apenas econômico) 330 prosseguem as medidas de abertura da economia para o mercado externo acompanhadas de privatização de empresas estatais e cortes nos gastos públicos. Uma das medidas mais drásticas e polêmicas do Plano Verão foi a continuidade das modificações ocorridas já no plano Bresser relativas à substituição do índice de correção das cadernetas de poupança. O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) passa a ser esse indicador, o que no final resulta em perdas materiais do rendimento das cadernetas. 2.1.3.4 Os Planos Collor I e II (1990 – 1991) Essa, sem dúvida, foi a conjuntura dos planos desastrosos. A Nova República pode ser entendida como um período de investidas “amadoras” na regulação macroeconômica da sociedade brasileira. Não que seus mantenedores fossem amadores, mas não se verificava a existência de um projeto de desenvolvimento nacional que desse conta de compatibilizar interesses das diversas frações da classe dominante sustentado em uma cooptação da classe trabalhadora como se fizera no Brasil de outros tempos. 329 Relativo ao aumento automático dos salários sempre que a inflação atingisse a casa dos 20%. O slogan do governo Sarney, “tudo pelo social”, foi amplamente divulgado pelo governo e pelos meios de comunicação. 330 206 Nem aqui, nem nos demais países da América Latina registravam-se as condições históricas adequadas para sua inserção no mundo “democrático” em vésperas de globalizar-se, afinal, o seu tradicional modelo de desenvolvimento desigual e combinado, não conferia a autonomia mínima necessária para tal empreitada. Prova disso é que de Sarney a Lula, o número de Medidas Provisórias (MPs) e decretos-lei do Executivo tem batido recordes históricos. Ou seja, nossa classe política, com suas constantes investidas na pactuação consensuada do poder, governa à revelia das instituições da democracia representativa, essencialmente da mesma forma que os Atos Institucionais da época militar. Incapaz de propor alterações substanciosas, o governo Sarney transfere para seu sucessor a responsabilidade de amainar a crise. Crise que seria enfrentada à luz de um novo aparato legal: a Constituição Federal de 1988. Importante inovação estabelecida pela Constituição de 1988, segundo Fausto (2002), é a eleição em dois turnos para os cargos majoritários. A ideia é que o candidato eleito tenha sempre a maioria absoluta dos votos. A eleição de 1989 traz um cenário político plural inédito na história do País. Foram 22 candidatos, ficando o total de votos assim contabilizado, no primeiro turno, em percentuais: Collor: 25,11; Lula: 14,16; Brizola: 13,60; Covas: 9,49; Maluf: 7,30; Afif: 3,98; Ulysses: 3,90; Freire: 0,93; Aureliano: 0,73; Caiado: 0,59; Camargo: 0,46; Enéas: 0,44; Marronzinho: 0,29; PG: 0,24; Zamir: 0,23; Lívia: 0,22; Eudes: 0,19; Gabeira: 0,15; Brant: 0,13; Pedreira: 0,10; Horta: 0,10; Brancos: 1,43; Nulos: 4,24; Abstenções: 11,93 (TSE). O Presidente eleito toma posse em 15 de março de 1990, no Congresso Nacional, diante das câmeras de TV que transmitiram o evento para todo o País e com a presença de vários chefes de Estado. No dia seguinte, em cerimônias também transmitidas pelas TVs, Fernando Collor baixa um pacote de medidas econômicas, financeiras e administrativas composto por 23 MPs, ao qual o governo chamou de Plano Brasil Novo, o qual, de imediato, fica mais conhecido como Plano Collor ou Plano Cruzeiro. Seus objetivos declarados foram o combate à inflação, o “enxugamento” da máquina do Estado e a eliminação do déficit público como condições para a retomada do crescimento da economia. Os eixos básicos do Plano Collor foram os seguintes: a reforma monetária, com a substituição do Cruzado Novo pelo Cruzeiro, sem alteração do valor; a retenção por 18 meses (na prática, confisco) das contas, em Cruzados Novos, das pessoas físicas e jurídicas nos valores acima de NCz$ 50 mil. Até esse valor, as contas foram convertidas em cruzeiros. Para as contas-correntes e as cadernetas de poupança e até NCz$ 25 mil , ou 20%, para as contas de over e fundos de curto prazo; o congelamento parcial e controlado dos preços, que deveriam ser praticados nos níveis em que estavam no dia 12 de março (antes houve um aumento considerável nos preços); o fechamento de estatais, como início de um processo de privatizações; nova abertura para o capital estrangeiro; eliminação de entraves para a importação de bens de consumo; a contenção, visando a eliminação do déficit público, 207 suprimindo-se despesas governamentais e colocando-se à venda imóveis e veículos até então usados por funcionários e repartições federais. Vale ressaltar que o Plano Collor não contemplou a questão da dívida externa, deixando para negociá-la depois de obter os resultados internos, esperados com a aplicação das medidas econômicas. O Plano Collor recebeu maciço apoio da população. No início, apesar da confusão que se instaura na vida econômica do País, três ordens de questões afloraram: a necessidade de ações anti-inflacionárias, a forma autoritária de sua proposição e execução (MPs usadas como se fossem decretos-lei) e a inconstitucionalidade de determinadas medidas propostas. Alguns analistas na época afirmavam que o Plano Collor, de um lado, lesivo aos interesses do País, sobretudo dos trabalhadores, aumentando o desemprego, por causar recessão e, além disso, a privatização e a abertura econômica, aumentaria a dependência estrangeira. Do mesmo modo, amplia as margens do patrimonialismo, ao não promover uma reforma institucional. Na esfera política, as relações entre o Executivo e o Legislativo não eram das melhores. O excessivo número de MPs não disfarçava o autoritarismo desse governo. As condições em que o governo Collor recebe o País atestavam um momento grave de crise, porém, com possibilidades concretas de reversão desse quadro, por meio de alterações estruturais internas, mas que certamente, iriam em direção contrária aos interesses conservadores no Congresso e no próprio Executivo. Os vários planos econômicos citados até agora demonstraram um efeito muito superficial sobre o poder aquisitivo real oriundo dos rendimentos do trabalho. Salvo os momentos imediatos de sua implantação, nos demais, não apresentaram mudanças permanentes na relação entre a distribuição da renda e a capacidade do consumo. Ademais, deixaram como sequela perverso agravamento na concentração da renda. Tabela 3 - Apropriação da riqueza – Brasil, 1981, 1990, 1999 Data 1981 1990 1999 Parcela apropriada por 1% dos mais ricos 12,71 13,80 13,31 Parcela apropriada por 10% dos mais ricos 46,72 49,05 47,45 Parcela apropriada por 20% dos mais pobres 2,62 2,11 2,34 Parcela apropriada por 50% dos mais pobres 13,03 11,35 12,55 Fonte: IPEA. Ipeadata: base de dados macroeconômicos. Disponível em: <www.ipeadata.gov.br>. O Plano Collor é, sem dúvida, responsável por uma das medidas mais traumáticas para a população brasileira, em termos de arranjo macroeconômico. A intenção de bloquear cerca de US$ 85 bilhões (2/3 da moeda em circulação) deu-se com a intervenção do governo nas transações bancárias. Securato (2000) lembra que tanto poupadores quanto os correntistas foram autorizados a retirar dos bancos, no máximo, Cr$ 50 mil. Com relação aos depósitos em contas 208 remuneradas de curto prazo, permitia-se o saque de 20% sobre o total depositado, desde que não ultrapassasse Cr$ 25 mil. O dinheiro que havia sido bloqueado foi totalmente recolhido pelo Banco Central, com a promessa de ser devolvido depois de 18 meses, em 12 parcelas mensais. Nesse entretempo, o Cruzado sequestrado pelo governo ficaria rendendo juros e correção monetária. Embora, teoricamente, afirmassem que ninguém sairia perdendo, na prática, todos foram prejudicados por essas medidas, já que o governo ignorou a inflação de fevereiro daquele ano. Apesar do choque, a inflação que tinha baixado, voltou a aumentar em dezembro de 1990, chegando ao patamar de 18,3%. Por conta disso, em fevereiro de 1991, foi posto em prática o Plano Collor II, com congelamento de preços e salários e prefixação dos juros. Do mesmo modo que o primeiro, o Plano Collor II também se mostrou ineficaz. (SECURATO, 2007, p. 256)331. 2.1.3.5 O Plano Real (1994) O autoritarismo de Collor, sobretudo em sua relação com o Legislativo, o fracasso de suas medidas econômicas e sua incapacidade de coordenar e/ou acomodar os diversos interesses do bloco no poder o levaram ao impeachment, em setembro de 1992. Seu vice, Itamar Franco, assume a Presidência332. Seguindo a tradição de seus antecessores, Itamar Franco assume o governo e, após sucessivas trocas de ministros, anuncia um novo plano de estabilização econômica, sob o comando do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Nasceria aí o Plano Real. A euforia em torno do nome de Fernando Henrique Cardoso lembra em muito a euforia no início do governo Sarney. Desta vez, porém, dotada de um refinamento teóricometodológico, típico da intelligentsia que se constituiu no interior das lutas pela democracia e conquistou notoriedade internacional, tentando explicar o fenômeno do subdesenvolvimento nos países da periferia capitalista em fins dos anos 60. O Plano Real lançado em julho de 1994, quando FHC ainda era ministro do governo Itamar Franco, busca os mesmos macro-objetivos dos anteriores, com estratégias semelhantes, como a contenção dos gastos públicos, privatização das estatais, controle da demanda por meio da elevação dos juros, e pressão sobre os preços pela facilitação das importações. A diferença é que não congelou os preços e nem salários, além disso, a transição para a desvalorização da moeda foi gradativa, com a adoção provisória das Unidades Reais de Valor 331 SECURATO, José Cláudio. Economia: História, conceitos e atualidades. São Paulo: Sain Paul Editora, 2007. 332 Discordamos das análises que atribuem a deposição do presidente Collor apenas às manifestações populares que expressaram a insatisfação do povo com seu governo. Entendemos que tais manifestações, embora fundamentais no processo, não podem ser analisadas de modo isolado do movimento e das tensões que se estabeleceram entre as frações da classe dominante. (Consultar: CARVALHO, Rodrigo. A era Collor: da eleição ao impeachment. São Paulo: Perseu Abramo, 2012). 209 (URVs), que propunham o acompanhamento equiparado da moeda nacional ao dólar norteamericano. A medida agradou os altos estratos da sociedade brasileira, mas também à classe trabalhadora, que via seu poder aquisitivo crescer em conformidade com o aumento dos preços, uma vez que o padrão de sociabilidade burguesa se parametriza crescentemente pelo consumo. Essa seria a primeira medida para a criação da ilusão da estabilidade, base do governo e instrumento de coerção ideopolítica que garantiria a eleição de Cardoso para a Presidência, em sucessão a Itamar Franco, em janeiro de 1995, e sua reeleição no primeiro turno, em 1998. O principal argumento utilizado na campanha à Presidência da República para a sucessão de Itamar Franco era que somente o pai do Real teria condições de dar continuidade ao processo em curso, colocando o País de fato no caminho do desenvolvimento sustentável. Processo, esse, ameaçado pelos ataques especulativos culminantes em crises financeiras internacionais de grande expressão (México, Rússia, Tóquio e mais tarde Argentina). Outro argumento utilizado e que mais tarde passaria do campo ideológico e teórico ao campo político-operacional, viria a ser a necessidade latente de funcionalizar o aparelho do Estado brasileiro, falido e ineficiente, por meio de ampla reforma, nos moldes daquelas realizadas por Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos Estados Unidos. As teses de sustentação do Welfare State, que já não serviam mais como paradigmas aos países de capitalismo central, também não serviriam, de acordo com essa lógica, ao Brasil, que sequer chegou a ter um Estado de Bem-Estar. O cenário posto permite a retomada do debate sobre o planejamento estatal para o desenvolvimento, esquecido nos governos anteriores por causa da urgência das experimentações de planos econômicos inconsequentes. Não se tratava da agenda de um desenvolvimento nos moldes do desenvolvimentismo clássico e nem das proposituras ditas neodesenvolvimentistas que se fazem por agora (governos Lula e Dilma). O projeto político-econômico tinha como cerne a contrarreforma do Estado em sintonia com as propostas de difusão do neoliberalismo pactuadas no Consenso de Washington. O primeiro governo de FHC persegue insistentemente as metas de estabilização pela via do controle inflacionário, sem se preocupar com os custos sociais desse processo. Isso não significa o esquecimento da área social, ao contrário, esta também foi contemplada com um arranjo político-ideológico-doutrinário à altura da intelectualidade da então primeira-dama, senhora Ruth Cardoso. A área social, na contrarreforma, desloca-se do campo da responsabilidade estatal para o campo do solidarismo privado. Com isso, a sociedade passa a se ocupar do enfrentamento das mazelas da “questão social”, liberando o governo para cuidar da vida econômica do País. O controle inflacionário privilegia a acomodação da poupança externa – compatível com o perfil pessoal internacionalista de FHC – com juros altos e câmbio controlado. Tornaramse assim [juros altos e controle artificial do câmbio] sinônimos de desemprego, recessão, 210 arrocho salarial e arrocho do crédito interno. Tanto que, em 1994, o Presidente Cardoso assume o País com uma dívida pública que beira a casa dos R$ 60 bilhões e, oito anos mais tarde, entrega o País ao Presidente Lula com uma dívida de R$ 623 bilhões. Nos anos 90, destacam-se ainda o legado do extraordinário desenvolvimento das forças produtivas sentido a partir dos 1980, que redunda, de um lado, em amplos processos de reestruturação produtiva e, por outro, em novos padrões de sociabilidade capitalista com base na desterritorialização crescente do capital e no desperdício catastrófico, como classifica Mészáros (2002). Ou seja, o câmbio nas relações de trabalho – agora internacionalizadas – não significa transferência de tecnologia entre países ricos e pobres, mas sim a consolidação do imperialismo dos primeiros sobre os segundos, fazendo com que os procedimentos de ajuste neoliberal figurem como remédios para as nações em crise ou em desenvolvimento com vistas a alcançar as promessas da mundialização. 211 Capítulo III CONTINUIDADE E RUPTURA: NOVO-DESENVOLVIMENTISMO OU NEOLIBERALISMO À BRASILEIRA? A história do intervencionismo estatal não é nem uma história homogênea nas diversas formações sociais, nem uma história linear de um Estado acumulando e adjudicando, progressivamente, tais ou quais atividades ou domínios econômicos intrínsecos: é uma história de desenvolvimento desigual segundo as diversas formações, com avanços e recuos. Nicos Poulantzas Até aqui, temos visto como a tematização da problemática teórico-prática do Estado tem se revestido de controvérsias, caminhos e descaminhos, desde suas formas mais primitivas, de proto-Estado, até seus moldes atuais. O fato é que sua forma hegemônica contemporânea provinda do advento da razão moderna adquire a particularidade histórica de se dissociar de um regime político que possa acolher em seu interior aspirações éticas, políticas, ideológicas, culturais, econômicas, dentre outras, que nada mais são do que as representações materiais e simbólicas dos interesses das classes que se condensam no Estado como decorrência da luta que empreendem no campo da produção e reprodução social333. Assim, o Estado burguês, ao acomodar os interesses da classe dominante e suas frações em seu interior, sob o amalgama do pensamento liberal, legitima a democracia, que assume sua forma, portanto democracia liberal, como seu revestimento político mais adequado. E isso se deve a um fato muito simples: a sustentabilidade desse tipo de Estado que, por consequência, é a sustentabilidade do próprio capitalismo e não pode prescindir da radicalização do trabalho 333 Para Poulantzas (2000, p. 147), as lutas populares estão inscritas na materialidade institucional do Estado, mas não se esgotam aí. Refere: “As lutas políticas desencadeadas sobre o Estado não estão, tanto quanto qualquer luta frente aos aparelhos de poder, em posição de exterioridade frente ao Estado, mas derivam de sua configuração estratégica: o Estado, como é o caso de todo dispositivo de poder, é a condensação material de uma relação”. O autor é bastante racional, ao considerar a assimetria dessa relação quando informa que “a existência das classes populares não se materializa no seio do Estado da mesma maneira que as classes e frações dominantes, mas de maneira específica” (p.145). Explica: “As classes e frações dominantes se constituem no Estado mediante aparelhos ou setores que, certamente sob a unidade do poder do Estado da fração hegemônica, não deixam de cristalizar um poder próprio dessas classes e frações. Não é mediante aparelhos que concentram um poder próprio das classes dominadas que elas se constituem no Estado mas, no essencial, sob a forma de focos de oposição ao poder das classes dominantes. Seria falso — deslize com consequências políticas graves — concluir que a presença das classes populares no Estado significariam que elas aí detenham poder, ou que possam a longo prazo deter, sem transformação radical deste Estado” (p. 145). Retomaremos esta assertiva no Capítulo 4, quando tratarmos do modo como o Serviço Social incorporou, ao longo de sua história, os postulados da democracia liberal em suas expressões “participativas” e “representativas”, como forma de participar da luta das classes subalternas por melhores condições de vida. 212 livre, pois nele reside a chave primeira de todo o processo do desenvolvimento capitalista e da acumulação que lhe é inerente. Desta forma, a democracia burguesa tem disseminado, ao longo de sua história, seus postulados, quase que como em profissão de fé, mundo afora, afirmando que essa formação social, que combina capitalismo e democracia, é o estágio civilizatório mais elevado que a espécie humana pode alcançar (PAULA, 2012)334. Como não poderia deixar de ser, considerando as contradições imanentes desse modo de produção e sua formação social correspondente, os postulados liberais servem à acumulação, mas também possibilitam relativa mobilidade social que, nos seus limites, não impede que a classe-que-vive-do-trabalho335, possa organizar-se em torno de uma luta por melhores condições de vida e, nesse processo, constatar-se a aquisição de uma consciência de classe mesmo relativa.336 No Brasil, uma sacralização da democracia liberal está sendo sentida desde o fim do último período autocrático burguês (1964-1985) até os dias de hoje. Por aqui, se propala seu triunfo atestado pela estabilidade das instituições jurídico-políticas de nosso Estado com eleições diretas nos três níveis de governo; o exemplo mais acabado; e, mais recentemente corroborada pela “estabilidade econômica” do Plano Real, seguido de políticas chamadas de novas e desenvolvimentistas. Caminhando para muito além dos componentes políticos e ideológicos desse processo, o projeto de nossa democracia liberal é amparado pelos estatutos normativos dispostos na Constituição Federal de 1988, alcunhada de Constituição Cidadã, justamente por apresentar as diretrizes que nortiam a construção do sujeito-cidadão brasileiro. Lá, consagra-se o direito à vida, mas também à propriedade, o direito do Estado exercer seu poder coercitivo, por ser regulatório, mas também o direito à participação dos cidadãos na agenda pública. Só para nominar dois exemplos simples de como o pensamento burguês controla, sob a aparência da liberdade, as nossas relações sociais. Nessa mesma contradição, acompanhando o processo de redemocratização de vários Estados nacionais, sobretudo na América Latina, o Brasil vê reconfigurar-se na cena pública sujeitos históricos outrora suplantados pela truculência da ditadura, no sentido de não apenas 334 PAULA, Renato Francisco dos Santos. O instituído e o instituinte do controle social da assistência social no Brasil pós-Suas. XIII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL – ENPESS. Anais. Juiz de Fora/MG, novembro de 2012. (ISBN 978-85-89252-11-9). 335 Termo alcunhado por Ricardo Antunes. (In: ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 8. ed., São Paulo: Cortez, Campinas: Unicamp, 2002). 336 Evidente que o processo de consciência de classe não ocorre assim de modo simples e linear, como pode sugerir uma leitura primeira de nosso texto. Como não é possível aprofundar esse processo aqui, interessa-nos apenas demonstrar que ele faz parte das contradições dadas pela realidade mesma da ordem do capital e seus padrões de sociabilidade. Nos itens 4.2.1 e 4.2.2 esse processo é mais bem esclarecido. Também a obra História e Consciência de Classe, de Georg Lukács, é elucidativa, nesse sentido. 213 imprimir mais diretrizes democráticas ao arcabouço legislativo como também implantá-las idealmente337. Reconstroem-se, na euforia da redemocratização, os conceitos de participação e de sociedade civil. Conceitos estes muito caros tanto para a esquerda reformista quanto para a esquerda anticapitalista, pois neles, por exemplo, se busca sentido às estratégias e táticas pertinentes ao advento tanto da social-democracia quanto da Revolução Comunista, por etapas ou por ruptura radical. Basta observar os embates teóricos da II Internacional, ou proceder a uma análise sobre a instituição dos sovietes, na URSS; das comunas populares, na China; ou das comunas socialistas, na atual Venezuela. Isto é, não se pode ignorar a importância dessas categorias para a teoria e a prática da reforma (real e substantiva) ou da transição comunista. Numa sociedade de transição, possibilidades civilizatórias emanam do interior de suas contradições quando as oposições ao sistema dominante imprimem parte de seus interesses imediatos como condição de luta. (...) neste tipo de sociedade [a sociedade de transição] os direitos humanos estipulam o padrão que no interesse da igualdade verdadeira, o direito ao invés de ser igual, teria de ser desigual, de modo a discriminar positivamente em favor dos indivíduos necessitados, no sentido de compensar as contradições e desigualdades herdadas. (MÉSZÁROS, 1993, 217)338. Porém, a discriminação positiva como parte do complexo mediativo e intermediário à transição socialista não é algo dado à realidade factual. Nem no Oriente e nem no Ocidente. O conceito de sociedade civil e com ele o de participação — que em Gramsci (ou mesmo Poulantzas) adquirem inteligibilidade a partir da luta de classes — foram sobremaneira vulgarizados visto que são empregados tanto pela “esquerda histórica quanto pelas novas esquerdas, tanto pelo centro liberal quanto pela direita fascista” (NOGUEIRA, 2001, p. 216)339, o que torna a luta por direitos humanos cada vez mais cindida e desprovida do caráter de classe: 337 In: SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. Ensaios de negação e afirmação. São Paulo: Ensaio, 1993. 339 NOGUEIRA, Marco Aurélio. As três ideias de sociedade civil, o estado e a politização. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula Teixeira. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 338 214 Fala-se em sociedade civil para pensar a oposição ao sistema capitalista e para delinear estratégias de convivência com o mercado, para propor programas democráticos radicais e para legitimar propostas de reforma gerencial no campo das políticas públicas. Busca-se apoio na ideia de sociedade civil tanto para projetar um Estado efetivamente democrático quanto para se atacar todo e qualquer Estado. É em nome da sociedade civil que muitas pessoas questionam o excessivo poder governamental ou as interferências e regulamentações feitas pelo aparelho de Estado. É em seu nome que se combate a globalização neoliberal e se busca delinear uma estratégia em favor de uma outra globalização, mas é também com base nela que se faz o elogio da atual fase histórica e se minimizam os efeitos das políticas neoliberais. Muitos governos falam de sociedade civil para legitimar propostas de reforma e ajuste, tanto quanto para praticar as mesmas políticas de sempre com uma retórica levemente modernizada, do mesmo modo que outros tantos governos progressistas buscam sintonizar suas decisões com as expectativas da sociedade civil. Em suma, o apelo a esta figura conceitual serve tanto para imaginar a autonomia dos cidadãos, quanto para viabilizar programas de ajuste fiscal e desestatização, nos quais se convoca a sociedade civil para compartilhar encargos até então eminentemente estatais (id., ibid., p. 216). Portanto, esse campo essencial dos nossos exames, contudo impreciso, busca acomodação na América Latina justamente numa conjuntura em que se busca afirmar a democracia sem que tenhamos vivido experiências democráticas sólidas que nos conduzissem para um tipo de democracia que pudesse pautar uma real sociedade de transição. Se acrescentarmos a isso a jovialidade dos próprios países latino-americanos, como Estadosnacionais veremos o modo particular como o desenvolvimento capitalista se deu por aqui num mix longevo de trânsito entre continuidades a esse próprio desenvolvimento e rupturas peculiares que ilustram as excepcionalidades desse subcontinente ante os padrões de desenvolvimento do capitalismo global (ALMEIDA, 2012)340. O autor alega que “no Brasil, as continuidades predominaram amplamente sobre as rupturas, o que marcou o ritmo e as formas de organização e luta em processos que, por muito tempo, representaram acúmulo de forças, mas que, na sequência, perderam empuxe e passaram por mudanças qualitativas, terminando por se integrar à ordem” (id., p. 702). E é justamente sobre esse processo integrador ou transformista 341 que repousa uma profusão de teses e reflexões que têm animado a produção acadêmica da última década promovendo o retorno da academia ao debate sobre o desenvolvimento capitalista e suas manifestações conjunturais concretas, como o processo que tem sido chamado de 340 ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Entre o nacional e o neonacional-desenvolvimentismo: poder político e classes sociais no Brasil contemporâneo. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112, edição especial. São Paulo: Cortez, out./dez. 2012. 341 O “transformismo” é categoria gramsciana que, segundo Coutinho (1999) “significa um método para implementar um programa limitado de reformas, mediante a cooptação pelo bloco no poder de membros da oposição”. A categoria “transformismo” está diretamente vinculada às de “revolução-passiva” ou “revolução-restauração”. (Ver: COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999 ou consultar o próprio Gramsci, em Cadernos do Cárcere, v. 3). 215 neodesenvolvimentismo, tratado, nesta tese, como um momento de síntese da acumulação capitalista em sua fase financista. Por ser o momento atual o mais longo período de democracia ininterrupta no País — 27 anos, desde 1985 — a acomodação de interesses dominantes na ossatura do Estado e nas instituições desse regime democrático condicionaram não apenas a retração das pautas contestatórias da classe trabalhadora como também possibilitaram metamorfoses regressivas e veladas, mas nem sempre, nos estatutos civilizadores das relações sociais, como o pluralismo, os direitos humanos, etc., como já dissemos. Pela exploração bibliográfica das produções que tiveram como foco o desenvolvimento capitalista brasileiro recente, algumas no campo da tradição marxista, notamos que o período que coincide com a gestão federal do Presidente Cardoso (1995-2002) é repleto de análises que caminharam mais coesas na crítica ao corolário neoliberal e contrarreformista que se estabelece na época, já, de certo modo, com ataques pontuais as imperfeições do modelo institucional democrático estabelecido342. Na conjuntura referida, as promessas de uma reforma gerencial no Estado brasileiro incluíam a reparação das fragilidades institucionais e também, como que por encanto, uma ressignificação qualitativa da sociedade civil que, muito mais ativa e politizada se autoorganizaria em torno da gestão do bem-estar coletivo343. O projeto, tal qual fora concebido, não teve tempo suficiente para se realizar. Os dois mandatos do Presidente Cardoso contaram com uma oposição crescente, e, que, aos poucos aprendeu a se utilizar do deslocamento das atividades estatais para a “sociedade civil organizada” para fortalecer a criação de sujeitos coletivos contra-hegemônicos, o que contribuiu, em parte, para desacelerar o ritmo da ofensiva neoliberal. Mas, talvez, esse tenha sido o motivo mais periférico para a não conclusão das contrarreformas. O percurso traçado pelo governo não foi — e não seria por mágica — capaz de prever os humores da economia mundial, sendo então acometido de quatro grandes crises externas: a crise do México, em 1995; a crise asiática, em 1997-1998; a crise russa, em 19981999; a crise interna Argentina; as inflexões econômicas decorrentes dos atentados em solo norte-americano, no dia 11 de setembro de 2001; além das turbulências causadas na economia mundial por dinâmicas especulativo-fraudulentas de grande monta, como o caso Parmalat ou a falsificação de balanços da Enron/Arthur Andersen344. 342 Um bom exemplo disso são os artigos referidos à análise de conjuntura submetidos à Revista Serviço Social e Sociedade, n. 50 ao n. 72. 343 Esse deslocamento se deu, sobretudo, na área social, cuja maior expressão foi o movimento denominado por Yazbek de refilantropização. (Ver YAZBEK, Maria Carmelita. A política social brasileira dos anos 90: a refilantropização da “questão social”. Cadernos Abong, n. 3, São Paulo: Abong, 1995). 344 Ambos os casos referem-se à gestão fraudulenta especulativa de empresas multinacionais, cujos desdobramentos resultaram em concordatas e falências impactando em todo mercado financeiro mundial. 216 Outro aspecto é que, internamente, a decisão de abandonar o câmbio fixo pelo câmbio flutuante leva a uma desvalorização do Real, em 1999, fazendo o governo reforçar a austeridade de sua política econômica. Ademais, a prioridade concebida pelo governo ao grande capital financeiro internacional, no processo de liberalização, paralisa pelas membranas (e não em seus núcleos) as dinâmicas expansivas da burguesia interna (BOITO Jr., 2005)345, empurrando-a para a promoção de reordenamentos nucleares que, embora silenciosos, também acumularam capital. Descobriram a dança das recomposições acionárias e o milagre dos fundos de pensão (OLIVEIRA, 2009; LAZZARINI, 2011) 346 , permitindo, assim, a manutenção da coesão da classe proprietária nacional mesmo subordinada à internacionalização da economia347. Mesmo tendo que “driblar” tais intempéries, o ajuste neoliberal consegue calçar raízes em solo brasileiro, fixando tanto em nossa institucionalidade quanto em nossa cultura política o seu corpo essencial348. Isso também contribui para uma relativa convergência no âmbito das análises críticas sobre a ofensiva neoliberal no período. A profusão de conteúdos menos coesos e mais difusos sobre o desenvolvimento capitalista brasileiro em curso se dá a partir do final de 2002, quando se formaliza a tendência transformista do principal partido das esquerdas, o Partido dos Trabalhadores (PT), sobretudo por meio de uma carta de sua principal liderança aos brasileiros, e se acentua a partir do segundo semestre de 2005, quando o governo do Presidente Lula passa por dificuldades políticas e institucionais que quase o levam ao impeachment, ao mesmo tempo em que as tendências programáticas neoconservadoras do governo se mostram com mais clareza349. Os ataques críticos da esquerda antirreformista ao transformismo do PT e do Presidente Lula ocorrem tardiamente, pois embora uma leva de analistas já tenha demonstrado sua insatisfação na sequência da divulgação da Carta ao Povo Brasileiro, alguns do próprio PT e que o abandonam posteriormente, muitos outros adotam a posição de cautela, evitando críticas precipitadas, ainda que traços de continuidade do governo anterior já se fizessem claros, como se percebe nestas notas de Behring (2003, p. 102): 345 BOITO JR, Armando. O governo Lula e a reforma do neoliberalismo. Revista Adusp, maio 2005. LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Campus/Elsevier, 2011. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. 347 A lista poderia prosseguir, citando, por exemplo, os percalços das privatizações, o peso encilhador da máquina do Estado servindo de entrave para diminuir o ritmo das reformas em seu próprio aparelho, dentre outros fatores; como, no decorrer do capítulo, isso será tratado com detalhes, por ora, nos basta fornecer uma imagem apenas panorâmica das implicações conjunturais em tela. 348 É o que também afirma Gonçalves (2012) em Novo Desenvolvimentismo e liberalismo enraizado. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112. 349 Essas tendências se observam pelo reforço à austeridade fiscal, sobretudo, pela manutenção da política de juros altos e superavitária. A crise deu-se, dentre outros motivos, por uma sucessão de denúncias da oposição relacionadas a diversas formas de corrupção dentro do governo. A mais propalada foi a denúncia de que os parlamentares da base aliada ao governo receberiam recursos “mensais” para votar a favor de projetos de interesse do governo. O processo ficou conhecido como “mensalão”. 346 217 Vejamos algumas linhas gerais que delineiam a condição da política social nos tempos neoliberais, cujos traços gerais permanecem — considerando seu grau de enraizamento e consolidação estrutural — apesar dos sinais de esgotamento neste início de milênio (...) Do qual o resultado das recentes eleições presidenciais no Brasil é muito significativo, ainda que num quadro interno de fortes concessões para as ‘pressões do mercado’ e num contexto de crescimento do belicismo e de aprofundamento das tendências regressivas da economia mundial. Ainda assim, abrese uma nova correlação de forças e o clima geral é de esperança de mudanças significativas de rota350. É provável que os traços acadêmico-intelectuais que marcaram o contrarreformismo de FHC, externalizados pela ampla produção técnica liderada por Bresser Pereira, mas seguido bem de perto por outros membros do primeiro escalão, como Pedro Malan e José Serra, na área econômica e o segundo, posteriormente, na Saúde; José Gregori, na Justiça; Adib Jatene, na Saúde; Paulo Renato de Souza, na Educação; dentre outros, tenha deixado o projeto mais evidente e, por isso mesmo, mais exposto e acessível a investigações acadêmicas e populares. O primeiro governo Lula não apresenta o mesmo acabamento. O desenho de Estado que se queria implementar estava claro nas mentes do Presidente e de seus auxiliares mais próximos como o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, mas não se traduzia, pelo menos de modo claro e explícito como fora a obra de Bresser, em documentos técnicos-políticos e metodológicos, o que explica em parte a cautela adotada dos analistas críticos ao governo. Outra parte da explicação recai sobre o enorme apelo popular que a imagem do Presidente possui junto à classe subalterna, associada às mudanças que promove na relação capital-trabalho, dando ao “subproletariado” pela primeira vez na história deste País, condições (marginais e mais ideais que reais) de se sentir parte do poder político da nação, originando o que Singer (2012) denominou de lulismo, novamente certificando-se da dinâmica de continuidade e ruptura O lulismo existe sob o signo da contradição. Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do fenômeno que torna difícil sua interpretação351. O ideal de nação e as estratégias para alcançar tal ideal começam a explicitar-se, deixando mais claro o que Singer (2012) aponta como ambíguo e difícil, com a queda dos dois braços direitos do Presidente, justamente José Dirceu e Antônio Palocci. A partir daí, o governo 350 BEHRING, Elaine Rossetti. Contrarreforma do estado, seguridade social e o lugar da filantropia. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 73, ano XXIV, São Paulo: Cortez, mar. 2003. 351 SINGER, André. Os sentidos do lulismo – reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 218 passa a se cercar de outros perfis políticos, voltados agora para as atividades técnicas de sua administração. Dilma Rousseff assume, no lugar de José Dirceu, a Casa Civil da Presidência da República e Guido Mantega o Ministério da Fazenda. Em 2007, reestruturações internas em todo Executivo federal levam o economista Márcio Pochmann à Presidência do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e Luciano Coutinho à Presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Modifica-se adjetivamente o perfil do núcleo pensante do governo. Não estamos afirmando que essas mudanças seriam as motivadoras da emergência do que o governo passa a denominar por “novo desenvolvimentismo”, pois é possível perceber os sinais de sua gênese muito antes desses fatos, contudo, seguramente, é possível inferir que a partir deles é que o projeto novo desenvolvimentista toma forma metodológica acabada, redundando a partir daí na profusão de análises críticas e/ou conservadoras sobre o fenômeno. Tal fato se confirma quando defensores desse modelo, como Mercadante Oliva, afirmam que o projeto petista para o Brasil se construiu na experiência, isto é, no exercício prático da gestão pública, o que, de certa forma, contradiz toda a história do PT, que sempre discursara em torno de um projeto alternativo para o País pautado numa reflexão crítica sobre suas estruturas e seu poder político particular, de modo histórico e não pelo pragmatismo da prática. A construção do projeto pela prática o eivara de incertezas: Ainda é difícil prever com exatidão como serão o novo modelo e o mundo que começa a ser desenhado neste início de milênio. Mas é provável que a exitosa experiência brasileira recente lance algumas luzes sobre o assunto, antes que passe o dia das inevitáveis transformações. Usamos o termo “experiência” porque é exatamente disso que se trata. De fato, esse Novo Desenvolvimentismo que começou a ser construído no Brasil não surgiu de um grande esforço teórico de reflexão sobre o desenvolvimento brasileiro e nem de um planejamento estratégico prévio, mas sim da práxis de um governo popular que procurou, desde o início, reverter os danos causados ao país pela agenda neoliberal. O Novo Desenvolvimentismo no Brasil é, assim, uma construção histórica coletiva que está sendo paulatinamente moldada por novas forças políticas, inéditos cenários internos e externos e demandas sociais seculares; um complexo processo em andamento que tem, ainda, a distinta marca pessoal da liderança do presidente Lula. (MERCADANTE OLIVA, 2010, p. 1011)352. 352 A base material constitutiva de qualquer projeto político que se leve a cabo deve ser mesmo a realidade em que se assentam as relações econômico-sociais. Nesse sentido, a afirmação de Mercadante Oliva plasma-se na contramão de um idealismo que trata a realidade a partir das manifestações abstratas do pensamento, o que é compatível com a dialética marxiana. Contudo, as implicações negativas da falta de um projeto político racional e previamente planejado tendem a ser maiores do que as possíveis intenções positivas contidas na agenda político-pessoal de seus protagonistas. É por isso, inferimos, que se utiliza o recurso ao personalismo carismático do presidente Lula. Isto é, a incerteza gerada pela ausência de projeto passa a ser suplantada pelas promessas de uma estabilidade futura afiançada pelo crédito pessoal do líder político, o que tende a reforçar tanto o patrimonialismo quanto o clientelismo. (In: 219 A partir disso, uma polarização se estabelece em duas correntes que disputam hegemonia nas fileiras acadêmicas. A “corrente da ordem” passa a ter os órgãos oficiais de inteligência como o Ipea e o IBGE e alguns núcleos universitários, como o de alguns economistas da Unicamp e da UFRJ, como centros elaboradores tanto da metodologia quanto das explicações legitimadoras da “nova ordem”353. Almeida (2012) refere que essas correntes são: a que insiste em que [Lula] promoveu uma clara ruptura com a política implementada por [FHC] e a que, ao contrário, afirma que o principal das políticas de Estado no período 2003-2010, especialmente as políticas sociais, não somente deu continuidade e aprofundou o que foi realizado pelo tucanato como também se apoiou em sólidos fundamentos macroeconômicos estabelecidos nos anos FHC (governo Itamar inconcluso)354. Essa polarização é eivada de variações internas, em ambos os polos, que indicam que esse debate está apenas no início. As variações internas, no âmbito de cada polo, se distinguem naquilo que dão ênfase, pois no final mais se complementam do que se repelem. Castelo (2012, p. 629) identifica que as correntes que contribuem para a autojustificação do status quo governista se subdividem em três tipos: A primeira pode ser chamada de macroeconomia estruturalista do desenvolvimentismo. A ideia básica apresentada é a primazia do mercado e seus mecanismos de produção da riqueza, com uma atuação reguladora do Estado nas falhas do mercado, especialmente nas políticas cambiais e de juros, com destaque para a promoção das exportações.355. Essa corrente, segundo o autor, é inaugural da perspectiva novo desenvolvimentista no Brasil, pois é marcada pela inflexão que sofre a elaboração de seu principal articulista na direção do abandono sistemático da defesa das teses neoliberais para a propositura de um modelo alternativo. Bresser Pereira, líder do contrarreformismo neoliberal no Brasil, durante a Era FHC, passa, então, a defender um modelo de desenvolvimento nacional capaz de se contrapor ao neoliberalismo (CASTELO, 2012), o que nos sugere, o caso emblemático de Bresser Pereira, um transformismo às avessas. MERCADANTE OLIVA, Aloizio. As bases do novo desenvolvimentismo no Brasil. Análise do governo Lula (2003-2010). Tese (Doutorado)- Instituto de Economia da Unicamp, dezembro de 2010.) 353 Evidente que há dissonâncias e pluralismo de ideais e posturas nesses espaços, contudo, há uma manifestação hegemônica que nos permite elaborar tal citação. 354 ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Entre o nacional e o neonacional-desenvolvimentismo: poder político e classes sociais no Brasil contemporâneo. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112, edição especial. São Paulo: Cortez, out./dez. 2012. 355 CASTELO, Rodrigo. O novo-desenvolvimentismo e a decadência ideológica do pensamento econômico brasileiro. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112, out./dez. 2012. 220 A segunda corrente admite o pressuposto da primeira, que se refere a uma reinvenção do nacional-desenvolvimentismo — que resultaria em algo bastante distinto do que foi verdadeiramente o nacional-desenvolvimentismo — mas dá ênfase ao papel regulador do Estado e à nova concertação entre capital-trabalho, por meio da centralidade conferida às políticas de promoção de igualdades e oportunidades, bem ao gosto de intelectuais da linhagem de um Amartya Sen356. A segunda corrente, chamada de pós-keynesiana, assemelha-se muito à primeira, sustentando o papel do Estado como redutor das incertezas do ambiente econômico para favorecer as tomadas de decisão de investimento do setor privado, variável responsável em larga medida pelo crescimento econômico. Cabe ressaltar que tanto a primeira quanto a segunda corrente advogam a tese da aliança do Estado com o mercado (leia-se o empresariado industrial) contra os rentistas, como se essa contraposição radical entre as frações da burguesia existisse em tempos de acelerada fusão dos diferentes ramos do capital (agrícola, bancário, comercial, industrial e rentista). Fala-se novamente em uma coalização nacional entre burguesia industrial nacional, burocracia estatal, setores médios e trabalhadores, com hegemonia dos primeiros dois grupos sobre os demais. (CASTELO, 2012, p. 629)357. Essa corrente tem espaço relativo no Ipea e suas formulações metodológicas podem ser encontradas no livro organizado por João Sicsú, Luiz Fernando Paula e Michel Renault intitulado Novo Desenvolvimentismo: Um Projeto Nacional de Crescimento com Equidade Social (Barueri, Rio de Janeiro: Manole, Fundação Konrad Adenauer, 2005). A terceira corrente propala a reversão de tendências estruturais do neoliberalismo puxadas por um reordenamento distributivo. A ênfase que confere às políticas sociais as colocam como o eixo estruturante da política econômica que se quer desenvolver, assumindo aquilo que Vieira já informara, nos anos 1980, e que citamos no Capítulo II, que assevera ser a política social no capitalismo “um braço superespecializado da política econômica” 358 . Na lógica simples de ampliar o consumo de massa por meio da focalização e da seletividade das políticas de transferência monetária, associadas a outras do tipo ampliação do microcrédito, 356 Nesse sentido, consultar MARANHÃO, Cézar Henrique. Desenvolvimento social como liberdade de mercado: Amartya Sen e a renovação das promessas liberais. (In: MOTA, Ana Elizabete. Desenvolvimentismo e construção de hegemonia crescimento econômico e redução da desigualdade. São Paulo: Cortez, 2012.). 357 CASTELO, Rodrigo. Ob. Cit., out./dez. 2012. 358 Relembrando os dizeres do autor: “A política social trata-se de estratégia voltada para o chamado desenvolvimento econômico e, consequentemente, para atuar na correlação de forças sociais, segundo as determinações daquele desenvolvimento. Considera-se, portanto, que qualquer política social aplicada pelo governo representa de certa maneira as relações entre o Estado e a Economia, durante a época em questão. Assim como a política econômica, também a política social revela, em seu nível lógico e em seu nível histórico, as transformações havidas nas relações de apropriação econômica e no exercício da dominação política, presentes na sociedade brasileira” (VIEIRA, 1983, p.10). 221 valorização real do salário-mínimo, etc., essa perspectiva se leva a cabo. Uma tese de doutorado, que teve dentre seus arguidores Bresser Pereira e Delfim Neto, sistematiza o pensamento dessa terceira corrente. As Bases do Novo Desenvolvimentismo no Brasil: Análise do Governo Lula (2003-2010) foi o nome que a tese recebeu, sendo apresentada por seu autor, Aloizio Mercadante Oliva, ao Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), em dezembro de 2010. A terceira corrente é a social-desenvolvimentista, cujas propostas estão assentadas na afirmação do mercado interno via ampliação do consumo de massas. O Estado tem um peso maior nas propostas dessa corrente no que nas duas precedentes, e as políticas macroeconômicas devem ser subordinadas às do desenvolvimento. (CASTELO 2012, p. 629)359. Castelo (2012) identifica a produção de Pochmann, que esteve à frente do Ipea como seu presidente, de 2007 a 2012, com a de Mercadante Oliva, portanto, no campo do socialdesenvolvimentismo. De fato, os argumentos desses autores aproximam-se quando se referem à substituição da hegemonia neoliberal por um novo modelo de desenvolvimento, mas isso não é, entretanto, exclusividade desses autores. Como vimos, as três tendências arroladas também admitem esse pressuposto. A aproximação está, então, na defesa de que esse novo ciclo se assenta na conjugação do crescimento econômico, na reafirmação da soberania nacional (Brasil como credor mundial, acúmulo de reservas externas e diversificação de parceiros comerciais), reformulação do papel do Estado (reforço nas empresas e bancos públicos, aumento do funcionalismo público e o PAC360), e o choque distributivo (aumento do saláriomínimo e dos gastos sociais — previdência, assistência, seguro-desemprego e abono salarial — e expansão do crédito para pessoas físicas). (Id., p. 627 ). A produção de Pochmann serve aos intentos de autojustificação do modelo implementado após 2006361, mas reserva um veio crítico ausente nas demais correntes. Não afirmamos, contudo, que Pochmann inaugura uma quarta corrente. Todavia, agrega elementos críticos a essa terceira que merecem nossa atenção. Suas críticas referem-se, sobretudo, aos limites e às omissões estruturais desse novo modelo. Deste modo, Pochmann não adere acriticamente à apologia sobre a emergência de uma nova classe média, como também não 359 CASTELO, Rodrigo. Ob. Cit., out./dez. 2012. Programa de Aceleração do Crescimento. 361 E não em 2003, pois, como demonstramos, o projeto novo desenvolvimentista não se inaugura com o governo Lula, em 2003. Demora um pouco para acontecer, isto é, emerge após a primeira grande crise politico-institucional da Era Lula. 360 222 poupa de críticas a não realização de reformas estruturais, como a reforma agrária, por exemplo, e, ainda, a não preparação do País para o seu novo perfil demográfico: A metamorfose pela qual passa a atual estrutura social brasileira prescinde de interpretações mais profundas e abrangentes, que possam ir além da abordagem rudimentar e tendenciosa a respeito da existência de uma nova classe média (...) Causa constrangimento maior, contudo, o viés político difundido pelos monopólios sociais construídos pelos meios de comunicação e seus “oráculos” midiáticos que terminantemente manipulam o consciente da população em prol de seus próprios desejos mercantis, defendendo o consumismo e negando a estrutura de classe na qual o capitalismo molda a sociedade. (POCHMANN, 2012, p. 7)362. Também se agrega nesse mesmo contexto a opção política rasteira que certos intelectuais engajados à lógica mercantil se associam com uma retórica de classe de rendimento desprovida de qualquer sentido estrutural, o que nada mais é do que a tradução do caráter meramente propagandista dos imperativos do mercado. Ou, ainda, a partir de rudimentar tratamento estatístico de dados da realidade, definidos por mera percepção subjetiva, o estabelecimento de orientações de políticas públicas, quando não de opção partidária (Id., Ibid., p. 7)363. Entende-se que não se trata da emergência de uma nova classe — muito menos de uma classe média. O que há, de fato, é uma orientação alienante sem fim, orquestrada para o sequestro do debate sobre a natureza e a dinâmica das mudanças econômicas e sociais, incapaz de permitir a politização classista do fenômeno de transformação da estrutura social e sua comparação com outros períodos dinâmicos do Brasil (Id., Ibid., p. 8)364. (...) o enfrentamento dos problemas que estão vinculados à emergência do capitalismo urbano industrial não foram enfrentados. O Brasil não fez as reformas clássicas do capitalismo contemporâneo, não fez a reforma agrária, não fez a reforma tributária e não fez a reforma social. O Brasil tem uma estrutura fundiária hoje pior do que era nos anos 50 quando ganhou primazia a defesa da reforma agrária. Nós estamos falando de 60 anos de reforma agrária e a estrutura fundiária brasileira piorou, nós não enfrentamos a questão fundiária, da tributação, os pobres continuam pagando mais impostos, os ricos continuam pagando menos impostos. Qualquer país desenvolvido tem uma estrutura fundiária menos concentrada, uma estrutura tributária progressiva e não regressiva. O que avançou mais foi a estrutura social (...) Mas, para nós, estamos gestando um novo ovo de serpente, cujo sinais de exclusão são muito maiores do que esses que nós conhecemos agora. (Id., Ibid., p. 13-14)365. 362 POCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012. 363 Id., ibid. 364 Id., ibid. 365 Entrevista concedida à revista Caros Amigos, ano XIV, n. 161, ago. 2010. 223 Toda essa agitação política, técnica, ideológica e metodológica em torno desse novo desenvolvimentismo, como dissemos, está em curso e longe de se esgotar. Contudo, o caráter unívoco dos elementos factuais que o materializam provocam certa recalcitrância no escopo argumentativo que pode se configurar como base de uma perversa armadilha. De um lado, pode levar ao enquadramento desse debate como um modismo passageiro, que tende a ser substituído por outra temática, tão logo se inovem as orientações conjunturais da economia política burguesa — e esse traço de modismo já é perceptível devido ao modo despolitizado e desestrutural com que algumas adesões ao debate têm sido feitas à direita e à esquerda. Por outro lado, corre-se o risco de marginalizar aquilo que tem importância capital ao debate, que não é o novo desenvolvimentismo de per si, mas sim o desenvolvimento capitalista e a sua dinâmica ineliminável de expropriação do trabalho com fins de acumulação crescentes. Esse, sim, é o debate que permanece perene, atravessando conjunturas, e, que sem ele, qualquer análise sobre desenvolvimentismo ou novo desenvolvimentismo se anula de sentido, se anula de razão histórica. Ao longo das seções deste capítulo, teremos a oportunidade de transitar pelos elementos que compõem a dinâmica de continuidades e rupturas do processo analisado e que nos levam à constatação, do mesmo modo que afirma Almeida (2012), que as continuidades se sobrepujaram às rupturas, o que impede sobremaneira a admissão de um novo paradigma de desenvolvimento, contudo, as ambiguidades apresentadas pelo momento conjuntural nos permite evidenciar suas particularidades e arrolar um modo bem brasileiro de promover os arranjos a que se assiste. Mas, de novo, insistimos, contextualizadas na dinâmica estrutural do modo capitalista de desenvolver-se, cujas bases já foram desmistificadas por Marx, fato que passamos a resgatar. 3.1 Modo de produção, expropriação e fluxos do capital No final dos anos 80 e durante toda a década seguinte, criaram força as teses que advogaram o fim do trabalho como precondição ao fim da História (FUKUYAMA, HABERMAS, GORZ, etc.). Essas teses, no geral, deslocavam a centralidade do trabalho para esferas diversas da vida social, como a ciência, a comunicação, ou a formas humanizadas de acumulação capitalistas, mais idealizadas do que reais. Antunes, em Adeus ao Trabalho? e em Os Sentidos do Trabalho366 responde às vulgatas pós-modernas destruidoras do trabalho e de sua centralidade na vida social. Nesses ensaios, o autor demonstra com rigor que o deslocamento proposto pelos autores pós-modernos não é possível, pois a força de trabalho e o 366 ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 8. ed., São Paulo: Cortez, Campinas: Unicamp, 2002. ______. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed., São Paulo: Boitempo Editorial, 2000. 224 trabalho permanecem cruciais para os sujeitos envolvidos no processo de produção e reprodução social da vida, condicionados pela posição que ocupam na teia societária de classes. Contudo, a incorporação dessas teses surte efeitos deletérios na maneira como o modo de produção se materializa, a partir de então, pois pressupõe um reordenamento da lógica que historicamente formata as sociedades capitalistas contemporâneas. No Brasil, assistimos a esse processo com o contrarreformismo dos anos 90, que mesmo destituindo o Estado da legitimidade que lhe é conferida pela sociedade, para regular a vida social sob o primado público e invocando em seu lugar a supremacia do mercado, pareceu apostar numa nova configuração desse mesmo mercado. Não mais um mercado sustentado na relação capital que tem na força de trabalho sua força motriz, mas sim num mercado que se preparava para se modernizar e receber sem barreiras o capital portador de juros, cujas relações sociais a ele inerentes prescindiriam da sociabilidade do e pelo trabalho, podendo deslocar-se para a ciência, a comunicação ou outras esferas da vida, à sua escolha. O fetichismo capitalista encontrava ali suas bases para repousar tranquilamente no gigante adormecido e reproduzir-se sem maiores impedimentos. As privatizações realizadas na Era FHC, o direcionamento dado ao BNDES e a outros bancos públicos nos mostram como isso aconteceu no Brasil (BOITO Jr., 2005; OLIVEIRA, 2009; LAZZARINI, 2011; ARCARY, 2011, RIBEIRO Jr., 2011)367, mas antes de tratarmos disto é necessário compreender quais as bases que racionalizaram esse processo, o que nos permitirá evidenciar as continuidades e rupturas do processo de implantação do programa neoliberal e seus desdobramentos em forma de um suposto novo desenvolvimento. A liberalização econômica como medida de ajuste para os países periféricos em crise, nos anos 90, foi assentada no solo mítico de que a preponderância das atividades de caráter puramente monetário funcionaria como mola propulsora para um novo modo de acumulação e desenvolvimento que se anunciava. Novo para os desavisados, pois Marx anunciara em O Capital, em especial no Livro III, a dinâmica expansiva, mundializada, do fungierenden Kapitalisten 368 que se assentaria no mito ou fetiche da supressão do trabalho vivo e na centralidade de atividades de gerenciamento complexo dos fluxos de capitais em detrimento das atividades produtivas, mundo afora, deslocando da “fábrica” (como elemento simbólico da produção) para os bancos comerciais e não comerciais (símbolo do capital monetarizado) a 367 BOITO JR, Armando. O governo Lula e a reforma do neoliberalismo. Revista Adusp, maio 2005; OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009; LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Campus/Elsevier, 2011; ARCARY, Valério. Um reformismo quase sem reformas: uma crítica marxista do governo Lula em defesa da revolução brasileira. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2011; RIBEIRO Jr., Amaury. A privataria tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011. 368 Funcionamento capitalista. 225 força motriz da continuidade das relações sociais capitalistas avançadas369. É, pois, a partir dos enunciados marxianos sobre a acumulação primitiva que encontramos sentido nas formas contemporâneas de acumulação uma vez que a essencialidade expropriativa do trabalho permanece. Segundo Marx, as formas primitivas de acumulação sofrem inevitavelmente — pelo desenvolvimento sociometabólico do capital — um avanço em seus esquemas tradicionais. A forma primitiva de acumulação, ou circulação mercantil simples, M – D – M (mercadoria – dinheiro – mercadoria) seria metamorfoseada em D – M – D (dinheiro – mercadoria – dinheiro), ou seja, já não se trataria mais de dinheiro utilizado apenas para intermediar a aquisição de mercadorias para a produção e a venda. O objetivo capitalista passaria, desse modo, a ser a transformação do dinheiro em mais dinheiro, partindo-se então não mais do dinheiromercadoria, mas sim do dinheiro já convertido em capital, o que demonstraremos em seguida. Ato contínuo, essa transformação é insuficiente, considerando que a conversão da moeda em capital pressupõe uma etapa adiante daquela onde se obtém apenas o lucro; é necessário se obter também o mais-valor a partir do lucro, assim sendo, se torna D – M – D’, onde já há um acréscimo cristalizado no valor de M realizado em D’. Como o objetivo permanente é o aumento do lucro pela expropriação, os juros que se convertem em mercadoria dizem respeito a uma parcela da mais valia que será destinada à reprodução de capital. O juro é, assim, uma parte do lucro destinada à remuneração do capital. Imaginemos que a taxa média anual de lucro seja 20%. Então, máquina no valor de 100 libras esterlinas, nas condições médias e com aplicação média de inteligência e de atividade útil, aplicada como capital, proporcionaria lucro de 20 libras esterlinas. Assim, uma pessoa que dispõe de 100 libras esterlinas pode transformá-las em 120, ou produzir um lucro de 20 libras esterlinas. Tem nas mãos um capital potencial de 100 libras esterlinas. Se transfere por um ano as 100 libras esterlinas a outra pessoa que as aplica realmente como capital, dá a ela o poder de produzir 20 libras esterlinas de lucro, mais-valia que nada custa ao cessionário que por ela não pagará equivalente. Se no fim do ano pagar ao dono das 100 libras esterlinas 5, por exemplo, isto é, parte do lucro produzido, terá pago o valor-de-uso das 100 libras esterlinas, o valor-de-uso de sua função de capital, a função de produzir 20 libras esterlinas de lucro. A parte do lucro paga ao cedente chama-se juro, que nada mais é que nome, designação especial da parte do lucro, a qual o capitalista em ação, em vez de embolsar, entrega ao dono do capital. (MARX, 1971, p. 392)370 369 Importante lembrar que a dinâmica da expansão capitalista foi tratada por Marx em outras obras para além de O Capital, como, por exemplo, Os Grundisse 370 MARX, Karl. O capital. Livro 3, v. 5. Capítulo XXI - O capital portador de juros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. Grifo nosso. 226 Essas complexas transações impulsionam e modificam o papel das instituições que concentram grandes montantes de capital monetarizado. Os bancos, embora mantenham seu papel usurário, generalizam-se e passam a financiar o processo produtivo dependendo cada vez mais da extração da mais-valia. Ou seja, há uma modificação substantiva no modo de circulação de capital que agudiza o fetichismo. O capital monetário (capital usurário dos bancos) é emprestado para o capitalista da produção, que o recebe em forma de dinheiro. Este, por sua vez, realiza a produção de mercadorias expropriando a força de trabalho, mas mantendo a produção com o dinheiro que se imobiliza durante o processo de produção, justamente para manter a expropriação; somente após o retorno da mercadoria para a esfera da circulação, esse dinheiro é acrescido de mais valor, “a mercadoria é vendida”; finalmente, retorna para o capital monetário em forma de pagamento do empréstimo inicial, acrescido de juros, ou seja: D – d – M – d’ – D’371. É interessante observar que, para o capital monetário, as etapas internas do processo são de pouca relevância. A este interessa o retorno final do capital inicialmente investido acrescido de juros (D – D’). Por esse motivo, sua interferência na esfera produtiva – aquela da extração do trabalho não pago – se dá não por seu interesse no desenvolvimento do mundo do trabalho, mas sim pela minimização dos riscos sobre seu investimento. Deste modo, esse acaba por influenciar o mundo da produção, que fica sobremaneira a ele subjugado, dando-lhe parâmetros. A importância do capital portador de juros templorificado nos bancos será tão crescente que conferirá legitimidade ao mito que o torna pilar contemporâneo da acumulação capitalista, em detrimento de sua base real: a esfera da produção. Não há como o capital produtivo ou mercantil estabelecer-se sem relações imbricadas com o sistema monetário-financeiro. A depender da grandeza do capital mercantil, este pode instituir sua própria instituição bancária, deste modo, mantendo maior controle sobre seus investimentos nesse mercado flutuante, sem, contudo, alterar o lugar que os bancos passam a assumir como financiadores do sistema produtivo pelo crédito que concedem. A atualização da formação social capitalista passará a contar, pois, com uma inexorável relação-articulação-estrutural entre capital produtivo e capital monetário. Os proprietários particulares buscam sempre expandir seus negócios. Para isso precisam melhorar seu processo produtivo, seja através do investimento e incorporação das inovações tecnológicas e de novos processos gerenciais, seja pela diversificação de suas atividades – investem em diferentes áreas produtivas –, o fato é que, para isso, precisam esperar que se completem as etapas do ciclo de transformação da moeda em capital ou mesmo do processo mais simples de agregação de valor à mercadoria para gerar lucro. De um modo ou de outro, vislumbram o necessário entesouramento que lhes resguardará de possíveis oscilações negativas 371 D = capital monetária, usurário; d = dinheiro; M = processo de produção das mercadorias; d’ = dinheiro reconvertido pelo lucro; D’ = pagamento da usura bancária. 227 que as investidas possam apresentar. É desse modo que a relação entre estes e os bancos se torna inexorável, inclusive como relação constituinte do processo socializador do capital, como dissemos antes. O ponto de partida é o dinheiro que A adianta a B, o que pode ocorrer com penhor ou sem ele; a primeira forma, entretanto, é a mais antiga, excetuados os adiantamentos garantidos por mercadorias ou títulos como letras de câmbio, ações, etc. (...) Nas mãos de B, o dinheiro converte-se realmente em capital, leva a cabo o movimento D – M – D’ e volta a A sob a forma de D’, isto é, como D + Δ D, representando Δ D o juro. Para simplificar, abstrairemos do caso em que o capital fica por longo tempo nas mãos de B, e os juros são pagos periodicamente. O movimento é, portanto: D – D – M – D’ – D’. O que aparece, aqui duplicado é, primeiro, desembolso do dinheiro como capital e, segundo, seu retorno como capital realizado, como D’ ou D + Δ D. (MARX, 1971, p. 394)372 Os bancos são ao mesmo tempo proprietários de capital monetário e participantes do processo de extração da mais valia, sem prejuízo de outras formas de monetarização, como títulos, letras de câmbio ou ações, como aponta Marx, e tendem a concentrar o conjunto do capital monetário que circula, hoje, de modo desterritorializado, no sistema formal legal e no sistema paralelo dos paraísos fiscais. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para o papel dos Estados, como financiadores parceiros do sistema, quando exercem sua atribuição de regular o mercado, sobretudo nos momentos de crise, constituem-se como verdadeiros redentores da aventura predatória e suicida do capital, ao injetar recursos públicos para salvar bancos da bancarrota. Esse é, de fato, um vetor importante do nosso tema, mas não entraremos nele agora, para não desviar a lógica de exposição que estabelecemos. O que nos chama a atenção, nesse caso, é que a base social que possibilita essa nova forma do capital, forma mais desenvolvida, avançada, é ao mesmo tempo fundamental e velada. A base social a que nos referimos está afeta ao trabalho (vivo) e sua expropriação, e isso significa que as definições do valor trabalho, dos custos de todo o processo produtivo, das margens de lucro e de juro não são definidas de modo abstrato e nem por vontade imperiosa de capitalistas ou do Estado, ainda que estes controlem o processo. A base social que o legitima, como dissemos, é alimentada pelo trabalho onde o excedente vincula-se diretamente à concentração de capital monetário e seu grau de autonomização. 372 MARX, Karl. Ob. Cit., 1971 228 Não vê que o tempo de produção e o tempo de circulação concorrem para determinar o preço das mercadorias; que por essa razão, a taxa de lucro é determinada para dado tempo de rotação do capital e que essa determinação do lucro segundo um tempo dado acarreta a determinação do juro. Aí sua sagacidade, como sempre, consiste em observar as nuvens do pó da superfície e presunçosamente proclamá-las algo misterioso e importante. (Marx, 1971, p. 412)373 No capítulo XXV, do livro III – Crédito e Capital Fictício, de O Capital, Marx (1971, p. 460-461), ao demonstrar a articulação entre o sistema de crédito comercial e o sistema de crédito bancário, evidencia o modo especulativo que passa a caracterizar a produção capitalista em geral. Inicia dizendo: Mostramos anteriormente (livro primeiro, capítulo III, 3, b) como surge, da circulação simples das mercadorias, o dinheiro na função de meio de pagamento, estabelecendose entre produtores e comerciantes de mercadorias relação de credor e devedor. Com o desenvolvimento do comércio e do modo capitalista de produção que só produz tendo em mira a circulação, amplia-se, generaliza-se e aperfeiçoa-se esse fundamento natural do sistema de crédito. Em regra, o dinheiro aí serve apenas de meio de pagamento, isto é, vende-se a mercadoria trocando-a não por dinheiro, mas por promessa escrita de pagamento em determinado prazo (...). Até o dia de vencimento e pagamento circulam por sua vez como meio de pagamento, e constituem o dinheiro genuíno do comércio. Quando por fim se eliminam pela compensação entre débitos e créditos, desempenham absolutamente o papel de dinheiro, pois não há conversão final em dinheiro. Esses adiantamentos recíprocos entre produtores e comerciantes constituem a verdadeira base do crédito, do mesmo modo que o instrumento de circulação, a letra, constitui o fundamento do dinheiro de crédito propriamente dito, os bilhetes de banco, etc. Estes baseiam-se não na circulação monetária, de metal ou de papel emitido pelo Estado, mas na circulação das letras374 As metamorfoses sofridas ao longo dos tempos, no processo de inovação das formas de crédito pela intermediação da letra375 caracteriza a especulação possibilitando o surgimento, a diversificação e a ampliação das atividades monetárias-financeiras376 e agudiza o fetichismo. Afinal, o anunciado gerenciamento da atividade complexa pressupõe um sem número de ações que precisam ser controladas pelo capitalista, de modo que este se cerque de garantias positivas para as transações. Uma das manifestações contemporâneas desse processo é, por exemplo, o surgimento de empresas que se disponibilizam a administrar os “riscos” dos investimentos 373 Id., Ob. Cit., p. 412. MARX, Karl. Ob Cit.. Capítulo XXV - Crédito e capital fictício, 1971. 375 Marx chama de “letra” todas as promessas de pagamento do crédito tomado, contratualizadas. 376 Nos capítulos seguintes, Marx trata do crédito público como decorrente do mesmo processo, mas é importante notar que essa diversidade inclui as atividades de corretagem, de seguros, câmbio, investimentos, fundos de pensão, mercados de futuros, etc., como formas não bancárias de capitalização. 374 229 capitais, as chamadas venture capital ou simplesmente empresas de capital de risco377. Moreira e Souza (2011, p. 3) lembram que, para Schumpeter, o desenvolvimento econômico processa-se por três fatores fundamentais: empresário inovador, crédito bancário e inovações tecnológicas. O crédito bancário surge, muitas vezes, em consequência de projetos rentáveis de investimento e de garantias suficientes para minimizar o risco dos negócios. Em muitas situações, os empreendedores, que recém iniciaram seus negócios, não possuem condições para tomarem empréstimos. É nessa oportunidade que entra em cena o capital de risco378 Assim, os bancos configuram-se como um produto histórico decorrente da evolução das formas de concentração de capital monetário, todavia, a diversificação das formas de circulação e acumulação concorre com esse monopólio bancário, intensifica a divisão do trabalho, mas não lhes retira a condição de intermediário da concentração. Ligado a esse comércio de dinheiro desenvolve-se o outro aspecto do sistema de crédito, a administração do capital portador de juros ou do capital-dinheiro como função particular dos banqueiros. Tomar dinheiro emprestado e emprestá-lo torna-se negócio especial deles. São os intermediários entre o verdadeiro emprestador e o prestatário de capital-dinheiro. De modo geral, o negócio bancário, sob esse aspecto, consiste em concentrar grandes massas de capital-dinheiro emprestável, e assim, em vez do prestamista379 isolado, os banqueiros, representando todos os prestamistas, se confrontam, com os capitalistas industriais e comerciais. Tornam-se os administradores gerais do capital-dinheiro. Além disso, concentram todos os prestatários perante todos os prestamistas, ao tomarem emprestado para todo o mundo comercial. (MARX, 1971, p. 463)380. 377 Segundo Moreira e Souza, “capital de risco é o capital investido na forma de participações no capital de empresas com potencial de rápido crescimento. O principal objetivo do investidor é obter retornos acima da média do mercado, aceitando, assim, maiores riscos. Por apostar em empresas emergentes, muitas vezes com um diferencial tecnológico, o investidor torna o capital de risco uma alternativa viável de fonte de capital para pequenas e médias empresas; isso permite a criação de novos postos de trabalho e a geração de novas tecnologias”. (In: MOREIRA, Cássio Silva; SOUZA, Nali de Jesus de. Capital de risco e desenvolvimento econômico no Brasil: uma visão schumpeteriana. Disponível em: <www.cassiomoreira.com.br>. Acesso em: 7 jan. 2012. 378 Id., Ob. Cit., p. 3. 379 Prestamista é um dos agentes envolvidos no funcionamento da mercadoria-dinheiro como capital. “O funcionamento da mercadoria dinheiro como capital (ou “mercadoria capital”) envolve de maneira geral, dois agentes principais: o capitalista monetário ou prestamista – detentor da soma em dinheiro – e o capitalista produtivo ou atuante – aquele que obtém essa quantia do capitalista monetário por meio de empréstimo e a aplica de maneira produtiva. No início do processo, o capitalista monetário cede o dinheiro para o tomador de recursos. Este mobiliza os fatores de produção e ao final obtém o lucro, a partir da mais valia. No momento de devolução ao portador original do dinheiro adiantado, o capitalista produtivo cede também uma fração do lucro. Esta representa o que se chama juro” (CHOCIAY , Henrique; NEVES, Lafaiete Santos. O conceito de juros em Marx e Keynes e sua influência sobre os modelos de crises financeiras. Revista Contribuciones a la Economia. Disponível em: < www.eumed.net/ce/2009a/csn.htm>. Acesso em: 8 jan. 2012. 380 MARX, Karl. Ob. Cit., 1971. 230 O capital portador de juros, embora se distinga do capital produtivo, assemelha-se a esse quando, para sua reprodução, tem que se converter ele mesmo em mercadoria. Desse modo, carrega consigo um valor de uso, base da tendência crescente da acumulação Dinheiro – considerado aqui expressão autônoma de certa soma de valor, exista ela em dinheiro ou em mercadorias – pode na produção capitalista transformar-se em capital, quando esse valor determinado se transforma em valor que acresce, que se expande. É dinheiro produzindo lucro, isto é, capacitando o capitalista a extrair dos trabalhadores determinada quantidade de trabalho não pago – produto excedente e mais-valia – e dela apropriar-se. Por isso, além do valor-de-uso que possui como dinheiro, passa a ter outro valor-de-uso, isto é, o de funcionar como capital. Seu valorde-uso consiste agora justamente no lucro que produz, uma vez transformado em capital. Nessa qualidade de capital potencial, de meio de produzir lucro, torna-se mercadoria, mas mercadoria de gênero peculiar. Vale dizer – o capital como capital se torna mercadoria. (Id. ibid., p. 392)381. Marx (1971) afirma que esse valor de uso “o dinheiro adquire pelo fato de poder ser transformado em capital e assim produzir em seu movimento a mais valia”. Diferentemente da mercadoria comum, a mercadoria capital não tem o seu valor subsumido depois de consumida; ao contrário, tem seu valor multiplicado. A capacidade de produzir o lucro médio, pela valorização de seu valor de uso, possibilita que o capitalista monetário subjugue ou aliene – nos dizeres de Marx, por exemplo, o capitalista industrial, pelo período em que este lhe deve o capital emprestado. É a forma com que os capitalistas monetários encarnam “a figura do próprio capital”. No capital produtor de juros, a relação capitalista atinge a forma mais reificada, mais fetichista. Temos nessa forma D – D’, dinheiro que gera mais dinheiro, valor que se valoriza a si mesmo sem o processo intermediário que liga os dois extremos. No capital mercantil, D – M – D’, temos pelo menos a forma geral do movimento capitalista, embora se mantenha apenas na esfera da circulação e o lucro pareça por isso ser mera decorrência da venda; todavia, configura-se em produto de uma relação social e não em produto de uma simples coisa. A forma do capital mercantil representa de qualquer modo um processo – unidade de duas fases opostas, movimento que se decompõe em duas ocorrências contrárias, a compra e a venda de mercadorias. Isto desaparece em D – D’, a forma do capital produtor de juros. (MARX, 1971, p. 450). Ou seja, voltamos novamente a constatar que o distanciamento do capital monetário do capital produtivo no processo de circulação e acumulação, não implica a inexistência de uma relação entre eles. O que ocorre, como dissemos, é um processo de invisibilidade no trânsito 381 Id. Ob. Cit., Capítulo XXI, do Livro III - O capital portador de juros, 1971. 231 entre o capital usurário e o processo que gera a mais valia, o D – D’, isto é, já está contida, na natureza do capital, a determinação social que gera a riqueza, antagonicamente fundada no trabalho e em sua expropriação. A predestinação social antinômica da riqueza material- sua oposição ao trabalho na condição de trabalho assalariado – já se expressa, dissociada do processo de produção, no direito mesmo de propriedade do capital. Esse aspecto particular, isolado do próprio processo capitalista de produção, deste sendo resultado constante e, como tal, condição permanente, revela-se na circunstância de o dinheiro e a mercadoria serem em si mesmos capital latente, potencial, de poderem ser vendidos como capital e nessa forma comandarem trabalho alheio, darem direito ao ato de apropriar-se de trabalho alheio, sendo portanto valor que se expande. (Id., ibid., p. 410-411)382 Na base dessa expansão do capital, está embutido o juro, que funciona como uma espécie de remuneração do capitalista monetário e o lucro destinado ao capitalista da base produtiva. Como as etapas intermediárias da expansão do capital e sua reprodução em mais capital ficaram escondidas, a expropriação do trabalho – a base que permitiu que isso acontecesse – é mais ainda estranhada, pois o lucro do capitalista produtivo aparece como uma espécie de pagamento por seus serviços gerenciais, afinal, foi o seu empreendedorismo (a principal virtude no capitalismo, tão valorizada por Schumpeter) que o levou a transformar seu dinheiro em capital rentável, ainda que houvesse riscos nessa transação. Portanto, aquela separação de que falamos antes, entre as duas formas de ser do capital, se revela apenas aparente. Os objetivos de quem expropria a força de trabalho para extrair riqueza e de quem se presta a monetarizar capital passam a ser os mesmos. Há certa analogia entre o capital assim emprestado e a força de trabalho em sua relação com o capitalista industrial. Mas, enquanto o valor da força de trabalho é pago, o do capital emprestado é restituído por esse capitalista. Para ele o valor-de-uso da força de trabalho consiste em produzir com seu emprego mais valor (lucro) do que possui e custa. Esse valor excedente é para o capitalista industrial o valor-de-uso. Do mesmo modo, o valor-de-uso do capital-dinheiro emprestado se revela na capacidade que possui de produzir e acrescer o valor. (Id., ibid., p. 406)383. O desenvolvimento expoente do fetichismo está em suplantar a base de acumulação da riqueza e reprodução do capital, pois a mais valia aparece como “coisa” e não como elemento decorrente de uma relação social já que o capital em si mesmo é uma relação social, não podendo confundir-se com dinheiro ou outras formas de sua manifestação. Também aparece, o 382 383 Id., ibid. Id., ibid. 232 capital fetichizado, como algo que, por si mesmo, se cria e se reproduz, naturalizando suas formas de ser, reificando-as. Sendo o capital mercadoria de natureza peculiar, possui modo particular de alienação. Por isso, o retorno não expressa a consequência e o resultado de determinada série de ocorrências econômicas, mas provém de um pacto jurídico especial entre o comprador e o vendedor. O prazo de retorno depende de transcorrer o processo de reprodução; no caso do capital produtor de juros parece que seu retorno como capital depende da simples convenção feita entre prestamista e prestatário. Desse modo, o retorno do capital nessa transação não parece mais resultar do processo de produção, e tudo se passa como se o capital emprestado nunca tivesse perdido a forma dinheiro. (Id., ibid., p. 403)384 . Pode-se considerar esse processo como a forma mais avançada de existir do capital, dentro da formação social capitalista, afinal, as principais frentes estruturais que ataca para manter-se como dominante, estão por ele apropriadas: as forças produtivas, o modo de produção, as estruturas políticas da sociedade, a hegemonia burguesa pela difusão de sua ideologia, tudo isto incidindo no padrão de sociabilidade reinante. Contudo, não é bem assim. A tendência expansiva ilimitada o leva a não ter no capital portador de juros sua máxima expressão. A generalização do capital portador de juros leva a que todo capital possa, em potencial, produzilo, ao mesmo tempo em que todo o lucro pode ser considerado como juro de um capital. Essas duas formas de se expressar o fetiche abrem caminho para a mercantilização de toda a dinâmica produtora de riqueza, levando a formas de apropriação de capitais que virão-a-ser no mercado, mas ainda não existem como tal (futuro). É o chamado capital fictício. Esse, por seu turno, se afasta, miticamente, ainda mais, da base social que o legitima, e movimenta massas financeiras ainda maiores, por meio de especulações e uma pressão crescente para desvencilharse das regulações que se colocam sobre seus fluxos, sobretudo, pelo Estado. É desse modo que as crises sistêmicas se tornam parte constitutiva do desenvolvimento capitalista ao longo dos anos. Seu núcleo gerador consiste, pois, nos limites da extração dos superlucros. A financeirização, como sua forma manifesta na contemporaneidade, não pode ser tratada como categoria acessória às análises que intencionam saber das coisas como elas são. É o que nos indica, pois, a economia política marxista: entender as inter-relações entre os inúmeros aspectos da realidade que os ditames pós-modernos nos têm levado a compreender separadamente. 384 Id., ibid. 233 O atual ciclo do desenvolvimento capitalista, ao não abrir mão da expropriação, no Brasil e no mundo, embora apresente a dialética dinâmica de continuidade e ruptura, mantém firme seus efeitos deletérios aos homens e ao planeta. O capital expande sua face financeira integrando grupos industriais associados às instituições financeiras (bancos, companhias de seguros, fundos de pensão, sociedades financeiras de investimento coletivo e fundos mútuos) que passam a comandar o conjunto da acumulação. Na busca incessante e ilimitada do aumento exponencial da riqueza quantitativa — o crescimento do valor pelo valor —, os investimentos financeiros tornam a relação social do capital com o trabalho aparentemente invisível. Intensifica-se a investida contra a organização coletiva de todos aqueles que, destituídos de propriedade, dependem de um lugar nesse mercado (cada dia mais restrito e seletivo) para produzir o equivalente de seus meios de vida. Crescem as desigualdades e o contingente de destituídos de direitos civis, políticos e sociais, potenciados pelas orientações (neo)liberais, que capturam os Estados nacionais, erigidas pelos poderes imperialistas como caminho único para animar o crescimento econômico, cujo ônus recai sobre as grandes maiorias. (IAMAMOTO, 2007, p. 21)385. 3.2 Acumulação, fetichismo e a crítica marxista ao desenvolvimento Para empreender uma crítica ao desenvolvimento capitalista com base em suportes teóricos marxianos e marxistas, é fundamental a compreensão da superexploração da força de trabalho inserida nos processos de produção e reprodução social. Assim, temos que, desde o Livro I de O Capital, Marx segue fiel ao entendimento de que o modo de produção encerra em si um conjunto de atividades que definem a reprodução social da vida. Marcado, objetiva e subjetivamente, o modo de produção está historicamente vinculado a uma formação social e esta é intrínseca a uma relação social dominante. A combinação entre propriedade, posse e uso dos meios de produção é elemento inalienável na configuração do modo de produção. (...) todo processo social de produção encarado em suas conexões constantes e no fluxo contínuo de sua renovação, é ao mesmo tempo processo de reprodução. As condições da produção são simultaneamente as de reprodução. Nenhuma sociedade pode produzir continuamente, isto é, reproduzir, sem reconverter, de maneira constante, parte de seus produtos em meios de produção ou elementos da produção nova (...). No modo capitalista de produção, o processo de trabalho é apenas um meio de reproduzir o valor antecipado como capital, isto é, como valor que se expande. (MARX, 1971, p.659)386. 385 IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço social em tempo de capital fetiche capital financeiro, trabalho e “questão social”. São Paulo: Cortez, 2007. 386 MARX, Karl. Ob. Cit., 1971. 234 A substituição do escambo por formas de circulação de mercadorias intermediadas pela moeda não significa a transladação desta para o capital, imediatamente, como demonstrado no item anterior. Para que a moeda seja transformada em capital, é necessário que um dentre todos os produtos mercantilizáveis – considerando que no capitalismo tudo vira mercadoria – esteja sempre presente: a força de trabalho. A força de trabalho transformada em mercadoria é contratada pelo proprietário dos meios de produção; que, por sua vez, dita as regras dos processos de trabalho; tem posse das mercadorias produzidas e as vende no mercado. Processo simples de obtenção de lucro e etapa primeira e instransponível da transformação da moeda em capital. O tratamento analítico e ideopolítico, em separado dessa etapa primitiva da produção capitalista, fez com que as leis gerais da produção fossem convertidas em leis naturais da economia política, escamoteando o processo de expropriação dela inerente, ao gosto dos capitalistas de plantão: o grande mistério da mercadoria. De fato, a exploração do trabalho vivo, expropriado, é, ao mesmo tempo, condição sine qua non para a produção das mercadorias e a consequente reprodução das condições de vida e, ainda, é condição também para a circulação e reprodução da moeda e sua transformação – aliada a outros componentes de toda vida social – em capital. Somente com esse conjunto de elementos em relação é possível entender a transformação da moeda em capital e a centralidade que a atividade produtiva ocupa no processo. Com o próprio funcionamento, o processo capitalista de produção reproduz, portanto, a separação entre a força de trabalho e as condições de trabalho, perpetuando, assim, as condições de exploração do trabalhador. Compele sempre o trabalhador a vender sua força de trabalho para viver, e capacita sempre o capitalista a comprá-la, para enriquecer-se. Não é mais o acaso que leva o trabalhador e o capitalista a se encontrarem no mercado, como vendedor e comprador. É o próprio processo que continuamente lança o primeiro como vendedor de sua força de trabalho no mercado e transforma seu produto em meio que o segundo utiliza para comprá-lo. Na realidade o trabalhador pertence ao capital antes de vender-se ao capitalista (Id., ibid., p. 672)387 Marx desnaturaliza o caráter puramente econômico da atividade produtiva e desnaturaliza também a exploração da força de trabalho, quando atribui objetividade às relações sociais decorrentes dos meios de produção e reprodução sociais. Embora o ato criativo do trabalho humano – associando trabalho vivo e morto – seja a condição prerrogativa para a existência do próprio capital, também o é para a expropriação. A forma específica de mercadoria que o trabalho assume no capitalismo é uma das características 387 Id. 235 que permitem identificar esse tipo próprio de relação. Por isso, Marx demonstra que o capital é uma relação social, por referir também as condições (ou não condições) históricas de sobrevivência do trabalhador livre e expropriado: (...) Os meios de produção e os de subsistência, dinheiro e mercadoria em si mesmos não são capital. Tem de haver antes uma transformação que só pode ocorrer em determinadas circunstâncias. Duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de confrontar-se e entrar em contacto: de um lado, o proprietário de dinheiro, de meios de produção e de meios de subsistência, empenhado em aumentar a soma de valores que possui, comprando a força de trabalho alheia, e, do outro, os trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, de trabalho. Trabalhadores livres em dois sentidos, porque não são parte direta dos meios de produção, como escravos e servos, e porque não são donos dos meios de produção, como o camponês autônomo, estando assim livres e desembaraçados deles. Estabelecidos esses dois polos do mercado, ficam dadas as condições básicas de produção capitalista. (Id., ibid., p.829-830)388. O distanciamento entre o trabalhador e a sua produção tende a aumentar cada vez mais, pois é nesse distanciamento que residem as principais possibilidades de acumulação crescente do capital, logo, do próprio desenvolvimento capitalista. O sistema capitalista pressupõe a dissociação entre trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais realizam o trabalho. Quando a produção capitalista se torna independente, não se limita a manter essa dissociação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariados os produtores diretos (...) a chamada acumulação primitiva (...). (Id., ibid., p. 830)389. Mészáros (2002, p. 676) assevera que o capital, sobretudo na atualidade, possui uma tendência destrutiva incontrolável, que é justamente o que o mantém enquanto modo de produção sustentado na expropriação. Essa tendência, que se inicia pela expropriação e aniquilamento do que há de humano no trabalho, pela sua alienação e estranhamento, extrapola o mundo dos expropriados. Para o autor de Para Além do Capital, o capitalismo, em sua fase avançada, apresenta uma autorreprodução destrutiva consubstanciada pela expansão do consumo possibilitada “pela produção generalizada de mercadorias (...) fornecendo ao capital 388 389 Id., ibid. Capítulo XXIV, do livro III - A chamada acumulação primitiva. Id., ibid. 236 em crise novas margens de expansão e novas maneiras de sobrepujar as barreiras que encontra”390. Dessa maneira, a dinâmica interna do avanço produtivo, baseada nas potencialidades objetivas da ciência e da tecnologia, é gravemente distorcida, na verdade fatidicamente desencaminhada, com a tendência à perpetuação das práticas capitalistas viáveis – por mais perdulárias e destrutivas – e como o bloqueio das abordagens alternativas que possa interferir nas exigências fetichistas do valor de troca em auto-expansão. (MÉSZÁROS, 2002, p.679)391. Associado a isto, temos que a expropriação atinge também os proprietários, pois, para expandir-se, ainda que se reinvente na exploração do trabalhador, o capital precisará de novas formas de acumulação que não ficam aprisionadas em seus modos primitivos. Os monopólios caracterizarão essa tendência, amplificando as formas de expropriação. A proletarização dos pequenos proprietários e a subsunção dos capitalistas tradicionais pelo capital concentrado, nesse mesmo movimento monopolista, são apenas dois aspectos que remetem á expropriação capilarizada e às novas formas de exploração genérica do trabalho. Mesmo antes da constituição do capitalismo como tal, Marx anuncia essa característica ao descrever o processo de acumulação primitiva (protoforma do capitalismo), possibilitando acompanhar a tendência autodestrutiva desse modo de produção em sua linha “evolutiva”. Desintegrada a velha sociedade, de alto a baixo, por esse processo de transformação, convertidos os trabalhadores em proletários e suas condições de trabalho em capital, posto o modo capitalista de produção a andar com seus próprios pés, passa a desdobrar-se outra etapa em que prosseguem, sob nova forma, a socialização do trabalho, a conversão do solo e de outros meios de produção em meios de produção coletivamente empregados, em comum, e, consequentemente, a expropriação dos proletários particulares. O que tem de ser expropriado agora não é mais aquele trabalhador independente e sim o capitalista que explora muitos trabalhadores. Essa expropriação se opera pela ação das leis imanentes à própria produção capitalista, pela centralização dos capitais. Cada capitalista elimina muitos outros capitalistas. (Id., ibid., p. 881)392. Essa é outra face do mesmo processo que nos permite caracterizar a conversão da moeda em capital, caracterizar o capital como relação social e o modo de produção genérico como propriedade de capitalistas que controlam os meios e modos de produção social, expandindo-se e atingindo todas as dimensões da vida social. 390 MÉSZÀROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, Campinas: Unicamp, 2002. 391 Id., Ob. Cit. 392 MARX, Karl. Ob. Cit. Livro I, v. II, Capítulo XXIV - A chamada acumulação primitiva, 1971. 237 Na atualidade, antes mesmo do período que tem sido chamado de pós-neoliberalismo393, essa aventura acumulativa do capital já se fazia presente. A concentração crescente é instituinte também desse modo particular de acumulação394. As fusões, as aquisições e as joint-ventures são bons exemplos desse processo, e que se associam a fenômenos que dão suporte e/ou se complementam, como as terceirizações e os oligopólios. A fúria de acumulação desimpedida do capital sempre foi uma preocupação para os próprios capitalistas, que, divididos em frações de classe e cientes, de certo modo, da necessidade da diversificação das atividades econômicas, buscaram, ao longo do tempo, influenciar a intervenção estatal nos assuntos relacionados à livre concorrência, racionalizando o impulso primitivo de aniquilação de uns pelos outros, como já anunciara Marx. Desse modo é que se criam instituições públicas, privadas ou mistas, voltadas à regulação para defesa dos interesses econômicos. Essas instituições são criadas tanto em nível nacional, respondendo, portanto, pelos interesses econômicos de cada país, como também de modo multilateral, tratando das questões afetas à economia globalizada, como é o caso tanto da Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo, ou do FMI. No Brasil, as primeiras medidas antitruste datam de 1951, com a Lei 1.521, editada no governo de Getúlio Vargas, e que define crimes contra a economia popular, o que pode ser considerado um bom exemplo desse tipo de instituição 395 . Em 1962, nova lei, inspirada no Sherman Act norte-americano, cria o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em 1994, com a Lei 8.884, a instituição transforma-se em autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com personalidade jurídica própria e autonomia administrativa e financeira. Cabe ao Cade (2012) “regular a livre concorrência no Brasil, garantindo uma relação equilibrada entre a livre iniciativa, livre concorrência, proteção ao consumidor e a preservação do interesse”396. A concentração de capital como fenômeno isolado, ou mesmo quando associada ao processo de acumulação, não escolhe pátria. Isto é, acontece ao longo da história de formas diferenciadas, em conformidade com o projeto político-econômico então vigente. No Brasil, por exemplo, no período compreendido entre os anos 2000 e 2011, esse movimento da dinâmica do capital monopolista também ocorreu, preservando as características dominantes desse modo de produção em sua fase avançada397. 393 Cf. SADER, Emir (Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 394 A concentração exponencial é presente em todas as fases do capitalismo. 395 Medidas antitruste são voltadas a regular a concorrência. 396 Disponível em: <www.cade.org.br>. 397 Por isso é importante distinguir “concentração” de capital de “acumulação”. Embora se tratem de categorias referidas ao mesmo processo, a distinção que fazemos é fundamental para o entendimento sobre as funções e participação do Estado no processo de desenvolvimento capitalista. A “concentração” de que tratamos aqui está afeta à união de vários capitalistas em torno de uma mesma atividade que lhes gera rendimentos. Já a “acumulação” se relaciona aos amplos processos de auto-reprodução do capital 238 Segundo o Cade o processo de análise pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) das operações de fusão, aquisição, joint-ventures, etc. é conhecido por Ato de Concentração. As operações que apresentam determinadas características – faturamento no Brasil superior a R$ 400 milhões ou participação de mercado maior ou igual a 20% – devem obrigatoriamente ser notificadas ao SBDC. A preocupação do órgão com a qualidade das fusões e com a homogeneização do que se coloca no mercado para consumo, ocupa um lugar marginal nos seus trabalhos, pelo menos é o que se extrai de seus Relatórios de Gestão dos últimos dez anos 398 , e que, em tese, teria motivado as transformações recentes em sua estrutura, as quais mostraremos mais adiante. A preocupação central residiria, pois, em que o órgão exerça uma influência positiva no mercado, sem atrapalhar seus fluxos naturais, por meio de análises processuais cada vez mais tecnificadas e ágeis. O Gráfico 1, por exemplo, mostra claramente a diminuição do tempo médio em que os processos tramitam no Cade (excetuando-se o tempo para instrução processual) em comparação com a quantidade de processos distribuidos e julgados. Uma sequência de queda sensível fica evidente, interrompida em 2004, justificada pelo aumento do número de processos naquele ano e a carência de quadro de pessoal especializado para o desempenho das funções administrativas399. que não se restringe a atividades econômicas especificas nem mesmo se limita, na contemporaneidade, a limites territoriais precisos. Como dissemos, as duas categorias formam um duo-dialético voltado à manutenção da relação social capital, mas a primeira está sob maior controle do Estado quando este regula as operações econômicas dos capitalistas, já a segunda transcende o exercício da autonomia relativa do Estado na regulação e busca se pautar nos interesses mesmos da classe dominante expressos, também, no modo como estes conquistam hegemonia no e pelo Estado. 398 O Cade disponibiliza, em sua biblioteca virtual, todos os seus Relatórios Anuais de Gestão, o que consultamos ano a ano. 399 O Relatório de Gestão do ano de 2004 se encerra com uma nota assinada por sua presidenta expondo a ausência de condições para o pleno desenvolvimento dos trabalhos do órgão. Declara: “Ressentindo-se ainda de uma estrutura e quadro de funcionários próprios, e com a crescente demanda de apreciação de matérias relativas à defesa da concorrência, o Cade contou, a partir do segundo semestre com o apoio de 25 técnicos o que certamente melhorou a capacidade do órgão responder a mencionada demanda. No entanto, o caráter temporário do contrato desses técnicos renova a necessidade de busca de uma carreira própria. As demandas para a realização das atividades do Cade continuam a exigir um considerável reforço de pessoal especializado, tanto na área administrativa e técnica, quanto na área processual, o que somente será resolvido com a aprovação da criação de um quadro permanente próprio do Cade, contendo carreiras específicas para atuação na área da concorrência”. (Relatório de Gestão de 2004). 239 Gráfico 1 – Balanço de ACs julgados versus distribuídos no Cade com tempo médio – 2000 a 2011 Fonte: Cade em números – Atos de concentração, jan./2012. Disponível em: <www.cade.gov.br >. Do tempo em que um processo de AC circula, verifica-se que sua permanência no Cade varia de 20% a 30% do tempo total (Gráfico 2). Com relação à quantidade de processos, também se podem inferir progressos, no que tange à sua resolutividade. Em 2000, foram julgados cerca de 78,3% do total de processos distribuídos com tempo médio, no Cade, de 87 dias; em 2011, o indíce de julgamentos sobe para 94,5%, com tempo médio de 45 dias. A partir de 2003, verificamos que os julgamentos se sobrepõem ao estoque de processos, o que pode ser explicado, em parte, por inovações técnicas e materiais, mas também se explica pela decisão política em dar celeridade aos processos, considerando os aumentos nos níveis de investimento no mercado interno, financiados sobretudo pelo BNDES, motivando fusões. Gráfico 2 - Tempo médio de tramitação dos ACs no SBDC (em dias) – 2005 a 2011 Fonte: Cade em números – Atos de concentração, jan./2012. Disponível em: <www.cade.gov.br>. 240 A leitura marxiana dos processos crescentes de acumulação leva em conta as iniciativas de concentração de capital, sobretudo quando Marx se referencia em sociedades complexas, tanto pela industrialização e urbanização, quanto pelo incremento dos sistemas bancários e das transações financeiras que já em seu tempo vinham movimentando capitais mundo afora de modo crescente. Portanto, como aporte, nos indica a gênese dessa preocupação da sociedade burguesa (e de seus Estados, por extensão) em permitir que suas transações econômicas ocorram de modo desimpedido. No caso brasileiro, constata-se que as operações de fusão, aquisição e reestruturações societárias alcançaram R$ 184,8 bilhões, em 2010, o que representou um crescimento de 55% quanto ao volume alcançado em 2009. Em 2010, foram contabilizadas 143 operações de fusão, aquisição e reestruturações societárias, ante 95 realizadas no País em 2009 400 . Ainda que pareçam extraordinários, esses números são mínimos, se comparados à concentração que ocorre intraempresas. Isto é, a concentração verificada a partir do compartilhamento de posições acionárias conjuntas nas mesmas empresas 401 . É a continuidade de um processo que visa deliberadamente ampliar a concentração de capital em alguns setores estratégicos como forma de melhorar a suas condições na disputa global. Nesse sentido, alguns casos como o da Ambev (fusão da Antárctica com a Brahma), da Chocolates Garoto (adquirida pela Nestlé), do polêmico caso da BRF Brasil Foods (a fusão da Sadia com a Perdigão), a RaiaDrogasil (liderando o comércio nacional de produtos farmacêuticos) e o caso mais recente da Totvs e a Datasul que, juntas, passaram a deter 40% do mercado brasileiro de softwares, nível bem maior do que os 20% aceitáveis para esse tipo de transação, em outros ramos de atividade produtiva402, são apenas alguns exemplos de como a concentração vai se tornando parte não só recorrente mas reivindicada até mesmo como necessária para manter patamares de desenvolvimento estipulados pelo mercado (e de interesse do Estado)403. 400 Ipea desafios – Cade – Fusão de competências. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>. Acesso em: 5 set. 2012. 401 Utilizamos como referência o artigo de LAZZARINI, Sergio G. Mudar tudo para não mudar nada: análise da dinâmica de redes de proprietários no Brasil como “mundos pequenos”. RAE-eletrônica, v.6, n. 1, art. 6, jan./jul. 2007. A RAE-eletrônica é a revista online da Fundação Getúlio Vargas. 402 Há uma excepcionalidade para a indústria de tecnologia. 403 Isto será mais bem esclarecido quando tratarmos do neodesenvolvimentismo, nos próximos itens, contudo, vale registrar que o projeto “desenvolvimentista” recente no Brasil não abriu mão de utilizar a concentração como estratégia quando promove a reestruturação do Cade. Entre as mudanças realizadas no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, há a unificação no Cade das competências divididas atualmente entre o próprio órgão, a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), ligada ao Ministério da Fazenda, e a Secretaria de Direito Econômico (SDE), vinculada ao Ministério da Justiça. Outra mudança proposta eleva o valor mínimo das operações de concentração econômica que exigirão controle prévio do Cade, dos R$ 400 milhões já utilizados como referência para R$ 1 bilhão. Outra alteração é que qualquer caso de compra ou fusão de grandes empresas que possa levar à concentração do mercado terá que ser analisado previamente pelo Cade, e não depois de o negócio ter sido efetivado, como ocorre atualmente. O projeto fixou um prazo para a conclusão de julgamentos: o tempo máximo de análises de concentração cai para 120 dias com possibilidade de prorrogação pelas partes por 60 dias ou, 241 A preocupação dos órgãos de defesa econômica, em contribuir para que esse processo flua com êxito, como mostrado nos Gráficos 1 e 2 — explicitando a função gerencial burguesa do Estado — também se atrela a uma concepção de desenvolvimento pautada e justificada ideologicamente no que se pressupõe ser civilizatório na ordem do capital. O atendimento das necessidades sociais pela via do emprego formal ou da qualidade dos serviços prestados, possibilitados com o sucesso das empresas no mercado, é apenas uma de suas explicações, o que contribui para naturalizar o processo de concentração. Mas não apenas. Por trás do incômodo causado aos capitalistas burgueses, pela regulação estatal das suas transações, reside a verdadeira justificativa para o exercício dessa ação regulatória por parte do Estado: O enorme poder dos grandes conglomerados econômicos, que extrapola a mera luta de preços e marcas, somente pode ser contra-arrestado pela política e pelas instituições republicanas e democráticas; do contrário, estas serão meras reverberações retóricas sem eficácia. A assimetria e o poder destrutivo entre tais organizações econômicas e o simples cidadão, conduzido e instigado pela publicidade a comportar-se como mônada — que é o cerne da própria publicidade — afetam a vida cotidiana de forma irreparável. Longe da premissa neoliberal de que o excesso de controle público sobre o comportamento das empresas cercearia sua liberdade de investimento — que é no fundo o que explica a atitude do governo brasileiro de hoje — as fraudes da Enron e da WorldCom nos EUA e os comportamentos relapsosagressivos das novas concessionárias de energia e telecomunicações no Brasil indicam que o bom controle público, e políticas públicas de investimento rigorosas, é que são condições sine qua non para a eficiência das empresas. (OLIVEIRA, 2005)404. Portanto, o que se observa é uma clara articulação entre o econômico e o político, na medida em que a concentração comparece como um componente importante aos fins últimos: a acumulação. Mas se o processo de acumulação do capital pauta doravante diretamente a ação do Estado, ele só se traduz em seu seio quando articulado e inserido na sua política de conjunto. Toda medida econômica do Estado tem portanto um conteúdo político, não apenas no sentido geral de uma contribuição para acumulação do capital e para a exploração, mas também no sentido de uma necessária adaptação à estratégia política da fração hegemônica. (POULANTZAS, 2000, p. 171)405. pelo Cade, por 90 dias. Antes, o Cade não precisava apresentar conclusões dos casos. Ipea desafios – Cade – fusão de competências. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 5 set. 2012. 404 OLIVEIRA, Francisco de. Prefácio. In: BELLO, Carlos Alberto. Autonomia frustrada: o Cade e o poder econômico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. 405 POULANTZAS, Nicos. Ob. Cit., 2000. 242 Nesse processo, o papel econômico do Estado se exacerba e reconfigura seu lugar de dominância ante as demais instâncias e funções que o compõe 406 e mesmo nas democracias liberais se nota o fortalecimento da função econômica do Estado em detrimento das instituições (partidos, movimentos sociais, parlamentos, etc.) e, de modo relativo, de algumas frações da classe dominante. Poulantzas (2000, 170) afirma que a reorganização política dos “aparelhos” do Estado no sentido da acumulação fazem dele um “verdadeiro aparelho econômico especializado”: Não se trata simplesmente de atividades econômicas novas que dominariam, como tais, outras atividades que continuariam, em si, imutáveis. O conjunto das operações do Estado se reorganiza atualmente em relação a seu papel econômico. Isso vale, além das medidas ideológico-repressivas do Estado, para sua ação na normalização disciplinar, a estruturação do espaço e do tempo, o estabelecimento de novos processos de individualização e corporalidade capitalistas, para a elaboração de discursos estratégicos, para a produção da ciência. Tudo isso ocasiona consideráveis transformações institucionais que afetam o conjunto dos aparelhos do Estado e que têm precisamente por fio condutor seu papel econômico. Desse modo, por analogia, considera-se que essa reorganização política das funções econômicas do Estado é substancialmente presente nos momentos de síntese desenvolvimentista. Essa dinâmica permite, nas brechas que abre, a implantação de medidas regressivas tratadas como necessárias ao desenvolvimento que será, deste modo, desigual em essência e combinado entre as diferentes fases de evolução das forças produtivas. 406 Como, por exemplo, as ideológicas, de repressão, etc. Poulantzas (2000, p. 170) afirma que a reorganização política dos “aparelhos” do Estado no sentido da acumulação fazem dele um “verdadeiro aparelho econômico especializado”: “Não se trata simplesmente de atividades econômicas novas que dominariam, como tais, outras atividades que continuariam, em si, imutáveis. O conjunto das operações do Estado se reorganiza atualmente em relação a seu papel econômico. Isso vale, além das medidas ideológico-repressivas do Estado, para sua ação na normalização disciplinar, a estruturação do espaço e do tempo, o estabelecimento de novos processos de individualização e corporalidade capitalistas, para a elaboração de discursos estratégicos, para a produção da ciência. Tudo isso ocasiona consideráveis transformações institucionais que afetam o conjunto dos aparelhos do Estado e que têm precisamente por fio condutor seu papel econômico”. Deste modo, por analogia, podemos considerar que esta reorganização política das funções econômicas do Estado é substancialmente presente nos momentos de síntese desenvolvimentista. 243 A noção de desenvolvimento desigual é utilizada em sua acepção clássica 407 : a desigualdade entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social, entre a expansão das forças produtivas e as relações sociais na formação capitalista. Revelase como reprodução ampliada da riqueza e das desigualdades sociais, fazendo crescer a pobreza relativa à concentração e centralização do capital, alijando segmentos majoritários da sociedade do usufruto das conquistas do trabalho social. Desenvolvimento desigual em outra dimensão não menos fundamental: os tempos desiguais entre as mudanças ocorridas na produção material e as formas culturais, artísticas, jurídicas, etc., que expressam as alterações da vida material. A tensão entre o movimento da realidade e as representações sociais que o expressam estabelece descompassos entre o ser e o aparecer. Atualiza fetichismos e mistificações que acobertam as desigualdades e sua reprodução social. (IAMAMOTO, 2001, p. 102103)408 3.3 Dependência (Sistema de Reciprocidades) e a nova roupagem do neoliberalismo Não há um marxista que não se refira à maneira como Lênin (1979, p. 87) demonstra a fase de desenvolvimento do capital, que denominou de fase superior do capitalismo e a definiu como imperialista caracterizada pelos monopólios. Nessa fase “o que existe de essencial neste processo é a substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas”. Deste modo, afirma: A livre concorrência constitui o traço essencial do capitalismo e da produção mercantil em geral; o monopólio é exatamente o contrário da livre concorrência; mas nós vimos esta última converter-se, sob os nossos olhos, em monopólio, criando nela a grande produção, eliminando dela a pequena, substituindo a grande por uma ainda maior, levando a concentração da produção e do capital a um ponto que fez e faz surgir os monopólios: os cartéis, os sindicatos patronais, os trustes, e fundindo-se com eles, os capitais de uma dezena de bancos que reúnem bilhões. Ao mesmo tempo, os monopólios não eliminam a livre concorrência de que nasceram: eles existem acima e ao lado dela, implicando assim contradições, fricções, conflitos particularmente agudos e violentos. O monopólio constitui a passagem do capitalismo a um regime superior409. O regime superior a que Lênin se refere é o imperialismo caracterizado pelo monopólio e que tem no capital financeiro (que não se confunde com capital bancário, mas representa sua 407 Conforme apresentada por Marx, no Tomo 3 de O Capital. IAMAMOTO, Marilda Villela. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001. 409 LÊNIN, Vladimir. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Rio de Janeiro: Globo, 1979. 408 244 fusão com o capital industrial) sua base de sustentação410. Além disso, essa nova fase pressupõe, ainda, uma nova partilha do mundo, cujos limites de dominação não respeitam os domínios tradicionais da geopolítica – que leva em consideração agregações culturais – extrapolando-os e reconfigurando o globo conforme os interesses monopolistas de livre circulação do capital. Segundo Lênin (1979, p. 88), esse imperialismo apresenta cinco características principais: 1) Concentração da produção e do capital atingindo um grau de desenvolvimento tão elevado que origina os monopólios cujo papel é decisivo na vida econômica; 2) fusão do capital bancário e do capital industrial, e criação, com base nesse “capital financeiro”, de uma oligarquia financeira; 3) diferentemente da exportação de mercadorias, a exportação de capitais assume uma importância muito particular; 4) formação de uniões internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o mundo entre si; 5) termo da partilha territorial do globo entre as maiores potências capitalistas. Desde 1916, quando Lênin redigiu esse ensaio até os dias atuais, o movimento do capital tem sido o mesmo: o dinamismo do capital que circula através do mercado financeiro tem se colocado acima da taxa de crescimento do setor produtivo. O monopólio que caracteriza essa nova fase é altamente concentrador de riqueza, ao permitir ou mesmo incentivar a fagocitose dos pequenos empreendimentos capitalistas pelos grandes. A concentração de capital exponenciada, assim, extrapola as possibilidades concentradoras da base produtiva e atinge o universo dos capitais fictícios e faz deste o agente indispensável ao processo de acumulação, criando um Sistema de Reciprocidades entre os agentes envolvidos nele e com ele: Estado burguês, mercados, conglomerados bancários e financeiros e grandes empresas nacionais e transnacionais. A relação de dominância do capital financeiro não elimina os demais, ao contrário, possibilita sempre em perspectiva futura o aumento dos ganhos de todos os envolvidos, ao mesmo passo em que repõe atualizada a dependência das economias periféricas com relação ao centro (MARINI, 1977)411. Em 2005, o Mckinsey Global Institute lança o relatório $118 Trillion and Counting: Taking Stock of the World´s Capital Markets412. Nele, são levantados a composição e o crescimento do estoque financeiro global, de 1980 a 2003, e com projeções ousadas para 2004 e 2010, com os seguintes componentes: depósitos bancários, títulos públicos, títulos privados e ações. Ainda comparam esse crescimento com o PIB/nominal e o total de ativos financeiros com o PIB. 410 Base de sustentação do regime fetichizado, reificado e não sua base real. A base real permanece sendo a expropriação da força de trabalho, do trabalho vivo. 411 MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. 3. ed., Cidade do México: ERA, 1977. (Série popular). 412 Contagem de 118 trilhões de dólares: balanço do mercado mundial de capitais (tradução livre). 245 O estudo permite verificar que o estoque total desses componentes (ativos financeiros) cresceu de US$ 12 trilhões, em 1980, o equivalente a 109% do PIB mundial, para US$ 118 trilhões, em 2003, mais de três vezes o PIB mundial. Provavelmente, as projeções de 2004 e 2010 não levaram em consideração as crises de 2008 (e nem suas bases, no caso, a crise de 2004) e nem as implicações que redundariam na crise de 2011, contudo, o estoque de ativos mundial não deixou de ser ascendente, segundo dados do FMI. Cintra (2005) informa que a estimativa do Mckinsey Global Institute não considera os derivativos financeiros. Os valores nacionais dos derivativos de balcão atingiram U$$ 197 trilhões, em dezembro de 2003 (cujo valor bruto de mercado alcançava US$ 7 trilhões), e os derivativos negociados em bolsas somaram US$ 36 trilhões, de acordo com o Bank for International Settlements (BIS)413. Gráfico 3 - Composição e crescimento do estoque financeiro global (trilhões de dólares / %) PIB/Nominal 10,1 24,4 29,9 30,5 36,1 Ativos 109 216 230 315 326 Financeiros/PIB Fonte: MCKINSEY GLOBAL INSTITUTE. Taking stock of the world´s capital markets: 118 trillion and counting. Disponível em: <http://www.mckinsey.com>. Essa extraordinária e crescente massa de ativos de capital, além de comprovar a assertiva leninista, sobre nova fase do capitalismo referenciada, sobretudo no livro III de O Capital, também é resultado da internacionalização financeira do pós II Guerra, alcunhada anos mais 413 CINTRA, Marcos Antonio Macedo. Tendências da globalização financeira: a extraordinária liquidez global. Revista Princípios, n. 79, São Paulo, jun./jul. 2005. 246 tarde de globalização, liderada pelo sistema financeiro e pela moeda norte-americana. Por parecer contraditório, as práticas dos Estados, na época, que tentavam se reerguer e ao mesmo tempo dar conta dos novos arranjos que promoveram como alternativa para a crise da superprodução de 1929 – keynesianismo - consubstanciaram medidas intervencionistas, sem alternar para a planificação do tipo socialista da economia. A prevalência do crédito bancário sobre a emissão de títulos negociáveis (securities) e a chamada repressão financeira foram as principais características dos sistemas financeiros de então, responsáveis pela aparente estabilidade dessa circulação nas três primeiras décadas que se seguiram à II Guerra Mundial. “Esta incluía a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juros e restrições ao livre movimento de capitais”. (BELLUZZO, 2005. p.15)414. Mas essas medidas foram insuficientes para encilhar o capital, ou mesmo impedir que um novo período de crise internacional se iniciasse e, desta vez, no epicentro do mundo produtor do ouro negro – o petróleo – e se alastrasse não apenas para os países da periferia capitalista como também se estendesse como uma crise de longa duração. As manifestações mais importantes dessa crise puderam ser sentidas no mercado financeiro e no comércio internacional, na inflação crônica associada ao baixo crescimento econômico, dando origem a um novo fenômeno chamado de estagflação. O caráter produtivo da crise é atribuído às mudanças no paradigma tecnológico, que passam a ser chamadas de Terceira Revolução Industrial. (TAVARES, 2000, p. 11)415. Os países de capitalismo central cederam às pressões inflacionistas decorrentes de um superaquecimento de suas economias – expansão da procura agregada – ao mesmo tempo em que os países produtores de petróleo passam a impor restrições que levam à redução da oferta agregada com impactos nos setores que sobrevivem dos derivados do petróleo. As consequências inevitáveis, como o desemprego, a fuga de capitais, a depreciação das moedas fortes, etc., foram, como dissemos, estendidas a todos os países, configurando o caráter global da crise. Requisita-se, assim, imediatamente, nova arquitetura para o capitalismo mundial, e, para tal, medidas de ajuste são tomadas. 414 Esse movimento, sempre crescente, impulsionara as transações de crédito financeiro que anos mais tarde estariam permanentemente no epicentro de novas crises cíclicas, a exemplo daquela motivada pela falência do sistema de crédito bancário imobiliário em 2008. É importante que não se perca de vista nosso entendimento de que tais crises cíclicas são apenas manifestações conjunturais das chamadas crises sistêmicas, como dissemos antes. (In: BELLUZZO, Luiz Gonzaga de M. O regime do capital e o desenvolvimento capitalista. Revista Princípios, n. 79, São Paulo, jun./jul. 2005. p. 12-17. 415 TAVARES, Laura Soares. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo: Cortez, 2000. (Coleção Questões de Nossa Época). 247 Trata-se de uma crise global de um modelo social de acumulação, cujas tentativas de resolução tem produzido transformações estruturais que dão lugar a um modelo diferente – denominado de neoliberal – que inclui (por definição) a informalidade no trabalho, o desemprego, o subemprego, a desproteção trabalhista e consequentemente, uma “nova pobreza”. (TAVARES, 2000, p.12)416. Para a autora, essa alternativa não se limita a transformações no caráter técnico do gerenciamento do fluxo de capitais e nem apenas às transformações nas estruturas jurídicopolíticas dos Estados que o implantam, mas contém um refinado aparato ideopolítico que reafirma que a reprodução em condições críticas de grandes parcelas da população (...) passa a se sustentar por uma lógica coerente com o individualismo que dá sustentação ideológica a esse modelo de acumulação: no domínio do mercado existem, “naturalmente” ganhadores e perdedores, fortes e fracos, os que pertencem e os que ficam de fora” o que não impede de modo algum a reprodução do capital. (Id. ibid., p.12-13)417. Afirma ainda que os impactos e consequências da crise, bem como possíveis “soluções”, além das determinações mais gerais dadas pela própria etapa de desenvolvimento do capitalismo, diferenciam-se entre os países pela inserção internacional de suas economias e pelos particulares desenvolvimentos históricos, que determinam respostas sociais e políticas específicas (ib., p. 11). Este processo não só está na base que configura a gênese do neoliberalismo no Brasil como se mantém presente no País do século XXI. Com isso, não se pode negar que um novo arranjo nos padrões de desenvolvimento capitalista emerge, sobretudo, a partir da intervenção do Estado norte-americano no mercado financeiro, em 2008, que se pauta pela objetivação de relações recíprocas entre o Estado e os grandes conglomerados financeiros, ainda que os sinais dessa reciprocidade já possam ser percebidos em fases precedentes, como demonstrado no item 2.1.3 Protoformas do ajuste neoliberal. Sem que haja um novo Consenso de Washington, tanto os países do centro quanto os da periferia capitalista são levados a imbricar-se nessa teia das inter-relações onde participam também empresas transnacionais e empresas nacionais fagocitadas pelo capital desterritorializado. É importante ressaltar que os ciclos de expansão capitalista não existem sem a admissão de períodos de crise, portanto, a manifestação contemporânea depressiva pode ser incluída no contexto da quarta grande crise sistêmica do capital418. Suas características fundamentais não 416 Id., ibid. Id., ibid. 418 Tomamos por referência o seguinte arranjo “evolucionista” das crises sistêmicas do capital. A primeira grande crise teria ocorrido entre os anos de 1873 a 1895 e esteve relacionada com a concorrência 417 248 são novas, pois se sustentam, como sempre, nas dificuldades no processo de acumulação de capital decorrentes do declínio nas taxas de lucro. O que pode ser considerado novo é o deslocamento, ainda que sutil, dos padrões produtivos que ancoraram as mudanças nos rumos do capital anteriormente, como, por exemplo, as inovações fordistas/tayloristas, a acumulação flexível, etc., para a esfera das tecnologias de informação, que sem subsumir a centralidade do trabalho se tornam os verdadeiros auxiliares no aumento da produtividade do capital financista. Este, por seu turno, vai cada vez mais se aglutinando, em torno de uma comunidade financeira global, cujas fronteiras não obedecem em nada à lógica de soberania e constituição dos Estados Nacionais; sem pátria ou território, suplantando histórias, culturas e sonhos dos povos no mundo todo em defesa de sua autorreprodução. O capital portador de juros e sua forma manifesta em capital fictício, como demonstrara Marx, nessa conjuntura recente, tem seu núcleo irradiador nos bancos não comerciais (os de investimentos), em especial sob o signo dos fundos de pensão. A estruturação da prevalência do capital financeiro se deu, ainda, com a implantação dos ajustes contrarreformistas nas estruturas jurídico-políticas dos Estados centrais (menos) e periféricos (mais). A participação ativa, mas nem sempre explícita, do Estado, nesse processo, mesmo ao admitir mudanças em seu interior, motivou o advento da escola regulacionista, que passa a conferir centralidade às diversificadas estratégias de regulação — que obedecem à nova repartição do mundo, como demonstra Lênin — nos regimes monetário-financeiros e nas formas de expropriação do trabalho (relação salarial) 419 . Autores como Arrighi (2008) 420 , Harvey (2005 421 , mas principalmente Chesnais (2003) 422 , com colorações diferentes, argumentam que a nova fase do capitalismo, caracterizada pelos elementos que arrolamos, decorre da crise pelo endividamento dos países da periferia capitalista, nos anos 1980. Os projetos políticos desenvolvimentistas desse período (na periferia) nunca abriram mão do suporte monetário e financeiro do capital estrangeiro. A entrada desses capitais nesses países, industrial que se estabeleceu entre Inglaterra, França, Alemanha, Itália e outros países da Europa. A segunda seria aquela que antecederia a I Guerra Mundial (1914-19148) e ainda pautada pela concorrência industrial expansiva entre alemães e italianos contra ingleses e franceses, principalmente. A terceira, a mais conhecida de todas, se inicia com o crack da Bolsa de Nova York, em 1929, e se estende também até um período que culmina em guerra, a II Guerra Mundial (1939-1945) cujo restabelecimento se ancora em um novo ciclo expansivo. A quarta se inicia por volta dos anos 1970, quando já sobressai de maneira mais explícita as implicações decorrentes da financeirização da economia em escala mundial motivadas pelas propostas da Conferência de Bretton Woods e as inflexões nos preços e na produção petrolífera. De lá para cá, é essa mesma crise que vêm apresentando espantosa alternância entre períodos expansivos e depressivos, liderando modernizações conservadoras na geografia socioeconômica e política em escala global e, ao mesmo tempo, exponenciando os níveis de acumulação sincronizados à superexploração e expropriação do trabalho sob a dominância do capital financeiro. 419 A referência à escola regulacionista, em nosso texto, se limita a extrair suas contribuições no tocante à identificação dos processos fundantes dessa nova fase de acumulação de capital. Deste modo, entendemos não nos desviar da análise fundada na tradição marxista que utilizamos. 420 ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008. 421 HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2005. 422 CHESNAIS, François (et al). Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Xamã, 2003. 249 em especial na América Latina e em particular no Brasil, se associa à elevação da taxa de juros internacionais, ampliando a dívida, o que ocorre em ciclos desenvolvimentistas anteriores aos dos anos 80, pois já fora, deste modo, evidenciado pelos autores da teoria da dependência nos anos 70 (Marini, 1977)423. A máxima popular descobrir um santo para cobrir outro se encaixa perfeitamente naquilo que intelectuais como Chesnais têm considerado como a dinâmica fundante dessa nova fase. A contração de novos empréstimos, a abertura da porta de entrada de modo largo para o capital estrangeiro, dando como principal garantia promessas de ajuste com austeridade, redundando nas políticas de superávit primário, se alastra como um mantra na periferia capitalista, que vislumbra o mito do desenvolvimento424. (Gráficos 4, 5 e 6). Gráfico 4 - Estoques da dívida externa (em % do RNB) – América Latina e Caribe, e Brasil - 1980 a 2010 Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012425. Elaboração própria. 423 MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. 3. ed., Cidade do México: ERA, 1977. (Série popular). 424 Baseada ainda na ideia de que o desenvolvimento é apenas o resultado de medidas adequadas de ajuste na economia e em políticas correlatas. 425 Estoques da dívida externa (em % do RNB). Total de ações da dívida externa para o rendimento nacional bruto. A dívida externa total é para com não residentes reembolsáveis em moeda estrangeira, bens ou serviços. A dívida externa total é a soma da dívida pública, com garantia pública, dívida privada de longo prazo não garantida, o uso de crédito do FMI e dívida de curto prazo. A dívida de curto prazo inclui toda a dívida, com um prazo original de um ano ou menos e juros de mora sobre a dívida de longo prazo. RNB (anteriormente PIB) é a soma do valor adicionado por todos os produtores residentes mais os impostos de produtos (menos subsídios) não incluídos na valoração da produção, além de receitas líquidas dos rendimentos primários (remunerações dos funcionários e rendimentos de propriedade) do exterior. 250 Gráfico 5 - Serviço da dívida (capital + pagamento de juros) – Brics – 1995 a 2010 (em bilhões de dólares). Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012426. (Elaboração própria). Gráfico 6 - Serviço da dívida total (% das exportações de bens, serviços e renda) – Brics – 1995 a 2010. Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012. Elaboração própria. Mas a entrada de capital estrangeiro não se dá apenas como medida de saneamento das contas dos países endividados e em crise. Ela pode ocorrer como oferta para ampliar um ciclo de desenvolvimento já em curso, movimento preferencial do grande capital já que a estabilidade monetária minimiza os riscos de um calote. Ademais, o Investimento Estrangeiro Direto (IED) vindo fundamentalmente dos países de capitalismo central (ditos desenvolvidos) obedece aos 426 Serviço da dívida total é contrastada com a capacidade do País de obter divisas por meio da exportação de bens, serviços, rendimentos e remessas dos trabalhadores. Serviço da dívida total é a soma dos reembolsos principal e juros efetivamente pagos em moeda estrangeira, bens ou serviços da dívida de longo prazo, juros pagos na dívida de curto prazo e reembolsos (recompras e encargos) para o FMI. 251 apelos morais da tradicional teoria cepalina do desenvolvimento. Segundo tal teoria, o desenvolvimento trata da plena realização da economia — cartesianamente tipificada pelos setores primário, secundário e terciário — alcançada a partir da evolução decorrente de uma soma de fatores que vão desde a estabilidade até o investimento, ou, de modo mais simples: com a diversificação da atividade industrial (PREBISCH, 1949 e 1952) 427 . O subdesenvolvimento é, então, uma etapa anterior a essa fase, mas constituinte do mesmo processo. Em outros termos A teoria do desenvolvimento assevera que o subdesenvolvimento constitui uma etapa anterior ao desenvolvimento pleno. Este representaria, porém, algo acessível a todos os países que se empenhassem em criar as condições necessárias para tal. (MARINI apud CASTELO, 2010)428. Desta forma, fica fácil perceber que o fluxo do IED mantém intima relação com a situação de dependência dos países da periferia capitalista, em relação aos centrais, sendo dela parte constituinte. Nos anos 90, o IED cresce em todo mundo, destacando-se a Ásia e a América Latina e Caribe como os maiores receptores. De 1990 a 2005, só os países emergentes da Ásia receberam 55% do total do IED (a China sozinha representa 23% desse total) e a América Latina e Caribe em segundo lugar, com 33% como demonstra o Gráfico 7. Gráfico 7 - O investimento estrangeiro direto nas regiões emergentes - 1990-2005 (em %) Fonte: Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), 2008. Outrossim, a dinâmica ascendente do IED se retrai nos períodos de crise. O Gráfico 8 mostra essa retração nos países em desenvolvimento, nas crises de 1998 e 2002, contudo, a 427 PREBISCH, Raúl. Estudo econômico da América Latina, 1949; e Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico, 1952. In: BIELSCHOWSKY (Org.). Cinquenta anos, v. 1, p. 166-167 e 204, respectivamente. 428 MARINI, Ruy Mauro. A crise do desenvolvimentismo. In: CASTELO, Rodrigo (Org.). Encruzilhadas da América Latina no século XXI. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010. 252 relação de dependência e a expropriação da periferia dela inerente se evidenciam quando verifica-se uma migração direta desses investimentos para os países desenvolvidos, no período de 1998 a 2001 e de 2004 em diante. Isto é, a crise na periferia condiciona o crescimento no centro. Portanto, adquirimos, assim, condições de entender a dependência como epifenômeno do processo de acumulação de capital, que condiciona o desenvolvimento de uma economia pelo subdesenvolvimento/dependente de outra. Ou, como afirma Marini (1977, p. 18): [és una]429 relación de subordinación entre naciones formalmente independientes, em cuyo marco las relaciones de producción de las naciones subordinadas son modificadas o recreadas para assegurar la reproducción ampliada de la dependência430. Gráfico 8 - Ingressos líquidos de investimento estrangeiro direto (em bilhões de dólares) Fonte: Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) As políticas de ajuste, nessa nova fase, contemplam ainda a redução dos gastos públicos com privatizações e recomposições acionárias em larga escala; o afastamento gradual do Estado de suas funções sociais intervencionistas, reduzidas ao controle da estabilidade monetária (metas de inflação baseadas em juros altos, remuneratórias do capital especulativo); a aniquilação gradual da indústria nacional — pois suas condições de concorrência global são ínfimas e a substituição das importações, neste caso, não surte os efeitos de outrora — além de serem arrastadas pelo processo de reestruturação produtiva que redunda na superespecialização 429 Grifo nosso. MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. 3. ed., Cidade do México: ERA, 1977. (Série popular). 430 253 (e fragmentação) do trabalho (ANTUNES, 2005)431 e na reprimarização da economia432 além dos fatores combinados que Gonçalves (2011)433 utiliza como referência para construir seus argumentos comprobatórios do processo de desindustrialização recentes: a redução do valor adicionado da indústria de transformação, a desubstituição de importações, a reprimarização das exportações, a dependência tecnológica, a desnacionalização, a perda da competitividade internacional, etc. É, pois, no Consenso de Washington, responsável tanto pela idealização quanto pela propagação dessa agenda (neoliberal) que princípios estruturais do ajuste são encontrados: liberalização do mercado e do sistema financeiro, fixação dos preços pelo mercado (ajuste de preços), fim da inflação (estabilidade macroeconômica) e privatização (CHOMSKY, 2004, p. 22)434, sem que se tenha que refundá-lo nos tempos atuais. No Brasil não foi diferente. As respostas às crises desde os anos 90 estão no contexto da implantação desse ajuste e podem ser divididas em duas fases: a primeira fase é a de contrarreforma, que carrega consigo a fidelidade às diretrizes do Consenso de Washington, sob a primazia do projeto de estabilização monetária, o Plano Real. Essa fase se inicia, ainda que de modo tímido, já nas primeiras experimentações (re)democráticas, em fins dos anos 80 e atravessa toda a década de 1990. A segunda etapa é caracterizada por experimentalismos relativamente mais bem-sucedidos do que a primeira, pois o remédio amargo do ajuste já fora tomado, tendo início no novo século e nos atingindo até os dias atuais. Ambas as fases se dão no contexto de uma agenda que mantém forte a ortodoxia neoliberal, contudo, flexibilizada aos diferentes estágios de desenvolvimento das democracias liberais de massa, o que pode levar à falsa impressão de que se trata de programáticas distintas, caso examinadas apenas suas manifestações mais evidentes. A supremacia do processo de financeirização pode nos levar a essa falsa identificação da realidade, se não nos dermos conta da permanência dos níveis crescentes de expropriação do trabalho, da terra, dos direitos, etc. As alterações institucionais a que nos referimos, mostram os sutis deslocamentos no interior do bloco no poder, cujos comandos passam à emergente oligarquia financeira. Refundam o mais puro Adam Smith, quando o Estado reduz suas funções à garantia dos contratos de propriedade, à segurança nacional e à administração jurídico-normativa de todo corpo social435. Deste modo, podemos concordar com a tese que assevera a supremacia dos ganhos financeiros sobre os 431 ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005. 432 De modo bastante distinto dos momentos de síntese do desenvolvimentismo na história brasileira. 433 GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. 434 CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 435 Mas sempre mantém ativa sua função econômica. 254 ganhos da produção, numa relação de interdependência entre ambos sob o signo dos princípios fundamentais do neoliberalismo que vem aos poucos se repaginando. 3.3.1 Continuidade e ruptura: novo-desenvolvimentismo ou neoliberalismo à brasileira? A estrutura dos Estados “ajustáveis” latino-americanos, o que inclui o país que nos interessa: o Brasil, apresentará particularidades que os diferirão dos modelos de desenvolvimento implementados nos países emergentes, como a Rússia, a Índia ou a China, por exemplo. Somadas as particularidades conjunturais — com suas fortes implicações políticas e culturais — e as inflexões que condicionam novos padrões nas relações sociais e na morfologia do trabalho, teremos como resultantes a emergência de novo ciclo expansivo com características próprias. Essa assertiva não reafirma as teses sobre a aquisição de uma autonomia ainda que relativa desses países com relação às diretrizes socioeconômicas do centro, ao contrário, as adaptações que realizam são compatíveis com os postulados descritos nos manuais das agências e organismos multilaterais. Apenas na fase posterior, denominada por alguns como pós-neoliberal e, mais recentemente, como neodesenvolvimentista, é que será possível notar iniciativas peculiares que, embasadas em complexos aparatos ideológicos, ilusoriamente, parecem redimensionar a autonomia de alguns Estados nacionais, dão a falsa impressão de um novo ciclo de desenvolvimento orientado para a independência ou autonomia econômico-financeira e colhem como um de seus resultados a participação relativamente proativa desses países nos espaços decisórios da economia global. O Brasil é um caso emblemático. Esse processo nos leva a afirmar que no Brasil estaríamos diante de uma nova roupagem do neoliberalismo, pois seus acessórios o particularizam, o que também nos permite falar em um neoliberalismo à brasileira, desafinando o coro dos contentes apologetas do novo desenvolvimentismo436. 436 A tese que coloca em xeque os argumentos que defendem a existência de um novo desenvolvimentismo no Brasil pode ser encontrada em autores distintos, com formulações distintas, dentre eles: Gonçalves (2011, 2012), Castelo (2010, 2012a, 2012b), Filgueiras (2006), Filgueiras & Gonçalves (2007), Boito Jr. (2006), de modo mais contundente, e desses autores nos apropriamos da quase totalidade dos componentes factuais que levantam, para formular nossos argumentos sobre as continuidades e rupturas do neoliberalismo brasileiro nessa nova fase de acumulação. Deste modo, corroboramos com a linha mestra produzida nos estudos de tais autores. Todavia, a heterogeneidade do debate sobre o novo-desenvolvimentismo nos leva a dialogar com autores como Arcary (2011), que trata do mito reformista na era Lula, ou Singer (2012) que, de modo diferente de Arcary, situa as “reformas lulistas” no campo da modernização conservadora. Tais diálogos situam nossa produção no campo da esquerda anticapitalista, contudo, sem considerar como terra arrasada as reflexões de Pochmann (2012) o qual, ainda que demonstre ser entusiasta desse “novo ciclo de desenvolvimento”, se distingue pelo veio crítico que apresenta, das de Mercadante Oliva (2010) ou as de Bresser-Pereira (2008). 255 3.3.1.1 Primeira fase do novo ciclo: fase contrarreformista Os indicadores macroeconômicos da fase contrarreformista no Brasil demonstram que a frenética busca pela estabilidade redunda em estagnação e na utilização de medidas emergenciais não previstas no projeto de ajuste motivadas pelas crises de 1998 e 1999, como, por exemplo, as recorrentes renegociações da dívida pública brasileira com o FMI e o Banco Mundial. Utilizando o crescimento do PIB como um indicador, verifica-se sua evolução e involução no período estendido do contrarreformismo de 1995 a 2002, mas com mudanças significativas (para o projeto em curso) apenas a partir de 2005. Os gráficos 9 e 10 demonstram que o PIB brasileiro sofre diretamente os impactos da crise de 1998/1999 apresentando uma queda considerável de 30,5%, tomando fôlego em 2000, voltando a cair e só se recupera a partir de 2003. Na comparação com os Brics, a China é o único país que cresce na conjuntura recessiva de 1998/1999437. Gráfico 9 - PIB per capita (US$ atualizados) – Brasil, 1995 a 2011 Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012438. Elaboração própria. 437 Coincide com o momento em que o governo chinês define medidas trabalhistas ainda mais regressivas. PIB per capita (US$ atualizados). É o produto dividido pela população no meio do ano. PIB é a soma do valor bruto agregado por todos os produtores residentes na economia mais todos os impostos de produtos e menos quaisquer subsídios não incluídos no valor dos produtos. Calcula-se sem fazer deduções de depreciação de bens fabricados ou da exaustão e degradação dos recursos naturais. Os dados estão em dólares americanos atualizados 438 256 Gráfico 10 - PIB na cotação atual do dólar – Brics – 1995 a 2011 (em bilhões e trilhões de dólares). Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012. Não ajustado pela inflação. Elaboração própria. Os esforços pela estabilização monetária não impediram que o ataque especulativo associado à fuga de capitais levasse o País a instituir novos acordos com o FMI e outros organismos multilaterais, como já dito. Os recursos utilizados para sanar o desequilíbrio de nossas contas não implicaram investimento, o que fez o PIB do período (1995 a 2002) seguir modesto, com ciclos tímidos de ascensão. O baixo crescimento, porém, não chegou a incomodar as equipes econômicas da vez, afinal, todo sacrifício era válido, em nome da estabilidade pautada pelo cumprimento das metas de inflação. Compromisso este anunciado reiteradas vezes, pelo Presidente Cardoso, desde sua posse, em 1995, até a entrega da faixa presidencial em janeiro de 2003. Ao escolher a mim para sucedê-lo [o presidente Itamar Franco]439, a maioria absoluta dos brasileiros fez uma opção pela continuidade do Plano Real e pelas reformas estruturais necessárias para afastar de uma vez por todas o fantasma da inflação. A isso me dedicarei com toda energia, como Presidente, contando com o apoio do Congresso, dos estados e de todas as forças vivas da Nação. Temos de volta a liberdade, portanto. E teremos desenvolvimento. Falta a justiça social. É esse o grande desafio do Brasil neste fim de século. Será o objetivo número um do meu Governo. (CARDOSO, 1995)440. 439 440 Grifo nosso Discurso de posse do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1o de janeiro de 1995. 257 Começamos por colocar a inflação sob controle, com o Plano Real. Não foi uma tarefa fácil, nem era ela um fim em si mesmo. Porque isso era tão importante? Por uma razão muito simples. Porque, nas décadas anteriores, a espiral inflacionária tinha sido o mais importante fator de perturbação do desempenho da economia brasileira. Também, e isso é o cerne da questão, porque a inflação não era meramente um problema de macroeconomia. Era, acima de tudo, uma questão de justiça social” (Id., 2002)441. A inflação brasileira que já fora de quase 3.000% (2.947,73%, IPC/Fipe), em 1990, cai para 66,01%, em 1995, já como resultado da estabilização do Plano Real recente. Justamente na crise de 1998/99, atinge o índice mais baixo da série 1995-2011, de 3,20%, tendo o IPC como base referencial. Não é por coincidência que os juros praticados no mesmo período foram da ordem de 17,4% (Gráfico 13) e o Decreto presidencial 2.773, de 1998, determinou como meta para esse ano a obtenção de um superávit de R$ 5 bilhões. Além disso, a desvalorização do Real perante o dólar norte-americano funcionou como fator de contenção inflacionária. (Gráfico 11). Gráfico 11 - Inflação (%) – Preço para o consumidor – Brasil - 1995 a 2011 70 66,01 60 50 40 Brasil 30 20 15,76 10 0 14,72 7,04 6,93 3,2 8,45 6,6 6,87 4,18 5,66 5,046,64 Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012442. Elaboração própria. Os indicadores da inflação brasileiros são melhores que os da Rússia — seguindo a linha comparativa com os países em desenvolvimento — porém, piores que os da Índia, China, 441 Discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 9 de dezembro de 2002, ao receber do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) o prêmio Mahbub Ul Haq, por contribuição destacada ao desenvolvimento humano. 442 A inflação, conforme medida pelo índice de preços ao consumidor, reflete a variação percentual anual no custo, para o consumidor médio, de aquisição de uma cesta de bens e serviços que pode ser fixo ou alterado em intervalos específicos; por exemplo, anualmente. 258 África do Sul e da média latino-americana, o que demonstra que a economia brasileira permanece apresentando um grau de vulnerabilidade cuja resolutividade não se encontra nas medidas de privatização e liberalização econômica ao gosto do que as mensagens presidenciais propalaram e o que se pode verificar no Gráfico 12. Gráfico 12 - Inflação (%) – Preço para o consumidor – Brics, América Latina e Caribe - 1995 a 2011 250 200 Inflação 150 Brasil Rússia 100 Índia China 50 África do Sul 0 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 -50 Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012443. Elaboração própria. Não fui eleito para ser o gerente da crise. Fui escolhido pelo povo para superá-la e para cumprir minhas promessas de campanha. Para continuar a construir uma economia estável, moderna, aberta e competitiva. Para prosseguir com firmeza na privatização. Para apoiar os que produzem e geram empregos. E assim recolocar o País na trajetória de um crescimento sustentado, sustentável e com melhor distribuição de riquezas entre os brasileiros [...] O Brasil continuará a desempenhar papel ativo na revisão da arquitetura do sistema financeiro internacional. Não podemos aceitar que aplicações especulativas, por não estarem submetidas a qualquer tipo de supervisão ou ordenamento, desarticulem o processo produtivo e constituam ameaça recorrente às economias nacionais. (CARDOSO, 1999)444. 443 A inflação conforme medida pelo índice de preços ao consumidor reflete a variação percentual anual no custo para o consumidor médio de aquisição de uma cesta de bens e serviços que podem ser fixos ou alterados em intervalos específicos, por exemplo, anualmente. 444 CARDOSO, Fernando Henrique. Pronunciamento de posse em 1 o de janeiro de 1999. Congresso Nacional. Brasília/DF. 259 Gráfico 13 - Taxa de juros Selic acumulada anual e média mensal – Brasil - 1995 a 2012 Fonte: Receita Federal do Brasil. Disponível em: <www.receita.fazenda.gov.br>. Formatação própria Como todos os esforços estavam voltados para a estabilidade a qualquer preço, os custos do ajuste, como a retração dos direitos sociais, que perdem identidade e a concepção de cidadania que se restringe, com o aprofundamento da separação público-privado, onde a reprodução é inteiramente devolvida para este último âmbito, com a legislação trabalhista evoluindo para maior mercantilização (e, portanto, desproteção) da força de trabalho, com a legitimação (do Estado) se reduzindo a uma mistura entre populismo e iniciativas sociais focalizadas, com a seguridade social universal e pública se desmontando (sem mesmo ter conseguido efetivar-se), dentre outros aspectos (SOARES, 2000, p.13)445, foram corroborados pelo Programa de Publicização446, elemento estruturante do enxugamento da máquina do Estado 445 SOARES, Laura Tavares. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo: Cortez, 2000. (Coleção Questões de Nossa Época, v. 78). 446 O Programa de Publicização fez parte estruturante do Plano Diretor de Reforma do Estado, da gestão de FHC, e foi idealizado e implementado por sua equipe econômica, sob a liderança do então ministro da Administração e Reforma do Estado, Bresser-Pereira. “No sentido amplo [o plano diretor] propõe uma redefinição do papel do Estado. Parte-se do pressuposto de que ele continua sendo um realocador de recursos, que garante a ordem interna e a segurança externa, tem os objetivos sociais de maior justiça e equidade, e os objetivos econômicos de estabilização e desenvolvimento. Contudo, para assumir os dois últimos papéis, cresceu de forma distorcida. Hoje, então, a “reforma” passaria por transferir para o setor privado atividades que podem ser controladas pelo mercado, a exemplo das empresas estatais. Outra forma é a descentralização, para o ‘setor público não-estatal’, de serviços que não envolvem o exercício do poder do Estado, mas devem, para os autores [do plano], ser subsidiados por ele, como: educação, saúde, cultura e pesquisa científica. Este processo é caracterizado como publicização e é uma novidade da reforma que atinge diretamente as políticas sociais. Trata-se da produção de serviços competitivos ou não-exclusivos do Estado, estabelecendo-se parcerias com a sociedade para o financiamento e controle social de sua execução. O Estado reduz a prestação direta de serviços, mantendo-se como regulador e provedor. Reforça-se a governance por meio da transição de um tipo rígido e ineficiente de administração pública para a administração gerencial, flexível e eficiente. Para os autores do Plano, o governo brasileiro não carece de governabilidade, mas de governance” (BEHRING, 2003, p. 178-179). Esse extenso excerto da obra de Behring mostra que as bases para uma nova relação público-privada foram reconfiguradas, e se justifica justamente por que nota-se que, no período Lula, mas especialmente sob a gestão da presidenta Dilma. permanece contraditoriamente parte dessas relações sob a forma das parcerias públicoprivadas em áreas estratégicas, como aeroportos, portos e rodovias e, do mesmo modo, uma “espécie de 260 no que tange a suas obrigações sociais. Com ele, se pôde ampliar a arrecadação a serviço da dívida pela via da refuncionalização do Estado. (Gráficos 14 e 15). Gráfico 14 – Dívida interna (R$) - Brasil - 1994 a 2010 (em trilhões de real) Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida Gráfico 15 – Credores da dívida ativa interna (%) - Brasil, abril de 2010 Fonte: Banco Central (abr./2010) (Quadros 11 e 31) e Secretaria de Previdência Complementar (Estatística Mensal– dez./2009) – p. 3447. estatização” em áreas como as de assistência social, cultura, segurança alimentar, dentre outras. (In: BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.) 447 A rubrica Fundos de Pensão inclui recursos que se encontram aplicados em Fundos de Investimento de Renda Fixa. Consequentemente, a rubrica Fundos de Investimento aparece descontada desses recursos. Nota 2: A rubrica Bancos Nacionais e Estrangeiros inclui os Títulos Vinculados (que representam principalmente o depósito, no Banco Central, pelas instituições financeiras, de títulos públicos como garantia de operações em Bolsa de Valores) e as Operações de Mercado Aberto (que significam a retirada de moeda de circulação mediante entrega às instituições financeiras dos títulos públicos em poder do Banco Central). 261 Se no início do Governo FHC ele herda um razoável equilíbrio do ponto de vista das contas públicas, sua marca dos primeiros quatro anos (1994-1998) é o forte desequilíbrio fiscal, menos pelo resultado primário — que não leva em consideração os gastos financeiros — e mais por estes últimos. A componente financeira faz com que os primeiros quatro anos do Governo FHC sejam de forte déficit das contas públicas no resultado operacional. A partir dos acordos com o FMI, entretanto, mudam os parâmetros da política fiscal. Mantém-se o desequilíbrio das contas do ponto de vista do resultado operacional, mas de forma reduzida pela geração de um superávit em torno de 3,5% do PIB ao longo dos três anos entre 1999-2001 — ou seja, o déficit operacional é reduzido por um significativo superávit no resultado primário, obtido de um lado pela ampliação da carga tributária, e de outro, pelo corte de gastos. (LESBAUPIN; MINEIRO, 2002, p. 17)448. Tabela 4 - Despesas do governo central (% do total) - Brasil - 1994 a 2010 1994 Despesas do governo federal - bens e serviços Remuneração de funcionários 5,32 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 9,05 19,05 16,86 17,53 18,01 18,55 11,46 13,17 12,11 6,72 7,34 6,65 8,30 11,60 20,35 20,18 21,02 21,03 21,10 17,88 18,82 16,75 16,36 16,33 16,10 Pagamento de 45,18 14,34 19,90 20,24 16,86 16,66 14,72 26,65 19,28 23,64 26,24 24,63 24,38 juros Subsídios e outras transferências 44,78 66,05 40,70 42,72 44,63 44,29 45,63 43,89 48,59 47,18 50,34 51,56 50,92 Outras despesas - - - - - - - 0,12 0,14 0,32 0,34 0,14 2009 7,15 2010 7,02 17,82 16,59 22,12 21,29 52,70 50,73 1,96 Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012449. Elaboração própria. Essa conjuntura macroeconômica, cuja fidelidade aos marcos do neoliberalismo assombra os crédulos mais fiéis, evidencia uma proposta de desenvolvimento distinta daquelas registradas nos momentos de síntese desenvolvimentistas. A industrialização e o intervencionismo estatal 448 LESBAUPIN, Ivo; MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002. 449 As estatísticas financeiras governamentais proporcionam uma visão geral do tamanho e do papel dos governos centrais em relação às economias nacionais. A receita é o recebimento de impostos, contribuições sociais e outras receitas, tais como multas, tarifas, aluguel e renda de propriedades ou vendas. As despesas são pagamentos em dinheiro para as atividades operacionais do governo no fornecimento de bens e serviços. Elas incluem a remuneração dos funcionários, juros e subsídios, subvenções, benefícios sociais e outras despesas, como aluguel e dividendos. Superávit ou déficit de caixa é a receita (incluindo subsídios) menos despesas, menos a aquisição líquida de ativos não financeiros. Aumento líquido de passivos é o financiamento interno (obtido de residentes) e financiamento externo (obtido a partir de não residentes) ou o meio pelo qual o governo disponibiliza recursos financeiros para cobrir um déficit orçamentário ou aloca recursos financeiros decorrentes de um excedente orçamental. A dívida total é composta por todas as obrigações contratuais diretas do governo a prazo fixo com outros em determinada data. 262 0,20 4,45 orientados para o mercado, de tão tímidos são quase inexistentes, muito menos o fomento do Estado ao desenvolvimento pela via dos bancos e empresas públicas com intervenção direta, antes, tal fomento se deu como pilar de sustentação para as privatizações. Em termos de política macroeconômica, os indicadores demonstram a permanência de resultados similares entre as duas fases de implantação do neoliberalismo no Brasil (o período contrarreformista e o seguinte) ainda que os governos iniciados após 2003 se valham de outras estratégias. É aí e na ausência de reformas de base estruturante como as reformas política, fiscal e agrária, contudo, que se encontram parte dos traços de continuidade estrutural da programática neoliberal. As rupturas se darão nas dimensões afetas a institucionalidade, a morfologia do trabalho, a mobilidade social, a política social e a sensíveis deslocamentos no interior do bloco no poder, se tratando assim apenas de mudanças conjunturais, na contramão do que afirmara Mercadante Oliva (2010, p.3 ): O programa de governo procurava articular três eixos: o social, o democrático e o nacional. Orientado para promover a inserção internacional soberana do Brasil, propugnava por uma ruptura com as políticas neoliberais, que já mostravam desgaste profundo em toda a América Latina. Essa ruptura envolvia mudanças estruturais do país. Uma parte dessas mudanças visava desmontar as armadilhas deixadas pela agenda neoliberal. Outra parte das mudanças estruturais visava constituir um novo padrão de desenvolvimento, tornando, como já dissemos, o social o eixo estruturante do crescimento econômico450. Assim, o período contrarreformista parece poder ser caracterizado “por um conjunto de mudanças estruturais regressivas” (BEHRING, 2003)451 sem precedentes que abriram caminho para que se consolidasse na fase seguinte o imobilismo no que tange à necessidade de reformas reais, ainda que o discurso dominante se refira a reversão de estruturas. 3.3.1.2. Segunda fase do novo ciclo: fase de consolidação do neoliberalismo à brasileira. Se há autores que afirmam o fracasso da ofensiva neoliberal no Brasil por não ter logrado êxito no cumprimento de suas promessas de bem-estar, os indícios de seu sucesso (ou vitória nos dizeres de Filgueiras) 452 se fazem notar pela incorporação e enraizamento, tanto na 450 OLIVA, Aloizio Mercadante. As bases do novo desenvolvimentismo no Brasil. Análise do governo Lula (2003-2010). Tese (Doutorado)- Instituto de Economia da Unicamp, dez. 2010. 451 BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. 452 FILGUEIRAS, Luiz. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico. In Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales y experiências nacionales. Basualdo Eduardo M.; Arceo Enrique. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires, Agosto, 2006. 263 população em geral quanto na “classe política” dos seus marcos fundamentais. Esta foi a tônica que balizou as campanhas presidenciais de 2002 levando o principal candidato da oposição valer-se da estratégia de se comprometer com tais marcos tanto para atrair setores médios e altos da sociedade quanto para sinalizar “tranquilidade” ao grande capital internacional e seus “mercados em constante tensão”. Neste sentido, Lula declarou: Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica (...) [A transição] Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar crescimento com estabilidade (...) Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. (...) À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo de Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores. Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições (Lula da Silva, 2002)453. Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico. Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável. Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de compra dos salários dos trabalhadores. Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos (idem)454. Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos (...) A estabilidade, o controle das contas públicas e a inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados (...) As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle (ibidem)455. 453 Lula da Silva, Luiz Inácio. Carta ao povo brasileiro. São Paulo, 22 de junho de 2002. Idem. 455 ibidem. 454 264 A Carta ao Povo Brasileiro foi assim alvo de polêmicas de todas as ordens. Dividindo opiniões, polariza um debate que vai para além dela. A polêmica se instaura entre um grupo que entende os enunciados da Carta e as dinâmicas de campanha, bem como as medidas iniciais do governo do presidente Lula como uma reversão programática e de princípios que não apenas marcariam a posição do Partido dos Trabalhadores (PT) no campo de uma centro-esquerda cada vez mais a direita como também impediriam a realização das mudanças na ordem econômicosocial do país. Iasi, cuja produção intelectual simboliza este grupo afirma: Hoje assistimos ao processo de morte do PT, ou pelo menos a acentuação marcada de sua agonia. Isto não implica que a forma que nasceu um dia e que hoje se encontra em franco processo de deterioração não possa ainda caminhar pelo mundo por muito tempo, uma vez que é comum este tipo de zumbi na história dos partidos políticos (Iasi, 2006, p. 358)456. De modo oposto, o debate contou com um grupo que viu na “Carta” não apenas os sinais evidentes de um amadurecimento institucional e político do PT como também o anúncio da reversão gradual do projeto neoliberal. Mercadante Oliva tem sido um de seus principais defensores: a “Carta ao Povo Brasileiro”, concebida em um momento em que a economia brasileira sofria forte ataque especulativo, representou um compromisso de responsabilidade política com uma transição gradual dos programas neoliberais fracassados para as novas diretrizes políticas que estavam assinaladas no documento “Um Outro Brasil é Possível”. Tal compromisso tinha um caráter fundamentalmente tático. Tratava-se de preservar a estabilidade monetária, seriamente ameaçada pela fragilidade estrutural de nossa economia na época, agravada por uma conjuntura política de transição que gerava incertezas e desconfianças (Oliva, 2010, p.18)457. Cumpridos os dois mandatos de Lula, podemos constatar pertinência na totalidade da primeira e parcialmente na segunda458. A tese da “cooptação ideológica” que transforma o PT num “partido da ordem” encontra ressonância em muitas das medidas que o governo Lula tomou e se prosseguem no governo Dilma, o que em nossos argumentos sobre o desenvolvimento capitalista nesta nova fase se evidencia, entendendo-se, bem claro, que tal adesão a ordem não é orgânica, muito menos ontogenética, o que faz deste processo um 456 IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe. O PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006. 457 MERCADANTE, Aloísio. As bases do “novo desenvolvimentismo” Análise do governo Lula. Tese de Doutorado. Departamento de Economia UNICAMP. Campinas, 2010. 458 O debate, embora polarizado da forma que mostramos, contou ainda com outras vertentes, como por exemplo, correntes críticas dentro do próprio PT que denunciaram o neoconservadorismo do discurso e das práticas que se seguiram. 265 processo particular no contexto interno das próprias instituições partidárias burguesas. Sendo assim, o segundo grupo também tem certa pertinência quando se refere a relativo amadurecimento do partido, desde que este amadurecimento seja entendido como uma maior capacidade de apreender as dinâmicas contemporâneas do capitalismo financeirizado e assim adaptá-las a uma programática que inova na concertação entre capital-trabalho, ainda que com cariz conservador. De fato, se trata de uma dinâmica distinta daquela que seria praticada pelo binômio politico partidário PSDB-DEM459. O fato é que as inflexões políticas, institucionais, partidárias, ideológicas, culturais e econômicas ocorridas no governo Lula, ao manter o essencial — e por isso mesmo, estruturante e estrutural — do neoliberalismo acaba por transformar qualquer mudança que queira em acessório institucional e político. Sem mexer no núcleo, as mudanças na membrana tendem a reforçar este núcleo ainda que possa rearranjar o lugar e o espaço de algumas células em seu interior. E, isto no Brasil tem sido feito de um modo engenhosamente peculiar. Em outros termos, por mais que os momentos de síntese histórica do desenvolvimentismo brasileiro possam distinguir-se entre si por particularidades conjunturais ou mesmo por medidas sui generis que possa torná-los único no trajeto histórico a estrutura essencial das medidas permanecem, e, assim, favorecem a perenização da lógica do desenvolvimento capitalista e do conceito conservador de desenvolvimentismo460. Do ponto de vista da (ir)racionalidade dos primados deste desenvolvimento permanecem inalteradas as regras da lei geral da acumulação que assentada sob a exploração da força de trabalho e da geração da mais-valia aumenta a riqueza da classe proprietária ao mesmo passo em que diversifica de modo crescente o pauperismo da classe trabalhadora 461 . Sincronizado a isto, o conceito de desenvolvimento encontra na crítica marxista o seu desvelamento quando desmascara o mito que circunscreve o desenvolvimento ao fenômeno econômico do crescimento das taxas produtivas de um país associada a dinâmica progressiva dos fatores de produção e, de modo marginal, a distribuição da renda. Todavia, diferente de um conceito que sustenta o desenvolvimento em instâncias associadas a economia, este se encontra cristalizado na história do pensamento econômico, de modo a influenciar nas análises com fulcro marxista, levando-as a utilizar-se destes itens como a melhor proxy para mensurar a evolução socioeconômica dos países mesmo os de tipo não capitalista462. 459 Nos programas de governo da coligação liderada por estes dois partidos são frágeis ou inexistentes menções a direitos, políticas trabalhistas e sociais ou mesmo a “participação popular”. Não se observa uma tendência deste grupo a promover esta concertação (ainda que como base do transformismo) entre capital e trabalho como tem sido feita no grupo liderado pelo PT. 460 Não se rompe com o capital financeiro, não se realizam as reformas de base estrutural. Ver ARCARY, Valério. Um Reformismo Quase Sem Reformas: uma crítica marxista do governo Lula em defesa da revolução brasileira. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2011. 461 Cf. O Capital, de Karl Marx, Capítulo XXIII – A Lei geral da acumulação. 462 Uma clara aproximação dos neoschumpterianos ao marxismo. 266 Essa arriscada referenciação na economia só pode manter-se no campo da ortodoxia marxista 463 se levar em conta tanto os conflitos e relações que ocorrem entre as classes fundamentais, quanto seus similares, internamente, entre as frações de classe. Ademais, ao primar-se pela totalidade, as implicações políticas, ideológicas, culturais, dentre outras não podem ser tratadas como apêndice, mas como partícipes do conjunto de determinações que formam e conformam a realidade social. Assim, e somente assim, é possível considerar que o conceito de desenvolvimentismo para análises de base marxiana e marxista pode sem equívocos envolver como fatores decorrentes e determinantes a industrialização, o intervencionismo estatal e o nacionalismo emoldurados pela história e pela dinâmica de diferentes atores e fatores, pois afetos estão a evolução das forcas produtivas e das relações de produção e reprodução social no contexto mesmo da luta de classes. Por isso, uma análise do governo Lula com foco naquilo que diz respeito aos modos como empreendeu políticas e medidas alcunhadas de desenvolvimentistas nos levam a seguinte elaboração: permaneceu (e permanecem) em curso a lei geral da acumulação capitalista enfeixada em novas determinações conjunturais, contudo, desta vez não se fizeram acompanhar do tradicional corolário desenvolvimentista. Como temos dito, se trata de um neoliberalismo à brasileira, pois além dos determinantes empíricos que utilizaremos – apoiados em Gonçalves (2011), Filgueiras & Oliveira (2012) e de certo modo em Lazzarini (2011) – demonstrarem a permanência dos postulados neoliberais e a ausência do trinômio clássico industrialização, intervencionismo e nacionalismo, mostram também que o que foi feito aqui, só foi possível pela liderança singular do presidente Lula, isto é, sem comparações possíveis em vários aspectos com seus companheiros latino-americanos de Cristina Kirchner ou Fernando Lugo a Hugo Chávez a Evo Morales ou mesmo de um Barack Obama, Nicolau Sarkozy ou Angela Merkel e que apenas a nossa formação social vista pela constituição de nossas classes e do sistema político nacional podem lhe conferir lógica-gnosiológica464. É deste modo, que a industrialização brasileira esteve sempre vinculada, como no mundo todo, mas com diferenciações substantivas no momento atual, a generalização do trabalho assalariado e ao aumento exponencial da fragmentação e divisão do trabalho, ao aumento do consumo, a concentração da riqueza que se financeiriza, a urbanização, ao crescimento de atividades satélites como os serviços e comércio locais, ao aumento da produtividade tanto industrial quanto agrícola, particularizados numa formação social cuja força de trabalho se forma a partir da exploração escravocrata de índios e negros num primeiro 463 Fidelidade ao método cf. LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (p. 63-64). 464 A particularidade e a singularidade da formação social brasileira contribuem para particularizar e singularizar os fenômenos que nela ocorrem. Deste modo, o “lulismo” embora possa ter características comuns com outros “governos” que articulam “populismo” e “austeridade” seus traços singulares e particulares lhe permitem compor o todo de modo único. O que faz do “lulismo” um fenômeno brasileiro, cf. Singer 2010. 267 momento, depois incorporando a exploração pela discriminação territorial (Norte e Nordeste alimentando com trabalho o Sul e o Sudeste) possibilitada por fluxos migratórios (Pochmann, 2010, p.33-40) 465 , e por fim, generalizando-se nas classes subalternas sem abandonar as características fundantes elencadas, irá evidenciar que a luta de classes intrínseca a todo esse processo é submersa na “revolução passiva”. Isto explica em parte, porque é tão fácil confundir os postulados neoliberais de novo tipo – desta nova fase – com os caracteres do desenvolvimentismo tradicional, “clássico”466. O fato é que a industrialização, ao se tornar a locomotiva do desenvolvimento capitalista desde que foi base de “Revoluções” nos modos de produção e consequentemente em toda organização societal desde meados do século XVIII 467 carrega consigo a propriedade ambígua de transformar as forças produtivas no leit motiv daquilo que há de civilizatório neste processo ao mesmo tempo em que cria e aprofunda a chamada “questão social”. Sendo deste modo base fulcral do desenvolvimento capitalista de padrões monopolistas. A indústria pesada ou de transformação como é conhecida a fração do setor industrial que tradicionalmente alavanca os projetos desenvolvimentistas 468 tem, deste modo, os indicadores do seu desenvolvimento utilizados quase sempre como indicadores essenciais para informar os graus de desenvolvimento da sociedade como um todo. Recorre-se tradicionalmente a participação deste tipo de indústria na formação do Produto Interno Bruto (PIB) e da participação do nível de emprego que abarca. 465 POCHMANN, Marcio. Desenvolvimento e Perspectivas Novas para o Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. 466 Em outros termos, o que estamos insinuando é que a incorporação das classes e/ou de frações da classe subalterna, no projeto “desenvolvimentista” em curso faz sucumbir, do modo ideológico e político, as características mais fundamentais da formação com expropriação desta classe e suas frações, ao mesmo passo em que subtrai de seu escopo esta mesma expropriação nos seus modos contemporâneos de acontecer, tanto pela internalização coletiva das promessas socializadoras míticas do desenvolvimento quanto pelos ganhos – ainda que marginais – que esta classe e suas frações obtém com o novo modelo. Esta argumentação está no cerne das análises de Armando Boito Junior em O governo Lula e a reforma do neoliberalismo. In Revista ADUSP, maio de 2005. 467 O fenômeno da industrialização, muito maior do que simplesmente criação ou ampliação de “fábricas”, passou a ser o epicentro motivador do desenvolvimento capitalista por apresentar novas possibilidades de acumulação desde que importantes transformações técnicas e tecnológicas alteraram as bases do processo produtivo com o surgimento, por exemplo, da máquina a vapor, configurando a chamada Revolução Industrial iniciada na Inglaterra de século XVIII e se alastrando rapidamente para outros países. Do mesmo modo, a utilização do petróleo como fonte de energia acarretou novas e significativas transformações na indústria, sobretudo, a química, a elétrica e a siderúrgica, de modo modesto em meados do século XIX e de forma mais contundente no século XX, caracterizando a chamada Segunda Revolução Industrial. Na contemporaneidade ainda estamos sob o impacto de mudanças iniciadas por volta dos anos 1980 do século XX marcadas por uma reestruturação produtiva sustentada pelo incrível desenvolvimento das tecnologias microeletrônicas, pela robótica, pela telemática, etc. Esta terceira Revolução Industrial é chamada por alguns de Revolução Digital e por outros de Revolução Informacional ou Informática. O fato é que todas essas mudanças, mudanças nas relações de produção implicaram e implicam necessariamente inflexões nos padrões de reprodução social, afinal produção e reprodução social são duas faces de uma mesma moeda, como demonstrara Marx, o que atesta a centralidade do momento de síntese que ocorre sob o signo da industrialização para a sociedade humana nos desígnios capitalistas. 468 No Brasil tradicionalmente os ramos metalúrgico e petroquímico tem se destacado. 268 Segundo o levantamento realizado por Arend (2009)469 (...) em 1955 a participação da indústria de transformação no PIB brasileiro era de 21% e, ao final do Plano de Metas, em 1961, acercava-se de 28%. Ao final do período do milagre, em 1973, era de 33% e, após a concretude do II PND, atingiu seu pico, próximo dos 36% do PIB em 1985. Ao longo desse período, a indústria de transformação aumentou sua participação relativa em 71% no PIB. Essa evolução crescente identificada nos momentos de síntese desenvolvimentista pode ser facilmente associada a estratégia de substituição de importação presente em todos estes momentos por suas implicações na demanda por produtos manufaturados e o crescimento tímido do setor de serviços, contudo, é importante que duas observações se apresentem: 1) esse processo apresenta uma tendência a inverter-se na medida em que a elasticidade renda da demanda de serviços tende a crescer com o desenvolvimento econômico, tornando-se maior que a elasticidade renda da demanda por manufaturados (OREIRO & FEIJÓ, 2010), e, 2) a dinâmica da economia internacional associada as “políticas” que lhe dão sustentação converteu-se a partir da mundialização da economia capitalista em um modo peculiar das “vantagens comparativas” de Ricardo levando a uma “difusa polarização” entre os países especializados na produção dos manufaturados, como por exemplo, a China e Alemanha e países especializados na produção de serviços, como os Estados Unidos e o Reino Unido, afetando o grau de integração comercial e produtiva em todo o mundo (idem)470. Este novo contexto coincide com o momento da reversão neoliberal que levara às políticas de ajuste e de contrarreforma. Portanto, a reversão da industrialização além de ser um fenômeno já previsto na dinâmica de desenvolvimento capitalista tem suas bases estruturais aceleradas a partir dos anos 1990 “banindo” da história do pensamento econômico o pilar industrializante dos projetos desenvolvimentistas. 469 AREND, Marcelo. 50 anos de industrialização do Brasil (1955-2005) uma análise evolucionária. Tese de doutorado em Economia defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. 470 Os autores ainda lembram que “alguns países podem se especializar na produção de manufaturados intensivos em trabalho qualificado, ao passo que outros podem se especializar na produção de manufaturados intensivos em trabalho não qualificado. Esse padrão de desenvolvimento gera uma redução do emprego industrial (em termos relativos) no primeiro grupo e um aumento industrial no segundo grupo”. O caso da China é exemplar. OREIRO & FEIJÓ, José Luis & Carmem A. Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro. In Revista de Economia Política, volume 30, nº 2 (118), pp. 219-232, abril-junho/2010. 269 [No Brasil, a participação da indústria de transformação no PIB], em 1990 era de 26,5% registrando um decréscimo de praticamente dez pontos percentuais em apenas cinco anos. Em 1998, a participação da indústria de transformação atingiu o valor de 15,7% do PIB, encontrando-se um pouco acima desse patamar nos dias atuais. Assim, nas duas últimas décadas, a indústria de transformação perdeu mais de 50% de participação relativa no PIB. Em 1955, mesmo antes do Plano de Metas, ela detinha uma participação relativa 25% superior a do ano 2000! (Arend, 2009, p. 204-205)471. Portanto, a “desindustrialização” se afigura como uma tendência semi-estrutural do novo ciclo de acumulação capitalista, de modo mais agudo em economias como a brasileira. A queda que o peso da indústria tem tido no desenvolvimento econômico desde o último período mais significativo de desenvolvimentismo nivelou “por baixo” sua importância como proxy e seus patamares de crescimento: No entanto, nos últimos 27 anos, a indústria de transformação perdeu 19,5% na sua participação relativa na ocupação total (de 17,4% em 1980 para 14% em 2007). Sua participação no PIB foi reduzida a menos da metade entre 1985 e 2007: de 35,9% para 17,6% do valor adicionado. O resultado só não foi pior porque, desde a última mudança importante do regime cambial, em 1999, a indústria de transformação recuperou 13% de sua participação relativa no valor agregado nacional. E o emprego da mão-de-obra na indústria de transformação também aumentou em 20,6% a sua participação relativa no total da ocupação do Brasil (POCHMANN, 2008)472. Na comparação com outras economias, o autor argumenta que embora a renda per capita das economias desenvolvidas seja sete vezes superior à brasileira nossos percentuais se aproximam delas, portanto “essa seria uma forte evidência de que a estrutura industrial brasileira possa estar em desacordo com o seu estágio de desenvolvimento econômico. Ou seja, o movimento em direção a desindustrialização foi mais agudo do que o apresentado até mesmo pelas economias avançadas” (idem). 471 AREND, Marcelo. 50 anos de industrialização do Brasil (1955-2005) uma análise evolucionária. Tese de doutorado em Economia defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. 472 POCHMANN & WOHLERS, Marcio & Marcio. Principais características da inovação na indústria de transformação no Brasil. IPEA, Comunicado da Presidência nº 5. Brasília, 29 de maio de 2008. 270 Gráfico 16 Participação da Indústria de Transformação no PIB, Brasil, Economias Desenvolvidas e Economias em Desenvolvimento no ano 2000 (%). Fonte: Elaborado por Arend (2009) com base em Feijó & Carvalho (2008) e Carneiro (2008)473 A elevação recente para 1,9% do primeiro trimestre de 2012 em comparação aos 1,5% do trimestre anterior, segundo o IBGE, nos atesta a irrisoridade dos percentuais de crescimento deste setor da indústria e o modo como os padrões de desenvolvimento industrial passam a ser “nivelados por baixo” (Gráfico 17)474. 473 AREND, Marcelo. 50 anos de industrialização do Brasil (1955-2005) uma análise evolucionária. Tese de doutorado em Economia defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. FEIJÓ, C. A.; CARVALHO, P.G.M. A evolução da estrutura industrial. São Paulo: IEDI, set. 2008. 27p. Disponível em http://www.iedi.org.br/admin_ori/pdf/20060804_ide.pdf. Acesso em 15 nov. 2008. CARNEIRO, R. Impasses do desenvolvimento brasileiro: a questão produtiva. Campinas: IE/UNICAMP, 2008. 56p. (Texto para discussão, nº 153). 474 Filgueiras & Oliveira (2013) afirmam: “Apesar da melhora em todos os indicadores conjunturais no governo Lula, não se identifica uma mudança estrutural pró-indústria de maior valor agregado, nem uma inserção externa mais sólida com superávits provenientes de manufaturas de alta tecnologia. Pelo contrário, o BNDES está atuando a favor da produção de produtos primários e da indústria intensiva em recursos naturais e em energia. Seu programa de estímulo à internacionalização das “campeãs brasileiras” não faz parte de um planejamento estatal de desenvolvimento econômico, mas, sim, atende à demanda da burguesia interna por financiamentos para sua expansão devido às oportunidades de lucros surgidas no exterior. O que se percebe é um processo de desindustrialização que no médio ou longo prazo possa se tornar extremamente complexo e custoso de se reverter” 271 Gráfico 17 PIB e subsetores (com ajuste sazonal) Taxa (%) do primeiro trimestre de 2012 em relação ao trimestre imediatamente anterior. Fonte: Comentário IBGE: A Economia Brasileira no Primeiro Trimestre de 2012 Visão Geral (www.ibge.gov.br) Mas, é importante ressaltar que o conceito de “desindustrialização” não se restringe a retração das atividades industriais medida pelo seu peso no PIB, embora esta seja uma proxy relevante. Podemos perceber o fenômeno ainda pela redução da participação do emprego industrial no emprego total do país (Tabela 5)475 e pelo processo secular de terceirização das economias ao longo do processo de desenvolvimento decorrente dos diferenciais de elasticidade renda da demanda. Isto é, há tendência de redução das participações dos setores primário e secundário no PIB e a elevação da participação do setor terciário no longo prazo. A discussão sobre mudanças na estrutura produtiva deve levar em conta esta tendência secular. Ademais, desenvolvimento econômico implica upgrade da estrutura produtiva via aumento da produção de serviços com alto valor agregado (GONÇALVES, 2001)476. 475 O que demonstra que as economias centrais sofrem esse processo já a partir da década de 1970, ao passo que a América Latina apenas tardiamente nos anos 1990 em sincronismo as políticas liberalizantes do ajuste neoliberal, do consenso de Washington. OREIRO & FEIJÓ, José Luis & Carmem A. Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro. In Revista de Economia Política, volume 30, nº 2 (118), pp. 219-232, abril-junho/2010. 476 GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. 272 Tabela 5 Participação da Indústria no Emprego (% do total)477 Região África Subsaariana 1960 4,4 1970 4,8 1980 6,2 1990 5,5 1998 5,5 América Latina e Caribe 15,4 16,3 16,5 16,8 14,2 Cone Sul e Brasil 17,4 17,2 16,2 16,6 11,8 Ásia Ocidental e Norte da 7,9 África Sul da Ásia 8,7 10,7 12,9 15,1 15,3 9,2 10,7 13,0 13,9 Leste da Ásia (exceto China 10,0 e Japão) NIEs 10,5 10,4 15,8 16,6 14,9 12,0 8,5 21,0 16,1 China 10,9 11,5 10,3 13,5 12,3 Terceiro Mundo 10,2 10,8 11,5 13,6 12,5 Primeiro Mundo 26,5 26,8 24,1 20,1 17,3 Fonte: Elaboração própria com dados de 1. Palma (2005, p.5) apud OREIRO & FEIJÓ (2010); 2. IBGE, anuário estatístico; 3. IPEA, ipeadata e 4. Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012. 477 Economias incluídas sob o título “Terceiro Mundo”: África Subsaariana: Benin, Botsuana, Burkina Faso, Camarões, República Central Africana, Chade, República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Gabão, Gana, Quênia, Lesotho, Malawi, Mali, Mauritânia, Maurício, Nigéria, República do Congo, Ruanda, Senegal, África do Sul, Togo, Zâmbia e Zimbábue. América Latina e Caribe: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai (dentro dessa categoria, a subcategoria “Cone Sul” inclui Argentina, Chile e Uruguai). Ásia Ocidental e Norte da África: Argélia, Egito, Marrocos, Oman, Arábia Saudita, Tunísia e Turquia. Sul da Ásia: Bangladesh, Índia, Paquistão e Sri Lanka. Leste Asiático: Hong Kong SAR, Indonésia, Malásia, Filipinas, República da Coreia, Cingapura, Tailândia e Taiwan Província da China (dentro dessa categoria, a subcategoria NIEs 1 inclui: Hong Kong SAR, República da Coreia, Cingapura e Taiwan (Província da China). Economias incluídas sob o título “Primeiro Mundo”: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Grécia, Itália, Japão, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Espanha, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos. 273 Gráfico 18 Brasil Fonte: GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. (elaboração do autor com dados do IBGE). Ademais, Gonçalves afirma que no governo Lula o processo de desindustrialização “é acompanhado pela dessubstituição de importações”. Gráfico 19 Brasil Fonte: GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. (elaboração do autor com dados do IPeadata). A tarifa média aplicada cai de 10,9% em 2002 para 9,2 em 2010. E, há tendência de contribuição cada vez mais negativa das importações (vazamento de renda) para o crescimento do PIB (idem). 274 A instigante tese de um “nacional-desenvolvimentismo” às avessas de Gonçalves também aponta para uma reversão da tendência de desenvolvimento tradicional baseada na ascendência de exportação de produtos manufaturados. A exportação de commodities parece alavancar o tipo de desenvolvimento que se deseja, em que pese toda a fragilidade que as relações de comércio nela sustentadas possa apresentar ou mesmo a sua predominância nas estratégias de substituição de importações. Neste caso, se verifica uma “reprimarização” da economia brasileira. A participação dos produtos manufaturados no valor das exportações (média móvel 4 anos) mostra clara e forte tendência de queda (56,8% em 2002 para 45,6% em 2010). Por outro lado, há tendência igualmente clara e forte de aumento da participação dos produtos básicos (25,5% em 2002 para 38,5% em 2010) (ibidem). Gráfico 20 Brasil Fonte: GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. (elaboração do autor com dados do MDIC). Além disto, verifica-se um déficit tecnológico478 caracterizado pelo alto volume de bens e serviços intensivos em tecnologia importados em detrimento dos gastos com ciência e tecnologia no país. 478 Déficit Tecnológico é a diferença entre o valor das importações de bens altamente intensivos em tecnologia e maior valor agregado e dos serviços tecnológicos (computação, royalties e aluguel de equipamentos) e o valor das exportações destes bens e serviços. GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. 275 Gráfico 21 Brasil Fonte: GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. (elaboração do autor com dados do PROTEC). Do ponto de vista de uma macro-estrutura econômica a “desindustrialização”, a “dessubstituição de importações”, a “reprimarização” da economia e a “dependência tecnológica” foram implantadas no Brasil na direção de um padrão de desenvolvimento sui generis que combinou tais medidas com outras do tipo: o “acúmulo recorde de reservas internacionais, o aumento de investimentos públicos, a drástica expansão do mercado de crédito, o aumento real do salário mínimo” (Filgueiras & Oliveira, 2012)479 e a massificação de políticas de transferência monetária, o que redundou num desempenho econômico positivo a curto prazo, ainda que tais medidas de primeira ordem antagonizem com as medidas típicas do nacionaldesenvolvimentismo480 . 479 FILGUEIRAS & OLIVEIRA, Luiz & Elizabeth. A natureza do atual padrão de desenvolvimento brasileiro. Artigo submetido ao XVIII Encontro Nacional de Economia Política (Belo Horizonte, 28 a 31 de maio de 2013) – Sessões Ordinárias – Área 2 – História Econômica e Economia Brasileira – Economia Brasileira Contemporânea. 480 Ao final de seu ensaio Gonçalves apresenta um quadro comparativo entre as características determinantes do nacional-desenvolvimentismo e as características apresentadas no governo Lula sendo que no primeiro há industrialização, no segundo desindustrialização; no primeiro substituição de importações no segundo dessubstituição de importações; no primeiro melhora do padrão de comércio, no segundo uma reprimarização da economia; no primeiro um avanço do sistema nacional de inovações e no segundo maior dependência tecnológica, etc. O que Gonçalves não investiga é o processo interno de “acumulação” que tem nas estratégias de “concentração” sua maior expressão. Neste sentido, seus argumentos relativos a “desnacionalização” carecem da incorporação dos condicionantes internos para que se alcance a complexidade do fenômeno. GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacionaldesenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. 276 Na vertente política deste processo, o nacionalismo se coloca tanto como medida econômica quando se traduz em “redução da vulnerabilidade externa estrutural do país na esfera produtivo real” (GONÇALVES, 2011)481 quanto quando se reveste em amalgama ideológica quando a preferência pelo capital nacional se emoldura em tons ufanistas ou xenofóbicos de várias proporções482, sendo assim um elemento fundamental do nacional-desenvolvimentismo. No Brasil de nossos dias, o que assistimos é uma complexa mistura entre o que Gonçalves (2011) 483 denomina de “desnacionalização”, isto é, uma “tendência da elevação da relação entre as remessas de juros, lucros e dividendos ao exterior e o PIB” com uma engenhosa reforma no mercado corporativo nacional (LAZZARINI, 2011) 484 com fulcro na revitalização de empresas brasileiras, sem, contudo, reverter a situação de capitalismo dependente, e o reposicionamento dos fundos de pensão como agentes econômicos centrais (OLIVEIRA, 2009) 485 , o que nos demonstra um tipo peculiar de nacionalismo econômico. Um nacionalismo, que como veremos não se advoga propulsor de uma comunidade nacional na prática, embora mantenha no discurso oficial, mas sim de uma requalificação do capital nacional posto em condições de imbricamento interdependente com a comunidade global do grande capital. Ou como afirmou Nogueira: O “capitalismo dependente” de que se falava na década de 1960 parece ressurgir, com o crescimento econômico se apoiando sempre mais em uma articulação do Estado com grandes empresas multinacionais e algumas poderosas empresas nacionais. Respirando ares globalizados, nossa soberania estatal se afirma de modo compartilhado. A dependência virou 486 interdependência estrutural (NOGUEIRA, 2012) . 481 GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. 482 Utilizamos a definição de nacionalismo apresentada por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida que enfatiza a necessidade de se distinguir ideologia nacional de nacionalismo. Segundo o autor: “a primeira (ideologia nacional) é uma dimensão estrutural do capitalismo; a segunda expressa uma crise da própria ideologia nacional, por meio do clamor pela constituição de uma comunidade nacional ou pela sua revitalização, quando esta comunidade é percebida como ameaça interna e/ou externamente. Em ambos os casos – pré-nação ou nação existente, mas considerada em crise – se produzem nacionalismos. A ideologia nacional e o nacionalismo, na medida em que centram o foco na constituição/reprodução da dimensão comunitária e soberana de uma sociedade de classes claramente territorializada, se volta para a celebração do Estado, visto justamente como a expressão desta soberania” ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Não comprar gato por lebre – por um reexame da relação entre nacionalismo e antiimperialismo nos anos JK e Uma ilusão de desenvolvimento: nacionalismo e dominação burguesa nos anos JK. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. 483 GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011 484 LAZZARINI, Sérgio Giovanetti. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 485 OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. 486 NOGUEIRA, Marco Aurélio. Desenvolvimento e Democracia. Jornal Folha de S. Paulo, 28 de abril de 2012. 277 É importante notar que a interdependência referida por Nogueira está muito mais vinculada ao sistema de relações recíprocas entre o Estado e as empresas capitalistas — que assumem uma forma híbrida de composição local / global — do que uma alteração estrutural na relação/dominação centro-periferia. E, se é assim, nos cabe asseverar que tal relação não é nova no contexto da dinâmica expansiva do capital. O que há de contemporâneo nesta relação é que ela sofre um movimento ascendente ininterrupto de desterritorialização legitimando cada vez mais a mundialização do capital. Mandel havia analisado este movimento desde os anos 1970 e de lá para cá agudizaram-se as prescrições de sua análise Não é de surpreender, portanto, que as sociedades anônimas multinacionais precisassem formar com urgência um mercado monetário organizado a nível internacional. E também não é de admirar que procurem proteger-se contra perdas repentinas no câmbio, contra ameaças de reintrodução de controles de moeda ou de capital ou contra aumentos dos impostos aduaneiros. Sua conduta corresponde simplesmente à lógica de um modo de produção baseado na propriedade privada e na concorrência, e não numa ‘soberania nacional’ que em última instância deve subordinar-se aos interesses globais do capital. Essa mesma lógica não leva apenas a evitar perdas, mas também a maximizar os lucros – em outras palavras, leva à especulação monetária que tem por finalidade conseguir ganhos financeiros rápidos e, consequentemente, a constantes transferências internacionais de somas enormes de capital-dinheiro (MANDEL, 1982, p. 330-331)487. Neste Sistema de Reciprocidades, cuja finalidade é financeirizar (por meio da especulação) para acumular, o Estado assume um papel fundamental ao tomar como “seus” os interesses dos capitalistas e do mercado488. Por isso que as contrarreformas mantém o núcleo duro do “liberalismo” sob o disfarce das inovações conjunturais e com forte apoio legal, tecnológico e midiático 489 . Deste modo, o neoliberalismo à brasileira arremata o seu desenvolvimento com a aplicação de um processo pouco estudado pelos analistas críticos de sua gênese e evolução: os arranjos internos promovidos por empresas capitalistas de base 487 MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. O que é da própria natureza do Estado burguês. Neste sentido, Mandel também alertava: “O que é válido em relação às tentativas privadas dos monopólios de regular a economia aplica-se igualmente à regulamentação do Estado. (...) Já tentamos mostrar, no capítulo 15, que o Estado no capitalismo tardio continua sendo o que era no século XIX – um Estado burguês que em última instância só pode representar os interesses da classe burguesa (o capital como um todo), sobretudo de seu estrato socioeconômico dominante”. Mandel, op. cit., p. 385. 489 A essência do liberalismo mantida no neoliberalismo reside no fato de que a economia tenta manter-se autônoma a qualquer “dogma” externo a ela mesma, segundo a tradição inaugurada por Adam Smith: os agentes econômicos são movidos por impulsos naturais de crescimento e desenvolvimento, e, ao buscalos, individualmente, contribuem com o desenvolvimento de toda sociedade. Hayek atualiza muito bem os postulados desta essência ao defender que o liberalismo econômico é a melhor forma de garantir a coesão social, no que é “desmascarado” por Mészáros quando o autor de Para além do Capital identifica a irracionalidade da argumentação hayekiana. Neste sentido consultar o item 4 da edição brasileira de Para além do Capital: Causalidade, Tempo e Formas de Mediação (São Paulo: Boitempo Editorial, 2002). 488 278 acumulativa local (ou a burguesia interna conforme a categoria poulantziana) como forma de promover sua ascensão ao mundo globalizado. Lazzarini (2011) 490 mostra como o capitalismo brasileiro conseguiu se diferenciar do capitalismo de países em condições socioeconômicas similares durante a aplicação do ajuste neoliberal notadamente pela intensidade das conexões socioeconômicas e políticas entre o Estado e o mercado, ou em seus dizeres entre “o poder público e o setor privado” potencializando o que temos denominado de Sistema de Reciprocidades. Ou seja, o modo como tais conexões aconteceram encontra similaridade em outros lugares do mundo, no entanto, a intensidade e o volume das transações os superam, novamente particularizando o processo brasileiro de acumulação em sua dimensão “concentracionista”: O Brasil apresenta um índice de cruzamentos societários maior do que outras economias, tanto em países desenvolvidos como em países emergentes [...]. A aglomeração de grupos societários no Brasil – que poderíamos chamar de “panelinhas” de proprietários –, ao final do período de reestruturação econômica da década de 90, mostrou-se similar à do México, mas muito superior em relação a outros países: 2,8 vezes a aglomeração na Coréia do Sul, 5,1 vezes a da Itália, 7,8 vezes a do Chile e 12,2 vezes a dos EUA (LAZZARINI, 2011)491. Isto significa que sob a forte inspiração do que pensaram nos anos 1970 Cardoso & Faletto 492 o ajuste neoliberal no Brasil levou a cabo a recomendação dos autores de Dependência e Desenvolvimento na América Latina que consistiu em admitir a dependência como um processo inevitável e natural que não obsta o desenvolvimento das nações periféricas desde que o país promova uma ideal associação entre o capital nacional, o capital internacional e o “fundo público” 493 . Neste sentido, as conexões políticas entre o “poder público” e as empresas ativaram este Sistema que conferiu “benefícios” econômicos para as empresas e estas por sua vez passaram a favorecer os projetos governamentais, incluindo doações de campanha: 490 LAZZARINI, Sérgio Giovanetti. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 491 Entrevista concedida por Sergio Lazzarini ao Portal Inpser: (http://conhecimento.insper.edu.br/destaque/2011/01/21/leia-entrevista-com-prof-sergio-lazzarini-sobreseu-novo-livro-capitalismo-de-lacos/) Acesso em 22 de fevereiro de 2013 19:19h. 492 CARDOSO & FALETTO, Fernando Henrique & Enzo. Dependência e Desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011 (10ª edição revista). 493 Deste modo os autores afirmam a positividade da dependência: “Salientamos que a situação atual de desenvolvimento dependente não só supera a oposição tradicional entre os termos desenvolvimento e dependência, permitindo incrementar o desenvolvimento e manter, redefinindo-os, os laços de dependência, como se apoia políticamente em um sistema de alianças distinto daquele que no passado assegurava a hegemonia externa” (idem, p. 182). 279 Na década de 1990, o país tornou-se mais aberto ao comércio externo e receptivo ao capital estrangeiro. Além disso, ocorreu um imenso movimento de privatização, associado a inúmeras reorganizações societárias nas empresas brasileiras. De 1990 a 2002, 165 empresas estatais passaram, total ou parcialmente, para o controle privado. Especialmente a partir de 2004, surgiu uma nova onda: diversas empresas abriram capital na bolsa, atraindo novos investidores e projetando novos empresários. De 2004 a 2009, foram lançadas na bolsa 115 empresas, movimentando cerca de 99 bilhões de reais (LAZZARINI, 2011, p. 10)494. Embora o autor não se detenha a tratar as variáveis deste processo como características essenciais da implantação neoliberal, pois transita no campo da defesa desta implantação495 — o que nos levaria a confirmar o “entreguismo” do Brasil aos interesses do grande capital estrangeiro —, procura evidenciar, antes, as inflexões do processo de abertura aos mercados externos na classe proprietária local e o modo como o “governo” participara ativamente de toda dinâmica. Sob o nome de “capitalismo de laços”, o autor refere que esta particularidade brasileira se deu pela combinação de dois aspectos: Primeiro, as aglomerações se intensificaram bastante, com mais proprietários participando conjuntamente do capital acionário de firmas e mais firmas atreladas a grupos controladores comuns. Nos leilões de privatização, disputando o controle das estatais, surgiram inúmeros consórcios mistos envolvendo investidores privados em associação com expressivo volume de capital provido por entidades públicas [...] Segundo, (...) emergiram atores de ligação com elevada centralidade, isto é, atuando como ‘conectores’ de aglomerações diversas. Os proprietários que mais exibiram papéis de conexão foram, justamente, atores ligados direta ou indiretamente ao governo — notadamente, fundos de pensão de estatais e o BNDES [...]. No governo Lula, esse processo se intensificou ainda mais, com papel bastante ativo do BNDES e dos fundos de pensão como sócios de várias empresas e grupos de grande envergadura. Assim, ao contrário do que normalmente se pensa, o governo não só preservou como também aumentou a sua centralidade na economia (LAZZARINI, 2011, p. 10-11)496. Para chegar a tais conclusões Lazzarini partiu da premissa de que “um contato entre dois atores é revelado quando eles aparecem como sócios de uma mesma empresa. O objetivo é menos discutir o quanto cada proprietário tem de cada empresa e mais desvendar as conexões que diversos atores na economia tem entre si” (...), localizando o dono último das firmas, isto é, o proprietário que, direta ou indiretamente, está no final da cadeia acionária levando à participação no capital de determinada empresa” (id., p. 20-21). Neste processo, o autor 494 Ob. Cit. Estas características seriam: “menos participação do governo na economia, mais capital estrangeiro, mais empresas usando a bolsa como instrumento de capitalização” (id., p. 10). 496 Id. Ob. Cit. 495 280 conseguiu identificar, por exemplo, o aumento da centralidade direta ou indireta de atores ligados ao poder público: [...] enquanto em 1996 a centralidade média dos fundos de pensão de estatais era 224% superior à média dos atores na rede, em 2009 esses donos tornaram-se quase 936% mais centrais que a média. Analisando os dados dentro do grupo497, esse efeito é devido a três principais fundos: Previ, Petros e Funcef. As entidades governamentais, em grande parte devido ao BNDES, também tiveram notável ganho de centralidade: de 131%, em 1996, passaram a ser 553% mais centrais que a média dos donos 13 anos depois. Todos os outros donos apresentam centralidade gravitando em torno da média. Apesar de atores estrangeiros exibirem leve aumento de conectividade, a sua posição é largamente ofuscada pela presença e trajetória dos atores públicos (LAZZARINI, 2011, p. 28)498. Tabela 6 Donos últimos que exibiram maiores ganhos de centralidade na reconfiguração das teias societárias entre 1996 e 2009. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Proprietário Previ (fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil) União Federal (inclui BNDES) Petros (fundo de pensão dos funcionários da Petrobras) Funcef (fundo de pensão dos funcionários na Caixa Econômica) Participações Morro Vermelho (Grupo Camargo Corrêa) Banco Opportunity (banco nacional) Família Moreira Sales (grupo Unibanco) JP Morgan Chase (banco internacional) Família Villela/Setúbal (grupo Itaú) Família Ermírio de Moraes (grupo Votorantim) Fonte: LAZZARINI, Sergio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Campus/Elsevier, 2011. Com seu levantamento, Lazzarini evidencia uma série de fatores que chama de positivos e negativos do “capitalismo de laços”499, com o intuito de propalar sua continuidade, uma vez 497 O grupo a que se refere é a divisão da chamada classe de proprietários feita da seguinte forma: entidades governamentais (incluindo o BNDES); investidores institucionais e fundos privados; indivíduos, famílias e firmas locais; fundos de pensão de estatais e firmas e investidores estrangeiros. 498 LAZZARINI, Sergio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Campus/Elsevier, 2011. 499 Dentre os quais se destacam: positivos — a participação ativa de “agentes e órgãos” públicos nas transações induzem a uma maior transparência no processo expondo em escala ascendente os proprietários privados escondidos sob as estruturas piramidais de propriedade; a presença “volumosa” dos fundos de pensão no cenário corporativo induz a um maior isolamento político onde a determinação e o cumprimento de metas se sobrepõe as motivações “políticas” (partidárias, inclusive) que redundaram na indicação de membros dos conselhos administrativos de tais fundos, além disto, as doações de campanha tornam-se mais vigiadas quanto as possibilidades de privilégios das empresas doadoras junto ao poder público 499; os custos das transações se reduzem na medida em que “os círculos de confiança” entre os investidores os levam a compartilhar os custos. O autor afirma que no Brasil isto é particularmente interessante na medida em que no Brasil se registra “escassez de crédito, custos burocráticos, incerteza de 281 que assume uma postura de pseudo-neutralidade. Isto é, o autor afirma que as conexões interdependentes que verificou em sua pesquisa nascem com o processo de reestruturação da economia brasileira nos anos 1990 com FHC e permanecem em Lula, deste modo, não estaria nem a favor ou contra um ou outro governo, apenas evidenciando os traços evolutivos do capitalismo brasileiro. Embora a análise de Lazzarini se pretenda “despolitizada”, o que realmente é, e acrescentaríamos ainda: acrítica, ela sugere duas características importantes do ciclo de desenvolvimento enaltecido pelo governo como novo desenvolvimentista, na contra-mão de seus próprios argumentos: a desnacionalização e o intervencionismo estatal. Isto é, embora o intuito arguto não assumido de sua pesquisa seja o de “desconstruir” as teses que se referem a entrada “indiscriminada” do capital estrangeiro como capital proprietário no país a partir dos anos 1990 e deixar evidente a tendência estrutural do Estado brasileiro em intervir/participar dos processos econômicos mercantis e financistas, a fragilidade dos seus argumentos mostram que seus dados podem indicar exatamente o contrário. No caso da prevalência do capital nacional sobre o estrangeiro tanto no processo de privatizações (FHC) quanto na aplicação de políticas de “desenvolvimento” (Lula) e no que tange a intervenção governamental na economia o autor afirma que No conjunto das 10 maiores [grupos econômicos do Brasil]500, encontramos apenas uma estrangeira (Telefônica). Esse retrato, embora limitado aos maiores grupos, reforça a nossa conclusão anterior sobre a persistente importância do governo e de alguns grupos locais, a despeito dos eventos de abertura e privatização ocorridos na década de 1990. Com tantos grupos estatais e domésticos de destaque, fica novamente difícil aceitar o argumento de que a economia brasileira teria se ‘desnacionalizado’ e que o Estado teria se enfraquecido após esses eventos de reestruturação. A marcante presença de grupos familiares também confirma análises anteriores ressaltando a importância de famílias locais nas redes corporativas brasileiras (LAZZARINI, 2011, p. 62)501. processos jurídicos, etc.”; o governo atua também como um árbitro na definição de práticas anticompetitivas originadas no alto grau de aglomeração das empresas e seu entrelaçamento com conselhos instituidores e gestores. Negativos — as relações de “apadrinhamento” permanecem presentes nas transações, momento em que o autor cita este traço como componente histórico de nossa formação social recorrendo a obra clássica de Raymundo Faoro Os Donos do Poder e também uma reposição de relações clientelistas entre o poder público e o empresariado. 500 Grifo nosso. 501 LAZZARINI, Sergio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Campus/Elsevier, 2011. 282 Quadro 2 Os 20 maiores grupos econômicos no Brasil, em receitas totais e as áreas de atuação de suas Privado familiar Privado familiar Privado familiar Estrangeiro 41,91 39,70 Santander Privado/Estra ngeiro Estrangeiro Bunge Estrangeiro 35,67 Volkswagen Estrangeiro 32,46 Eletrobras Estatal 32,24 JBS-Friboi Privado familiar Privado familiar Privado amplo Estrangeiro 31,11 Odebrecht Votorantim Fiat AMBEV Ultra Oi Shel Brasil x ¤ 92,06 x x ¤ 82,10 ¤ ¤ x x 47,23 ¤ ¤ ¤ 40,95 40,82 x ¤ ¤ x ¤ x x x ¤ x 40,65 x ¤ ¤ 37,40 29,54 ¤ x ¤ ¤ ¤ ¤ ¤ x 27,20 25,16 Telefonia Gerdau Financeiro, Seguros 43,48 x Logística Estatal do Construção Caixa Banco Brasil Vale Automóveis e Autopeças 72,77 Telefônica Privado amplo Estrangeiro Itaú Materiais e Equipamentos 98,06 Açúcar e álcool Privado amplo Privado familiar Estatal ¤ Agroindústria,alimentos e bebidas Bradesco ¤ Celulose e papel 248,58 Energia Elétrica Estatal Cimento Petrobras Química, petroquímica Tipo Petróleo, combustível, gás Grupo Minério, siderurgia, metais Receitas (bilhões de R$) controladas (2009). x ¤ ¤ x Fonte: LAZZARINI, Sergio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Campus/Elsevier, 2011. Dados financeiros no Valor Grandes Grupos. Os círculos com pontas referem-se aos setores “carro-chefe” de cada grupo (isto é, os segmentos com maior participação nas receitas). Ora, o autor que se colocou como “neutro” acaba por posicionar-se contra a maior parte das teses que dão ênfase a liberalização econômica dos anos 1990 como fenômeno que entregou o “patrimônio material e simbólico” brasileiro aos donos do capital estrangeiro. A virtude de seu trabalho está em mostrar uma dinâmica marginalizada nas análises sobre o desenvolvimento 283 capitalista contemporâneo que é o processo de concentração de capital intraempresas502. Mas, apresenta, por outro lado, limites enquanto defesa contrária a “desnacionalização”. Em Gonçalves vimos que a desnacionalização pode ser fundamentalmente medida pela “tendência da elevação da relação entre as remessas de juros, lucros e dividendos ao exterior e o PIB” e Lazzarini insinua que a intensidade das recomposições acionárias com participação do governo teria “impedido” este processo. Ora, aí se colocam duas condições que o autor ignora: 1) a tendência crescente das empresas nacionais se transnacionalizarem (e este é o intuito da participação do “governo”) e 2) o papel do governo como indutor do desenvolvimento (e da acumulação) inclui sua atuação como agente financeiro “global”, operando até mesmo no âmbito das iniciativas especulativas. Deste modo, não estamos falando nem de um “entreguismo” unilateral como as análises de Gonçalves podem sugerir, nem de uma “nacionalização” de fundo estatizante como nos leva a compreender o raciocínio de Lazzarini. Estamos mesmo diante de um Sistema de Reciprocidades “estrutural” do neoliberalismo à brasileira que articula um intenso metabolismo entre capitais. Isto é, mantêm-se as bases de acumulação referenciadas territorialmente, mas, e, ao mesmo tempo, “depende” da sua desterritorialização para sua reprodução. Estas características contribuem para a definição de um momento peculiar do desenvolvimento capitalista no Brasil que não apresenta as características essenciais do desenvolvimentismo para ser caracterizado como neodesenvolvimentista, nem ao menos parece romper com aquilo que há de estruturante nas diretrizes do neoliberalismo. Esta fase peculiar conta ainda com uma “renovação” da dinâmica entre e intra-classes que, de um lado classe promove a emergência de “estratos” da classe trabalhadora nas estruturas do poder político via Estado, e, por suas medidas induzem a ampliação do mercado consumidor alcunhando estes novos “consumidores” de nova classe média. 502 Uma investigação “de esquerda” e ainda mais densa que a de Lazzarini foi feita depois que havíamos construído nossos argumentos para a tese pelo Instituto Mais Democracia que consistiu em mostrar por meio mesmo da concentração de capital a “identidade” da classe proprietária brasileira e suas imbricações na teia acionária de suas empresas. A pesquisa levou o nome de “Quem são os donos do Brasil” e pode ser acessada pela página eletrônica do Instituto: www.proprietariosdobrasil.org.br 284 A estrutura de classes também foi truncada ou modificada: as capas mais altas do antigo proletariado converteram-se, em parte, no que Robert Reich chamou de ‘analistas simbólicos’: são administradores de fundos de previdência complementar, oriundos das antigas empresas estatais, dos quais o mais poderoso é o Previ, dos funcionários do Banco do Brasil (...); fazem parte de conselhos de administração, como o do BNDES, a título de representantes dos trabalhadores. A última floração do Welfare brasileiro, que se organizou basicamente nas estatais, produziu tais fundos, e a Constituição de 1988 instituiu o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) que é o maior financiador de capital de longo prazo no país, justamente operando no BNDES. Tal simulacro produziu o que Robert Kurz chamou de ‘sujeitos monetários’: trabalhadores que ascendem a essas funções estão preocupados com a rentabilidade de tais fundos, que ao mesmo tempo financiam a reestruturação produtiva que produz desemprego. Sindicatos de trabalhadores do setor privado também já estão organizando seus próprios fundos de previdência complementar, na esteira daqueles das estatais (Oliveira, 2009)503. Este movimento se vincula diretamente a outros dois aspectos do neoliberalismo à brasileira que merecem consideração: 1) as novas formas que o Estado e a classe dominante encontram de se relacionar com as classes subalternas pressupõem estratégias de enfrentamento às refrações da “questão social” diferentes daquelas praticadas na fase contrarreformista e 2) o invólucro ideológico do processo conta com novos atores que, nas estratégias de tentar eliminar “as contradições da base material da sociedade” garantindo legitimidade ao “governo”, promovem uma falsa ideia de “politização” das massas quando estas passam a optar pelo governo que é sensível as demandas das classes populares. Estas duas dimensões incidem diretamente sobre a profissão na medida em que esta possui nas refrações da “questão social” sua base material legitimadora. A articulação destes aspectos implica ainda em uma nova morfologia do mundo do trabalho e na revisão sistemática do papel das políticas sociais bem como o lugar que ocupam na ossatura do Estado. Sobre isto passamos, então, a discorrer. 3.4. A Política Social do neoliberalismo à brasileira: fugindo às injunções lineares. A legitimação do neoliberalismo à brasileira sob o epíteto neodesenvolvimentista tem apresentado como uma de suas características essenciais o deslocamento das políticas sociais de um campo acessório e complementar para um campo fundante e estrutural de seu desenvolvimento. A ideia de que a pobreza em especial no seu estrato “extremo” e os níveis estratosféricos de desigualdade constituem-se em entraves ao desenvolvimento já faz parte do 503 OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. 285 pensamento consolidado hegemonicamente nos organismos multilaterais — do FMI ao PNUD. Portanto, recomendações ao enfrentamento destes dois fenômenos combinados partem destes organismos desde que o ajuste neoliberal veio demonstrando os sinais de sua fragilidade estrutural já na passagem do século XX para o XXI. Esse deslocamento tem como base o reforço às estruturas econômicas que nucleiam a política social. Sendo assim, o postulado mais caro ao liberalismo clássico: a liberdade plena do mercado sem interferência estatal, sofre uma modernização de moldes conservadores que passa não apenas a admitir, também do ponto de vista conceitual, a regulação estatal sobre os mercados, como a requisitá-la como aspecto estruturante desta nova fase de acumulação. As funções econômicas e políticas do Estado burguês se misturam desaguando na função maior que é conferir legitimidade à sociabilidade e à ordem do capital. Mudar para manter a ordem faz com que a manutenção dos interesses rentistas hegemonizados no Estado admitam sua intervenção nas esferas não-rentáveis da vida social, entendidas como parte componente e de “suporte” a instância econômica, mediadas pela política (e também pela ideologia). Poulantzas (2000, p. 183) 504 problematizou este processo tentando responder ao seguinte dilema: “Porque tais ou quais medidas econômicas são tomadas exatamente pelo Estado e não diretamente pelo capital próprio? Primeiro, o autor de O Estado, O Poder, O Socialismo argumenta que este processo e fenômeno é um “fato histórico”. Isto é, não encontramos na história das diversas formações sociais um momento onde as funções econômicas não foram preenchidas senão pelo Estado. “Com exceção de funções tais como a fiscalização, por exemplo, elas foram ou são preenchidas segundo as diversas formações sociais e segundo os diversos períodos históricos, quer pelo Estado, quer diretamente pelo próprio capital, ou ainda pelos dois” (idem, p. 183). O autor refuta o tratamento unilateral da história do intervencionismo estatal que o justifica pela mão única da instância econômica e retira a natureza política e tensionada nele contida. Deste modo, a análise de medidas que vão desde o “estabelecimento das ‘condições’ materiais gerais da produção (estradas de ferro, transportes, comunicações, etc.) à gestão monetária, moradia, saúde, ensino, os equipamentos coletivos, a qualificação da força de trabalho, até as modalidades concretas personificadas pela concentração-centralização do capital” (p. 183), se são tidas como não rentáveis505 só podem ser entendidas fora do escopo simbiótico entre funções econômicas/políticas naquelas situações históricas onde o “Estado não criou ainda, na perspectiva de suas intervenções, as condições de rentabilidade do capital” (ibidem, p. 184). 504 POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. “Quando a taxa de lucro do capital investido nesses domínios é inferior ao lucro médio” (idem, p. 184). 505 286 A história do intervencionismo estatal não é nem uma história homogênea nas diversas formações sociais, nem uma história linear de um Estado acumulando e adjudicando, progressivamente, tais ou quais atividades ou domínios econômicos intrínsecos: é uma história de desenvolvimento desigual segundo as diversas formações, com avanços e recuos. Isso não pode ser inteiramente explicável por razões econômicas (POULANTZAS, 2000, p. 184-185)506. Ou seja, a razão econômica, utilizada para explicar a “totalidade do intervencionismo estatal” deve ser historicizada. O autor chama a atenção que o desenvolvimento desigual — por ser histórico — do intervencionismo estatal, deve ser entendido no contexto da dinâmica de acumulação capitalista, materialmente condensada no Estado a partir da luta de classes, e, que tem na razão econômica uma base fundante, mas que não encerra em si mesma todas as capacidades cognoscíveis deste intervencionismo507. Para tomar apenas o contexto da internacionalização do capital, que marca a atual fase do imperialismo e as coordenadas de estabelecimento da taxa de lucro médio no plano internacional (ou pelo menos no seio da zona dos países dominantes), esta razão econômica não basta para explicar as variações consideráveis do intervencionismo de diversos Estados capitalistas dominantes. Não se pode concluir ao mesmo tempo que a construção de auto-estradas ou as telecomunicações sejam altamente rentáveis aí onde está a cargo do capital privado, na Itália ou nos Estados Unidos, e não rentáveis na França, onde ela é essencialmente, e até o momento, responsabilidade do Estado. O Estado, aliás, está presente nos domínios eminentes rentáveis para o capital: isso vale tanto para as nacionalizações (o Estado não nacionaliza apenas setores do capital não rentáveis ou empresas à beira da falência) quanto para toda uma série de intervenções do Estado (pesquisa, energia, etc.) (Id. Ob. Cit., p., 184)508. E arremata: Assim, mesmo quando o Estado atua em setores não rentáveis para o capital, suas intervenções se situam sempre, e, de toda maneira, num contexto político, e, são também aí, marcadas, em suas modalidades ou extensões, pela política do Estado (ibid., p. 185)509. 506 POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. O autor sempre se refere ao aspecto relacional do Estado. Deste modo, seu pensamento, nesta fase, é carregado de dialética quando admite a movimentação dos sujeitos nas estruturas, quando não confere um tratamento episódico à esta mesma estrutura e, quando busca não relacionar fenomenicamente estrutura e conjuntura. 508 Id. 509 Ibid. 507 287 Poulantzas está tomando por base referencial o capitalismo ocidental das últimas décadas do século XX que presenciou a emergência e o início do ocaso dos Estados Sociais e a implantação keynesiana. Contudo, seus argumentos atestam um aspecto estrutural do Estado burguês que não se elimina nem no processo de correlação de forças e nem na sua fase neoliberal seguinte510: o intervencionismo estatal é sempre orientado para manter as condições gerais da reprodução do capital, o que leva esta ação a referir-se, de um modo ou outro, a produção e reprodução social da vida no seu todo, portanto, “o cumprimento dessas funções pelo Estado de interesse geral para a burguesia em seu conjunto é assim uma necessidade política” (p. 185-186). Certamente, nesse caso, também, essas disposições são tomadas pelo Estado em benefício predominantemente da fração hegemônica do capital, atualmente o capital monopolista; o caráter mesmo desse capital, e sua predominância maçica na economia, tem efeitos próprios num estatismo centrado na superacumulação monopolista. Mas isso acontece sempre no interior da elaboração política complexa de uma estratégia de compromisso, no seio do bloco no poder, pela perspectiva do Estado, para não falar do fato de que o capital monopolista não é em si uma entidade fusionada mas é atravessada por importantes contradições, o que torna necessária a aplicação política, exatamente pelo Estado, dessas medidas com proveito predominante do conjunto do capital monopolista511. No Brasil, desde a redemocratização a institucionalidade conferida à política que dá acesso ao Estado pelo governo prevê que esta instância (a do intervencionismo estatal) referida por Poulantzas esteja prevista como um substrato essencial aos grupos sociais, que por meio de partidos, disputam o aparelho do Estado. Ou seja, nosso processo democrático burguês — mas também de outros países — dispõe que os grupos sociais organizados partidariamente expressem suas aspirações e intenções quanto ao uso do aparelho do Estado em todas as suas dimensões quando o desejam controlar. Conforme demonstramos nos itens anteriores, tanto os planos de governo quanto os discursos de FHC, Lula e Dilma contaram com a explicitação das diretrizes políticas gerais: da macro-economia até suas áreas funcionais componentes e acessórias. Nem sempre as mensagens eram claras, todavia, um exame consequente destes dois instrumentos é capaz de apontar com clareza sua macro-direção. No caso de Lula e Dilma, os modos como se daria a concertação entre capital-trabalho que acabam por se constituir como uma marca singular dos governos federais petistas não foram 510 O autor, em outra passagem que retomaremos no Capítulo 4, mostra que as disputas classistas na esfera superestrutural não acontecem de modo equivalente. Ao contrário, o domínio dos “aparelhos” e “instituições” do Estado, além de sua própria forma burguesa, impõe limites estruturais à luta da classe trabalhadora nesta esfera. Apenas com uma reversão drástica deste “tipo” e “modelo” de Estado que se poderia repolarizar as manifestações da luta de classes que ali acontecem. 511 POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 288 suficientemente tematizadas nos planos de governo, contudo, seu anúncio se fez presente como marca em todos eles, criando expectativas e apreensões de todos os lados. Como referira Oliva512, quase toda a programática petista fora construída a partir das experimentações reais da gestão pública, o que exigiu dos seus quadros mais proeminentes uma imensa habilidade para realizar as costuras políticas necessárias e justificar as formas de intervencionismo que seriam implantadas. Embora Oliva se refira ao período Lula como o momento de reversão neoliberal pelo neodesenvolvimentismo, mesmo as diretrizes macropolíticas apresentadas nos planos e nos discursos não foi convincente quanto a uma possível ruptura com a função global do Estado em servir ao processo de reprodução ampliada do capital. Ao contrário, os programas e discursos evidenciavam muito mais a habilidade do grupo postulante ao governo e, posteriormente nele, em “harmonizar” as fissuras do bloco no poder ao mesmo tempo em que ampliá-lo internamente (com novas frações da classe dominante) e externamente (trazendo novos atores para se relacionar com ele, como por exemplo, os gestores dos fundos de pensão e lideranças sindicais). Esta direção política só encontra condições de expressar-se do modo como se manifesta porque o processo de reestruturação do capital incide em alterações diretas na base material da vida social: das relações de produção — do mundo do trabalho — até as esferas de reprodução espiritual. Como extensão inevitável, metamorfoses na “questão social” acontecem fazendo emergir novas manifestações, reiterações das refrações tradicionais e deslocamentos espaciais de alguns de seus determinantes. Não se trata, pois de uma “nova questão social”, mas sim da reposição contemporânea da “velha”. Assim, ela acompanha o movimento das mudanças voltadas para a permanência do status quo societal. Deste modo, o intervencionismo estatal irá se amparar numa revisão regressiva dos sistemas de proteção social com fulcro no deslocamento das responsabilidades estatais para o mercado (que também opera ações não-diretamente rentáveis), reposicionando o lugar dos fatores de produção como as famílias, as empresas, o uso e a posse da terra, etc. Aqui se faz necessária uma observação: a minimização do Estado, sobretudo, no que tange a suas “responsabilidades” quanto às condições de reprodução da classe trabalhadora é uma característica da primeira fase do neoliberalismo à brasileira. Na segunda fase, irão ser aproveitadas as “estruturas” criadas para o tratamento mercantilizado de enfrentamento às sequelas da “questão social” no âmbito da sociedade civil e associadas ao reordenamento das estruturas da política social na esfera estatal. Um novo modelo de proteção social emerge com ênfase na extensão de programas de transferência monetária e a qualificação, também extensiva, de acesso a bens e serviços públicos (com menos intensidade) e políticas de ativação (com 512 Citado no início do terceiro capítulo desta tese a partir de um excerto retirado de OLIVA, Aloizio Mercadante. As bases do novo desenvolvimentismo no Brasil. Análise do governo Lula (2003-2010). Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP, dezembro de 2010. 289 maior intensidade). Esta nova estratégia não se sustenta em uma máquina estatal “reduzida” as funções de estado smithianas: administração geral, da segurança e da justiça; muito pelo contrário, elas requisitam uma máquina forte que possa ampliar o seu braço regulacionista de um lado, e, a prestação direta de serviços (e outras atividades como obras, etc.) de outro. No plano social, a inclusão só será plenamente alcançada com a universalização e a qualificação dos serviços essenciais. Este é um passo, decisivo e irrevogável, para consolidar e ampliar as grandes conquistas obtidas pela nossa população (...). Outro fator importante da qualidade da despesa é o aumento dos níveis de investimento em relação aos gastos de custeio. O investimento público é essencial como indutor do investimento privado e como instrumento de desenvolvimento regional (...). Vamos estabelecer parcerias com o setor privado na área da saúde, assegurando a reciprocidade quando da utilização dos serviços do SUS (ROUSSEFF, 2011)513. (...) o nosso sistema de concessões vai reforçar o poder regulador do Estado para garantir qualidade, acabar com os monopólios, e assegurar o mais baixo custo de frete possível (id., p. 2)514. Ou seja, continuidades e rupturas marcam a segunda fase do neoliberalismo à brasileira também no que diz respeito à política social. Uma parcela das continuidades e outras das rupturas estão referidas ao mesmo processo, portanto, a uma relação orgânica de atração e repulsa: o gasto social federal aumenta (ruptura) e intensifica sua função econômica quando funciona como vetor anticíclico (continuidade), exatamente como referiu a presidenta Dilma Rousseff nos execertos acima. 513 Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 01/01/2011 por ocasião de sua posse como presidenta da República. 514 Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 06/07/2012 por ocasião do feriado de Independência do Brasil. 290 Gráfico 22 Trajetória do Gasto Social Federal, 1995-2010515. Fonte: Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Elaborado por DISOC/IPEA com dados do SIAF/SIDOR, set/2012. Um aspecto importante que tem que ser considerado quando se analisa o gasto social público é que ele reflete as disputas pelo fundo público. 515 Os valores apresentados estão deflacionados mês a mês para R$ constantes de dezembro de 2001, pelo IPCA, e também em percentuais do PIB, como indicador de prioridade macroeconômica aplicada ao GSF no período. O Gráfico demonstra a elevação permanente dos GSF. Partiu de R$ 234,0 bilhões em 1995 para alcançar os R$ 638,5 bilhões em 2010. Um crescimento real de 172% em 16 anos. Essa trajetória de crescimento, embora permanente não foi homogênea. Há momentos mais lentos — como 2002/2003 — e outros mais velozes — como 1996/1997 e 2006/2007. É perceptível também, a partir do gráfico, que a elevação do GSF ocorrida de 1995 a 2003 sofre uma considerável inflexão a partir de 2004, acelerando bastante a trajetória. Na primeira metade da série (1995-2002). Na primeira metade da série o GSF cresce 1,7% do PIB e na segunda (2003-2010) 2,3%. CASTRO, Jorge Abrahão de. Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Diretor da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (DISOC) do IPEA. 291 O fundo público tornou-se componente estrutural e insubstituível à medida que se tornou condição tanto para a formação da taxa de lucro, como para a reprodução da força de trabalho mediante o aumento do gasto social das despesas públicas. Este último implica a redução dos custos dessa reprodução para o capital, bem como contribui para a ampliação da parcela do salário disponível ao consumo. Tal inflexão do fundo público, durante o eclipse liberal, possibilitou a transferência do capital para o Estado de parcela dos custos da reprodução da força de trabalho, sob pesados déficits orçamentários e a liberação de salário direto para o consumo de massa (TEIXEIRA, 2012, p. 184)516. O aumento do gasto social federal é explicado e comemorado pelo governo como parte da estratégia exitosa que conjugara “estabilidade econômica, crescimento, distribuição de renda e inclusão social” (FAGNANI, 2011)517. Ao contrário de outros países, o Brasil criou, nos últimos anos, um modelo de desenvolvimento inédito, baseado no crescimento com estabilidade, no equilíbrio fiscal e na distribuição de renda (...). O nosso bem-sucedido modelo de desenvolvimento tem se apoiado em três palavrinhas mágicas: estabilidade, crescimento e inclusão. (...). Para tornar nosso modelo mais vigoroso e abrir este novo ciclo de desenvolvimento, vamos, a partir de agora, incorporar uma nova palavra a este tripé. A palavra é competitividade. Na verdade, é mais que uma nova palavra: é um novo conceito, uma nova atitude. Uma forma simples de definir competitividade é dizer que ela significa baixar custos de produção e baixar preços de produtos para gerar emprego e gerar renda (ROUSSEFF, 2012)518. Os resultados destas medidas, confirmadas pelo discurso da presidenta Dilma como medidas exponenciadoras das funções econômicas e reguladoras do Estado se apoiam na dinamização do setor produtivo e nas políticas de ativação. O caráter anticíclico do GSF (Gráficos 22 e 23) tem chamado a atenção de todo o mundo para o que alguns mais entusiasmados chamam de “o novo milagre brasileiro”. 516 TEIXEIRA, Sandra Oliveira. Por trás do fundo menos público, o que está em jogo é a democracia. In SALVADOR, BEHRING, BOSCHETTI & GRANEMANN, Evilásio, Elaine, Ivanete & Sara (orgs). Financeirização, Fundo Público e Política Social. São Paulo: Cortez, 2012. 517 FAGNANI, Eduardo. As lições do desenvolvimento social recente no Brasil. In Le Monde Diplomatique Brasil, dezembro de 2011. 518 Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 06/07/2012 por ocasião do feriado de Independência do Brasil. 292 Gráfico 23 Taxas de Crescimento Real do Gasto Social Federal e do PIB, 1995 a 2010. Fonte: Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Elaborado por DISOC/IPEA com dados do SIAF/SIDOR/Ipeadata, set/2012. Gráfico 24 Taxas de Crescimento Real do Gasto Social Federal e do PIB, 1995 a 2009. Fonte: Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Elaborado por DISOC/IPEA com dados do SIAF/SIDOR/Ipeadata, set/2012. 293 Observa-se que em toda a série (Gráfico 23) o movimento do GSF é pró-cíclico, isto é, acelera ou desacelera junto ao crescimento do PIB. Na crise de 1998/1999, o GSF desacelera junto com o PIB, o mesmo ocorre na crise 2002/2003. Já na crise 2008/2009 o GSF acelera quando o PIB freia, isto é, verifica-se um comportamento anticíclico (Gráfico 24). É importante ressaltar que a estabilidade do GSF em termos do PIB vinha ocorrendo apesar de um ritmo acelerado de crescimento em termos per capita. Ou seja, os gastos sociais cresceram entre 2006 e 2008, mas não ao ponto de exigir uma parcela maior do PIB para tal. Este aparente paradoxo explica-se pelo ritmo mais pujante de crescimento da economia brasileira que ocorria então. Com o PIB crescendo rapidamente, foi possível absorver um GSF maior sem que isso acarretasse um esforço maior para a economia em seu conjunto. Inclusive, a parcela do PIB destinada às políticas sociais do governo federal reduziu-se levemente em 2008 (CASTRO, 2012)519. Entre 2009 e 2010, retorna-se ao ritmo anterior à crise — forte crescimento do GSF em simultâneo ao forte crescimento do PIB (Gráfico 24) —, o que permite ao percentual do PIB manter-se quase inalterado (Gráfico 23) apesar de o crescimento do GSF continuar intenso, seja em valores reais agregados (Gráfico 22), seja em valores reais per capita (Gráfico 23). Porém, essa estabilidade observada em 2010 encontra-se em um patamar bastante superior em relação ao vigente no período 2006/2008 (Gráfico 22) — o que parece indicar que, além das respostas à crise internacional, também mudanças estruturais foram engendradas nas políticas sociais em 2009, com impactos no GSF (CASTRO, 2012)520. A equação: aumentar o GSF sem que isso signifique o aumento relativo do PIB em sua proporção é a principal virtude do modelo que se implanta, associada ao que Castro (2012) chama de “mudanças estruturais nas políticas sociais” 521 . É importante notar que embora a experiência brasileira seja singular no contexto das respostas que se deram aos últimos rompantes cíclicos da crise estrutural do capital (1998/1999; 2002/2003; 2008/2009) ela não é uma experiência insular. Desde antes da conjuntura iniciada no Brasil em 2003 os organismos multilaterais já vinham construindo estratégias de postergação dos movimentos de agudização da crise estrutural e tentado, de algum modo, evitar novas crises cíclicas. A experiência brasileira serve assim, para confirmar as especulações que já se vinham fazendo sobre os possíveis efeitos da reorientação do intervencionismo estatal sob o signo de 519 CASTRO, Jorge Abrahão de. Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Diretor da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (DISOC) do IPEA. 520 Id. Ob Cit. 521 O autor não é preciso na definição destas mudanças, mas por razões óbvias acreditamos que está se referindo a centralidade das transferências monetárias que passam a ser massificadas, ao tratamento gerencial da focalização que reduz a índices baixos os “desvios” de público alvo dos programas sociais, e a organização sistêmica das políticas que tem permitido ampliar o braço social do Estado sem ampliar os recursos destinados a área social. 294 uma “nova proteção social” sobre os impactos das crises em curso e das que se avizinhavam. Deste modo, nenhuma experiência particular, de nenhum país, na idade dos monopólios pode ser pensada a não ser em relação a aldeia global. Marx, ao criticar a tendência ostracista dos alemães com relação a situação da classe operária inglesa, advertiu sobre essa relação de imbricamento do capital em escala mundial que se reverte diretamente também na generalização das formas de reprodução social da classe trabalhadora522. Se o leitor alemão, farisaicamente, encolher os ombros diante da situação dos trabalhadores ingleses, na indústria e na agricultura, ou se, com otimismo, tranquilizar-se com a ideia de não serem tão ruins as coisas na Alemanha, — sinto-me forçado a adverti-lo: “De te fabula narratur!” [A história é a teu respeito]. Intrinsecamente, a questão que se debate aqui não é o maior ou menor grau de desenvolvimento dos antagonismos sociais oriundos das leis naturais da produção capitalista, mas estas leis naturais, estas tendências que operam e se impõem com férrea necessidade. O país mais desenvolvido não faz mais do que representar a imagem futura do menos desenvolvido. Mas, ponha-se isto de lado. É muito pior que a da Inglaterra a situação nos lugares da Alemanha onde se implantou a produção capitalista, por exemplo, nas fábricas propriamente ditas, e isto por faltar o contrapeso das leis fabris. Nos demais setores, a Alemanha, como o resto da parte ocidental do Continente Europeu, é atormentada não apenas pelo desenvolvimento da produção capitalista, mas também pela carência desse desenvolvimento [...] Uma nação pode e deve aprender de outra. (MARX, 1971, p. 4-5-6)523 Deste modo, a relação de extra-dependência estabelecida entre os países vincadas pelo desenvolvimento capitalista mundializado, fez com que o Brasil a um só tempo fosse influenciado e influenciasse as diretivas que se dariam a nível global. Prova disto é que em 2004 “uma das principais conclusões da Comissão Mundial Sobre a Dimensão Social da Globalização, constituída pela OIT, foi de que um nível mínimo de proteção social precisa ser aceito de forma incontestável como parte de um piso socioeconômico da economia mundial” (OIT, 2001, p. xi). 522 Nesta passagem fica claro a crítica de Marx ao desenvolvimento capitalista. MARX, Karl. O Capital. Livro I. Volume I. Prefácio da 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971. 523 295 (...) a Comissão alertou para o fato de que o modelo vigente de globalização era moralmente inaceitável, política e economicamente insustentável, enfatizando os diversos desequilíbrios do processo. A Comissão afirmou ser crucial um compromisso global para abordar eficazmente as crescentes desigualdades regionais e a inseguridade humana, como condição fundamental para conferir legitimidade à globalização. A recente crise mundial financeira, econômica e do emprego veio confirmar muitos aspectos desta avaliação (OIT, 2001, p. xi)524. Deste modo, em 2009 “os chefes dos organismos internacionais das Nações Unidas lançaram a Iniciativa Piso de Proteção Social (I-PPS), coordenada pela OIT e pela OMS, como uma das nove iniciativas conjuntas das Nações Unidas para enfrentar os efeitos da crise econômica” (idem, p. xii). A ideia central desta iniciativa é generalizar em escala global um patamar mínimo de proteção social composto por acessos aos cuidados de saúde, segurança de renda para os idosos e pessoas com deficiência, benefícios para crianças (abono de família) e segurança de renda combinada com regimes de garantia de emprego público para os desempregados e os trabalhadores pobres (ibidem, p. 10). A proposta refere combinar iniciativas do chamado eixo vertical com o eixo horizontal, sendo que o eixo horizontal se refere “a quem está coberto”: empregados públicos, empregados do setor privado, empregados informais, empregados por conta própria e trabalhadores domésticos, e o eixo vertical se refere “ao nível de prestação e serviços e ramos cobertos”: cobertura básica, intermediária e plena (Figura 1). 524 Relatório Bachelet. Relatório do Grupo Consultivo Sobre o Piso de Proteção Social: Piso de Proteção Social para uma globalização equitativa e inclusiva. Genebra: OIT, 2011. 296 Figura 1 Dupla estratégia da campanha OIT para estender a cobertura de Seguridade Social – Cobertura de Benefícios. Fonte: Relatório Bachelet. Relatório do Grupo Consultivo Sobre o Piso de Proteção Social: Piso de Proteção Social para uma globalização equitativa e inclusiva. Genebra: OIT, 2011 No Relatório Bachelet, documento que apresenta as conclusões do Grupo Consultivo presidido pela ex-presidenta do Chile Michele Bachelet, o Brasil é citado como “case” a ser seguido por outros países por apresentar um piso de proteção social que contempla os componentes propostos pelo piso da OIT/ONU, mas os extrapola. Referem que o nosso piso articula a previdência rural, o Programa Bolsa Família, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) 525 . O relatório também cita a continuidade deste modelo de proteção social através do Programa Brasil Sem Miséria que estabelece como meta retirar 16 milhões de pessoas da condição de indigência monetária (U$ 2/dia) combinando a ampliação do escopo do Bolsa Família com o aprimoramento do acesso a serviços públicos, particularmente educação, cuidados básicos de saúde, água e saneamento, eletricidade e rede de esgotos. Inclui igualmente medidas para facilitar a inclusão produtiva, tais como serviços de apoio à busca de emprego, formação profissional e microcrédito (ibibid., p. 14). É evidente que a experiência brasileira chama a atenção pelos impactos que teve na amortização dos custos sociais da crise estrutural e seus rompantes cíclicos recentes onde o crescimento econômico mesmo tímido, mas com promessas estratégicas de indução por parte do 525 No relatório o BPC é citado como “pensão não-contributiva da assistência social para idosos e pessoas portadoras de deficiência”. 297 governo como o PAC e as novas concessões526, a geração de emprego e renda, o aumento do GSF, a valorização do salário mínimo, a focalização de várias políticas sociais na extrema pobreza, funcionam como uma espécie de “antídoto” episódico para a crise. O que o discurso oficial não inclui nesta conta — pelo menos não na grande divulgação — é a permanência (e por vezes intensificação) da austeridade econômica que combina a política de superávit primário as altas taxas de juros. Sem falar na Desvinculação das Receitas da União (DRU) que autoriza a transferência de recursos do orçamento fiscal para os mercados financeiros. Os maiores prejudicados são sem dúvida a Seguridade Social e a Educação527. Fagnani (2011) que tem se colocado neste debate no campo do novodesenvolvimentismo, ao mesmo tempo em que é um entusiasta deste modelo é também um crítico da proposta do PPS, alertando para seus riscos: A lógica aparente é impor a focalização como um teto para todos os países subdesenvolvidos, cujos sistemas de proteção social foram destruídos pelo tsunami neoliberal. Mas também pretendem utilizá-la como moeda de troca para a iminente reforma dos regimes de Welfare State europeus — medida de austeridade para fazer frente à crise fiscal. O objetivo pode não ser garantir padrões mínimos de seguridade, mas assegurar padrões máximos de gasto social. Programas dessa natureza são relativamente baratos como porcentagem do PIB. Estão trocando a embalagem, mas preservando o conteúdo. De forma sub-reptícia, ressuscitam a famigerada proposta dos três pilares elaborada pelo Banco Mundial nos anos 1990. O Banco Interamericano (BID) passou a denominar propostas dessa natureza de “universalização básica”. Não seria melhor chamar de “focalização para todos”? (...) A despeito de ser um retrocesso em relação à Convenção 102 da OIT, datada de 1953 (FAGNANI, 2011)528. Este quadro nos mostra que a política social do neoliberalismo à brasileira é uma política globalizada e como tal necessita ser analisada a partir de seus determinantes universais, particulares e singulares. Por isso mesmo do ponto de vista local, se projeta uma “engenharia” metodológica que não encontra similares em escala mundial, justamente por apoiar-se num sincretismo que agrega a estrutura mercantilizada e privatista do período anterior com os ensaios técnicos (e também políticos) trazidos pelas bases populares que acessam o Estado a partir da ampliação das forças em relação promovida pelo PT, onde uma das principais 526 Uma forma de expressão de um “sentimento” nacional difundido neste momento se deu pela convocação à união de todo o povo brasileiro para o sucesso dos eventos internacionais que pela primeira vez se aportariam por aqui como a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, legitimando as grandes obras e investimentos. 527 Salvador (2010) refere que apenas na educação estima-se uma retirada da ordem de R$ 72 bilhões de reais em doze anos (1994 a 2006). Em 2007, o MEC deixou de contar com R$ 7,1 bilhões. SALVADOR, Evilásio. Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010, p. 370. 528 FAGNANI, Eduardo. As lições do desenvolvimento social recente no Brasil. In Le Monde Diplomatique Brasil, dezembro de 2011. 298 características, pouco tratada por analistas de políticas públicas é a opção gerencial por sistemas públicos unificados529, mais uma característica da dinâmica de continuidades e rupturas. Evidente que esta base sincrética acaba por se hegemonizar com sustentação a partir das teorias que valorizam a “igualdade de oportunidades” e as “capacidades individuais” — ao gosto de um Amartya Sen ou de um Anthony Giddens —, contudo, as condições históricas que nunca permitiram que o Brasil tivesse uma política social “de ponta” (tratada como bem público e na esfera dos direitos) ou minimamente próxima daquelas dos Estados de capitalismo avançado (que alcançaram o Wefare State) se vê obrigada a aceitar como “novo” e “civilizatório” o arranjo que se faz, permitindo que o jargão publicitário e ideológico “nunca antes na história deste país” se eivasse de conteúdos objetivos e materiais. Em outros termos: O Brasil acessa a vanguarda mundial em termos de política social530 no mundo pós-neoliberal, contudo, assenta esta modernização em bases estruturais com características coloniais. A nova arquitetura, que não abandona por completo o apelo ao solidarismo/voluntariado 531 , mas o minimiza, supera as expectativas no campo do intervencionismo estatal, conferindo ao Estado tons modernos e até aparentemente “progressistas”, todavia, a coloca sem a proliferação de uma cultura de direitos, sem a politização das massas (que as levaria a apreender o significado das “responsabilidades estatais neste campo” para além da ótica liberal). O desenvolvimento desigual e combinado atinge pois, todas as esferas da vida social. O que se abre daí é um enorme fosse entre o tecnicismoburocrático praticado pelo governo que invoca o recurso a legalidade — até os limites do seu comprometimento com as diversas frações da classe dominante — e uma cultura popular que tarda a apreender as potencialidades que o novo momento lhe confere. Vários analistas desta conjuntura histórica concluem que este processo foi e tem sido deliberadamente arquitetado pelo governo com vistas a manter o controle da população e ao mesmo tempo alavancar sua legitimidade refletida até mesmo eleitoralmente (MOTA, 2008; NETTO, 2004 e 2008; BRAZ, 2004)532. Sem discordar da essência destas análises, o que se 529 Esta parece ser uma das características que demonstram partes significativas “da reforma de Estado” petista. A opção pelo gerenciamento das políticas públicas em forma de sistemas unificados, a luz da experiência referencial do SUS extrapolam a área social. Deste modo emergem: O Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Público (SNHIS), o Sistema Nacional de Segurança Pública, o Sistema Nacional de Cultura, o de Esportes, etc., experiência que não pode ser lateralizada no processo do intervencionismo estatal recente. 530 Nesta direção a presidenta Dilma declarou: “Já somos o país que tem a melhor tecnologia social do mundo e nossos instrumentos de política social são copiados em dezenas de países”. Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 06/07/2012 por ocasião do feriado de Independência do Brasil. 531 Ou nos termos de Yazbek: a refilantropização. 532 MOTA, Ana Elizabete. O Fetiche da Assistência Social e Questão Social e Serviço Social: um debate necessário. In MOTA, Ana Elizabete. O Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado, Política e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008; NETTO, José Paulo. Prefácio. In MOTA, Ana Elizabete. O Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado, Política e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008 e A conjuntura brasileira: O Serviço Social posto à prova. In Revista Serviço Social e Sociedade nº 79, ano XXV. São 299 observa é que, ainda que a programática social possa ser construída racionalmente pelo governo ela não se dá sem tensões, antagonismos, contradições e ambiguidades (diferindo das apologias conspirativas). Mesmo que a abertura do espaço do poder político tenha propiciado a entrada de novos atores como representantes de movimentos sociais e sindicatos 533 com vistas a “controlar” o potencial transgressor da classe trabalhadora e a política social destinada a aumentar os dependentes da “assistência pública” como defende Mota (2008)534, a “cooptação” dominante destes quadros e grupos sociais nunca é absoluta, embora hegemônica na lógica burguesa. Os impactos sociais e políticos do aumento gradual e acelerado do gasto social federal não podem ser analisados apenas pela ótica de moeda de troca em jogo clientelista. As implicações deste processo na base material, que atinge os sujeitos históricos, ou como disse Gramsci “os de baixo”, embora representem relações de dominação provocam em maior ou menor escala alterações simbólicas em suas dinâmicas cotidianas. Estes sujeitos estão imersos na realidade que lhes configura enquanto sujeitos históricos Neste sentido, entendemos que a subalternidade só pode ser abordada como produção histórica, cujo enfrentamento supõe a unificação das classes subalternas na superação do caráter episódico e desagregado de suas lutas a partir de um processo de produção de significados comuns para suas experiências. É a consciência de que o processo espoliativo que vivenciam é comum, tanto do ponto de vista de perdas materiais como culturais, que dá legitimidade e impulsiona as lutas coletivas onde emergem novos sujeitos sociais (YAZBEK, 1999, p. 169)535. A autora ainda lembra que o processo histórico que “cria” sujeitos conscientes é um processo desorganizado, heterogêneo, plural, todavia, não exclui as possibilidades das experiências coletivas que podem ser impulsionadas pela política social Paulo: Cortez, 2004; BRAZ, Marcelo. O governo Lula e o projeto ético-político do Serviço Social. In Revista Serviço Social e Sociedade nº 78, ano XXV. São Paulo: Cortez, 2004. 533 A criação do Conselho de Desenvolvimento Econômica Social (CDES) em maio de 2003 como instância consultiva e assessora à Presidência da República, as mudanças nos Conselhos Curados do FAT e do FGTS, a reestruturação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), dentre outras medidas atestam este novo arranjo no cenário do poder político. 534 Nas obras citadas anteriormente. Embora a autora se refira a “assistência social” procuramos aqui tratar por “assistência pública”, pois o fenômeno referido por Mota diz respeito ao espraiamento das ações de “assistência” genericamente identificas e referidas à quase todas as áreas da ação estatal, em especial as de Seguridade. A assistência social, por seu turno, é uma política pública de caráter setorial, portanto, não poderia ela mesma se plasmar deste modo, a não ser dentro dos limites da intersetorialidade. Concordamos com a identificação do fenômeno, porém os termos-síntese que revestem a tese não conseguem alcançar a complexidade dos fatos históricos que querem denunciar, gerando um descompasso entre a análise e o fenômeno mesmo. Por isto, nossas referências a “assistência social” são sempre à politica pública setorial e constitucionalmente cravada, diferindo assim de “ajuda humanitária”, “assistencialismo”, “assistência pública” e outros termos afins utilizados erroneamente quase sempre como sinônimos. 535 YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1999 (3ª edição). 300 É na percepção comum de que há legitimidade na reivindicação por um benefício e que sua negação constitui injustiça, indignidade, carecimento ou imoralidade que avança o processo dinâmico de extensão da cidadania dos subalternos. Não a cidadania outorgada no plano jurídico-formal pelos que detêm o poder de dominação na sociedade, mas os direitos conquistados nas lutas sociais onde não se obscurecem os reais interesses em confronto (YAZBEK, 1999, p. 170)536. A sutil melhora das condições de vida, mesmo sob os padrões minimalistas em que se assentam as políticas sociais dessa geração, ao ser mediada por inúmeros sujeitos — desde o técnico do CRAS até o caixa da CEF ou da casa lotérica537 — induz ao contato com estes novos sujeitos e abre as possibilidades das interações coletivas 538 que analisadas a luz das especificidades da nossa formação social/cultural podem se constituir em protoformas de um processo de politização dessas massas (...) é neste protesto contra a vida desumanizada de homens reais que questões situadas no plano do dia-a-dia dos subalternos ganham visibilidade e dimensões políticas. O estatuto político conferido às práticas de resistência das classes subalternas à sua dominação nos revela mais uma vez a diversidade e a riqueza dos espaços onde se constrói a classe539. Ampliam-se assim as dimensões politizáveis da vida social, modificando-se a própria noção de política, o que vai conferir novas possibilidades às ações dos subalternos e de seus aliados no enfrentamento de sua pobreza (YAZBEK, 1999, p. 170)540. Antes que nos entendam por “românticos” ou “possibilistas” como referiu Netto 541 (2004) cabe considerar que esse processo é um campo de possibilidades e não de garantias, e 536 YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1999 (3ª edição). 537 CRAS: Centro de Referência de Assistência Social, CEF: Caixa Econômica Federal. Estes contatos são apenas uma das inúmeras possibilidades que se abrem no espectro das interações coletivas que os “subalternos” podem ter. Qualquer tentativa nossa de enumerá-las seria provisória e limitada. 538 Já passa de 5, no Brasil, o número de associações de mães do programa bolsa família que se reúnem em torno de reivindicações afetas a melhoria das condições de vida tematizadas pelo seu cotidiano como mais e melhores creches e escolas, atividades públicas alternativas a escola como enfrentamento ao aliciamento das crianças e adolescentes pelo tráfico de drogas, e assim por diante. Este dado foi levantado por nós quando realizamos grupos focais em duas regiões do país para pesquisar junto aos assistentes sociais suas apreensões sobre as mudanças recentes nas estruturas jurídico-política do Estado, entre agosto e outubro de 2011. Estes dados serão sistematizados e comporão o material que irá contribuir na formulação de orientações para implementação de CRAS em especial no que tange aos seus aspectos de mobilização e luta das massas populares. 539 E a resistência neste caso, não pode ser entendida apenas como a negação da ação estatal no campo da política social, mas combinada a luta pela reversão dos patamares e estatutos dados pelo Estado à elas (como o minimalismo, a focalização, a seletividade, etc.). A negação unilateral da política se justifica quando apenas seus aspectos negativos/de dominação são levantados, o que é uma visão burguesa — ainda que crítica — do fenômeno. 540 Ob. Cit. 541 NETTO, José Paulo. A conjuntura brasileira: O Serviço Social posto à prova. In Revista Serviço Social e Sociedade nº 79, ano XXV, especial, 2004. 301 que o simples fato da “possibilidade” ser colocada como “possibilidade” faz emergir também estratégias obstaculizantes à sua concretização. É um aspecto inalienável da luta entre as classes e suas frações, e, um efeito — no caso da politização das massas — que nem o tecnicismo governamental e nem o fatalismo das análises unilaterais conseguem prever. O reordenamento das políticas sociais no Brasil de neoliberalismo à brasileira, portanto, não pode ser entendido apenas como estratégia de reposicionamento do processo de acumulação em novas bases. Ele diz respeito também a recomposição do bloco no poder, a partir das fissuras que se criam pelas próprias contradições internas do capital plasmado no Estado. A preferência dada ao capital nacional, e, por consequência a burguesia interna, a partir da metade do primeiro governo Lula, foi uma estratégia política das mais ousadas, pois permitiu recompor a unidade do bloco no poder, ao mesmo tempo que aprimorar as interfaces deste bloco com seu bloco antagonista, revelando à sociedade brasileira a existência destas contradições e fissuras no âmbito do Estado, antes vistas apenas por um grupo seleto de “políticos”, “empresários”, “intelectuais”, etc. De início se pode constatar sem dúvida alguma que essas intervenções obedecem frequentemente a coordenadas gerais da reprodução do capital, e são necessárias para a reprodução do conjunto do capital social. Se, na expressão de Engels, o Estado intervém para instaurar e manter as condições gerais da produção, o termo “condições” está caduco doravante, pois o Estado atinge o cerne do processo de reprodução, o termo “gerais” mantém toda sua pertinência, no sentido em que são indispensáveis (da pesquisa à energia, as comunicações e a reprodução ampliada da força de trabalho) para o conjunto da burguesia542. O encargo dessas funções por tal ou qual capital individual, ou mesmo fração do capital, comporta riscos consideráveis: essas funções podem ser derivadas, de maneira selvagem, para seu benefício único a curto prazo (caso bem evidente com as companhias petrolíferas por exemplo e as reações por elas provocadas no conjunto do capital, o que obriga o Estado — o próprio Carter nos Estados Unidos — a se encarregar do domínio da energia). Elas podem até infletir muito brutalmente para uma reestruturação do conjunto do aparelho produtivo em benefício exclusivo desses tais individuais: o que aumenta consideravelmente as contradições internas do bloco no poder (POULANTZAS, 2000, p. 185-186)543. 542 O que também pode levar a fissuras no seu interior, pois um setor da burguesia pode partir para a defesa de que o Estado invista em estradas como forma de melhorar o escoamento de sua produção pela via terrestre, outro, pode pressionar pelo investimento em infra-estrutura aeroviária. Mas nos aspectos gerais, concordando com Engels e Poulantzas, os interesses convergem, e, mesmo tais fissuras não tendem a ser duradouras. O caso mais problemático, contudo, que também se acomoda ao final, é entre o capital produtivo e o financista. Os capitalistas da base produtiva vociferam contra a política tributária (não se esquivam de propalar que no Brasil se paga mais impostos que no mundo “desenvolvido”) e os juros altos praticados pela austeridade econômica do governo, já a classe-que-vive-da-especulação se beneficia diretamente deste modelo tributário e dos juros em níveis astronômicos. 543 POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 302 Portanto, somos interpelados como sujeitos históricos a atuar neste campo minado de contradições cujas possibilidades de enfrentamento passam pela ultrapassagem das aparências que escamoteiam o fato de que entre as políticas sociais e seu “objeto” há um enorme fosso, que é o próprio caráter estrutural da geração da pobreza e subalternidade de seus usuários. As mediações se requisitam, assim, como um desafio a ser inadiavelmente enfrentado porque supõe um movimento de passagem de nossas concepções ontológicas (de nossos fundamentos teóricometodológicos para esse tempo miúdo, para situações concretas). Essas mediações são teóricas, éticas, políticas, ideológicas, culturais e técnicas. Passam, por exemplo, desde a estruturação de um serviço social qualquer à mobilização política das massas na direção da reivindicação de seus direitos (Yazbek, 1999 e 2013)544. 544 YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1999 (3ª edição); e, palestra proferida no XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS), em Juiz de Fora – MG, de 05 a 09 de novembro de 2013. 303 Capítulo IV SERVIÇO SOCIAL NAS TRAMAS DO NEOLIBERALISMO À BRASILEIRA: PASSADO, PRESENTE E FUTURO Também nos é dito que: “em termos simples, a igualdade de oportunidades é um conceito capitalista, enquanto a igualdade de resultados é o princípio básico do socialismo”. Entretanto, embora a “igualdade de oportunidades” seja efetivamente um dos princípios mais frequente e ruidosamente difundidos da ideologia burguesa, a preocupação socialista com a igualdade é muito mais real e sutil do que sugere a imagem grosseira da “igualdade de resultados”. István Mészáros Partindo do pressuposto de que a gênese e o desenvolvimento ulterior da profissão dos Assistentes Sociais brasileiros só podem ser compreendidos no contexto das determinações sócio-históricas do desenvolvimento capitalista em sua fase monopólica, podemos seguramente afirmar que esta dinâmica se coloca como o próprio fundamento sócio-histórico da profissão. Reside nela os elementos que fornecem tanto a inteligibilidade quanto a legitimidade profissionais e, a depender do modo como as condições históricas posicionam a luta entre as classes, fulcro da história sustentada nos modos de produção e reprodução social da vida, construir projetos profissionais que representem sua auto-imagem sob o signo da dialética universalidade-particularidade-singularidade 545 . Portanto, não se faz possível indiferenciar o Serviço Social da sociedade em que se insere, pois como referiu Iamamoto (2003, p.203) ele é dela parte e expressão546. Embora estas considerações modelares não sejam inéditas, ao contrário, comparecem de modo recalcitrante na produção acadêmica dos últimos trinta anos 547 , o sutil caminho metodológico contido nelas faz com que análises da profissão referidas a história tenham sempre um caráter de novidade. Isto é, ao indissociar o Serviço Social do desenvolvimento da sociedade burguesa — de capitalismo monopolista — cria-se uma tendência inequívoca de que a saturação da realidade deve se interpor como um recurso à análise dos fenômenos endógenos e exógenos da profissão. Novas e permanentes determinações estão presentes na realidade e com 545 O que impede que os projetos profissionais sejam tratados como epifenômenos endógenos do desenvolvimento particular da profissão. Sua relação com a exterioridade não pode ser ignorada. 546 IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003. 547 Ou de modo mais contundente desde a difusão pública de Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica, de Marilda Vilella Iamamoto e Raul de Carvalho, em 1982. (São Paulo: Cortez). 304 elas um espectro de mediações se coloca no âmbito das relações que se estabelecem entre o Estado e as classes, entre o Estado e os profissionais, entre os profissionais e os “usuários” e assim por diante. Deste modo, temos sido acometidos pela necessidade que nos leva a empreender “leituras” da realidade histórica que, na maior parte das vezes, condensam uma revisitação do passado, o desvendamento do presente e a prospecção de futuro. O mais difícil desta tríade, justamente por nos interpelar nas sínteses momentâneas processuais da história é a inquisição do tempo presente. Esta dimensão reveste de provisoriedade ou de “datação” histórica as produções, seus protagonistas e interlocutores não apenas por se sustentar em um processo em curso, mas também porque o agente da análise também é um Ser em construção, em processo, em dinamismo histórico. Logo, ao tratarmos daquilo que denominamos o Serviço Social nas tramas do neoliberalismo à brasileira estamos anunciando não apenas o adensamento pré-conclusivo das pretensões que motivaram a presente tese como também afirmando que há características “novas” na relação da profissão com seus interlocutores históricos que merecem ser observadas. Presente, passado e futuro não se rendem, a partir de agora a cronologia narrativa. Se misturam, se entrelaçam como componentes distintos de um mesmo movimento, negando pois, a fragmentação do real. Afinal, estamos diante de um dos momentos mais emblemáticos da história do país cujos traços fundamentais mostramos nos itens anteriores, e, assim, as inflexões que causam à profissão podem ser também sentidas pela animação do debate teórico e pela intensificação da disputa de projetos profissionais548. As polêmicas em torno do suposto neodesenvolvimentismo são apenas um indicativo deste debate dinâmico assim como o foram e seguem sendo as controvérsias em torno da tese do sincretismo e da prática indiferenciada, a tese da identidade alienada, a tese da correlação de forças, a tese da assistência social, a tese da proteção social e a tese da função pedagógica do assistente social549. Isto mostra que a profissão vem ocupando um lugar adjetivo na vida social brasileira e que seus agentes se inserem no mundo não como espectadores, mas como sujeitos das mais amplas práticas sociais cônscios das transformações que querem imprimir à realidade. Neste capítulo iremos, assim, apresentar argumentos que contribuam para que todo esse processo avance, passando em exame, mais um conjunto articulado de categorias que caminham para a “síntese” da proposta da tese que veio se delineando desde as primeiras linhas que anunciavam a busca de nexos entre Serviço Social, Estado, Desenvolvimento Capitalista (e nele 548 Neste caso se observa uma dinâmica muito mais complexa na medida em que não se trata de disputa de projetos profissionais apenas sob perspectivas tradicionais e historicamente antagônicas: “progressistas” versus “conservadores” / “críticos” versus “pós-modernos” / “marxistas” versus “funcionalistas”, etc. Consideramos também as disputas programáticas dentro de um mesmo grupo social o que faz dos projetos profissionais elementos de per si tensionados e contraditórios. 549 Todas problematizadas com maestria por Marilda Villela Iamamoto no terceiro capítulo de Serviço Social em Tempo de Capital Fetiche. (São Paulo: Cortez, 2007). 305 o neodesenvolvimentismo) e o projeto profissional, para com isso evidenciarmos as formas construídas historicamente de tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teóricoprática do Estado como pano de fundo para a compreensão da movimentação recente da profissão com destaque aos seus avanços, recuos e contradições. A inevitabilidade da relação da profissão com a sociedade em que se insere, é deste modo, explicitada a partir da conjuntura de uma fase específica do desenvolvimento capitalista brasileiro de condução neoliberal que tem sido propalada pelo discurso oficial como neodesenvolvimentista. 4.1. Das origens às tentativas de ressignificação Muito se tem falado acerca das origens do Serviço Social no Brasil, na América Latina e no mundo. As investigações sobre este tema ocupam a produção intelectual desde os primeiros momentos onde o estatuto profissional foi pretendido ao Serviço Social. E esta recalcitrância não se dá por acaso. Recorrer à história como base e fundamento da vida social é imprescindível para entender seus fenômenos particulares e singulares e os nexos consigo mesma. Se referidos ao materialismo histórico, torna-se ainda mais vital o uso da história, pois nos leva a incorporar deste modo, um potencial transgressor de uma ordem que subordina e avilta os sujeitos que fazem a própria história acontecer 550 . Assim, a incorporação da tradição marxista como mediação teórica fundamental para o Serviço Social (brasileiro, essencialmente) não foi uma escolha inocente lá pelos idos dos anos 1960, ainda que tal aproximação tenha sido eivada de equívocos metodológicos e políticos551. Mesmo parte das análises sobre a gênese da profissão que tiveram como fulcro conferir centralidade a personagens e fenômenos peculiares descontextualizados da realidade social não puderam se furtar totalmente da história mesmo que lhe conferissem um papel coadjuvante em seus contextos552. Por isso, os nexos para o entendimento da profissão se encontram somente “na intercorrência do conjunto de processos econômicos, sócio-políticos e teórico-culturais (...) que 550 Ou como afirmou Lukács: “A vitória conquistada pelo proletariado impõe-lhe como tarefa evidente aperfeiçoar ao máximo possível as armas espirituais, com as quais sustentou até então a sua luta de classe. Entre essas armas encontra-se, naturalmente, o materialismo histórico em primeiro lugar. O materialismo histórico serviu ao proletariado, na época de sua opressão, como um dos seus instrumentos mais poderosos de luta, e é natural que agora o leve consigo para uma época em que se prepara para reconstruir a sociedade e nela a cultura (...)”. LUKÀCS, Georg. História e Consciência de Classe. Estudos sobre a dialectica marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (p. 413). 551 Iamamoto e Netto apresentam os estudos mais relevantes no sentido de evidenciar o percurso de aproximação do Serviço Social a tradição marxista. Ver as obras citadas na próxima nota. 552 Sobre esta aproximação o item 1.7. “o legado da ditadura e a tradição marxista” e 2.5. “a intenção de ruptura” da obra Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64, de José Paulo Netto (São Paulo: Cortez, 2002 – 6ª edição) e o Capítulo II da segunda parte de O Serviço Social na contemporaneidade trabalho e formação profissional, de Marilda Vilella Iamamoto (São Paulo: Cortez, 2003 – 6ª edição) sob o título “o debate contemporâneo da “reconceituação”: ampliação e aprofundamento do marxismo” são esclarecedores. Mas uma síntese sistemática deste processo pode ser encontrada no Capítulo I do livro de Carlos Montaño: A natureza do Serviço Social (São Paulo: Cortez, 2011 – 2ª edição), sob o título “a natureza do Serviço social na sua gênese”. 306 instauram o espaço histórico-social que possibilita a emergência do Serviço Social como profissão” (NETTO, 2001, p. 69)553 no contexto da transição do capitalismo concorrencial para o monopolista. Estes processos apresentam algumas marcas específicas que costumam ser evidenciadas nas análises sobre a profissão. A maior delas é, sem dúvida, a movimentação histórica em torno das formas de enfrentamento às manifestações da “questão social” que encontram na “sistematização” e “racionalização” das práticas de “assistência” pública uma expressão de grande monta no quadrante de 1930 em diante. Contudo, esta marca é apenas um dos muitos processos históricos presentes na fase de constituição e consolidação de um capitalismo monopolista no Brasil. É uma marca que não explica a complexidade das injunções determinativas da gênese e desenvolvimento da profissão, ainda que não possa ser ignorada. Os fatores decisivos presentes nas formas econômicas, políticas, ideológicas, culturais, etc., desta fase são encontrados nas particularidades do desenvolvimento capitalista da época que fez emergir como forma necessária à sua própria manutenção e reprodução um “projeto desenvolvimentista”, ou como temos dito “um dos momentos de síntese do desenvolvimento capitalista moderno”. Em outros termos podemos dizer que a relação da gênese da profissão com as práticas sistemáticas de “assistência” pública é apenas uma das manifestações sociohistoricas concretas que o capitalismo monopolista encontra quando da sua consolidação no Brasil. Tais práticas antecedem a emergência da profissão e a ultrapassam, sendo, deste modo, equivocado pensar que a instituição do estatuto profissional ao Serviço Social as teria superado. Por outro lado, não basta referenciar o Serviço Social ao capitalismo monopolista para que se supere o endogenismo da interpretação da profissão como extensão natural da “assistência”554. A contextualização histórica deve interpelar as manifestações concretas, vindas da base material da vida social onde se assentam as relações sociais em reciprocidade imanente às relações que se estabelecem entre as classes sociais, entre estas e o Estado, entre este último e a profissão, com a mediação privilegiada de políticas de caráter público. E, neste processo se percebem as intenções da classe dominante hegemonizadas na ossatura do Estado expressas também pelo modo como o enfrentamento às refrações da “questão social” se coloca como recurso e estratégia de poder. Na conjuntura que se segue a partir dos anos 1930 no Brasil, se registra um amplo fluxo migratório do campo às cidades e uma movimentação imigratória de trabalhadores europeus fugidos dos regimes fascistas e nazistas que passam a dominar a cena no velho continente. Estes 553 NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001. (3ª edição). 554 Que nem se trata de “assistência social” tal qual concebemos atualmente. As práticas tidas como de “assistência” no contexto da gênese da profissão estão referidas a escolha político-racional do grupo pioneiro pela “ação social”, braço operativo da doutrina social católica. 307 fatores — relacionados ao processo de crise internacional do capital — associam-se a outros de natureza interna (inflexionados também pelo processo internacional) como a crise do modelo agroexportador e contribuem para o crescimento em número e em qualidade do contingente de trabalhadores cujas possibilidades de reprodução social passam a se concentrar no trabalho fabril ascendente incentivado pelas políticas “desenvolvimentistas” do governo, como uma das formas de minimizar a crise e enfrentar a agudização da “questão social”. A industrialização como base do projeto desenvolvimentista não aparece isolada. Antes, requisita a urbanização (desordenada e sem planejamento), a regulação do mercado de trabalho que ao se complexificar intensifica a luta de classes, a consolidação de políticas públicas, em especial as de corte social e uma ideologia que difunda não apenas os valores e a moral burguesa, mas também incuta nos corações e mentes da classe trabalhadora falsas esperanças quanto a um futuro de prosperidade que “o progresso social com ordem” deveria trazer. Este quadro possibilita tanto o surgimento do Serviço Social como profissão reconhecida formal e institucionalmente pelo Estado como promove parcerias estratégicas entre este e aqueles que já vinham trabalhando no processo de “neutralização” das tendências consideradas “subversivas” da classe trabalhadora por meio de estratégias de coerção por consenso como é o caso da Igreja Católica e a formação de seus quadros leigos. Esta parceria se sustenta em um complexo “arranjo teórico-doutrinário”555, e “em uma ótica psicologizante e de individualização dos problemas sociais, que tendia a buscar as especificidades da 'questão social' na esfera ético-moral, reforçando o substrato liberal de que o destino pessoal é de responsabilidade do próprio indivíduo” (RAICHELIS, 2006)556. Avançando para o contexto do segundo pós-Guerra as características já arroladas do desenvolvimento capitalista se intensificam e exigem do Estado respostas tanto para explicar os limites das políticas de desenvolvimento que empreende quanto para “solucionar” o caos social que se instala decorrente do aumento expressivo da pobreza e da desigualdade. Induzidos pela regulação estatal e pela influência do positivismo político o empresariado inicia sua participação 555 Termo utilizado por Iamamoto para definir a articulação que se promoveu entre a doutrina social católica e as teorias sociais de cariz positivista e funcionalista. Ver: IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003, p. 201-249. 556 Netto também aborda esta questão quando refere: “os componentes que sinalizam (...) os processos de legitimação da ordem monopólica arrancam, quase todos, de algum modo, do substrato do ethos individualista. Mas a incidência deste, agora, com a ressituação que sofre na idade do monopólio, surge sob uma forma inédita: aparece não mais como a reiterada proclamação das possibilidades da vontade individual, tão adequada ao perfil de uma ordem econômica e social dinamizada por iniciativas de sujeitos empreendedores, mas especialmente como o privilégio das instâncias psicológicas na existência social. A tendência a psicologizar a vida social, própria da ordem monopólica, é tão compatível com os processos econômico-sociais que o imperialismo detona quanto se manifesta adequada à sua reprodução — mas sobretudo se revela como um importante lastro legitimador do existente” (NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo: Cortez, 2001, p. 41. 3ª edição) e a citação de Raichelis encontra-se em RAICHELIS, Raquel. Breve História do Serviço Social no Brasil. Agenda do Conselho Federal de Serviço Social do ano de 2006. 308 contundente nas estratégias de enfrentamento às refrações da “questão social” criando grandes instituições de prestação de serviço sociais. O chamado sistema “S” é por eles criado com a intenção de “civilizar” os trabalhadores por meio da qualificação profissional associada ao acesso a serviços sociais básicos que vão desde os de cultura e lazer aos de apoio à assistência médica e dentária. Os SESCs, SENACs, SESIs, etc. repõem, sob bases modernas, as antigas relações de promiscuidade entre o Estado e as organizações da sociedade civil presentes no Brasil desde a época Colonial, justificada sob o discurso da relevância pública de seus serviços, contudo, sem deixar de atender necessidades básicas de reprodução social da classe trabalhadora 557 . O Estado participa do processo fundando a primeira grande instituição assistencial, destinada num primeiro momento a amparar às famílias dos combatentes egressos da Guerra e posteriormente passa a se concentrar na gestão e operação de todas as estratégias do assistencialismo estatal. A Legião Brasileira de Assistência, a LBA, embora inaugure um novo marco no processo de enfrentamento às refrações da “questão social” por imprimir a “ação social” na ossatura do Estado, podendo assim laiciza-la, não significou um avanço na direção da configuração dos estatutos do direito social. Ao contrário, confirmou a centralização de poder do governo federal; consolidou o primeiro-damismo como iniciativa “comum” na esfera pública; contribuiu para caracterizar a “assistência” como o conjunto de ações pontuais e emergenciais voltadas à população em estado de pauperização, sem especificidade setorial; dentre outros aspectos. A diversidade de serviços sociais e educacionais prestados por estas instituições, relacionados às demandas de qualificação da força de trabalho e de sua reprodução física e espiritual, leva à incorporação institucional de contingentes de assistentes sociais, que passam a desenvolver ações educativas e normativas de ajustamento psicossocial dos trabalhadores, voltadas ao atendimento das novas necessidades relacionadas à integração de massas populacionais ao mercado de trabalho e à vida urbana. A criação das instituições assistenciais, com grande capilaridade no território nacional, amplia significativamente o mercado de trabalho do assistente social, agora investido de um mandato oficial, a partir do seu reconhecimento e legitimação pelo Estado e empresariado (RAICHELIS, 2006)558. 557 Um dos tratamentos políticos mais tensionados no campo da proteção social brasileira é sem dúvida o modo como o Estado tem estabelecido suas relações com as entidades assistenciais através dos tempos. No caso específico do sistema “S” até hoje o Brasil não consegue atualizar a legislação que o regulamenta nos aspectos essenciais como a transparência no processo de financiamento público e privado, bem como sua inserção em uma rede socioassistencial que opera sob a primazia do Estado. A atualização da legislação sobre o terceiro setor feita nos anos 1990 não os alcançou e nem mesmo a atualização recente da legislação relativa a renúncias fiscais para entidades socioassistenciais. A “caixa preta” do sistema “S” permanece intacta. Para compreender um pouco melhor esse contexto consultar o livro que organizamos em 2010: Assistência Social e Filantropia: cenários contemporâneos. São Paulo: Editora Veras, 2012. 558 RAICHELIS, Raquel. Breve História do Serviço Social no Brasil. Agenda do Conselho Federal de Serviço Social do ano de 2006. 309 A Igreja contribuiu aprimorando a formação de seus quadros que se voltam a intervir junto ao operariado por meio da “ação social” ao mesmo tempo em que diversifica o apoio institucional às necessidades de reprodução social deste público desde assistência médica – as Santas Casas de Misericórdia em 1930 passavam de 112, no final da década de 1980 já eram mais de 400559 -, creches, asilos até as campanhas de solidariedade, arrecadação de insumos e bens materiais (roupas, alimentos, remédios, mobiliário, etc.). Estes traços são apenas traços particulares que incidem no processo de evolução da profissão no Brasil e que demonstram uma parte do seu envolvimento com as estratégias amplas da jornada capitalista em curso à época. As características mais gerais estão mesmo relacionadas aquilo que podemos conceber como o início de “uma difusão global” do modo de pensar o desenvolvimento capitalista em um mundo que buscava se recompor após a Guerra, e, esta recomposição contou com uma ampla redefinição do processos de trabalho e acumulação pautados em padrões fordistas e keynesianos, sobretudo nos países de capitalismo avançado e em formas de superexploração do trabalho sob a pecha de políticas desenvolvimentistas nos países da periferia capitalista560. Este processo conta ainda com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 como uma iniciativa ideopolítica e metodológica para conferir “unidade” sociocultural ao mundo ligado ao “eixo capitalista”. A formatação de um projeto profissional para os assistentes sociais bem como a concepção de Estado que ampara este projeto estão diretamente relacionadas às diretivas emanadas das agências sociais deste órgão mundial. Na década de 1950, a ONU cria vários organismos que irão assumir com clareza a questão do desenvolvimento. Entre eles, temos a criação da “Divisão de Assuntos Sociais” e a “Unidade de Desenvolvimento de Comunidade”, já em 1950, data em que a “Comissão de Assuntos Sociais do Conselho Econômico Social” incluiu em seu programa de trabalho temas como “A Organização de centros rurais para motivar a própria comunidade” e “As contribuições oferecidas pelas Organizações de comunidade locais para ajudar a seus habitantes na solução de seus problemas”. Além de estudos, a ONU deu assistência técnica aos governos que a solicitaram, no sentido de como incentivar a participação nos programas, nas áreas de educação fundamental, informação agrícola, saúde e organização de cooperativas por parte da população a ser atingida (AGUIAR, 2011)561. 559 FERNANDES, Liliane Alves. As Santas Casas de Misericórdia na República Brasileira. Dissertação de Mestrado em Políticas de Bem-Estar em perspectiva: evolução, conceitos e actores. Universidade de Evora, Lisboa, 2009. 560 Tudo isto pensado como forma de hegemonizar o domínio das nações de capitalismo avançado, sobretudo os EUA em sua área de influência, por decorrência da polarização política, ideológica e militar que dividiu o mundo em dois blocos: o capitalista e o socialista. 561 AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e filosofia: das origens a Araxá. São Paulo: Cortez, 2011, 6ª edição. 310 As implicações destas orientações para o desenvolvimento da profissão no Brasil redundam em “metodologias” de intervenção dos profissionais junto a população que privilegiam o “desenvolvimento de comunidades”, a abordagem individual dos “casos” e coletiva dos “grupos”, como práticas isoladas ou combinadas562. Neste ínterim Serviço Social e o desenvolvimentismo como ideologia e prática econômica se compatibilizam convergindo interesses e perspectivas ideopolíticas e culturais. No plano interno, a profissão busca aprimorar-se no sentido de obter maior legitimidade e autojustificativa por meio da qualificação de suas práticas “metodológicas” e também acomodar-se melhor no movimento dinâmico do desenvolvimento capitalista em curso. Os encontros e outros eventos profissionais atestam esta intenção e iniciativa. Araxá é um momento alto deste movimento, pois consegue traduzir em seu documento/relatório final o pensamento hegemônico da categoria na conjuntura seiscentista 563 . Nesta conjuntura a “explosão” de diferentes e antagônicas posições políticas presentes no seio da sociedade animadas pela dinâmica de adesão/resistência ao golpe de 1964 também invade e influencia os meios profissionais, levando aos seus encontros/eventos os inerentes embates de ideias e perspectivas: 562 A relação da profissão com o “desenvolvimentismo” nos momentos iniciais de sua criação está descrita no livro de Aguiar e nos mostra o modo específico como foram introduzidos no Brasil o Serviço Social de Casos, o Serviço Social de Grupos e as estratégias de Desenvolvimento de Comunidade e Desenvolvimento e Organização de Comunidade. Não nos compete resgatar os detalhes deste processo, pois esta seria uma digressão desnecessária, todavia, cabe-nos considerar que esta é uma das primeiras obras de fôlego que se dedica de modo exclusivo ao debate sobre a relação Serviço Social/Desenvolvimento Capitalista sob a égide do “desenvolvimentismo” amparada por uma grande editora, o que contribuiu para sua maior difusão. Os limites objetivos que nos interpelaram durante a elaboração da tese não nos permitiu buscar outras produções do gênero. O texto de Aguiar aborda a relação da profissão com o “desenvolvimentismo” até a realização do Encontro de Araxá (1967) o que implica a necessidade de estudos que deem prosseguimento a este foco. AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e filosofia: das origens a Araxá. São Paulo: Cortez, 2011, 6ª edição. 563 O encontro e o documento de Araxá marcam um momento emblemático no desenvolvimento da profissão no Brasil. Embora as posturas “neopositivistas” se consagrem hegemônicas neste momento, o encontro ocorre em meio às inflexões da luta de classes acirradas pelo movimento de adesão/resistência ao golpe de Estado de 1964 que não se furtam de influenciar o meio profissional. Buscando uma “teorização” para a profissão este e outros eventos que se seguiram priorizam os aspectos técnicos da prática profissional redundando “no fetiche de uma teoria metodológica” de cunho estruturalfuncionalista. Contudo, desde Araxá a pluralidade de acepções tanto afetas as “metodologias” e “teorizações” para a profissão quanto as concepções de homem/mundo não se extirpam mais do meio profissional, assim, o acirramento desta pluralidade redundará no chamando Movimento de Reconceituação, que embora tenha proposto a revisão das bases institucionais/políticas/ideológicas do Serviço Social em toda América Latina, apresentará no Brasil características muito particulares. Ver a segunda parte do livro de Iamamoto: O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez. 311 Temos diferentes posturas dos assistentes sociais nesses períodos. A primeira postura, que sempre esteve presente, é a que tem uma visão acrítica da realidade, que vê a comunidade como uma unidade consensual, onde não há lugar para contradições. Esta posição está alinhada com o grupo dominante da sociedade. Historicamente aconteceu desde o início do Desenvolvimento de Comunidade no Serviço Social. A segunda postura é marcada por uma visão mais ampla das questões do desenvolvimento por mudanças estruturais da sociedade. Mas as mudanças são no sentido de melhorar o próprio sistema capitalista. Essa postura aconteceu a partir de 1960. A terceira postura é assumida por alguns profissionais que se comprometeram com as classes subalternas e se colocaram a seu serviço. Percebem os antagonismos dentro da sociedade e assumem a luta de transformação das estruturas. Esta postura basicamente aconteceu de 1960 a 1964. E hoje, com o processo de mobilização popular, os assistentes sociais têm condições de novamente rever suas posições (AGUIAR, 2011, p. 93-94)564. O debate conceitual sobre o Estado — por nós entendido como vital neste momento devido a deflagração de um golpe militar e a consequente tarefa de combatê-lo contando também com aportes conceituais — é muito peculiar e quase inexistente no interior da categoria e nos organismos políticos (ou nos aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil) como sindicatos, partidos e movimentos sociais de orientação esquerdista da época. O conjunto da sociedade e com ela a profissão se voltam para as questões objetivas e imediatas do processo de produção e reprodução social enfatizando tanto as estratégias de desenvolvimento quanto a “função” repressora do Estado — esta última no âmbito dos grupos que resistiram ao golpe. No Capítulo II desta tese vimos que a conjuntura do pós-1930 foi atravessada pelos efeitos da crise mundial de 1929 e da crise do café no plano interno. Os projetos desenvolvimentistas que se desenvolvem na sequencia deste processo tiveram por intento combater os efeitos da crise com a articulação entre a revisão da política econômica com a implantação de políticas sociais, ambas voltadas à estancar os índices decrescentes da acumulação capitalista, como dissemos alhures565. 564 AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e filosofia: das origens a Araxá. São Paulo: Cortez, 2011, 6ª edição. 565 Tanto o desenvolvimentismo de Vargas quanto o de Kubitschek, ainda que se trate de conjunturas distintas. 312 O Estado assume paulatinamente uma organização corporativa, canalizando para sua órbita os interesses divergentes que emergem das contradições entre as diferentes frações dominantes e as reivindicações dos setores populares, para em nome da harmonia social e desenvolvimento, da colaboração entre as classes, repolitizá-las e discipliná-las, no sentido de se transformar num poderoso instrumento de expansão e acumulação capitalista. A política social formulada pelo novo regime — que tomará forma através de legislação sindical e trabalhista — será sem dúvida um elemento central do processo (IAMAMOTO & CARVALHO, 1996, p. 154)566. Ou seja, novas evidências de que o Serviço Social, como profissão destinada a atuar no âmbito das mediações que se estabelecem entre o Estado e as classes, apresenta uma dimensão vinculada às ações planejadas pelo Estado e pela classe dominante para o desenvolvimento capitalista voltadas à expansão da acumulação. Contudo, se observa um ambíguo movimento no interior da profissão: de um lado se reconhece a centralidade do Estado como agente indutor deste desenvolvimento e por extensão como sujeito político que confere legitimidade institucional à profissão, por outro, não se observa como preocupação “entender conceitualmente” o Estado, nem para aprimorá-lo enquanto mecanismo de generalização da “opressão” pelo consentimento, nem para criticá-lo por exercer o papel da violência legítima567. Uma espécie de indiferença reina no ambiente profissional568. Ainda que as políticas sociais, “objeto” que permite a materialização das práticas profissionais, tenham no Estado sua razão, sentido e manutenção, estas são vistas como um complexo de exterioridade, pois os grupos sociais delas destinatários são compreendidos como “autônomos” nas relações classistas. Os grupos sociais teriam, assim, a função natural de conter os excessos do Estado, pois, devidamente ajustados, representam corporações que moralmente zelam pelo bem-estar coletivo, não sendo, assim, necessário se debruçar sobre questões teóricas e práticas relativas a natureza e concepção do Estado, pois seu papel já está dado. 566 IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996 (11ª edição). 567 Como já demonstramos antes as preocupações com o Estado, do ponto de vista do projeto profissional hegemônico em curso, se limitaram ao campo prático do exercício de aprimoramento das técnicas de intervenção profissional junto a classe subalterna. 568 Esta lateralização do debate sobre o “Estado” vai do nascimento da profissão nos anos 1930 até praticamente toda a fase onde o tradicionalismo se faz hegemônico na profissão, alternando, evidentemente períodos particulares que repõem o debate, mas sempre de modo marginal. Poucas, mas consideráveis mudanças começam a surgir apenas após a “virada” política que se assiste no final da década de 1970, sobretudo, após o Congresso da Virada em 1979. 313 O elemento novo em que se constituirá a política social desenvolvida a partir do Estado pós-30 não estará apenas em sua intensidade e generalização, mas também em sua vinculação a uma estrutura corporativista. Ainda nos primeiros anos do Governo Provisório, a legislação social anterior é revista e ampliada — jornada de 8 horas, menores, mulheres, férias, juntas de conciliação e julgamento, contrato coletivo de trabalho, etc. — projetando-se sua aplicação generalizada nos meios urbanos. Paralelamente e, inclusive antecedendo o cumprimento efetivo das medidas de “proteção ao trabalho”, é baixada uma legislação sindical tendente a vincular estreitamente ao controle estatal a organização da classe operária (IAMAMOTO & CARVALHO, 1996, p. 154-155)569. Embora não assumida na imediaticidade ou de modo conscientemente declarado, a concepção hegemônica de Estado presente no interior da categoria profissional é uma concepção que se ampara nas definições ambíguas dadas pela doutrina social Católica em franco e aberto flerte com as concepções do positivismo político (que se expressaram, sobretudo no direito e como mostra o excerto acima de Iamamoto & Carvalho, no direito trabalhista) e do funcionalismo durkheimiano. De modo indireto a dinâmica relacional entre Estado e Sociedade Civil aparece sutilmente, quando a doutrina social católica se orienta para a intervenção junto ao operariado, pois grande parte de seu aparato de ação é de origem estatal 570 . Portanto, a sociedade civil de que trata a concepção hegemônica, se volta para organizar a pregação sobre o seu próprio ajustamento moral às normas e dogmas católicos ao mesmo tempo em que critica a classe dominante pela generalização da “usura” que é tida como a base da exploração dos trabalhadores e causadora do agravamento da “questão social”571. A sociedade é vista pela Igreja como um todo unificado através de conexões orgânicas existentes entre seus elementos, que se sedimentam através das tradições, dogmas e princípios morais de que ela é depositária. Família, corporação, nação, etc., os grupos sociais naturais, são organismos autônomos e não apenas mera soma dos indivíduos que os constituem, pois possuem uma unidade independente. Indivíduos e fenômenos sociais coexistem, em coesão orgânica com a sociedade em sua totalidade (IAMAMOTO & CARVALHO, 1996, p. 161)572. O Serviço Social do período não incorpora a noção de sociedade civil como expressão de uma dinâmica classista. O uso corrente do termo “comunidade” reforça a visão estruturalfuncional que associada aos postulados da doutrina social católica naturaliza a luta de classes e 569 IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996 (11ª edição). 570 Desde a regulação que o Estado exerce sobre as políticas até os instrumentos e meios disponibilizados para a ação profissional. 571 Vide as encíclicas papais Rerum Novarum e Quadragesimo Anno. 572 Id. Ob. Cit. 314 as condições de sobrevivência aviltantes das classes subalternas, ainda que a Igreja faça críticas a expropriação do trabalho pelo capital. Nesta ótica, a sociedade civil não é tida como a totalidade da esfera infraestrutural, mas como um conjunto de organismos isolados que se articulam a partir de “funções” definidas no corpo social, ao gosto durkheimiano: Entre o Estado e o indivíduo há, portanto, uma série de grupos naturais que limitam a ação dominadora do primeiro, pois o poder político deve ser compatível com a legítima existência dos grupos sociais. O governo tem uma esfera de ação organicamente delimitada, pois, ao lado de sua soberania, os costumes, leis, tradições e a normatividade transcendente da Igreja lhe servem de freio e orientam sua ação. Nesse sentido, a intervenção do Estado na “questão social” é legitimada, pois em função mesmo de suas características deve servir ao bem comum (IAMAMOTO & CARVALHO, 1996, p. 161)573. Então, a concepção de Estado que se pode inferir deste contexto nos parece ser mesmo inspirada na concepção de Estado corporativo enunciado em Durkheim, sem, contudo incorporá-la integralmente574. Tal concepção apresenta uma arquitetura teórica racional que lhe permite articular-se sem grandes problemas aos ambíguos nexos categoriais da doutrina social católica, sobretudo, no que tange as perspectivas de generalização de uma “moral integradora”575. O Estado corporativo brasileiro tal qual expresso no pensamento de intelectuais como Oliveira Vianna576 se concretiza a partir da criação da “indústria nacional” que confere um tom 573 IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996 (11ª edição). 574 As referências que encontramos na literatura do Serviço Social sobre a aproximação e incorporação do funcionalismo durkheimiano neste período inicial de nossa história não são muito precisas. Isto pode se dever ao fato de que a adesão a tal corpo teórico não foi total, pois isto pressuporia medidas de laicização no tratamento as refrações da “questão social”, pois em Durkheim a Igreja pode funcionar como um aparelho propagador da moral integradora, contudo, não se sobrepõe as demais “corporações”, ficando assim, seu poder político, prejudicado. O arranjo metodológico e ideopolítico que permitiu tal aproximação é tão ambíguo quanto a própria doutrina social católica que legitima e combate ao mesmo tempo as diretrizes fundantes do modo capitalista de produção e reprodução social da vida. Isto é, se unem pelo essencial e genérico e não pelo particular e específico. Isto também é possível, pois em Durkheim a enunciação do Estado corporativo é descritiva, não contendo, de modo claro, encaminhamentos acerca da instituição deste tipo de Estado, deixando a Igreja (e o Serviço Social) mais livres para se relacionar com o Estado a partir do poder político que conquistam com suas instituições, sobretudo, as educacionais e as de serviços sociais. 575 Iamamoto refere: “A intelectualidade católica procurará a adaptação à realidade nacional do espírito das Encíclicas Sociais Rerum Novarum e Quadragesimo Anno, munindo a hierarquia e o movimento laico de um arsenal de posições, programas e respostas aos problemas sociais, ao formular uma via cristã corporativa para a harmonia e progresso da sociedade: Deus é a fonte de toda justiça, e apenas uma sociedade baseada nos princípios da cristandade pode realizar a justiça social”. IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996, p. 161 (11ª edição). 576 Oliveira Vianna é um dos expoentes do Estado corporativo e autoritário que teve em governos como o de Vargas sua expressão mais acabada. Ver: VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & Companhia. São Paulo: Cortez, 1981. 315 modernizador a noção de Estado-nação. Sendo este (a industrialização) um dos fatores presentes inequivocamente nos projetos desenvolvimentistas, a emergência do Estado corporativo reforça o raciocínio durkheiminano de que a corporação deveria também tomar a amplitude da indústria nacional “convertendo-se em instituição pública” genérica. O autor de Da divisão social do trabalho se ocupa em esclarecer a função do Estado resgatando a “história das corporações” — da Roma antiga as estruturas políticas do século XVI e XVII — e, critica os economistas liberais por não verem a função de “solidariedade” presente nas corporações, função esta responsável por garantir a “coesão” social. Para estes, segundo o autor, a função das corporações na divisão social crescente do trabalho é apenas produzir mais e acirrar a livre concorrência e não a solidariedade. Durkheim então passa a anunciar suas aspirações de que a sociedade se constituísse como um grande conglomerado de corporações plasmadas no Estado: Agora que a comuna, de organismo autônomo que foi antigamente, tem vindo a dissolver-se no Estado como o mercado municipal no mercado nacional, não é legítimo pensar que a corporação deveria, também ela, sofrer uma transformação correspondente e tornar-se a divisão elementar do Estado, a unidade política fundamental? A sociedade, em vez de permanecer o que é ainda hoje, um agregado de distritos territoriais justapostos, poderia tornar-se um vasto sistema de corporações nacionais (DURKHEIM, 1977)577. Sob a ótica da “função social”, isto é, cada “organismo” presente na sociedade possui uma função específica cujo cumprimento adequado lhe vincula ao “todo” que o transcende: o Estado tem sua “função” e as “corporações” também, é justamente na relação entre as corporações e o Estado que Durkheim busca justificativa para as “funções sociais” de ambos. A busca inequívoca do cumprimento destas “funções” é que garante a devida coesão social: o funcionamento adequado da sociedade tal qual um organismo (biológico) vivo. Contudo, a busca pelo cumprimento das funções de cada grupo social se dá por meio de uma disciplina moral, moral que regula também a vida econômica: O direito e a moral são o conjunto dos laços que nos prendem uns aos outros e à sociedade, que fazem da massa dos indivíduos um agregado e um todo coerente. É moral, pode dizer-se, tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o homem a contar com outrem, a pautar os seus movimentos por outra coisa diferente dos impulsos do seu egoísmo e a moralidade é tanto mais sólida quanto estes laços são mais numerosos e mais fortes (DURKHEIM, 1977)578. 577 578 DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. Lisboa: Editora Presença, 1977 (vol. 1, p.37). Id. 316 Portanto, a regulamentação da vida econômica pelas corporações sob a moral que as revestem demonstra o valor do estado de equilíbrio alcançado quando se legitimam as corporações para frear os impulsos egoístas de industriais e operários, de comerciantes e de empregados, e assim por diante. Durkheim está impressionado com a “questão social”, tentando uma solução para ela. Raciocinando neste sentido, a corporação tem sua função: formado o grupo profissional, este estabelece uma disciplina profissional, pois o poder coletivo é o poder moral. Reveste-se desta maneira a corporação de uma função de controle da instabilidade social. (...) Durkheim aproxima a corporação ao Estado, pois ela “está destinada a tornar-se a base ou uma das bases essenciais de nossa organização política”, cedendo-lhe o feitio de colégio eleitoral, com a finalidade de tornar as assembleias políticas mais representativas da diversidade dos interesses sociais e de suas relações (VIEIRA, 1981, p. 18)579. A integração da corporação ao tecido estatal para Durkheim é inevitável. O direito (tão importante quanto a moral) se aplica em suas diferentes áreas como uma espécie de aplicação particular da legislação geral, como o direito do trabalho, por exemplo 580. A restauração da corporação na sociedade moderna funcionaria como uma espécie de “poder legislativo” incumbido de regular, por exemplo, os contratos de trabalho e administrar “as organizações de seguro social” e as contendas trabalhistas. Durkheim concebe uma sociedade pluralista de “grupos secundários” protetores dos interesses individuais, enquanto o Estado se afigura como “individualista”, sem estar confinado à “administração de uma justiça totalmente negativa”, reconhecendo-se o “direito e o dever de desempenhar um papel mais amplo em todas as esferas da vida coletiva, sem ser mística”. Considerando o Estado como “órgão especial” destinado a gerar “representações” de valor coletivo, o pensamento durkheimiano dirige-se ao intervencionismo estatal na sociedade, sem recorrer à integral homogeneidade (VIEIRA, 1981, p. 19)581 Esta concepção se adequa ao projeto profissional hegemônico do Serviço Social no contexto pré-reconceituação (e o ultrapassa) embora não se constitua como objeto de interesse científico da categoria profissional582. No âmbito da formação profissional um aspecto curioso: 579 VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & Companhia. São Paulo: Cortez, 1981. 580 Por este motivo que a legislação trabalhista é sempre central no escopo desenvolvimentista. Ela funciona como um poderoso elo de ligação para o pacto entre classes. 581 Id. Ob. Cit. 582 Iamamoto & Carvalho lembram que os temas recorrentes nos eventos profissionais eram vinculados à “prática”, isto é, refletiam diretamente as demandas postas no mercado de trabalho aos assistentes sociais. Temas como Serviço Social no meio Rural, Serviço Social Industrial, Serviço Social em instituições 317 desde os cursos organizados pelo Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) em 1936 podemos perceber na formação curricular “disciplinas” afetas ao campo da ciência e filosofia políticas cuja natureza de seus campos de conhecimento constitutivos requisita o recurso ao estudo da problemática teórico-prática do Estado, todavia, o tratamento dispensado a elas durante a aplicação dos cursos subtraiu qualquer tratamento crítico à problemática colocando em seu lugar o reforço as funções repressoras e moralizadoras do Estado. Portanto, neste âmbito não há que se falar na ausência do “Estado” como conceito, mas sim num tratamento específico dele que reforça o substrato liberal de Estado asséptico e acima das classes. O curso ministrado no âmbito do CEAS em 1936, por exemplo, continha as disciplinas “teóricas” de: Economia Política, Psicologia, Sociologia, Higiene, Direito, Anatomia, Prática de Enfermagem, Estatística, Religião, Pedagogia, Direito e Serviço Social. No campo “prático” destacavam-se: relatórios, inquéritos, visitas e estágios (LIMA, 1987) 583 . Ou seja, a Economia Política, o Direito e a Sociologia serviam sobremaneira para contribuir na formação de quadros que justificassem a lógica dominante do Estado burguês em conformidade a concepção que se tinha da própria profissão: uma atuação, assim como o Estado, asséptica e acima das classes: (...) o profissional de serviço social atuava nos diversos grupos que constituem a sociedade: família, escola e outros, “procurando adaptar o indivíduo às condições de existência, procurando modificar essas condições quando possível e necessário, e também procurando concorrer para a criação de novas condições de bem-estar social”. O trabalho exigia um conhecimento claro e exato dos fenômenos sociais, para uma atuação eficiente face aos problemas a serem enfrentados (LIMA, 1987)584. Percebe-se que desde a gênese a justificativa do “conhecimento dos fenômenos sociais” permanece como um requisito fundamental à formação profissional. É, pois o debate sobre as formas de buscar e tratar este conhecimento que tencionou e ainda tenciona os projetos profissionais e de formação em constante disputa, afinal desde o nascimento da profissão até os dias atuais a “teoria” social nunca deixou de ser convocada como estatuto mediativo entre a profissão e a realidade, o que decorre desta convocação é uma pluralidade de referências que acabam por sustentar as disputas ideopolíticas em seu interior. Esta condução conservadora não tarda a incomodar. A insatisfação em relação ao tradicionalismo e o conservadorismo do Serviço Social é animada em atos recíprocos aos movimentos de resistência as ditaduras existentes no Brasil e na América Latina, levando a médicas, Serviço Social da infância e adolescência, Serviço Social e Família, Educação Popular, dentre outros eram os temas. IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996, p. 161 (11ª edição). 583 LIMA, Arlete Alves. Serviço Social no Brasil: a ideologia de uma década. São Paulo: Cortez, 1987. 584 Id. 318 instalação de um movimento heterogêneo e plural na direção de uma “reconceituação” do Serviço Social orientada para “ruptura” com os padrões conservadores585: Nas suas expressões diferenciadas, ela [a intenção de ruptura] confronta-se com a autocracia burguesa: colidia com a ordem autocrática no plano teórico-cultural (os referenciais de que se ocorria negavam as legitimações da autocracia), no plano profissional (os objetivos que se propunha chocavam-se com o perfil do assistente social requisitado pela “modernização conservadora”) e no plano político (suas concepções de participação social e cidadania, bem como suas projeções societárias, batiam contra a institucionalidade da ditadura). O fato central é que a perspectiva da intenção de ruptura, em qualquer das suas formulações, possui sempre um ineliminável caráter de oposição em face da autocracia burguesa, e este tanto a distinguiu — enquanto vertente do processo de renovação do Serviço Social no Brasil — das outras correntes profissionais quanto respondeu pela referida trajetória (NETTO, 2002, p. 248)586. Este movimento, como já se enfatizou: heterogêneo e plural, se gesta no bojo das contradições que regem a dinâmica mais ampla do movimento societário, sobretudo na conjuntura de 1965 a 1975. Em outros termos, o Movimento de Reconceituação apresentou como vimos sumariamente, uma unidade oposicionista conduzida pela convergência de “olhares” ao “inimigo comum”: a autocracia burguesa. Suas distinções internas se expressavam nas divergências sobre a forma de encaminhar e finalizar o combate ao “inimigo”, e, subjacente ao debate das táticas e estratégias emergiam discordâncias sobre a natureza e o escopo constitutivo deste inimigo (ainda que de modo marginal), e, por fim, se travavam embates acerca da natureza e o papel da profissão no contexto da sociedade de classes em disputa. Estas distinções se amparavam em referências teóricas diversas mediadas pela prática partidária que era entendida como a forma privilegiada dos assistentes sociais demonstrarem seu compromisso político. A opção de distintos grupos de “reconceituadores” pela tradição marxista como suporte teórico-metodológico não significou unidade conceitual a totalidade do grupo, ao contrário, permitiu-se render a um ecletismo que em última análise redundara no tratamento positivista deste mesmo marxismo. 585 Raichelis (2006) complementa: “Na América Latina, esse processo se cruza com as expectativas de mudança desencadeadas com a Revolução Cubana, que alimentou a possibilidade histórica de construção de uma nova ordem societária no continente. Esse quadro penetra mais diretamente no Serviço Social a partir da revisão crítica que se processa nas ciências sociais, com o debate sobre a dependência e as teorias do desenvolvimento; com a emergência da chamada Igreja Popular e a teologia da libertação; com a presença ativa do movimento estudantil e a contestação nas universidades; com o movimento de contracultura que rompe valores tradicionais e dissemina, especialmente na juventude, novos comportamentos e expressões culturais comprometidos com a transformação social”. 586 NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 2002 (6ª edição). 319 O encontro do Serviço Social com a tradição marxista (...) não foi orientado para as fontes clássicas e contemporâneas, abordadas com uma explicita preocupação teóricocrítica. Deu-se predominantemente por manuais de divulgação do “marxismo oficial”. Aliou-se a isso a contribuição de autores “descobertos” pela militância política, como Lênin, Trotsky, Mao, Guevara — cujas produções foram seletivamente apropriadas, numa óptica utilitária, em função de exigências prático-imediatas, prescindindo-se de qualquer avaliação crítica. A esse universo teórico eclético, soma-se, ainda, pela via predominantemente acadêmica, rudimentos do estruturalismo marxista de Althusser, em especial suas análises dos “aparelhos ideológicos do Estado” e seu debate sobre a “prática teórica” (...) Em outras palavras: foi a aproximação a um marxismo sem Marx (IAMAMOTO, 2003, p. 211)587. Por outro lado, na esteira do debate oposicionista da “reconceituação” — oposição tanto a autocracia burguesa quanto ao tradicionalismo na profissão — surge a possibilidade dos amplos setores políticos de esquerda e com eles o serviço social agregarem à discussão a problemática teórico-prática do Estado como componente teórico e material às estratégias de luta. Neste sentido, destacaram-se as preocupações dos “reconceituadores” com a situação de dependência socioeconômica dos países latino-americanos 588 em relação aos países de capitalismo avançado, considerando, principalmente, a influência do pensamento cepalino que indicava a aplicação de medidas desenvolvimentistas como forma de “superar” o subdesenvolvimento mesmo em regimes autocráticos burgueses. Deste modo, o debate sobre “dependência” e a dialética “subdesenvolvimento-desenvolvimento” que redundou na teoria da dependência 589 e na ascensão política de intelectuais que se dedicaram ao tema (como mostramos nos capítulos II e III) se agrega ao escopo das categorias que darão sustentação as estratégias de ruptura com o tradicionalismo profissional. Verifica-se aí uma aproximação do Serviço Social “com o vasto campo das ciências econômicas, sociais e políticas” (IAMAMOTO, 2003, p. 209). Esta aproximação, ao mesmo tempo em que qualifica e propicia a construção dos caminhos que levam ao amadurecimento da profissão por forçá-la a dialogar com outros 587 IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição). 588 Estamos tratando das particularidades do Movimento de Reconceituação no Brasil, contudo, como se trata de um movimento latino-americano, vez ou outra, faremos referência a aspectos que aparecem em comum no modo como os diferentes países encaminharam o debate “reconceituador”. 589 Embora já tenhamos tratado, é importante que se retome que a Teoria da Dependência emerge no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 sob as tintas de intelectuais como Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotonio dos Santos, Vania Bambirra, dentre outros e preconiza que o “desenvolvimento” não é a etapa posterior ao “subdesenvolvimento” depois de alcançadas um conjunto de condições econômicas e materiais adequadas à este fim, como propalava a Cepal e mesmo alguns partidos comunistas da época. Neste corpo teórico o “subdesenvolvimento” atrela-se a situação de dependência dos países da “periferia” capitalista em relação aos países de “capitalismo” central. A superação da “dependência” se coloca deste modo, como condição para a superação do desenvolvimento desigual e combinado dos países periféricos. 320 sujeitos, sem a admissão do estatuto ontológico no trato do conhecimento sobre o complexo social, tende a fragmentar-se, levando, novamente ao utilitarismo no trato do referencial teóricoanalítico. Ou seja, os grupos a esquerda do Movimento de Reconceituação que puderam dialogar com teorias como a Teoria da Dependência, por exemplo, foram buscar nelas nexos lógicos que pudessem explicar a estrutura e o movimento das políticas de Estado, já compreendidas como mecanismo de coesão social e “instrumento” fundante das “práticas profissionais” e não o conjunto dos determinantes sócio-históricos que inscrevem tais políticas no dinamismo contraditório das relações entre as classes. Além disto, estes grupos, dentre os “reconceituadores” não eram significativos em quantidade e nem mesmo detinham a hegemonia no debate e nas orientações que emanavam diretrizes ao projeto profissional da época. Como já dissemos em nota, a “virada” de hegemonia se inicia com os acontecimentos dados a partir do Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais em 1979. Ainda assim, efeitos positivos se notam nesta tímida aproximação. O processo redundara na ruptura com os modos anteriores do serviço social criticar o tradicionalismo, qualificando estes modos por agregar valor ao universo teórico e político da profissão; trazendo possibilidades de politização efetiva de seus quadros com a incorporação de referencias marxistas menos primárias; e, abrindo as bases para a construção de projetos profissionais mais abrangentes590. Por outro lado, não incidiu na ruptura com o ativismo político confundido com “exercício profissional crítico”; com a adesão pragmática a metodologismos591; e, com o ecletismo. Sendo este último, um elemento destacado por vários autores como significativo neste processo: Esse ecletismo, expressando-se como conciliação no plano das ideias, aliava-se a um tipo de chamamento à militância que diluía as bases propriamente profissionais, típicas da inscrição do Serviço Social na divisão sociotécnica do trabalho (...) Destarte, as formas específicas pelas quais se deu o referido encontro fizeram com que se estabelecesse uma tensão entre os propósitos políticos anunciados e os recursos teórico-metodológicos acionados para iluminá-los; entre pretensões político-profissionais progressistas e os resultados efetivamente obtidos. Com isso o discurso que se pretendia marxista passou a conviver com uma bagagem teórica eclética, que não era capaz de operar a efetivação das intenções declaradas, fazendo com que a ruptura anunciada não fosse integralmente realizada (IAMAMOTO, 2003, p. 212)592. 590 Além de Iamamoto (2003, p 205-218) ver também SILVA, Maria Ozanira Silva e. (coord.). O Serviço Social e o Popular resgate teórico-metodológico do projeto profissional de ruptura. São Paulo: Cortez, 1995; e, a sempre presente referência a Netto (2002). 591 Que Iamamoto classifica como “redução do método a pautas e procedimentos de intervenção” (2003, p. 213). 592 IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição). 321 Portanto, a categoria se vê diante de um dilema que mesmo hoje se repõe em essência, embora se apresente de outras formas: a opção por um referencial teórico crítico de cariz marxiano e marxista teria condições de se constituir em substrato teórico que fizesse o cravejar da profissão à realidade? A tentativa originada na Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais, na primeira metade dos anos 1970, conhecida como “método B.H.” é reconhecida pela nossa literatura corrente como a primeira tentativa contundente nesta direção. Netto (2002) a classifica, inclusive, como a primeira alternativa global ao tradicionalismo: (...) o método que ali se elaborou foi além da crítica ideológica, da denúncia epistemológica e metodológica e da recusa das práticas próprias do tradicionalismo; envolvendo todos estes passos, ele coroou a sua ultrapassagem no desenho de um inteiro projeto profissional, abrangente, oferecendo uma pauta paradigmática dedicada a dar conta inclusive do conjunto de suportes acadêmicos para a formação dos quadros técnicos e para a intervenção do Serviço Social (p. 276-277)593. Embora a elaboração belo-horizontina tenha os méritos que Netto e outros autores (SANTOS, 1999; SILVA & SILVA, 1995) 594 arrolam, ela apresenta limites relacionados a própria condição histórica em que emerge, que tem como característica principal a frágil interpretação dos postulados da tradição marxista. Ou seja: (...) suas fragilidades intrínsecas creditam-se aos limites e problemas inerentes ao viés elementar com que se apropriou do substrato teórico-metodológico com que fundou esta arquitetura – a vertente da tradição marxista em que se inspirou – e que a comprometeu tanto mais intensivas foram aquelas preocupação de rigor e congruência (NETTO, 2002, p. 289). Logo, se verifica que a “inflexão na modalidade mesma de apropriação do referencial próprio ao legado marxiano” creditada ao método B.H. “haveria de emergir uma década mais tarde – e estaria configurado na reflexão de Iamamoto, pedra angular para erradicar da intenção de ruptura as contrafrações empiristas, formalistas e (neo)positivistas” (id., p. 289). Tanto neste contexto, quanto no contexto atual (quando se verificam os distanciamentos entre a formação e o exercício profissional) o “problema” central não está na opção ideopolítica pelo referencial teórico, mas sim no modo como este referencial ao ser “interpretado” se soma ao repertório que o sujeito cognoscente já possui e as injunções e inferências que dele 593 NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 2002 (6ª edição). 594 SANTOS, Leila Lima. Textos de Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1999. Maria Ozanira Silva e. (coord.). O Serviço Social e o Popular resgate teórico-metodológico do projeto profissional de ruptura. São Paulo: Cortez, 1995. 322 decorrem595, mesmo que este processo esteja afeto ao âmbito da formação da consciência, ele não prescinde da sua base material originária. Deste modo, a dinâmica social ampla e nela as práticas sociais dos agentes particulares e singulares é que possibilitam a “ação real” ou aquilo que a aproximação primitiva (e vulgar) da teoria identifica por “aplicação da teoria na realidade”. Em síntese, a análise das tendências histórico-metodológicas da profissão, de sua gênese à conjuntura “reconceituadora” de 1965 a 1975, nos mostra que o debate sobre a problemática teórico-prática do Estado não se impôs como uma necessidade na direção de agregar valor ao conjunto de aportes teórico-metodológicos manipulados pelo corpo profissional. Da gênese à “reconceituação” há um avanço significativo no que tange a incorporação de categorias que se invocam como recurso subsidiário tanto às análises que se fazem quanto as práticas que empreendem (um não sobrevive sem o outro), contudo, as escolhas destas categorias – feitas a partir da confluência histórica – acabam por ter prevalência nas requisições de autoconhecimento, autojustificativa e acomodação da profissão na divisão social do trabalho, entendida como um grupo social específico com funções determinadas e relacionadas ao “funcionamento” da sociedade em seu conjunto, encerrando como centrais categorias que lidam diretamente com as manifestações evidentes da realidade social com as quais a profissão se relaciona. O que faz da profissão uma corporação num Estado corporativo. Neste sentido, o Estado não é tido como “categoria” ou como “objeto de interesse científico”, mas sim como um ente social materialmente incorporado à dinâmica societal cuja relação com a categoria se dá ora pelo reforço e legitimação a sua entificação como “ser” responsável por organizar a coesão social em macro-escala, ora pela necessidade de combater os excessos de autoridade que pratica quando exerce seu poder regulacionista mais pela força que por consenso. Em ambos os casos o domínio do aparato legal da violência aparece como uma característica permanente do Estado, mas não serve para alça-lo ao universo da investigação. Os avanços que se tem com a ampliação de fileiras críticas marxianas e marxistas e o amadurecimento do Movimento de Reconceituação levam a preocupações com a dinâmica do desenvolvimento das sociedades capitalistas dependentes, contudo, ao invés de significarem a invocação destas categorias como substrato centralmente esclarecedor sobre o processo de produção e reprodução material das iniquidades e contradições sociais e com isso aprimorar o entendimento da natureza da profissão e seus projetos profissionais, levam antes a um ambíguo caminho que se faz sentir até atualmente. De um lado, permaneceram vivas as tendências tradicionalistas que tiveram no Estado corporativo-burguês sua principal fonte de legitimação, o que conferiu fôlego ao projeto 595 Ainda que as exegeses tenham a propriedade de engendrar o pluralismo das ideias. 323 profissional conservador para que se perpetuasse em conformidade a própria perpetuação deste tipo de Estado. Portanto, para estes é necessário “pensar” o Estado a partir das capacidades de suas funções de administração genérica da sociedade. Esta vertente, pela capilaridade que encontra na sociedade, dada, sobretudo pelo pragmatismo alienante e alienador da cotidianidade, influenciará significativos segmentos do campo crítico da profissão quando estes incorporam a agenda “reformista” emanada do movimento comunista mundial 596 . O debate sobre as essencialidades constitutivas do Estado permanecerá lateralizado sobrepujado que será à discussão sobre “os reparos necessários” em sua ossatura para aprimorar suas funções de promoção do bem-estar e em última análise de agente “central” a superação da sociabilidade burguesa. Esta tendência internacionalmente difundida no âmbito das esquerdas respeitou as características próprias da conjuntura, da estrutura e das relações sociais de cada país, transformando-a em algo cada vez mais difuso, afastando-se em alguns casos de seus propósitos inaugurais597. Por outro lado, os segmentos profissionais que foram aos poucos incorporando e mantendo a ortodoxia da agenda social revolucionária no interior da profissão pouco se dispõem a “pensar” o Estado. Suas atenções se voltam ao combate que leve à sua destruição. As referências de um marxismo-leninista lido às pressas permanecem fortes neste grupo que se vê diante da quase inalcançável tarefa de conciliar a “prática profissional cotidiana” mediada centralmente pelas políticas de Estado com um projeto societário que supere estas mesmas “práticas” por superar antes o próprio Estado burguês. A vertente mais ortodoxa deste grupo mantém viva, por seu turno, o ativismo político (e partidário) como componente do projeto profissional, modernizando as diretivas da fase “mais radical” do Movimento de Reconceituação que negara a ocupação por Assistentes Sociais de alguns campos e “práticas profissionais” tidas como reprodutoras da dominação classista, onde se destaca, por exemplo, a assistência social. O tradicionalismo atualizado, o reformismo adaptado e o revolucionarismo598 com suas crescentes diferenciações internas referendam o ecletismo que marcou este Movimento ao 596 A partir da II Internacional. É o que veremos acontecer no Brasil na conjuntura dos anos 1990 quando o discurso reformista das esquerdas é apropriado e submetido a um “reformismo de direita” legitimador do neoliberalismo, o que Behring (2003) denominou de “contrarreforma”. BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrarreforma desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. 598 O “revolucionarismo” no Serviço Social, reposto sob bases modernas na contemporaneidade, tende a desconsiderar o complexo de mediações contraditórias que se colocam na relação entre o Estado e as classes pela prevalência que atribui as macro-determinacoes econômicas. Trata por conservador qualquer discurso ou ação que não sobreponha as determinações macro-estruturais às dinâmicas contraditórias das lutas populares imediatas por melhores condições de sua reprodução social. Não se confunde, pois, com o economicismo, pois é uma tendência ambígua que em última instância tende a negar a natureza polarizada da profissão pelo conjunto de valores idealistas que imprime ao projeto profissional quando esta se aproxima da dinâmica alienante e alienadora do cotidiano das massas e das políticas de Estado, sem todavia, negar explicitamente a tensão e as disputas políticas reproduzidas no e pelo Estado. De certa forma, é uma vertente coerente e racional no que tange a disseminação de valores antisistemicos que 597 324 mesmo tempo em que repõe, de modo explícito, as crescentes dificuldades entre a articulação das exegeses dos referenciais teórico-metodológicos críticos com o mercado de trabalho do assistente social, levando a permanência de uma contradição que Iamamoto (2003) se referiu como sendo uma contradição presente no Movimento de Reconceituação, mas que não se esgotou nele: (...) a coexistência de: “uma ética de esquerda e uma epistemologia de direita”, nos termos de Lukács. (...) Origina-se daí [do Movimento de Reconceituação] um duplo dilema até hoje presente na prática profissional: o fatalismo e o messianismo, ambos cativos de uma análise da prática social esvaziada de historicidade (IAMAMOTO, 2003, p. 213)599. 4.2. Construções pós-intenção de ruptura A incorporação de considerações sobre a problemática teórico-prática do Estado até quase os fins dos anos 1970 foi restrita aos grupos que apresentavam maior resistência ao regime autocrático burguês, mesmo com as ambiguidades que já demonstramos. As crises epicentradas nas contradições internas do regime e impactadas pela crise do capital em escala mundial 600 promoveram um rearranjo no bloco no poder levando à liberalização gradativa da autocracia burguesa. O esgotamento do “milagre brasileiro” associou-se a revitalização de mais e maiores movimentos populares contra o regime com destaque para o movimento popular pela moradia, o movimento sindical saído da clandestinidade, os setores progressistas da Igreja Católica (liderados pela Teologia da Libertação com capilaridade nas CEBs), o movimento estudantil, setores da imprensa, etc. As estratégias de “liberalização controlada” contavam com um novo plano de desenvolvimento que admitia práticas redistributivistas como parte de sua política econômica. O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), sob o período Geisel (1975-1979) buscou investir articulam projeto profissional e projeto societário, mas se torna idealista e com isso apresenta seus limites quando trata por “possibilismo” (Netto, 2004) as tendências que apontam para a construção de estratégias profissionais críticas que contribuam para a politização das massas mediadas pelo exercício profissional nos diferentes espaços socioocupacionais, como forma de trânsito à ordem socialista. Em síntese, prospecta a viabilidade da revolução sem a mediação dos instrumentos que conferem o estatuto professional ao Serviço Social pois estes não tem outra natureza a não ser reforçar os domínios imperativos burgueses. Uma variação do fatalismo. O debate, por exemplo, sobre a natureza, condições e possibilidades dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) é emblemático neste sentido. 599 IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição). 600 Crise do petróleo em 1977. 325 (...) na conjugação da política de emprego com a política de salários; pela política de valorização de recursos humanos, através de programas nas áreas de educação, treinamento profissional, saúde e assistência médica, saneamento e nutrição; pela política de integração social, através do PIS-PASEP, enquanto mecanismos destinados a suplementar a renda, a poupança e o patrimônio do trabalhador; pela política de habitação; pela ampliação da Previdência Social para atendimento de novas categorias da população, principalmente os mais pobres; pela progressiva universalização da legislação do trabalho e pela política de defesa ao consumidor para assegurar preços mais baixos aos produtos de consumo básico (SILVA & SILVA, 1995, p. 36-37)601. No governo seguinte (João Batista Figueiredo 1979-1985) a pressão social não diminui, ainda que o controle social do Estado sobre a sociedade civil permanecesse forte. O movimento por Anistia consegue algumas conquistas de sua pauta e aliado a outros movimentos sociais imprimem a “luta por direitos” no cotidiano do debate político/cultural do país. Esta efervescência, rudimentarmente sumarizada, repôs o debate sobre o “Estado” em novas bases. Não pela construção de propostas consistentes sobre “modos” e “modelos” de Estado, mas porque a sociedade civil ressurgia no cenário brasileiro como Sociedade Civil e não como um agregado de grupos distintos unidos por “solidariedade” no cumprimento de suas funções sociais. Isto é, as possibilidades que se avizinhavam do ocaso do regime autocrático burguês animavam os diferentes grupos sociais que se identificavam por uma — tímida para os padrões históricos universais, porém ousada para os padrões particulares brasileiros — solidariedade de classes. Sendo assim, se passa a pensar de modo mais direto em um Estado voltado para a Sociedade Civil, autoreconhecida agora como espaço político de classes em disputa. Este processo permite, por exemplo, a criação de centrais sindicais e do Partido dos Trabalhadores (PT) que aglutinará em seu interior vários segmentos representativos dos trabalhadores num campo de centro-esquerda e a disseminação de correntes profissionais que denunciam o ideologismo da “neutralidade” profissional, traço que ainda permanecia do tradicionalismo. Como dissemos, a autoidentificação dos grupos sociais pela democracia como Sociedade Civil levam ao reconhecimento do Estado como um espaço de tensões e conflitos, capaz de assimilar os interesses dos segmentos populares fazendo valer suas aspirações em forma de direitos e políticas públicas. A difusão da obra do marxista italiano Antonio Gramsci contribui para a incorporação de sua noção de Estado Ampliado e das disputas por hegemonia. As inflexões na categoria se fazem notar a partir 601 SILVA & SILVA, Maria Ozanira da. O Serviço Social e o popular: resgate teórico-metodológico do projeto profissional de ruptura. São Paulo: Cortez, 1995. 326 (...) da tentativa de avanço na organização política dos Assistentes Sociais a partr de 1979, o que repercute no processo de preparação e realização do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, nesse mesmo ano, quando a direção conservadora é questionada e os convidados especiais, representados pelas autoridades do regime militar são substituídos por dirigentes de organizações populares. O “ano da virada”, como ficou conhecido 1979, é marcado por um movimento de oposição à direção conservadora do Conselho Regional de Assistentes Sociais de São Paulo, dando-se a rearticulação da Associação Profissional de Assistentes Sociais, também de São Paulo, com vitória da chapa de oposição, na busca do fortalecimento do movimento sindical no interior da categoria (SILVA & SILVA, 1995, p. 40)602. Essa iniciativa repercute em nível nacional, resgistrando-se o esforço de articulação do movimento sindical dos assistentes sociais, com reativação de alguns sindicatos, algumas associações e criação de novas associações profissionais, que, posteriormente, se transformam em sindicatos estaduais, permitindo, em 1983, a criação da Associação Nacional de Assistentes Sociais (ANAS). Ao ser transformada numa federação sindical, a ANAS, juntamente com os sindicatos estaduais, o então Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS), também pressionado a incorporar as novas demandas que os setores populares colocam para a profissão, e a Associação Nacional de Ensino de Serviço Social (ABESS) representam o quadro organizativo, através do qual a categoria dos assistentes sociais não só força mudanças no quadro da formação profissional e na prática do exercício profissional, como também se articula com as lutas políticas mais amplas dos trabalhadores e dos movimentos populares (Silva & Silva, 1995, p. 40-41)603. Deste modo, é a própria realidade que impõe à categoria a necessidade de se repensar a partir das contradições imanentes da sociedade burguesa que não apresenta na (re) democratização possibilidades de superá-las604 sem a ruptura radical do capitalismo como modo de produção dominante, todavia, altera o quadro de corelações de forças que servirá de base para emoldurar o chão histórico na perspectiva da transição605. 602 SILVA & SILVA, Maria Ozanira da. O Serviço Social e o popular: resgate teórico-metodológico do projeto profissional de ruptura. São Paulo: Cortez, 1995. 603 Id. 604 Ao contrário, o modo democrático burguês só repõe em bases ainda mais consistentes as diretivas do modo de produção capitalista, pois aprofunda sua base de sustentação ideológica tanto pelo estranhamento do trabalho quanto pela socialização da cultura burguesa. Potyara Pereira esclarece de modo bastante acessível as motivações históricas que levam o capitalismo a escolher a “democracia liberal de massas” como a melhor forma política de alcançar seus intentos reprodutivos. Nesse sentido, ver PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Estado, sociedade e esfera pública. In Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009 (p. 285-300). 605 Nesse momento as esquerdas anticapitalistas já protagonizavam o debate sobre a democracia burguesa como fase necessária ou não para a transição socialista. Em meio a efervescência da retomada das “liberdades políticas” a perspectiva da ruptura radical com a ordem sem a mediação dos valores democráticos burgueses fora diluída em meio a retomada do movimento sindical (que, embora possa incorporar um projeto anticapitalista como horizonte, busca em primeira instância melhorar as condições dos trabalhadores na desigual relação capital-trabalho) e de partidos de esquerda fora do espectro das organizações da esquerda mundial como o próprio PT. É neste momento que se cria um relativo consenso 327 Este talvez seja o maior salto qualitativo na história da profissão até hoje606. Unindo a ação concreta de ruptura com a direção conservadora da profissão à incorporação de substratos teóricos que tiveram como fulcro analisar a emergência e desenvolvimento de sociedades capitalistas complexas do ocidente 607 , conseguem buscar fôlego para iniciar o caminho de superação das análises unilaterais desprovidas do “contraditório” e das “mediações” que se lhes articula. Como referiu Netto (2002)608 os estudos de Iamamoto se colocam para a categoria como chaves heurísticas que se somam ao esforço de distinguir a profissão do partido, o Estado do governo, os interesses profissionais dos interesses institucionais, as possibilidades de ação interventiva dos limites postos pela realidade objetiva, a exegese empiricista da teoria do tratamento dialético da mesma, as funções coercitivas do Estado das funções de preservação das “liberdades individuais e coletivas” e assim por diante609. As “coisas começam a ser acomodadas em seu lugar”, pois o recurso a tradição marxista (que começa a se tornar mais marxiano que marxista) se faz por um itinerário de busca tal qual se apresenta na matriz, em Marx. As categorias que se invocam são aquelas que se constituem como “determinantes” a configuração do “ser” significando formas deste “ser”. Assim, a produção e a reprodução das relações sociais, possíveis apenas pela ação transformadora do homem sobre a natureza se conforma como a base de todo o conhecimento que a partir dali se produz no campo profissional que se entende signatário desta tradição. Mesmo esta apropriação, por mais consensual que fosse ao grupo que conquista hegemonia no pós-1979, não se dá sem conflitos, contestações e distinções em seu próprio âmago, todavia, há que se considerar o seu papel no fortalecimento da vertente crítica que se espraia rapidamente na academia, porém ainda como reflexos tímidos na reversão da “ação profissional” que insistia em reproduzir rotinas previamente estabelecidas alheias à vontade dos profissionais610, na maior parte das vezes reforçando a subalternidade dos usuários das políticas manipuladas pelos Assistentes Sociais. no interior da profissão sobre a sua aliança estratégica com a classe subalterna na perspectiva da defesa dos direitos e das políticas públicas, sobretudo, as políticas de trabalho, previdência e saúde, o que leva, inevitavelmente, ao amadurecimento sobre a natureza polarizada da profissão como mostrará mais tarde a produção de Iamamoto. 606 Esta afirmação é relativizada, pois entendemos que se faz necessário outros e novos estudos que explicitem com maior profundidade os movimentos de continuidade e rupturas no interior da profissão em articulação orgânica com a dinâmica societária. Fazer este estudo não é nossa intenção nesta tese e abordá-lo em outros aspectos, além dos que aqui arrolamos desviaria o foco central de nossos argumentos. Fica deste modo sugestionado uma motivação para outras pesquisas. 607 É o que faz Gramsci. 608 NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 2002 (6ª edição). 609 Além do significado destes elementos distintivos na ordem burguesa evidenciando seus limites. 610 Sendo esta uma das características estruturais da profissão na ordem burguesa. Netto, em Capitalismo Monopolista e Serviço Social (2003) e Iamamoto em toda sua produção referida à profissão, esclarecem que o Serviço Social se constitui também por uma dimensão que extrapola a vontade dos agentes 328 Os caminhos encontrados por este grupo, que assume a vanguarda profissional (e passa a se autodenominar com este título), para articular os postulados teóricos dialéticos ao exercício profissional cravejado de conservadorismo consistiram em situar o Assistente Social como um profissional que se vincula as aspirações populares (mediada pela própria profissão e não pelo partido) através do fortalecimento das lutas pelo atendimento às demandas do povo por meio dos direitos e da política pública611. Mais uma vez a atenção dispensada ao Estado se volta para sua função de atendimento a estas demandas, cada vez mais democratizadas pelo aumento da permeabilidade do Estado à elas612. A promulgação da Constituição Federal em 5 de outubro de 1988 consolida esta perspectiva pois não só registra na Lei Maior a obrigação estatal em prover o acesso à direitos por meio de bens e serviços públicos como também aponta diretrizes para a democratização do Estado. A profissão se vê em novo dilema que divide a “vanguarda” em várias posições das quais se destacam duas. De um lado, um grupo entende a luta por direitos como uma expressão da luta de classes e como ação intermediária entre a sociedade burguesa do presente, a sociedade de transição (que estipula novos padrões ao desenho e funções do Estado) e a sociedade emancipada, onde o Estado não se fará mais necessário. Esta corrente, também com distinções internas, no geral admite o Estado como ente de natureza relacional, portanto, sem autossuficiência ante a sociedade e o principal, abdicando da interpretação unilateral do Estado como instrumento exclusivo da classe dominante (PEREIRA, 2009, p. 292)613: profissionais, pois sua legitimidade e razão histórica no mercado particular de trabalho que lhe confere, associado a outros aspectos, estatuto profissional, são também determinadas pelas instituições empregadoras, pelos modos como a sociedade “pactua” o enfrentamento às refrações da “questão social” pela via estatal e pelas representações materiais e simbólicas que a classe demandante prioritária dos serviços sociais faz da profissão e do modo de atendimento às suas demandas. 611 Mais tarde, sobretudo, na conjuntura dos anos 1990 em diante, esta perspectiva acirrará suas tensões internas, pois os limites e as possibilidades da luta por direitos na ordem burguesa tendem a ser amalgamados por projetos que incluem a disputa pelo poder político na sociedade (o que implica para alguns a disputa pelo aparelho do Estado) e tais perspectivas tendem a acelerar a cisão entre o “reformismo” e o “revolucionarismo”. Sobre este processo retornaremos mais adiante. 612 Sempre com muita luta popular, que aos poucos vai possibilitando um duplo e contraditório movimento: as classes subalternas reconhecem de modo crescente as possibilidades de disputarem hegemonia ao mesmo tempo em que as disputas se voltam à busca de interesses cada vez mais cindidos, isto é, se de um lado há a identificação classista do conjunto dos trabalhadores, por outro, se vê a fragmentação da luta geral causada pelas reivindicações de pautas imediatas e circunscritas a frações de classe identificadas por características particulares, emergem: o movimento pelos direitos da criança e do adolescente, o movimento pelos direitos da pessoa idosa, o movimento pelo direito das pessoas com deficiência, o movimento em defesa da população em situação de rua, o movimento de mulheres, o movimento da igualdade racial, o movimento de juventude, o movimento LGBTT pela diversidade de gênero, dentre muitos outros. (em 1995, no governo Cardoso é lançado o I Programa Nacional de Direitos Humanos, que de modo muito superficial começa por tratar as demandas destes segmentos). 613 PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Estado, sociedade e esfera pública. In Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. 329 Na verdade, ele [O Estado] é uma instituição constituída e dividida por interesses diversos, tendo como principal tarefa administrar esses interesses, mas sem neutralidade. É por isso que Poulantzas o define como uma condensação de relações de forças, isto é, uma condensação de forças materializada num bloco no poder ou num pacto de dominação que exerce o seu domínio por meio de um aparato institucional (burocrático, jurídico, policial, ideológico) sobre a sociedade, embora seja influenciado por esta. Assim, o poder do Estado representa a força concentrada e organizada da sociedade (o bloco no poder) com vista a regular a sociedade em seu conjunto (PEREIRA, 2009, p. 292)614. Nesta direção se registra um avanço conceitual que incorpora “instrumentos” próprios da sociedade burguesa (o direito e a política social) como “instrumentos” que ao se plasmarem na dinâmica das contendas sociais permitem que a classe subalterna se aproprie deles quando fissuras emergem desta luta. Esta esquemática, embora coerente com os limites impostos à profissão pela sua própria natureza histórica é também uma arriscada operação. Pois, ao valorizar “os direitos” e a “política pública” como “mediação” substantiva das relações entre o Estado e as classes, precisa para permanecer num campo antisistêmico, invocar uma concepção de direito e de política pública que negue a ideia de “jusnaturalismo” (de pacto social visando harmonização e de onde o Estado emerge da elevação social da sociedade civil) onde o exercício “democrático” e “republicano” dos direitos suplantaria as formas estratégicas de dominação615 de classes. Esta concepção está no cerne da escolha da democracia liberal pelo capitalismo como forma mais acabada para levar a cabo seus intentos reprodutivos. A ambiguidade revestida na máxima “todos são iguais perante a lei”616 permite em um só tempo o amparo (marginal) legal das massas populares aviltadas pelos padrões de pobreza e desigualdade de sua reprodução social e a manutenção dos níveis de dominação e exploração cometidas pela burguesia por mascarar esta mesma dominação e exploração pelo discurso das “liberdades individuais” e da “igualdade de oportunidades”. Este grupo profissional ao se deparar com tal dilema é pressionado pela própria dinâmica do desenvolvimento societal capitalista quando este amplia as estratégias de acumulação fazendo uso de “políticas desenvolvimentistas” que contam com a ampliação de ações redistributivistas e ampliação das políticas sociais, redundando inevitavelmente na diversificação do mercado e das atividades profissionais dos e para os Assistentes Sociais. 614 PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Estado, sociedade e esfera pública. In Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. 615 Sendo esta a aproximação primeira que se costuma fazer quando se fala em defesa de direitos, sobretudo, quando o agente profissional não se apropriou “adequadamente” do repertório crítico histórico e dialético. 616 Que aparece na maior parte das Constituições nacionais dos países de democracia liberal. No Brasil figura no artigo 5º, capítulo I de nossa Constituição Federal de 1988. 330 Denunciar o caráter contraditório e a hegemonia classista que reveste esse processo é entendido como insuficiente para prospectar “a materialização de um projeto profissional” que articula a ação profissional a um projeto societário alternativo a ordem do capital. É preciso ir além. Neste sentido, o aprofundamento da problemática teórico-prática do Estado se coloca como um substrato fundante à superação ou no mínimo maior esclarecimento sobre tais dilemas. Neste sentido, poucas são as produções no âmbito do Serviço Social que trazem tal problemática em profundidade a ponto de agregar um debate sobre a estrutura real do Estado que queremos ter. Falamos, outrossim, do Estado que temos e não daquele que precisaríamos ter para prospectar a transição socialista617. Mesmo sob o risco de sermos reducionistas, ousaríamos afirmar que dentre as produções destacadas no campo da vanguarda profissional as que mais se aproximam ao preenchimento destas lacunas neste grupo que destacamos são mesmo as produções de Iamamoto (1996, 2002, 2003, 2007, 2008, 2009) e de Pereira (1996, 2002, 2008, 2009, 20012)618. A primeira por operar a perspectiva de que “as demandas e requisições sociais se apresentam à profissão [como] expressão das forças sociais que nelas incidem: tanto o movimento do capital quanto os direitos, valores e princípios que fazem parte das conquistas e do ideário dos trabalhadores” (2009, p. 24)619. 617 Entendemos que o papel em apresentar ao corpo social um modelo de Estado concebido idealmente em bases materiais que se volte hegemonicamente (ou no seu todo) aos interesses da população tem em uma profissão apenas uma dimensão marginal. Este papel cabe ao agente da revolução: as massas proletárias organizadas em seus partidos e movimentos sociais populares. A categoria profissional é parte deste processo e não a totalidade dele. Ademais, os vínculos que podem ser estabelecidos entre a profissão e o projeto revolucionário esbarram nos limites impostos pela institucionalidade de uma profissão regulada pelo direito positivo e por instituições que se constituem em aparelhos de disputa por hegemonia. Isto tudo, sem prejuízo de que seus quadros, sobretudo, os acadêmicos, possam se debruçar sobre a questão contribuindo com o debate mais amplo, para além de seus muros. Este, inclusive, é o caminho que queremos apontar nesta tese: a necessidade do Serviço Social abandonar a omissão sobre a problemática teórico-prática do Estado de modo a ampliar sua contribuição a luta antisistemica ao mesmo tempo em que aprimorar as diretrizes táticas de seu projeto profissional. 618 Da lavra de Iamamoto: Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de interpretação histórico-metodológica. São P3aulo: Cortez, 1996 (11ªed.); Renovação e Conservadorismo no Serviço Social: ensaios críticos São Paulo: Cortez, 2002 (6ª ed.); O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª ed.); Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007; Estado, classes trabalhadoras e política social no Brasil. In BOSCHETTI, Ivanete (et ali). Política Social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo Cortez, 2008; O Serviço Social na cena contemporânea. In Serviço Social Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. Das tintas de Pereira: A Assistência Social na perspectiva dos direitos: crítica aos padrões dominantes de proteção social aos pobres no Brasil. Brasília: Thesaurus, 1996; Estado, Regulação Social e Controle Democrático. In BRAVO & PEREIRA, Maria Inês Souza & Potyara A.P. Política Social e Democracia. São Paulo: Cortez, 2002 (2ª ed.); Necessidades Humanas subsídios a crítica dos mínimos sociais. São Paulo: Cortez, 2002 (2ª ed.); Política Social temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008. Utopias desenvolvimentistas e política social no Brasil. In Revista Serviço Social e Sociedade nº 112. São Paulo: Cortez, 2012. 619 IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na cena contemporânea. In Serviço Social Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009 331 São essas forças contraditórias inscritas na própria dinâmica dos processos sociais, que criam as bases reais para a renovação do estatuto da profissão conjugadas à intencionalidade dos seus agentes. O projeto profissional beneficia-se tanto da socialização da política conquistada pelas classes trabalhadoras quanto dos avanços de ordem teórico-metodológica, ética e política acumulados no universo do Serviço Social a partir dos anos de 1980 (IAMAMOTO, 2009, p. 24)620. (...) Assim as condições que circunscrevem o trabalho do Assistente Social expressam a dinâmica das relações sociais vigentes na sociedade. O exercício profissional é necessariamente polarizado pela trama de suas relações e interesses sociais. Participa tanto dos mecanismos de exploração e dominação, quanto, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da resposta às necessidades de sobrevivência das classes trabalhadoras e da reprodução do antagonismo dos interesses sociais. Isso significa que o exercício profissional participa de um processo que tanto permite a continuidade da sociedade de classes quanto cria possibilidades de sua transformação. Como a sociedade é atravessada por projetos sociais distintos — projetos de classes para a sociedade — tem-se um terreno sócio-histórico aberto à construção de projetos profissionais também diversos, indissociáveis dos projetos mais amplos para a sociedade. É essa presença de forças sociais e políticas reais — e não mera ilusão — que permite à categoria profissional estabelecer estratégias político-profissionais no sentido de reforçar interesses das classes subalternas, alvo prioritário das ações profissionais (id., p. 24)621. Assim, ao apresentar a dimensão polarizada e contraditória da profissão, a autora a inscreve no campo relacional entre o conjunto de agentes políticos individuais e coletivos da sociedade e as ações que materializam a luta e as perspectivas antisistemicas. Não há em Iamamoto uma “teoria geral do Estado” como análise particular, contudo, a presença do Estado em suas reflexões é inequívoca, na medida em que o processo de produção e reprodução das relações sociais não prescinde do Estado, e, sobretudo, pelo destaque que confere em toda sua obra a “questão social”. O caminho da autora, por inferência, nos parece ser o caminho da “ortodoxia” marxista, isto é, sua fidelidade ao método sob o crivo da crítica da 620 A autora lembra ainda, citando o documento da ABESS/CEDEPSS de 1996: “o significado sóciohistórico e ideopolítico do Serviço Social inscreve-se no conjunto das práticas sociais acionado pelas classes e mediadas pelo Estado em face das ‘sequelas’ da questão social”. Segundo essa proposta, a particularidade do Serviço Social no âmbito da divisão social e técnica do trabalho coletivo se encontra “organicamente vinculada às configurações estruturais e conjunturais da ‘questão social’ e às formas históricas de seu enfrentamento, que são permeadas pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado”. ABESS/CEDEPSS. Proposta básica para o projeto de formação profissional. Serviço Social e Sociedade: O Serviço Social no século XXI, São Paulo, ano XVII, nº 50, p. 143-171, abr. 1996. 621 A autora lembra ainda, citando o documento da ABESS/CEDEPSS de 1996: “o significado sóciohistórico e ideopolítico do Serviço Social inscreve-se no conjunto das práticas sociais acionado pelas classes e mediadas pelo Estado em face das ‘sequelas’ da questão social”. Segundo essa proposta, a particularidade do Serviço Social no âmbito da divisão social e técnica do trabalho coletivo se encontra “organicamente vinculada às configurações estruturais e conjunturais da ‘questão social’ e às formas históricas de seu enfrentamento, que são permeadas pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado”. ABESS/CEDEPSS. Proposta básica para o projeto de formação profissional. Serviço Social e Sociedade: O Serviço Social no século XXI, São Paulo, ano XVII, nº 50, p. 143-171, abr. 1996. 332 economia política, a leva a optar pelo recurso a categorias essenciais da obra marxiana partindo do trabalho como categoria fundante do ser social, passando pela produção e reprodução social da vida, alcançando a luta de classes como motor da história. Assim, tal qual Marx, as reflexões de Iamamoto, não se centralizam no Estado, mas sim na sociedade historicamente determinada, ou seja, a sociedade burguesa e seus fenômenos particulares e singulares — o complexo social. Pereira, por seu turno, tem se dedicado, dentre outros estudos, a investigar e compartilhar reflexões sobre o Estado mesmo. Constituindo-se como uma das maiores referências do Serviço Social brasileiro nos domínios da Política Social, a autora desviou atenções a um tipo de Estado onde as políticas sociais se incorporam à sua ossatura (de modo central no Welfare State e de modo marginal no neoliberalismo) e de um modo ou outro se fazem presentes no processo de atendimento às necessidades humanas e as de acumulação de capital. A autora, assim como Iamamoto, expõe a dimensão coercitiva, repressora e de dominação do Estado burguês, tanto pela força quanto pelo consenso, contudo, consegue vislumbrar os aspectos civilizatórios (ainda que transitórios) 622 no exercício democrático de acesso a bens e serviços públicos (de direitos, sobretudo, sociais) por parte das massas populares garantidos pelo Estado, único ente social capaz de universalizar tais acessos. A autora ainda chama a atenção para o desinteresse dos intelectuais em estudar um tipo de Estado cujas “obrigações positivas (...) o impele a exercer regulações sociais por meio de políticas” (PEREIRA, 2008, p. 99-100). Nesta direção afirma: 622 O próprio Marx ao empreender a crítica ao Capital como forma sócio-histórica de metabolismo social o classificou como “a contradição viva”. Ele queria se referir ao processo civilizatório humano genérico que o Capital engendra no modo capitalista de produção que tende a um só tempo provocar um extraordinário desenvolvimento das forças produtivas, elevando a níveis ascendentes o controle das relações metabólicas entre homem e natureza e com isso esgotar-se, no mesmo processo civilizatório, recriando os sujeitos — homens e mulheres — como agentes sócio-históricos de transformação (e utopia) social. Ver em conjunto para melhor entendimento da assertiva: O Capital: crítica da economia política e A ideologia alemã. 333 Tal fato [o interesse teórico tardio pelo Estado] não deixa de ser intrigante, pois, se do ponto de vista da liberdade essa ingerência pode ser indesejável, do ponto de vista da aquisição de condições básicas para o exercício dessa liberdade, ela é necessária. Ademais, ao se privilegiar a igualdade substantiva (e não meramente formal), a ingerência do Estado faz-se imprescindível. Afinal, não se persegue a igualdade sem o protagonismo estatal na aplicação de medidas sociais que reponham perdas moralmente injustificadas. Da mesma forma, não se consubstanciam direitos sociais sem políticas públicas que os concretizem e liberem os indivíduos e grupos tanto da condição de necessidade quanto do estigma produzido por atendimentos sociais descomprometidos com a cidadania. É o Estado, além disso, que, ao mesmo tempo em que limita a desimpedida ação individual pode garantir direitos sociais, visto que a sociedade lhe confere poderes exclusivos para o exercício dessa garantia. Na prática, a ingerência do Estado na realidade social é tão antiga, que só quem não esteja disposto a reconhecê-la, não a percebe623. A primeira vista, o excerto de Pereira (2008) poderia demonstrar uma adesão acrítica ao Estado burguês por justificar sua legitimidade coercitiva. Contudo, se trata exatamente do contrário. O enunciado reflete a urgência de nos libertarmos dos pré-conceitos que revestem a admissão de estudos sobre o Estado burguês (e sua forma democrática) e constituí-lo como objeto de interesse científico real, pois somente assim a dialética se repõe como uma dimensão constitutiva deste campo, capaz de alça-lo à totalidade (e superando as impostações unilaterais e injunções lineares). Em outros termos: admitir as condições objetivas para tratar do Estado em sua forma e conteúdo estrutural, não implica necessariamente em aprisioná-lo nestas estruturas negando sua dimensão histórico-categorial intrínseca à ordem monopólica e sua vinculação ontológica com a dinâmica das classes sociais. Para se dar o salto ontológico do chamado “estruturalismo marxista624” é necessário superar a mera descrição e considerar nestas estruturas as práticas culturais, as sociabilidades, as experiências e lutas vividas pelos agentes sociais no mundo do trabalho, os processos históricos e todas as dimensões apreensíveis do processo de produção e reprodução material e espiritual da vida social. A autora utiliza em seus argumentos referencias da tradição marxista pouco utilizadas (ou mesmo negadas como aportes deste campo) no Serviço Social como Poulantzas: para tratar 623 PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Política Social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008. Embora o sentido radicado do estruturalismo marxista seja mesmo o de “relação”, nos referimos a uma corrente da tradição marxista que confere às estruturas um caráter de prevalência diante do conjunto das múltiplas determinações que formam e conformam a totalidade da vida social. Nesta corrente, representada, por exemplo, por Althusser, sobretudo, nos escritos de sua juventude, todo o movimento societário é determinado pelos lugares que sujeitos e instituições (ou aparelhos ideológicos) ocupam na estrutura social, inclusive, as classes, redundando numa leitura descritiva e fatorialista da sociedade. Nem nós e nem as autoras que estamos citando trabalham sob esta ótica. O que está em questão é, pois, é a centralidade da explicação crítico-ontológica da práxis humano-social na sociedade burguesa que confere sentido às classes que condensam interesses no Estado. 624 334 do Estado como condensação material de relação de forças classistas625, e, resgata o brasileiro Octávio Ianni: para confirmar a indissociável relação entre Estado e Sociedade Civil, agregando assim as devidas articulações entre teleologia e causalidade, liberdade e necessidade, objetividade e subjetividade emoldurados à práxis humana 626 , capazes de conferir sentido à classe e consequentemente ao modo como o Estado se objetiva na formação social sob o julgo do capital. Estamos inferindo com consequência que sua grande contribuição neste campo é mesmo nos dar aporte para compreender o Estado no contexto da luta de classes (ainda que os estratos dominantes detenham a permanente hegemonia, alternando apenas os interesses entre suas frações). Conclui, pois a autora Isso expõe uma outra contradição que permeia o Estado, qual seja: a mesma exacerbação do poder estatal, que debilita e fragmenta a sociedade, propicia também o aparecimento de contra poderes no seio desta 627 . Fica claro, assim, que estudar o Estado é desnudar uma arena tensa e contraditória, na qual interesses e objetivos diversos se confrontam permanentemente. No contexto capitalista, fazem parte dessa arena tanto interesses dos representantes do capital, com vista a reproduzir e ampliar a rentabilidade econômica privada, quanto dos trabalhadores, com vista a compartilhar da riqueza acumulada e influir no bloco no poder. Nesse sentido, o Estado representa mais do que um conjunto de instituições com autoridade para tomar decisões e exercer poder coercitivo, pois se revela também uma relação de dominação. Da mesma forma, ele é muito mais do que Governo, pois se, por um lado, seus sistemas administrativos, legais e coercitivos (policiais) o diferenciam da sociedade e estabelecem formas particulares de relações entre a autoridade estatal e a sociedade civil, por outro lado esses mesmos sistemas penetram na sociedade e influenciam a formação de relações no interior desta. É por isso que se diz que o Estado é ao mesmo tempo uma relação de dominação, ou a expressão política da dominação do bloco no poder, em uma sociedade territorialmente definida, e um conjunto de instituições mediadoras e reguladoras dessa dominação, com atribuições que também extrapolam a coerção (PEREIRA, 2008, p. 148)628. O que demonstra a inteira viabilidade da profissão expressar sua dimensão ético-política na direção das disputas entre as esferas que lhe conferem legitimidade profissional e no sentido de interesses que convirjam aos das classes subalternas com as quais se alia, superando os muros do “denuncismo” sobre as dimensões e práticas deletérias da classe dominante plasmada no 625 O que significa no entendimento da autora e em nosso que a admissão do pressuposto relacional em um ente plasmado na contradição não lhe retira a efetividade ontológica. 626 Sendo estes elementos em relação definidores da classe social que empreende seus movimentos de luta, constituindo-se como um sujeito histórico ontológico, capaz de “negação da negação”: em momentos de síntese dialética. 627 Afirmação inspirada Octávio Ianni, segundo a própria autora. 628 PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Política Social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008. 335 Estado629, alcançando a construção de estratégias internas e exógenas que fortaleçam as lutas sociais de caráter antisistemico. Para isso, o reconhecimento do “direito” e da “politica pública” como passo mediativo é fundamental, e, isso não se faz sem o estabelecimento de relações com o Estado em todas as suas formas. Em síntese, estas construções se fazem no bojo de um grupo que tem buscado amadurecer e ampliar o legado da “Reconceituação” acompanhando de perto as evoluções e involuções da dinâmica societária, buscando dar respostas compatíveis ao movimento histórico e suas bases materiais reais, fugindo das ideologizações fáceis e da crítica pela crítica, pois como referiu Marx “a sociedade atual não é um ser petrificado, mas um organismo capaz de mudar, constantemente submetido a processo de transformação” (MARX, 1971, p. 7) 630 . Ainda em reforço ao constante compromisso e vínculo à categoria profissional que no seu cotidiano se vê no fio da navalha das contradições que a permeiam. O outro grupo, neste mesmo campo, também com distinções internas consideráveis, embora mantenha um diálogo constante e fraterno com o primeiro e até incorpore parte significativa de suas elaborações e argumentos (e vice-versa), procura se mostrar mais “ortodoxo” 631 com relação ao eixo gravitacional da tradição marxista, e, acaba — não sabemos dizer se de modo consciente — por diferenciar a posição do intelectual: aquele que produz e domina o conhecimento, daqueles que se submetem ao exercício profissional: os agentes da “prática” que devem recorrer ao conhecimento produzido como aporte à sua ação cotidiana. Dissemos que não sabemos se é consciente ou não porque tal cisão é produto muito mais de um ideologismo positivista do que das impostações dialéticas e históricas, contudo, é uma tendência que se verifica crescente. As premissas de que partem para pensar o Estado remetem aos originais de Marx, e, desta forma vinculam a exegese marxiana aos marxistas que, segundo suas leituras se aproximam mais fielmente delas, com destaque para nomes como Lênin, Trotski, Mandel e Mészáros. Não havendo em Marx uma “teoria geral do Estado” (como mostramos no Capítulo I) não haverá também, neste grupo de intelectuais, uma teorização deste tipo. O que aparece são considerações conceituais sobre o Estado como forma de subsidiar as críticas que pretendem fazer. Deste modo, a análise do complexo social composto por processo histórico plurissecular, que nada mais é do que a sociedade burguesa, amparada na crítica da economia política tende a considerar como um eixo lógico central os processos históricos que conformam mudanças dialéticas entre as forças produtivas e as relações de produção configuradoras do modo específico de sociedade que se assiste. 629 O termo superação aqui não implica abdicar desta dimensão, mas sim não se limitar a ela. MARX, Karl. O Capital. Livro I. Volume I. Prefácio da 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971. 631 Agora não no sentido do método, mas das referencias diretas a matriz marxiana. 630 336 As atenções se voltam, pois para um tipo de Estado emoldurado na transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, ou seja, o último quartel do século XIX, que tenderá a se amparar na forma política da democracia liberal. A invocação da referência marxiana para se pensar o Estado burguês admite, neste grupo, a transposição ipsis litteris do mesmo escopo referencial de Marx — seu Estado prussiano de origem e a Europa Ocidental do século XIX — para os Estados contemporâneos de capitalismo sob bases financistas. Isto permite, por exemplo, que Netto (2001, p. 26) possa afirmar apoiado nos excertos do Manifesto do Partido Comunista que o Estado contemporâneo é: (...) funcional ao capitalismo monopolista (...) no nível das suas finalidades econômicas, o “comitê executivo” da burguesia monopolista — opera para propiciar o conjunto das condições necessárias à acumulação e à valorização do capital monopolista632. Sendo o “nível das finalidades econômicas do Estado” o nível em reciprocidade daquilo que funda as relações sociais em última instância — as relações econômicas — todas as demais funções (políticas, ideológicas, culturais, etc.) estarão à ela subordinadas. Deste modo, a função do Estado em “maximizar os lucros pelo controle dos mercados” (id., p. 24) se sobrepõe a todas as outras, anulando-as como instâncias capazes de propiciar uma autonomia ainda que relativa ao Estado. O autor refere que na fase dos monopólios, a intervenção indesejada do Estado na economia que incomodara os burgueses liberais é superada quando as crises imanentes do capital “demandam mecanismos de intervenção extra econômicos”, levando a “refuncionalização e o redimensionamento da instância por excelência do poder extra econômico, o Estado” (idem). Reporta-se assim a transição: Até então, o Estado, na certeira caracterização marxiana o representante do capitalista coletivo, atuara como o cioso guardião das condições externas da produção capitalista. Ultrapassava a fronteira de garantidor da propriedade privada dos meios de produção burgueses somente em situações precisas — donde um intervencionismo emergencial, episódico, pontual. Na idade do monopólio, ademais da preservação das condições externas da produção capitalista, a intervenção estatal incide na organização e na dinâmica econômicas desde dentro, e de forma contínua e sistemática. Mais exatamente, no capitalismo monopolista, as funções políticas do Estado imbricam-se organicamente com as suas funções econômicas (NETTO, 2001, p. 26)633. 632 NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001. (3ª edição). 633 Id. 337 A polêmica sobre esta questão é ampla no interior da tradição marxista como o próprio autor refere em nota de pé de página, contudo, lhe compete apenas evidenciar que: O eixo da intervenção estatal na idade do monopólio é direcionado para garantir os superlucros dos monopólios — e, para tanto, como poder político e econômico, o Estado desempenha uma multiplicidade de funções (Ibid., p. 25)634. Mas esta multiplicidade de funções é subordinada a função econômica e é o que acaba por definir o Estado na acepção do autor635. Este é um dos maiores traços distintivos desta noção das que elencamos no primeiro grupo. A aproximação se dá quando o autor admite que a gênese e desenvolvimento do capitalismo monopolista se fez acompanhar de um desenrolar de iniciativas populares voltadas à luta por direitos e cidadania, que antes de ameaçar o sistema o obriga a aperfeiçoar-se sob uma nova morfologia que inclui a ação ideopolíticas como estratégia do processo de dominação/acumulação. (...) a transição ao capitalismo dos monopólios realizou-se paralelamente a um salto organizativo nas lutas do proletariado e do conjunto dos trabalhadores — é, inclusive, em quase todas as latitudes, simétrico ao aparecimento de partidos operários de massas; o coroamento da conquista da cidadania, sobre a qual doutrinou linearmente Marshall (1967), acompanha, nos seus lances decisivos, o surgimento da idade do monopólio: as demandas econômico-sociais e políticas imediatas postas por todo este processo reivindicativo e organizativo macroscópico não vulnerabilizaram a modelagem da ordem econômica do monopólio, ainda que a tenham condicionado em medida considerável. Antes, ao absorvê-las, o poder político que o expressa adquiriu um cariz de coesionador da sociedade que, não casualmente, desempenhou funções diversionistas e ilusionistas sobre inúmeros protagonistas políticos desvinculados dos interesses monopolistas (ibid., p. 27)636. Este raciocínio admite a correlação de forças como uma expressão do movimento das classes prevalecente na infra-estrutura, ou seja, nos espaços onde as relações econômicas se produzem e se reproduzem. Ao campo superestrutural, por ser inteiramente dominado pelo bloco no poder compete adequar-se aos resultados da disputa classista pondo a serviço dos dominadores os seus mecanismos de legitimação. Assim: 634 NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001. (3ª edição). 635 E de marxistas como Lênin e Mandel. 636 Ob. Cit. 338 Assinalar, portanto, a compatibilidade da captura do Estado pela burguesia monopolista com o processo de democratização da vida sócio-política não é eludir o fenômeno real de que o núcleo dos sistemas de poder opera em favor dos monopólios —e, menos ainda, que jogue no sentido de reduzir os conteúdos de direitos e garantias de participação política. Ao contrário, equivale a indicar que um componente mesmo amplo, de legitimação é plenamente suportável pelo Estado burguês no capitalismo monopolista; e não só é suportável, como necessário, em muitas circunstâncias históricas, para que ele possa continuar desempenhando a sua funcionalidade econômica (NETTO, 2001, p. 28)637. Por outro lado, e nunca em último lugar, esta indicação desobstrui a via para a compreensão do rebatimento, no sistema estatal, das efetivas contradições que se desenvolvem na ordem social: a partir do momento em que procura legitimar-se mediante os instrumentos da democracia política, uma dinâmica contraditória emerge no interior do sistema estatal. A lógica dominante do monopólio não exclui o tensionamento e a colisão nas instituições a seu serviço, exceto quando o grau de esgarçamento deles derivado põe em risco a sua reprodução. Igualmente, apontar que demandas econômico-sociais e políticas imediatas de largas categorias de trabalhadores e da população podem ser contempladas pelo Estado burguês no capitalismo monopolista não significa que esta seja a sua inclinação “natural”, nem que ocorra “normalmente” — o objetivo dos superlucros é a pedra-de-toque dos monopólios e do sistema de poder político de que eles se valem. Entretanto, respostas positivas a demandas das classes subalternas podem ser oferecidas na medida exata em que elas mesmas podem ser refuncionalizadas para o interesse direto e/ou indireto da maximização dos lucros (id., p. 28-29)638. Deste modo, o autor admite que a classe trabalhadora é capaz de imprimir parte de seus interesses à dinâmica do Estado, desde que este atendimento não ponha em risco a reprodução ampliada do capital. O Estado como ente em movimento que acompanha a dinâmica societária em que se insere pode assumir formas diferenciadas de externalizar a legitimação da burguesia, determinados pelo movimento das classes, sobretudo, pela capacidade apresentada pelo proletariado de lutar e resistir a superexploração da sua força de trabalho. Assim, “as alternativas sócio-políticas do capitalismo monopolista, sem configurar um leque infinito, comportam matizes que vão de um limite a outro — do Welfare State ao fascismo” (id., p. 28). 637 NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001. (3ª edição). 638 Ob. Cit. 339 É somente nestas condições que as sequelas da “questão social” tornam-se — mais exatamente: podem tornar-se — objeto de uma intervenção contínua e sistemática por parte do Estado. É só a partir da concretização de possibilidades econômico-sociais e políticas segregadas na ordem monopólica (concretização variável do jogo das forças políticas) que a “questão social” se põe como alvo de políticas sociais (NETTO, 2001, p. 29)639. As políticas sociais são concebidas então como um canal controlado de mediação entre o Estado e as classes, fazendo com que as refrações da “questão social” ao se materializarem como parte do processo do desenvolvimento capitalista — lembremos da máxima cepalina de que para alcançar o desenvolvimento deve-se antes passar pelo subdesenvolvimento — requisitará a incorporação de mecanismos permanentes para o seu enfrentamento na esfera estatal. Incorporada desta forma, ela passa também a exercer uma função econômica É a política social do Estado burguês no capitalismo monopolista (...), configurando a sua intervenção contínua, sistemática, estratégica sobre as sequelas da “questão social”, que oferece o mais canônico paradigma dessa indissociabilidade de funções econômicas e políticas que é própria dos sistema estatal da sociedade burguesa madura e consolidada. Através da política social, o Estado burguês no capitalismo monopolista procura administrar as expressões da “questão social” de forma a atender às demandas da ordem monopólica conformando, pela adesão que recebe de categorias e setores cujas demandas incorpora, sistemas de consenso variáveis, mas operantes (id., p. 29)640. Como só se pode falar em política social, tal qual a concebemos, no contexto do capitalismo monopolista, do mesmo modo, só se deve relacionar a gênese e o desenvolvimento da profissão a esse mesmo contexto. Para Netto (2001) é a implementação destas políticas, como parte do projeto legitimador da ordem burguesa que provocará alterações complexificadoras da divisão social e técnica do trabalho que fazem emergir novas profissões, dentre elas o Serviço Social. Essa síntese de uma parte do ensaio de Netto (2001) nos mostra que o autor admite, se aproximando de Iamamoto, que o Assistente Social ocupa um lugar na divisão do trabalho eivado de ambiguidades, principalmente quando o classifica como “executor terminal de políticas públicas” (idem). A partir desta consideração, podemos perceber que o ensaio de Netto (representante notório do grupo que estamos examinando) apresenta aproximações e distanciamentos de Iamamoto. As aproximações se dão, principalmente, no que tange a natureza e a especificidade da profissão. Também se aproxima quando o tema é a política social. As distâncias partem quando a necessidade de conceituar o Estado se impõe e com ela — sendo o 639 640 Id. Ibid. 340 substrato fundamental — o imperativo de prospectar estratégias e táticas ao projeto profissional com incidência direta no escopo técnico-operativo do Serviço Social641. As distinções também se tornam ainda mais evidentes quando as concepções têm de ser amparadas por análises conjunturais. O tratamento convencional de análise de conjuntura indica que devem ser observadas: a estrutura, a conjuntura e as relações sociais e nelas os acontecimentos, os cenários, os atores e a relação de forças642. Nesse sentido, o substrato teórico comum pode levar a conclusões similares desde que a exegese das categorias estruturais seja as mesmas. Se isto ocorre, as análises tendem a manter um eixo central comum, inovando apenas quando se agregam categorias que incidem sobre o desvendamento de fenômenos particulares e singulares da conjuntura analisada. De outro modo, se as categorias estruturais se distinguem, ainda que as macrodeterminações da realidade social possam evidenciar o movimento geral inequívoco, não se chegará a um consenso quanto “as intenções” ou “deslocamentos” dos atores no cenário e nem mesmo sobre suas capacidades de enfrentar as disputas. Todo o aspecto prospectivo da análise tende a ser distinto. Corre-se ainda o risco da análise ser sobrepujada pelo desejo do analista de que as cenas aconteçam conforme sua vontade, sobrepondo suas “idealizações” ao “real” material e objetivamente dado. Deste modo, longe de personalizações, estamos considerando que a categoria profissional dos Assistentes Sociais tem semeado um fecundo movimento intelectivo que tem redundado na profusão de interpretações e incorporações variadas sobre/da teoria social e de teses sobre a realidade em que se inscreve. Os autores arrolados não se colocam, eles mesmos, como porta-vozes de nenhuma tendência, contudo, suas produções além de serem as mais visitadas são também as mais densas e “conclusivas”, por isso o recurso à eles nos permite inferir em parte de seu “pensamento” tendências que impactam todo o corpo profissional. Ademais, a qualidade rigorosa de suas reflexões tem credenciado o Serviço Social ao diálogo com vastos campos do conhecimento sejam científicos ou não. O esquema apresentado no Quadro 1, desta forma, é apenas um exercício primário de identificação das tendências dominantes no debate profissional, no campo dos segmentos signatários da tradição marxista e do PEP. Não se trata de tendências antagônicas nem mesmo cumulativas. Como é um primeiro exercício — a tese se presta a levantar a questão problemática anunciada e não resolvê-la —, se trata apenas de aproximações que contribuem para melhor compreender os modos como a problemática teórico-prática do Estado tem sido tratada no âmbito da produção intelectual da profissão. 641 Que não se separa da dimensão teórico-metodológica e ético-política, contudo, a dimensão técnicooperativo se destaca, pois é a instância mais “problemática” na direção da consolidação e “materialização” do PEP. 642 SOUZA, Hebert José de. Como se faz análise de conjuntura. Petrópolis: Vozes, 2003 (24ª edição). 341 Quadro 3 Tendências predominantes no debate profissional sobre “Estado” e temas afins TENDÊNCIA A Estado TENDÊNCIA B Estado Ampliado / Condensação de Comitê Relação de Forças Capitalista Coletivo Executivo da Burguesia / Econômica com autonomia relativa Econômica sem autonomia relativa Trabalho especializado com dimensão Trabalho na divisão social operando polarizada e contraditória / autonomia terminalmente relativa do profissional Autonomia Função do Estado Profissão políticas relativa públicas. retirada pela agudização do poder de classe burguês Dimensão Política Social contraditória. No limite Unilateralmente entendida como consegue viabilizar a reprodução da estratégia de legitimação do poder classe trabalhadora burguês ainda que atenda a reprodução da classe trabalhadora Construído Projeto Profissional lutas Deve reconhecer os limites dos direitos e populares aproveitando as fissuras do no cotidiano das da política na ordem burguesa. Nega a movimento contraditório das classes. luta dentro do Estado Admite disputas dentro e fora do Estado Fonte: Elaboração própria com uso de autores diversos (Iamamoto, Pereira, Netto, Mota, Behring, Yazbek, Bráz). Além destes elementos temos ainda a destacar que, como já dissemos, a categoria também tem sustentado tanto a produção intelectual quanto a direção social da profissão em leituras da realidade aceitando o desafio posto por Iamamoto (2003, p. 20) Um dos maiores desafios que o Assistente Social vive no presente é desenvolver sua capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano643. Estas leituras obedecem a caracterização que dissemos antes quando da realização de análises de conjuntura. Estas análises podem ser dedicadas ora aos aspectos gerais da movimentação sistêmica, ora a aspectos particulares referenciados em seu contexto global. O fato é que, sobretudo, a partir dos anos 1990, onde assistimos uma maior envergadura da ofensiva neoliberal, o diálogo do Serviço Social com a economia e com a economia política, com as ciências sociais e políticas e muitas outras áreas do saber se tornou mais fecundo originando em densas e singulares produções referidas a conjuntura. 643 IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição). 342 Destacaram-se temas afetos ao fenômeno da reestruturação produtiva, a contrarreforma do Estado, ao terceiro setor, a assistencialização do atendimento às necessidades humanas até o debate corrente sobre o (neo)desenvolvimentismo brasileiro. Estes temas não são de domínio exclusivo do Serviço Social e nem tem no Serviço Social suas relações de maior expressão — a maior aproximação apenas do “terceiro setor” e da “assistencialização” —, todavia, o tratamento deles em nosso âmbito reafirma um dos achados mais significativos no que tange a natureza profissional, qual seja: o Serviço Social só pode ser entendido no contexto da sociedade em que se insere, a partir, sobretudo, do modo como o Estado estabelece suas relações com as classes, se valendo da mediação fundamental das políticas públicas. Estas tentativas demonstram e arrematam ainda as nossas intenções iniciais: verificar o tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teórico prática do Estado. E, com eles isso é inevitável. São todos temas relacionados diretamente ao Estado e sua índole relacional. São ainda, temas que amparam tanto o PEP quanto o exercício profissional. Assim, nos dedicamos a sumariamente explorá-los. 4.2.1. Análises críticas sobre a reestruturação produtiva e a recomposição do pensamento liberal A reestruturação produtiva é um dos fenômenos mais significativos, por ser estrutural, da passagem do século XX para o século XXI. É um processo que incide em transformações substanciais na esfera das relações de produção e por extensão consequente na reprodução destas mesmas relações em seus aspectos materiais e espirituais. É comum que os estudiosos deste complexo fenômeno se dediquem a analisar as transformações no mundo do trabalho como o movimento dinâmico que confere sentido à esta reestruturação, contudo, ela não se limita a mudanças nas formas de gerenciamento dos processos de trabalho e de controle da produção. Ela incide, como já acusamos, em mudanças nos padrões de sociabilidade, na morfologia do Estado e das políticas de desenvolvimento que pratica, no pensamento econômico e político que reveste a dinâmica entre as classes e, por fim, na manutenção dos padrões de acumulação sustentados na expropriação do trabalho. Sendo assim, embora seja um fenômeno que se arrasta desde fins dos anos 1970 até os dias atuais, sua base estrutural é mesmo clássica. Isto é, remete à contradição mais fundamental do capitalismo referida a emergência do trabalho livre assalariado. Ou seja, para que haja possibilidade de reestruturação no mundo dos homens é necessário que haja força de trabalho livre para a espoliação pelo capital. Esse trabalhador livre, diferentemente do escravo ou do servo, já está submetido a um primeiro modo de expropriação que é da terra e em seguida é expropriado dos recursos necessários ao seu trabalho – os meios de produção. Não encontra 343 alternativa a não ser vender sua força de trabalho compulsoriamente, embora sua adjetivação em “livre” escamoteie o caráter compulsório dessa venda. A utilização da força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de trabalho consome-a, fazendo o vendedor dela trabalhar. Este, ao trabalhar, torna-se realmente no que antes era apenas potencialmente: força de trabalho em ação, trabalhador. Para o trabalho reaparecer em mercadorias, tem de ser empregado em valores-de-uso, em coisas que sirvam para satisfazer necessidades de qualquer natureza. O que o capitalista determina ao trabalhador produzir é, portanto um valorde-uso particular, um artigo especificado. A produção de valores-de-uso não muda sua natureza geral por ser levada a cabo em benefício do capitalista ou estar sob seu controle. Por isso, temos inicialmente de considerar o processo de trabalho à parte de qualquer estrutura social determinada (MARX, 1971, p. 201-202)644 Kohachiro Takahashi (2004, p. 88) ao tomar lugar no debate protagonizado por Dobb e Sweezy 645 alega que o trabalho assalariado livre é uma forma (tipo) básico de trabalho que emerge tanto pela transformação das formas das instituições econômicas e sociais quanto pela mudança na forma de existência social da força de trabalho646. O processo de transformação da força de trabalho em mercadoria pressupõe que a concorrência entre os próprios trabalhadores seja, por estes, internalizada, como um princípio moral, o que leva dentre outros aspectos a suplantação de seu reconhecimento enquanto classe para si, dificultando a emergência de formas de solidariedade classista. Na realidade, o trabalhador pertence ao capital antes mesmo de vender-se ao capitalista. Sua servidão econômica se concretiza e se dissimula, ao mesmo tempo, pela venda periódica de si mesmo, pela sua troca de patrões e pelas oscilações do preço do trabalho no mercado. A produção capitalista, encarada em seu conjunto, ou como processo de reprodução, produz não só a mercadoria, não só mais valia; produz e reproduz a relação capitalista: de um lado, o capitalista e do outro, o assalariado (MARX, 1971, p. 672-673)647 644 MARX, Karl. O Capital. Livro I, volume I, Capítulo V: Processo de trabalho e processo de produzir mais valia . Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971. 645 Fazemos referência ao conhecido debate travado entre Maurice Dobb e Paul Sweezy sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. A Editora Paz e Terra (Rio de Janeiro, 1977) possui uma tradução em língua portuguesa da reunião dos principais textos deste debate sob o título A Transição do Feudalismo para o Capitalismo, onde além dos dois protagonistas encontramos Rodney Hilton, Georges Lefebvre, Christopher Hill, Giuliano Procacci, Eric Hobsbawn, John Merrington, além do já citado em nosso texto Kohachiro Takahashi. 646 TAKAHASHI, Kohachiro. Uma contribuição para o debate. In A Transição do Feudalismo para o Capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004 (5ª edição). 647 Id. (Livro I, volume II, Capítulo XXI: Reprodução Simples). 344 Contraditoriamente o processo produtivo se torna cada vez mais coletivo ao mesmo passo em que a individualização dos sujeitos históricos se torna a forma de socialização dominante. Ao lado dessa centralização ou expropriação de muitos capitalistas por poucos desenvolve-se, cada vez mais, a forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação consciente da ciência ao progresso tecnológico, a exploração planejada do solo, a transformação dos meios de trabalho em meios que só podem ser utilizados em comum, o emprego econômico de todos os meios de produção manejados pelo trabalho combinado, social, o envolvimento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista (MARX, 1971, p.881)648 É deste modo que a sociabilidade do capital se pauta pelo estranhamento do trabalho, justificado pela liberdade ressignificada em liberdade de mercado. Os modos contemporâneos de exercer tal liberdade implicam, antes de qualquer coisa, na difusão da ideia de que as “benesses” trazidas com a revolução tecnológica, ao alterarem os processos de trabalho, beneficiam diretamente os trabalhadores, pois os libera para o exercício de outras atividades não laborais, mas sim de convivência social649. Associa-se a isso alterações ora significativas ora sutis no processo de gerenciamento da força de trabalho que passa a incluir o trabalhador “na divisão dos lucros” na medida em que estes deixam a condição de “empregado” e passam a ser “colaboradores”, no contexto do trabalho contemporâneo. Registre-se: divisão dos lucros (daquilo que divulgam como sendo lucro em suas manobras contábeis) e não da mais valia, pois esta depende do sobretrabalho (trabalho não pago) para existir. Também, legitima-se a desproteção ao trabalho na medida em que os contratos estabelecidos entre patrões e empregados são feitos com base em medidas de flexibilização da legislação de proteção ao trabalho conquistada a partir de amplas mobilizações da classe trabalhadora. A sociabilidade do capital, alienada, alienante e alienadora, também transfunde a ideia de que a liberdade que lhe é inerente permite que um dia todos se tornem proprietários. O requisito básico para tal conquista é apenas a vontade individual e particular de cada sujeito histórico. O empreendedorismo se configura assim, mais do que uma categoria, um modo de ser da divisão social e técnica do trabalho. O empreendedorismo é um valor moralmente justificado. Empreendedor é aquele que utiliza corretamente sua liberdade em nome da inovação das formas de aprimoramento do mercado, e, descobre nele novos nichos de consumo e de acumulação, bem ao estilo schumpeteriano. 648 649 Ibid., (Livro I, volume II, Capítulo XXIV: A chamada acumulação primitiva). Ver, por exemplo, as teses do sociólogo italiano Domenico De Mais sobre o ócio produtivo. 345 Certo dia, ao verificar as mensagens recebidas no correio eletrônico nos deparamos com a seguinte nota publicitária: EMPREENDEDOR INDIVIDUAL Preocupados com a questão do produtor informal estar se transformando em EI (Empreendedor Individual), sem ter a real noção dos benefícios na gestão do seu negócio, O Instituto Cape desenvolveu o treinamento O NEGÓCIO É TER NEGÓCIO. Para tal, estaremos em março realizando um repasse metodológico para consultores que trabalham com esta clientela. O curso para o público alvo, tem a duração de 4 horas e o repasse metodológico será de 16 horas para consultores que já tenham a prática de trabalhar com jogos de empresa e conhecer o ciclo de aprendizagem vivencial. O conteúdo do curso para o público alvo é a vivencia de uma família onde uma pessoa tem uma produção informal, um trabalha e tem dois filhos, todos menores. No desenrolar da atividade, eles vivenciam os benefícios no negócio de ser formalizado, não vendo no Empreendedor Individual apenas a vantagem de minimizar os impostos. O material desenvolvido é do mesmo formato do Best Game, onde o kit de treinamento, contém todo o necessário para a atuação do facilitador Como o repasse será somente para 25 consultores, caso seja do seu interesse reserve já sua vaga, através do site www.centrocape.org.br O empreendedor pode ser um pequeno capitalista do mundo da produção de mercadorias diretas, desde que tenha vocação para converter seu dinheiro em capital ou pode ser um investidor, aquele que vislumbra, na ponta do processo, o capital portador de juros. A lógica que preside tal intento pressupõe que o trabalhador deixe o universo da competição entre seus iguais – trabalhador que concorre no mercado com outro trabalhador – e passe a competir, por ascender de classe social, com outros proprietários, sejam eles grandes ou pequenos burgueses. O que se tem em jogo, novamente? A expropriação diversificada, que como vimos, atinge também os próprios capitalistas que competem entre si, independente de serem de um mesmo ramo de atividade, afinal quando o são, lutam para adquirir as condições necessárias para incorporar os “pequenos” – base do processo de concentração. Como tal processo é constantemente ampliado, notamos a disponibilidade de força de trabalho a ser expropriada. Expropriação, a essa altura, já naturalizada como parte do processo socializador do capital. A escalada dessa aventura a níveis mundiais tende a aumentar a produção de mercadorias (bens e riquezas) ao mesmo passo em que amplia a expropriação. O acesso a esses bens e riquezas fica cada vez mais distante do ser social que está na base do processo de produção, o que nos leva a corroborar duas assertivas aqui já citadas: 1) a afirmação de Mészáros sobre a tendência potencialmente destrutiva do capital e 2) que o capital não é uma 346 “coisa”, mas uma relação social, como demonstrado em Marx. Portanto, permanece válida a afirmação de que a força de trabalho é a mercadoria que persiste instransponível para o processo de acumulação, capaz de valorizar potencialmente o capital, ao passo em que permanece, também, sendo a forma dominante de reprodução social da classe trabalhadora. Não é, pois por acaso, que formas de reposição da força de trabalho estão sempre presentes nos projetos de desenvolvimento do capitalismo em seus ciclos desenvolvimentistas. Uma das estratégias deste processo consiste em deslocar a centralidade do trabalho como elemento fundante da sociabilidade para outras instâncias da vida social como forma de enraizar ainda mais seu estranhamento e alienação. Mesmo com tais características, não estão dadas possibilidades de eliminação da classe-quevive-do-trabalho ou do próprio trabalho como componente fundante da sociabilidade. Pois, o trabalho, entendido como ato criativo do ser humano genérico não está apenas na base de toda atividade econômica – atividade regulada pelo Estado na sua forma burguesa – mas é também aquilo que nos constitui enquanto seres sociais singulares. Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças (...) Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (MARX, 1971, p. 202)650. O trabalho humano vai se apresentar de diferentes formas a depender do tipo de formação social em que se assenta. No historicismo, podemos considerar que o trabalho (sempre de natureza coletiva e nunca isolada) apresenta características de expropriação desde que o nível de desenvolvimento das forças produtivas possibilitou a criação de excedentes de produção e tais excedentes passaram a ser apropriados por grupos distintos dentro das diferentes comunidades humanas. A dominação do homem pelo homem vai desde o escravismo primitivo aos dias atuais. A transformação essencial que se deu no trabalho diz respeito tanto a evolução das formas que procede a expropriação, variando nas diversas formações sociais, de modo de produção para modo de produção, quanto nas formas de sua organização – a maneira como se produz as mercadorias -, e por fim, no jeito como essa produção de mercadorias gera valores – valor-deuso e valor-de-troca651, no modo de produção capitalista em sua formação social burguesa, ao passo em que a própria força de trabalho se mercantiliza. 650 MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. I, Capítulo V A Produção da mais valia absoluta – O processo de trabalho e processo de produzir valores-de-uso. 651 Sobre valor de uso e valor de troca ver o livro I d´O Capital. 347 Esse processo não tem como abdicar do trabalho vivo, ainda que as novas morfologias do trabalho pareçam indicar este caminho. Por este motivo que os estudos sobre reestruturação produtiva não podem prescindir dos componentes históricos que a envolve, mas deve também, para se primar pela totalidade, colocar em exame desde as implicações econômicas, culturais, ideológicas, políticas, dentre outras, até os modos como as várias perspectivas sobre ela se traduzem em formas de pensamento materializadas no posicionamento e nas “falas” de sujeitos políticos que representam, em última instância, o pensamento de grupos sociais que se formam sob o simulacro das classes e suas frações652. É deste modo que a gestão da força de trabalho pelo capital encontra na administração científica de Taylor e na sistemática gerencial de Ford solos férteis que possibilitam o aumento exponencial da expropriação do trabalho repondo sob novas bases os postulados centrais do liberalismo, sendo o principal: o mercado como autorregulador das relações sociais, como vimos no Capítulo I quando tratamos da gênese e desenvolvimento do pensamento liberal. Contudo, a reciclagem da essência da supremacia mercadológica ou das justificativas para o desenvolvimento capitalista, atribuindo ao Estado o papel de agente ora protagônico ora marginal da acumulação, é presente nas elaborações intelectuais não apenas dos clássicos de Tocqueville à Schumpeter, passando por Adam Smith, Malthus ou Ricardo. Essa produção prossegue em vários outros intelectuais, economistas, estadistas ou mesmo empresários. Muitos deles seguem renovando a defesa da ausência do Estado na regulação do mercado e da vida social ao mesmo tempo em que se ocupam da regulação dos processos de (expropriação) do trabalho. Desde Ludwig von Mises (1881-1973) até Friedrich von Hayek (1899-1992) lidos com atenção pela dama de ferro britânica Margareth Tatcher e pelo ex-presidente norteamericano Ronald Reagan 653 , mãe e pai do neoliberalismo, até Milton Friedman 654 (19122006), a simples existência do estatal enchera de cólera os defensores mais ferrenhos do laissez- 652 Tumolo (2001) ao investigar a profusão de pensamento sobre o fenômeno considera a existência de três grandes grupos ideopolíticos que se ocupam teórica e politicamente da reestruturação produtiva. Afirma: “(...) um grupo que simplesmente descreve os processos [da reestruturação produtiva] e não manifesta nenhuma posição; outro, de pequeno porte, que se declara favorável e geralmente, tem uma visão entusiasta; e, finalmente um conjunto de pesquisadores que tece críticas — nem sempre concordantes entre si — sobre vários aspectos da reestruturação produtiva em curso no Brasil e, por conseguinte, manifesta desejo de que ela seja diferente, beneficiando a todos, sentimento este que em geral, vem expresso nos últimos parágrafos de seus textos. Dessa forma, tendo uma postura crítica, boa parte dos autores deste último grupo considera que, no Brasil, configura-se um processo de “modernização conservadora”. TUMOLO, Paulo Sérgio. Reestruturação Produtiva no Brasil: um balanço crítico introdutório da produção bibliográfica. Educação e Sociedade [on line]. Dez. 2001, vol.22, no. 77 [citado 02 Maio 2004], p.71-99. 653 Margareth Tatcher foi primeira-ministra britânica de 1979 a 1990 e Ronald Reagan foi o 40ª presidente dos Estados Unidos, governando de 1981 a 1989. 654 Salvo suas incursões pelo intervencionismo keynesiano nos momentos mais graves de crise. 348 faire655, embora sempre contem com o Estado quando o tema é a contenção do proletariado: suas formas de organização e pensamento. Mises, por exemplo, um dos fundadores da escola de Viena se dedicou a pensar a economia monetária e a inflação, mas, sobretudo a comparar as economias planificadas (comunistas) com as economias de mercado numa tentativa de mostrar a inviabilidade histórica da primeira ante a infalibilidade da segunda. Segundo Feijó (2007, p. 27), um de seus argumentos era: O comunismo não desenvolve um mecanismo consistente de identificar as necessidades humanas mais urgentes a fim de priorizar o atendimento delas. Isto só seria possível com a introdução de mercados na economia. A ênfase recai especialmente na importância do mercado como um mecanismo para avaliar os custos de produção. Isto só seria possível com a propriedade privada dos meios de produção e a existência de mercados entre as empresas. A alocação ótima dos fatores é indissociável da existência de competição entre produtores que visam o lucro. É necessário conhecer os preços dos fatores, e isso, para Mises, só seria possível com o processo de competição: a informação que produz o preço é gerada e processada na dinâmica da competição que converge o mercado para o equilíbrio, que faz o mercado adaptar-se, a todo instante, a mudanças contínuas e que processa as estratégias dos agentes diante da incerteza do futuro. O cálculo racional da produção requer então as instituições do capitalismo que o comunismo pretende abandonar: mercados, moeda, preços, propriedade privada, mercado financeiro, juros, etc.656. Mises foi respondido por comunistas como Otto Neurath, Otto Bauer ou Otto Leichter. Para os dois primeiros “o cálculo dos valores dos bens (...) era estimado pela relação técnica entre os fatores de produção e a relação destes com os produtos finais” (id. p. 27). Para o último, “a racionalidade do comunismo estaria na escolha do tempo de trabalho como unidade de valor” (ibid.). Mesmo com argumentos de fôlego e a experiência soviética avançando no pós-1917, os apologistas do liberalismo seguem nas tentativas de impor a supremacia mercadológica como um sistema perfeito. O fato é que não sendo a economia capitalista e nem o mercado perfeitos como ensejavam este seleto grupo de intelectuais e estadistas, o ciclo da história econômica dos países nos mostra que as saídas para as recorrentes crises estruturais se concentram, quase que de maneira absoluta, na intervenção estatal sobre os mercados e sobre o trabalho. 655 Em maio de 2000, Grover Norquist, líder do Americans for Tax Reform, principal lobista antiimpostos nos EUA, anunciou que sua meta, “ambiciosa, mas razoável”, era cortar o governo pela metade até 2025. “Não quero abolir o governo”, esclareceu mais tarde, “só quero reduzi-lo até um tamanho tal que eu possa arrastá-lo para o banheiro e afogá-lo na banheira”. Em 2004, ao se pronunciar sobre a ajuda do Estado aos necessitados, disparou que para isso (prestar auxilio aos necessitados) “é preciso roubar dinheiro das pessoas que o mereceram e dá-lo a quem não mereceu e isso faz do Estado um ladrão”, e, completou comparando os impostos sobre propriedade ao Holocausto. (Revista Carta Capital, Ano XIV, nº 492, 23 de abril de 2008, p.22-33). 656 FEIJÓ, Ricardo. Desenvolvimento econômico: modelos, evidências, opções políticas e o caso brasileiro. São Paulo: Atlas, 2007. 349 Com as experiências liberais de outrora e a polarização do mundo com a Revolução de 1917, variações e experimentos econômico-sociais de toda ordem encontraram solo fértil para se reproduzir. À esquerda ou à direita as “ortodoxias” estariam “contaminadas” por novas formas de pensar o mundo, o Estado, as relações sociais e econômicas. Tudo isto amparado pela instabilidade dos mercados mundiais, que com suas crises recorrentes, exigiam mesmo respostas criativas e inovadoras de muitos matizes. É com a crise mundial de 1929 que uma brecha histórica se abre e permite que uma das “variações” das correntes de pensamento ortodoxas sobre a economia e a política ocupe espaço. É, pois assim que o inglês John Maynard Keynes (1883-1946) se consagra como um dos mais influentes economistas do século XX. Com a oportunidade de responder postergando a crise de 1929 que, para Keynes era motivada pela baixa demanda agregada657, defende o uso de políticas monetárias e fiscais para regular o nível desta demanda (id. p. 28). Sem alternar para a solução socialista (o que significaria planificar a economia), Keynes propõe a intervenção estatal na economia. Defendeu a liberdade individual e a economia de mercado, mas dentro de uma lógica que rompia com a dogmática liberal – conservadora da época (BOSCHETTI & BEHRING, 2006, p. 84). Keynes questionou alguns pressupostos clássicos e neoclássicos da economia política, dentre eles: considerava insuficiente a lei de Say (Lei dos Mercados), segundo a qual a oferta cria sua própria demanda, impossibilitando uma crise geral da superprodução, e, nesse sentido, colocava em questão o conceito de equilíbrio econômico, pelo qual a economia capitalista é auto-regulável. O liberal insurreto dizia que a economia é uma ciência moral, posto que a intermediação da moeda possibilita escolhas e opções, rompendo com a naturalização da economia, um dogma da economia tradicional. Esse talvez seja um dos (poucos) pontos de aproximação entre Keynes e Marx. Só que este último via a economia como a mais moral das ciências, propondo uma crítica da economia política e da sociedade burguesa. As autoras lembram que para Keynes 657 “A demanda agregada estaria muito baixa em razão da inadequada demanda por investimentos” (SECURATO, 2007, p. 40). 350 a operação da mão invisível do mercado não necessariamente produziria a harmonia entre o interesse egoísta dos agentes econômicos e o bem-estar global, como o demonstraram a grande depressão e a guerra. As escolhas individuais entre investir ou entesourar, por parte do empresariado, ou entre comprar ou poupar, por parte dos consumidores e assalariados poderiam gerar situações de crise, em que haveria insuficiência de demanda efetiva e ociosidade de homens e máquinas (desemprego) 658 (id., p. 84). Também lembram o forte caráter intervencionista das decisões econômicas advindas da classe empresarial, pois os impactos dos volumosos recursos de seus investimentos, ao visar um retorno imediato do capital investido, gerariam inquietações sobre o futuro e o risco da recessão e do desemprego, decorrendo disto o caráter instável da economia capitalista (id.). À fórmula keynesiana de revitalização do sistema de acumulação monopolista somaram-se os princípios fordistas, ditando, assim, as regras de organização da produção que implicaram em novas formas de sociabilidade, interferindo nos padrões de reprodução social e nos desenhos dos Estados e das políticas públicas, sobretudo, as de corte social dali em diante. O fato é que a economia keynesiana se mostrou viável como uma alternativa para postergar os constrangimentos causados pela crise durante as décadas de 40, 50 e 60 do século XX. Alternativa no escopo do próprio capitalismo, não obstante ter se desdobrado em variações — neokeynesianas — que deixariam até mesmo Keynes preocupado. Essas variações vão desde as bases do keynesianismo aplicada à estruturação dos Estados de Bem-Estar (Welfare State) quanto da Economia Social de Mercado implantada na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Essas variações, embora distintas em conteúdo nunca foram bem vistas aos olhos dos defensores do laissez-faire que mesmo com a pretensa hegemonia keynesiana nunca desistiram de buscar formas de recompor a “ortodoxia” liberal num mundo que se inclinava, mesmo timidamente, aos apelos morais de atendimento a necessidades sociais como responsabilidade coletiva e pública, o que apontava mudanças sistemáticas e de fundo aos desenhos e configuração dos Estados Nacionais. O mais significativo núcleo irradiador destas tentativas — que mais tarde logra êxito redundado no neoliberalismo — foi sem dúvida a Escola de Viena ou Escola Austríaca. Ludwig von Mises, como já vimos, é um ícone desta escola a ponto de incentivar seus alunos e seguidores a prosseguirem buscando soluções liberais para os problemas ciclicamente econômicos, com largas inflexões na “questão social”, que o capitalismo apresentava. É deste 658 A demanda efetiva, segundo Keynes, é aquela que reúne bens e serviços para os quais há capacidade de pagamento. Quando há insuficiência de demanda efetiva, isso significa que não existem meios de pagamentos suficientes em circulação, o que pode levar à crise. Nesse sentido, o Estado deve intervir, evitando tal insuficiência. Vale lembrar que, na economia de mercado, a demanda efetiva é o que importa, embora seja inferiror à demanda decorrente das necessidades do conjunto da população (SANDRONI, 1992: 87 e 178 apud BOSCHETTO & BEHRING, 2006: 85). 351 modo que o também austríaco Friedrich August Von Hayek (1899 – 1992) se consagra como um dos idealizadores de soluções (neo) liberais para a crise dos “Estados Sociais” sendo inclusive premiado com um prêmio Nobel de Economia em 1974, justificado por suas teorias sobre o capital e a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais. Um dos eixos centrais do pensamento de Hayek é sua proposta de prioridade radical das liberdades. Tanto em The Constitution of Liberty, de 1960 quanto em Law, Legislation and Liberty, de 1973 Hayek retoma com vigor apaixonado os princípios fundamentais do liberalismo em um extraordinário arranjo psico-econômico. Preocupa-se em resgatar a lógica do atendimento às necessidades humano-sociais referenciada no campo individual e privado. Para isso critica duramente as políticas (re)distributivas entendendo que qualquer iniciativa deste tipo fere de modo capital as liberdades individuais, sendo autoritárias. Hayek é seguramente um funcionalista de tipo às avessas, pois para ele a sociedade, tal como a conhece (capitalista e liberal), além de autoregulavel é uma ordem espontânea cujas características abstratas garantem a estabilidade e a coesão social. Qualquer forma de planejamento de normas com vistas à obtenção de resultados seja em comportamentos individuais ou coletivos, além de ferir as liberdades, é improvável, pois os homens são improváveis. Logo, não são os resultados que devem definir os moldes de uma sociedade, mas as propabilidades de ocorrência de determinadas situações individuais. Numa organização, como uma fazenda ou uma fábrica é possivel conduzir as ações de modo orientado e planejado e antever resultados, aliás, é o que se espera de um empreendedor consciente, contudo, o mesmo não se aplica a um corpo societário maior e heterogêneo. Qualquer iniciativa deste tipo leva ao autoritarismo, insiste ele, ilustrando a afirmação com o exemplo do nazismo de Hitler e seu Partido Nacional Socialista. O grande mecanismo em que se referencia a coesão social hayekiana é o mercado. Nele, os indivíduos encontram as referências necessárias para usar seu conhecimento de modo empreendedor na busca de satisfação de suas necessidades. Este processo difere radicalmente de qualquer atividade comunal, pois em sociedades complexas não é possível que um indivíduo tenha ciência do conhecimento alheio e da forma como ele o utilizará para desenvolver suas atividades de sobrevivência, até mesmo porque o processo de aquisição deste conhecimento e as estratégias que ele sugere já não são, de gênese, comunais. Por isso, para Hayek um termo como “injustiça social” que carrega consigo implicitamente uma necessidade de “correção” pública de algo injustificado é inconcebível. O sentido da justiça ou injustiça social só pode ser atribuído a situações individualmente determinadas ou no máximo ao grupo de pessoas próximas ao indivíduo. O todo social está isento deste sentido, pois como não há condições de previsão dos resultados provenientes do conjunto das ações humanas – galvanizadas na sociedade – não há como classificá-los de antemão como justas ou injustas ainda que determinados eventos possam ser considerados bons ou maus. No limite, o direito deve ser utilizado para sanar conflitos 352 pontuais e privados que possam surgir por interesses que se confrontam, aproximando Hayek da crítica schumpeteriana da vontade geral. Mészáros (2002, p. 190) nos mostra que a paixão com que Hayek defendia a ordem do mercado — se recusava a chamar de “capitalismo” — o levou a dedicar muitos esforços e fôlego ao combate da planificação da economia. Como que cortejando a insanidade na busca de um equilíbrio, Hayek lidera uma verdadeira cruzada contra todas as formas econômicas que admitem um Estado de inclinação social, mas é contra o Socialismo que se deleita em críticas mais contudentes. A disputa entre a ordem do mercado e o socialismo é nada menos que uma questão de sobrevivência. Seguir a moral socialista destruiria boa parte da humanidade do presente e empobreceria boa parte do restante (...) somos forçados a preservar o capitalismo por causa de sua capacidade superior de utilização do conhecimento disperso. [O capitalismo] é uma ordem econômica insubstituivel (HAYEK apud MÉZSÁROS, 2002, p. 190)659. Se, para Hayek, mesmo o Estado burguês que admite passivamente os postulados liberais clássicos e neoclássicos já seria um Estado reduzido ao mínimo, um Estado socialista então sequer deveria existir. O desejo real de Hayek era igual ao de Norquist, afogar o Estado na banheira, porém, sendo um pouco mais instruído que o lobista americano, Hayek sabia que isto não seria adequado para o mercado. Por isso, se mostrava mais tolerante com o Estado desde que este fosse completamente inclinado a fomentar o mercado. Em momentos de prosperidade e estabilidade econômica Hayek admitia que pudesse haver uma intervenção mínima, pontual, focalizada, emergencial do Estado nas questões afetas a reprodução social como alimentação, habitação e saúde, mas não nos momentos de crise. Nas crises, mesmo as ações sociais mais pontuais deveriam ser extirpadas da esfera pública e remetidas todas para o campo da solidariedade privada. Assim, Hayek se sagra o inspirador do advento do neoliberalismo como forma de superar a crise dos Estados Sociais alimentando as cartilhas propositoras desse ajuste e de contrarreforma produzidas pelos organismos multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, entre outros. No campo das construções que buscam “modernizar-conservando” a acumulação, não encontramos somente economistas. Ao contrário, estes são apenas um dos segmentos encontrados dentre os vários que articulam alianças em torno de seus interesses estratégicos no status quo. Os “donos” do capital não são apenas receptores passivos das doutrinas emanadas por seus mestres. Muitos deles, banqueiros, industriais, grandes comerciários, dentre outros, produziram, com a particularidade de implementá-los, modelos de organização econômica 659 ISTVÁN, Mészáros. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. 353 articulados as diretrizes gerais de reprodução do capitalismo. Modelos quase sempre referenciados no suporte fundamental desta reprodução que é a esfera da produção. Influenciam no trabalho e nos processos de trabalho dando materialidade as “inovações” dinâmicas do capital, a própria reestruturação produtiva, fazendo dessa um fenômeno político e ideológico. Henry Ford (1863-1947), por exemplo, com sua fórmula de produzir carros em série influencia todo o conjunto das relações de produção de sua época. Controlando mecanicamente os processos de trabalho produzem-se os grandes estoques, massifica-se o consumo e expropriase ainda mais a força de trabalho. O modelo de gerenciamento fordista extrapola evidentemente o mercado e atinge os Estados não apenas pelo seu dever de regulação relativa dos mercados, mas também pela incorporação osmótica desse modelo no gerenciamento da coisa pública. O fordismo contou com o apoio da criação de instrumentos modernos de gerenciamento da força de trabalho sustentado em parâmetros científicos. Sendo assim, Frederick Winslow Taylor (1856 – 1915) – o pai da matéria – apresenta em 1911 The principle of scientific management 660 . Nesse livro são expostos os princípios que deveriam nortear os padrões de eficiência e a busca de resultados no processo produtivo. Com o tempo, ao taylorismo vieram associar-se as ideias de Jules Henri Fayol (1841 – 1925) e mais recentemente Peter Drucker (1909 – 2005). Nesses administradores (resguardadas diferenciações substantivas e adjetivas em seus pensamentos) é clara a distinção entre a execução do trabalho feito pelos operários, o controle feito pelo gerente e o planejamento feito pelos donos da fábrica. Para Taylor, em especial, o mais importante não é o dispêndio de força humana, mas sim o controle de tal dispêndio. Assim, torna-se nula qualquer sugestão ou contribuição do trabalhador ao “sistema produtivo”. Antunes (1998) 661 lembra que o cronômetro é o símbolo máximo deste modelo. Avançando nos princípios tayloristas, Ford acrescenta a eles, como já mencionamos, o conceito de “produção em massa ou em série” aumentando a lucratividade da produção como resposta as demandas postas pelos trabalhadores como as convenções coletivas e demais legislações de proteção ao trabalho. Fayol, por sua vez, reforçando a tendência racional da divisão de tarefas produtivas na época da Escola Clássica, propunha o agrupamento de tarefas, a centralização de decisões e o controle sobre os subordinados, e as considerações de problemas pessoais dos operários para obtenção da melhor eficiência da empresa (CARDOSO, 2008:29)662. Esse conjunto de evidências científicas funcionais, ainda que viesse sofrer mutações transladando para a acumulação flexível, consegue influenciar a estrutura dos Estados transpondo para a administração estatal, atingindo também a gestão de serviços sociais, uma 660 Os princípios da administração científica (tradução livre) ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, Campinas: Editora da Unicamp, 2002 (8ª edição). 662 CARDOSO, Marco Antonio Fernandes. Do taylorismo ao globalismo: evolução e perspectivas. In MARRAS, Jean Pierre. Capital-Trabalho o desafio da gestão estratégica de pessoas no século XXI. São Paulo: Futura, 2008. 661 354 drástica cisão entre “executores” e “planejadores” dos serviços públicos663. As atenções da administração pública se voltam para a normatização e controle dos processos de trabalho lateralizando as questões dos trabalhadores e hierarquizando a prestação das atenções públicas, priorizando as atividades afetas a disseminação de capital e reordenando aquelas não rentáveis (políticas sociais, por exemplo). Muito tardiamente, assim como nas empresas, é que as questões afetas aos trabalhadores irão ganhar espaço orgânico nas estruturas organizacionais após terem passado um longo período sendo tratadas apenas pelo viés do controle da carga horária de trabalho e a contabilização salarial dela decorrente. Contudo, a instituição de departamentos de pessoal ou departamentos de recursos humanos ou de gestão de pessoas nas organizações públicas e privadas não significou a ruptura com a segmentação subordinadora técnica e ideológica das funções. Ao contrário, as funções afetas ao campo do planejamento e gestão consolidaram seu lugar de superioridade frente as demais conquistando aquisições trabalhistas importantes como planos de carreiras estruturados e estáveis, espaços próprios para negociações entre patrões e empregados, políticas de benefícios, entre outros. No âmbito da prestação de serviços sociais, a diferenciação entre os processos de trabalho estatais e privados oscila para maior ou menor democracia e caráter publico conforme penetram no Estado as propostas para sua automodernização, ora com cariz liberal, ora com cariz social-democrata, sendo o mais comum o mix entre as duas doutrinas, como verificaremos as ocorrências no contexto dos governos Lula-Dilma, mais adiante. Deste modo, verificamos que a reestruturação produtiva apresenta uma ampla base de legitimação que reforça a modernização conservadora dos clássicos do liberalismo convergindo ao neoliberalismo e interpelando frontalmente toda a classe trabalhadora. Por isso mesmo, é o fênomemo estrutural mais importante do desenvolvimento capitalista desde as últimas décadas do século XX até os dias atuais. O Serviço Social não é alheio a esse processo, tanto que as teses sobre a reestruturação produtiva e o pensamento liberal (ideológico) que a reveste se constituem a base material das análises conjunturais que a profissão tem empreendido desde que a teoria social crítica foi admitida como nosso principal substrato teórico. Examinamos rotineiramente tanto seus aspectos macro-estruturais quanto seus particularismos (e a gama incontável de mediações neles contidas) para explicitar e entender a dinâmica metamórfica das relações sociais. Isso explica, porque, dentre as principais teses desenvolvidas no âmbito do Serviço Social brasileiro nos últimos trinta anos que ilustram o tratamento por nós dispensado à problemática teórico-prática 663 Tradicionalmente, os assistentes sociais ocupam lugar no mundo do trabalho no âmbito da execução finalística de serviços sociais, contudo é crescente a requisição recente para que exerçam funções de gerenciamento, planejamento e pesquisa na esfera pública e privada. 355 do Estado, as teses da reestruturação produtiva são as que mais nos submeteram a esforços analíticos, tornando-a sua sumarização mais extensa que as demais. O amadurecimento teórico e político do Serviço Social brasileiro caminhou a passos largos desde que a “ruptura com fontes secundárias” da tradição marxista e sua identificação estrutural-funcional cederam gradativamente lugar as impostações ontológicas e com elas a admissão das categorias centrais da obra marxiana que passaram a mediar a relação da profissão com seus referenciais analíticos. A maior parte de nossos autores atribui a difusão de Relações Sociais e Serviço Social no Brasil, de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho como o momento inicial dessa inflexão664. Ali, se inicia o caminho para a superação das análises endogenistas, pois procura situar o Serviço Social no contexto da produção e reprodução das relações sociais tendo como recurso a exploração da categoria “trabalho” em Marx sob o substrato da crítica da economia política. Desde então a obra destes autores, em particular a primeira, se acomete de uma articulação entre a reiteração e o aprofundamento das bases ensaísticas que lançaram na década de 1980. Nesta perspectiva, uma formulação mais acabada sobre a concepção do Serviço Social, sua definição e natureza é assim sumarizada: A profissão é aqui compreendida como um produto histórico, e, como tal, adquire sentido e inteligibilidade na história da sociedade da qual é parte e expressão. O Serviço Social afirma-se como uma especialização do trabalho coletivo, inscrito na divisão sociotécnica de trabalho, ao se constituir em expressão de necessidades históricas, derivadas da prática das classes sociais no ato de produzir seus meios de vida e de trabalho de forma socialmente determinada. Assim seu significado social depende da dinâmica das relações entre as classes e dessas com o Estado nas sociedades nacionais em quadros conjunturais específicos, no enfrentamento da “questão social”. É na implementação de políticas sociais, e, em menor medida, na sua formulação e planejamento, que ingressa o Serviço Social (IAMAMOTO, 2003, p. 203)665 O desenvolvimento da sociedade global do capital em fins de século XX e início de XXI reafirma a assertiva conceitual de Iamamoto quando caminha para a reestruturação dos seus padrões produtivos assentados na lógica fordista/taylorista alternando para um modelo de “acumulação flexível” que reconfigura a morfologia do trabalho com implicações de dupla dimensão para o Serviço Social: de um lado causa constrangimentos ao lugar que a profissão ocupa na divisão social e técnica do trabalho devido ao redimensionamento das formas de enfrentamento às refrações da “questão social”, e, por outro, amplia as demandas profissionais 664 Vide o prefácio de Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social, de Marilda Villela Iamamoto, redigido por José Paulo Netto. (São Paulo: Cortez, 2007). 665 Iamamoto, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição). 356 por exponenciar os níveis de pauperização e desigualdade que vilipendiam direitos e condições de vida de toda a classe trabalhadora, incluída nela os próprios Assistentes Sociais. Colocam-se assim desafios e impasses para a categoria profissional tanto no âmbito da formação quanto do exercício profissional cujo enfrentamento e ultrapassagem se relacionam a necessidade de se avançar na articulação orgânico-dialética entre as três dimensões que marcam a essencialidade da profissão (na esfera da formação e do exercício): dimensão ético-política, dimensão técnico-operativa e dimensão teórico-metodológica. Neste sentido Iamamoto afirma que um dos impasses modelares a ser superado é: (...) o famoso distanciamento entre o trabalho intelectual, de cunho teóricometodológico, e o exercício da prática profissional cotidiana. Esse é um desafio colocado por estudantes e profissionais ao salientarem a defasagem entre as bases de fundamentação teórica da profissão e o trabalho de campo. Um outro aspecto a ser enfrentado é a construção de estratégias técnico-operativas para o exercício da profissão, ou seja, preencher o campo de mediações entre as bases teóricas já acumuladas e a operatividade do trabalho profissional (IAMAMOTO, 2003, p. 52). Este desafio — tanto a sua afirmação quanto o seu enfrentamento — se coloca na perspectiva de um momento conjuntural onde a centralidade do trabalho como elemento fundante da sociabilidade humana é questionada. Este questionamento parte tanto do debate epistemológico da “crise dos paradigmas” legitimador da invasão pós-moderna na academia (SANTOS, 1987, 2000a, 2000b) 666 quanto da “crise do emprego” (identificada fenomenicamente como crise da sociedade salarial) motivada pela reversão estrutural dos padrões de produção e acumulação (CASTELLS, 1999)667. Embora a produção intelectual que se ocupou em analisar tal reversão no Serviço Social (mas não só nele) seja heterogênea, há um relativo consenso quanto às bases sociohistóricas em que emerge e os elementos que a compõe. Esta reversão configurada na reestruturação produtiva tem buscado legitimidade política junto aos amplos mecanismos de regulação social — dos estatais aos de mercado — refletida e inserida também no campo de disputa entre as classes e suas frações. Ainda assim, como dissemos; as bases históricas em que o fenômeno se assenta se repetem nas várias perspectivas que convergem no entendimento de que a reestruturação produtiva é um fenômeno contemporâneo e próprio das respostas que o capital oferta como resolução epidérmica de sua própria crise estrutural desde os anos 1970 — uns veêm a resposta como 666 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1987; Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2000a; e, A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000b. 667 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede Volume 1. Prefácio de Fernando Henrique Cardoso. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 357 alternativa positiva e outros identificam nela a agudização das relações de espoliação do trabalho e da “questão social”. O fato é que as estratégias do capital na perspectiva de controlar os processos e a força de trabalho como modo ineliminável de garantir sua reprodução ampliada datam do século XIX quando o conflito classista se acentua em consequência do aumento do proletariado urbano dado não apenas pelas novas condições técnicas e tecnológicas (com o avanço da ciência), mas também pelas necessidades de generalização do próprio sistema produtor de mercadorias voltado à subsunção do valor-de-uso pelo valor-de-troca, cujo primeiro aspecto é apenas um de seus componentes. Com todo o exposto, fica também entendido que a reestruturação produtiva incide na diversificação das formas de enfrentamento às refrações da “questão social” e com isso na morfologia da política social, por, em última análise, propor alterações nos desenhos de Estado com vistas a aprimorar suas funções como agente indutor do desenvolvimento e da acumulação capitalista. 4.2.2. Análises críticas sobre a contrarreforma A coloração verde e amarela que a implantação do neoliberalismo adquiriu por aqui também foi alvo de inúmeras análises, inclusive pela categoria dos assistentes sociais. As abordagens de fulcro marxiano e marxista não se furtaram a conferir centralidade a categoria da totalidade e com isso evidenciar as nuanças ideológicas, políticas, culturais, dentre outras, que as temáticas postas em exame convocam no seu intento único de manter de modo “modernizado” os processos fundantes da acumulação e do desenvolvimento capitalista. Assim, as produções nos mostram que a guinada histórica de consolidação do regime democrático burguês brasileiro, após o período de autocracia, se fez acompanhar da implantação do desmonte neoliberal que sob o comando de um grupo de “intelectuais” liberais travestidos de sociais-democratas impôs ao país um conjunto de medidas regressivas que redundaram tanto na “desestruturação do Estado quanto na perda de direitos” para o conjunto da classe trabalhadora, utilizando os termos de Behring (2003) 668. A mesma autora, de modo racional e competente, nos informa que este grupo se apropriara indevidamente do termo e categoria “reforma” para designar o seu conjunto de ações de remodelamento regressivo do Estado, e, justamente, por ser regressivo é inadequado, considerando que as “reformas” implicam ajustes civilizatórios na estrutura socioestatal e não o contrário. Refere: 668 BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrarreforma desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. 358 Na verdade, a auto-referência dos apologistas, os quais insistem em apontar o projeto da era FHC como reforma, é uma espúria e ideológica ressemantificação. Cabe lembrar que este é um termo que ganha sentido no debate do movimento operário socialista, melhor dizendo, de suas estratégias revolucionárias, sempre tendo em perspectiva a equidade. Portanto, o reformismo, ainda que se possa e deva critica-lo, como o fez Rosa Luxemburgo, dentre outros, é um patrimônio da esquerda (NOGUEIRA, 1998 apud BEHRING, 2003, p.22-23)669. E tal afirmação a autora não a faz sem a consideração dos devidos determinantes históricos que a consubstanciam. Isto é, refere que os “contrarreformismos” dos Estados, como estratégia essencial do ajuste neoliberal ditado pelos organismos internacionais como o FMI, etc., encontram inteligibilidade nas transformações ocorridas no mundo capitalista após a crise da década de 1970; tem toda a “década perdida”670 de 1980 para se acomodar e, no Brasil, de modo tardio, toma folego e cria raízes nos anos 1990 a partir do Plano Real e dos governos de F.H.C. Mas este caminho analítico informa as determinações gerais do fenômeno que precisa também ser entendido a partir do modo peculiar de constituição do capitalismo brasileiro e isto é buscado pela autora em nossos clássicos do pensamento social, com destaque para três autores em especial: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior (p. 85)671. No diálogo competente com esses e outros clássicos, nos vai ficando evidente como as transformações, que foram gradualmente levando o país ao rumo do seu desenvolvimento capitalista, se deram sempre a partir de “decisões pelo alto”, isto é, em conformidade aos interesses do bloco no poder que no limite admitem pequenos arranjos em seu interior sem que isso signifique perda de hegemonia. Neste sentido, a autora vê uma aproximação, ainda que não linear nas narrativas que explicam as formas não clássicas para o desenvolvimento capitalista como a “revolução passiva”, de inspiração gramsciana; a modernização conservadora de Florestan Fernandes e a via prussiana de inspiração leninista. O arranjo burguês/dominante que nos levou à contrarreforma abdica das formas de desenvolvimento modernizante que se fizeram presentes nos ciclos desenvolvimentistas da quadra de 1930 a partir de Getúlio Vargas, 1950-1960 em J.K. ou a partir de 1964 com a ditadura civil-militar. 669 Id. Termo utilizado pela Cepal. 671 As referências utilizadas pela autora para o estudo e resgate do pensamento social brasileiro não se resumem a estes três autores, ao contrário, recorre ainda as formulações de um Florestan Fernandes, de um Octávio Ianni ou mesmo de seu mestre mais próximo Carlos Nelson Coutinho, passando ainda por Roberto Schwarz, Marco Aurélio Nogueira e Marilena Chauí, contudo, identifica em torno dos três autores citados “uma espécie de consenso mínimo como sendo verdadeiras matrizes, cuja contribuição gerou polemicas e discípulos e orientou políticas e ações das classes sociais” (p. 85). 670 359 4.2.3. Análises críticas sobre o terceiro setor No contexto da fase contrarreformista do neoliberalismo à brasileira 672 ou de contrarreforma nos dizeres de Behring (2003)673, o reordenamento institucional impulsionado pelo governo no âmbito das estratégias de enfrentamento às refrações da “questão social” se colocou como um imperativo fundante à realização do projeto de “desestruturação do Estado e perda de direitos” (idem). Tal reordenamento, previsto com centralidade nas orientações emanadas por organismos internacionais tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, agências das Nações Unidas como a Cepal, PNUD, UNESCO e OIT, pressupôs tanto o enfrentamento das formas locais e particulares da pobreza quanto alterações substantivas nos níveis de desigualdade registrados, sobretudo nos países da “periferia” capitalista ou nos países em desenvolvimento. Para as primeiras formas recomendaram (e permanecem recomendando) um retorno “sistematicamente renovado” das estratégias de associativismo civil expresso principalmente por “organizações não governamentais” e para as segundas, mecanismos de redistribuição monetária com elevado grau de focalização e seletividade. Combinadas, tais estratégias teriam como finalidade superar os graus de “risco” e de “vulnerabilidade social e pessoal” de indivíduos e famílias e a depender do seu alcance participar das estratégias de promoção de um desenvolvimento socioeconômico pela liberação do contingente de pobres e extremamente pobres da situação de não-consumidores674. Este processo é definido por Yazbek (1995) como fenômeno de refilantropização da “questão social”675 e se caracteriza sobretudo pelo deslocamento das responsabilidades públicas (e de primazia estatal) e coletivas para o mundo privado e das responsabilidades individuais, e, que se associa a mercantilização crescente da prestação de serviços sociais, o que contribui para a formatação de um Estado “máximo para o capital e mínimo para o social”.676 Neste sentido, uma proliferação de análises técnicas e acadêmicas surge, na sua maioria, para conferir legitimidade ao “padrão emergente de intervenção social” que sustentado pelo crivo ideológico da solidariedade reordena e adequa a chamada “área social” para a empreitada contrarreformista. 672 Como apontamos no item 3.3.1. da presente tese. BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrarreforma desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. 674 Esta questão é muito bem tratada em SOARES, Laura Tavares. O desastre social. Rio de Janeiro: Record, 2003. (Coleção Os porquês da desordem mundial: mestres explicam a globalização, organização Emir Sader). 675 YAZBEK, Maria Carmelita. A política social brasileira dos anos 90: a refilantropização da “questão social”. Cadernos Abong, nº 3. São Paulo, ABONG, 1995. 676 Consultar: SADER, Emir. Estado e Hegemonia. In: Sader, Emir et al. O Brasil do Real. Rio de Janeiro: UERJ, 1996. p. 11-21, e OLIVEIRA, Francisco de. O surgimento do Antivalor. Capital, força de trabalho e fundo público. In: Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. p. 19-48; 673 360 O apelo a “participação da sociedade civil” na vida pública por meio de organizações para fins públicos, porém juridicamente não estatais, amalgama uma espécie de consenso entre forças sociais distintas onde a centralidade do “sujeito civil” é subtraída de questionamentos: Resulta consensual a afirmação de que no debate sobre o “terceiro setor” participa uma ampla gama de autores com perspectivas diversas, desde empresários, acadêmicos, membros de organizações populares, políticos, representantes do capital e do trabalho, de concepções conservadoras e regressivas e de perspectivas progressistas, de ideologias neoliberal e “trabalhistas”, de direita e esquerda. Efetivamente, este debate é processado, com significativas diferenças, por distintos setores ideopolíticos, por vezes até antagônicos, que, mesmo em campos políticos diferentes, chegam nesta questão ao mesmo porto. Cada um partindo de análises sociais diferentes, valendo-se de um marco referêncial teórico distinto e procurando objetivos diversos, concordam em aspectos substantivos nas suas considerações sobre o chamado “terceiro setor” (MONTAÑO, 2003, p. 59)677. Deste modo, a presença destas organizações nas diferentes estratégias de enfrentamento às refrações da “questão social” se firma como algo inequívoco, insuperável, reordenando de modo concreto as estratégias neste campo dali para frente. Em outros termos: se a cada fase particular do desenvolvimento capitalista corresponde uma forma específica e também particular de enfrentamento às refrações da “questão social”, o “terceiro setor” se firma como uma estratégia fundamental no Brasil de contrarreforma e de neoliberalismo que só aparecerá com novas roupagens a cada conjuntura e correlação de forças, mas não será mais, a partir de então, extirpada do organismo estatal-civil em seu braço de “ação social”. As ambiguidades em torno do tema e do conceito de “terceiro setor” identificadas por Montaño (2003, p. 55-58) como debilidades teóricas e conceituais tem servido, assim, muito mais para legitimar esse amplo campo de “ações sociais” junto ao Estado e a sociedade civil mesma do que para provocar uma corrida a aproximações definitivas e precisas de suas categorias fundantes678. 677 MONTAÑO, Carlos Eduardo. Terceiro Setor e “questão social” crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2003 (2ª edição). 678 O autor identifica quatro grandes debilidades teóricas/conceituais relativas ao caráter ético-politico e técnico do “terceiro setor”: a primeira é a própria definição de “terceiro” e de “setor”, definição esta que o enquadra como um terceiro campo de formação da sociedade após o Estado (primeiro setor) e o mercado (segundo setor). O autor afirma que a dicotomia histórica público/privado não se elimina na definição deste “terceiro campo” na medida em que suas características fundantes estão diretamente imbricadas ao primeiro (sobretudo quando se pensa nos recursos do fundo público que lhes são destinados) e ao segundo quando toda sua lógica e mobilização se remetem aos princípios mais fundamentais e estruturantes do mercado. Esta distinção seria, portanto, uma distinção tipicamente liberal. A segunda debilidade diz respeito a definição dos tipos e natureza de entidades que comporiam este chamado “terceiro setor”. O autor demonstra que não há um consenso sobre isto, considerando que a definição ambígua de “entidades privadas, não governamentais, sem fins lucrativos, autogovernadas, de associação voluntária” expressa no IV Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor pode abarcar desde fundações empresariais até movimentos sociais de caráter anti-sistêmico, o que de fato, impossibilita um consenso aglutinador para 361 As teses e problematizações que emergiram no âmbito do Serviço Social brasileiro sobre o “terceiro setor”, mesmo antes da reflexão densa e rigorosamente sistematizada de Montaño (idem)679 já apontavam a essência de seus problemas críticos. Contudo, o raciocínio e os argumentos do autor nos levam a considerar que, ocasionando inflexões diretas no Serviço Social, tanto pela reconfiguração que causa no mercado profissional de trabalho, quanto pela retração que implica no âmbito do acúmulo teórico-crítico e do projeto profissional que coloca em xeque as causas estruturais da pobreza e desigualdade o “terceiro setor” se constitui muito mais como uma “função social” destinada a “findar o pacto keynesiano e os fundamentos do Welfare State” (ibidem) do que se estruturar para superar “pobrezas” e “desigualdades”680. Mas não é só isto. Para o autor, o terceiro setor consolida uma nova modalidade de trato a “questão social” que implica no reordenamento das políticas sociais potencializando a já presente tendência de focalização, privatização e descentralização. Neste sentido, chama a atenção para a necessidade da retomada cuidadosa do termo “sociedade civil” na acepção marxiana de modo a diferenciá-la do uso corrente empregado pelos ideólogos do terceiro setor que lhe subtraem a dinâmica conflitiva da luta de classes e por consequência suas possibilidades “emancipatórias” de um projeto alternativo ao projeto do capital. O debate e a crítica empreendidos por Montaño atravessaram todo o período da contrarreforma, em especial a metade dos anos 1990 até o início dos anos 2000, sendo complementados e amadurecidos por outros autores, além do próprio. Este processo de análise e acompanhamento teórico-crítico de um fenômeno parcial de uma realidade eivada de determinações permitiu que o Serviço Social decifrasse os caminhos que a Política Social seguiria a partir de então de modo a participar da “nova fase do ciclo de desenvolvimento capitalista brasileiro” superdimensionando suas feições econômicas a serviço da acumulação. definição precisa deste campo. A terceira debilidade é que o conceito de terceiro setor mais confunde do que esclarece na medida em que suas definições conduzem muito mais para a identificação de formas variadas de ativismo, dispersas e difusas, do que a delimitação de um “setor” específico na formatação da sociedade. A quarta debilidade, enfim, está afeta aos termos “não governamental”, “autogovernada” e “não-lucrativo”. Nenhuma destas características é plenamente realizável quando se verifica a existência destas organizações vinculada diretamente ao “governo” quando este financia boa parte de suas ações e com isso influencia e interfere em seu “governo” (portanto não se pode falar em não governamental e nem em auto governável) e ainda o conceito de não lucrativo cai por terra na medida em que várias destas organizações, em especial as de filantropia empresarial, ampliam as margens de lucro das empresas que as mantem tanto pela via da renuncia fiscal a que tem direito quanto pela melhoria na imagem de sua empresa que redunda num aumento das vendas de seus produtos. 679 Algumas críticas ao advento do terceiro setor como epifenômeno da contrarreforma do Estado já se fizeram notar no âmbito do Serviço Social antes da difusão da tese de Carlos Montaño, contudo, é a partir dela que o tema adquire maior densidade teórica, política e conceitual em nosso meio, passando a figurar como uma importante referência neste debate. 680 Ou interferir na melhoria dos padrões de relações sociais na medida em que o conceito abarca organizações defensoras do meio-ambiente, de animais maltratados, de manutenção da paz mundial, etc. 362 4.2.4. Análises críticas sobre assistência e proteção social De todos os elementos que nucleiam a realidade formando e conformando a sociedade em que vivemos e que tem sido “objeto” de estudo para os que buscam compreender esta mesma realidade, as dinâmicas constitutivas da organização da proteção social e nela a “assistência social” são sem dúvida componentes que tem se tornado cada vez mais presentes ao escopo das análises. No âmbito do Serviço Social tal presença não é apenas permanente como central aos raciocínios que se estabelecem no intuito de entender e falar sobre a profissão tanto quanto quando as intenções são de compreender e dissertar sobre a dinâmica social mais ampla681. A produção teórica e técnica de nossa área nunca lateralizou o tema, ainda que em algumas conjunturas históricas tenha negado o “campo assistencial” como campo de intervenções possíveis a um Serviço Social comprometido com as classes subalternas. A assistência foi um tema “maldito” no movimento de reconceituação do Serviço Social latino-americano em sua busca de ruptura com as ações de cunho paternalista e assistencialista que proliferaram no passado e denegriam a imagem social e acadêmica da profissão. Preconizavam-se, à época, em nome da educação e politização do povo, princípios e saídas políticas globais, frequentemente relegando a um segundo plano a atenção às reivindicações imediatas da “população” e refutando as tarefas assistenciais, identificadas unilateralmente com ações a serviço dos interesses dominantes (...) sem nenhuma validade em si mesma (...) Essa era uma contraposição à versão ingênua do passado em que as ações assistenciais eram lidas — também unilateralmente, mas com sinal trocado — como um benefício ou um bem para os segmentos subalternos (...) (IAMAMOTO, 2007, p. 302)682 Estas concepções unilaterais não estão superadas por completo no seio profissional, sendo signatárias de um movimento de continuidades e rupturas na esfera da análise, sendo que o mesmo ocorre no mundo material onde se baseia a assistência, pois seus traços inaugurais — que vão do clientelismo à subalternização dos sujeitos — permanecem em constante tensão com componentes configurativos renovados que buscam barrá-los na contemporaneidade, dando origem ao mesmo movimento de continuidades e rupturas que reveste as análises que antes citamos. Isto evidencia que se constitui em erro crasso ou mesmo uma irresponsabilidade 681 Quando o foco é a profissão, a assistência comparece como um componente presente no processo de sua gênese e desenvolvimento, quando o foco é a sociedade em geral, ela também se faz presente, pois não se ignora as mediações dadas ao processo reprodutivo da vida social que tem nas formas genéricas de proteção social a assistência como um de seus componentes. Basta observar que grande parte das referencias que eram feitas pelo Serviço Social à assistência social estão ocupando as “tintas” de intelectuais, analistas políticos, técnicos, etc. de várias outras áreas do conhecimento e da prática social ampla. 682 IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007. 363 teórica e política submeter uma política social como a assistência à análise apenas a partir de seus determinantes gerais e suas manifestações prático-concretas evidentes, a não ser que se pretenda uma análise meramente fenomênica. Deste modo, como parte das mediações que se estabelecem na relação entre o Estado e as classes, a assistência é eivada de contradições, assim como os inesgotáveis elementos que constituem a realidade social em sociedades classistas. Toda politica social nos Estados capitalistas apresentam limites estruturais quanto a sua capacidade de fornecer melhores condições de reprodução social às classes subalternas. Com a assistência social não é diferente 683 . As disputas que fazem destas políticas — e nelas, a assistência, insistimos — campos permanentemente tensionados nas democracias liberais, ainda que reflitam interesses classistas não possuem a propriedade em si mesma de superar tais limites. Em última análise, os interesses que a classe subalterna consegue imprimir no escopo das políticas sociais quando a tensiona pode elevar os patamares civilizatórios de sua