1 O Modelo Jurídico-Antropológico de Cidadania no Brasil: O Paradoxo * Ricardo Henrique Arruda de Paula Uma das questões que hoje mais se fala, principalmente com o advento da atual Constituição brasileira, é sobre cidadania. Sem dúvida ela virou moda nos diversos discursos e tornou-se “lugar comum”, como nos diz com lucidez Maria Cristina dos Santos Cruanhes, (2000:16): Já há algum tempo o uso da palavra cidadania passou a ser fonte de modismos, “lugar comum”, sem que se atente, na maioria das vezes, para seu contexto político, jurídico e social. Hoje, o conceito de cidadania é assunto de debates não só nas escolas, mas nas empresas, nos clubes, nos templos, nos partidos políticos, enfim, em todos os espaços e segmentos da sociedade, e expressa-se nos processos reivindicatórios que vão desde a luta por saneamento básico, saúde, educação, até o fim da discriminação sexual, racial, econômica e social. No entanto, devemos estar atentos para o que significa cidadania para os diversos segmentos da sociedade, compreendidos em sua diversidade e desigualdade estrutural. Contudo, há nesse tipo de discurso exemplificado pela autora, além de uma profunda confusão epistemológica, uma super-valorização e sub-utilização do termo em todos os momentos da vida, como se a cidadania significasse, ao mesmo tempo, tudo e esclarecesse objetivamente nada. Essa não aclaração do termo fundou, principalmente no modelo jurídico brasileiro, um fetichismo sobre o mesmo que contribuiu para que, até no meio acadêmico, houvesse uma “sacralização”, ou uma autêntica “pan-cidadania” de compreensão inconclusa e que adere a todos os questionamentos, em todas as áreas, como se o termo e sua acepção original fossem esquecidos em prol de uma “cidadania simbólica” 1, construída para viver acima do real e até a se 1 Ver sobre Marcelo Neves: 1998, Symbolische Konstitutionalisierung, Duncker & Humblot, Berlin; Marcelo Neves, 1994, Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente, in Dados, Revista de Ciências Sociais, vol. 37, Rio de Janeiro. 2 contradizer e indispor com ele, criando uma falsa noção em relação aos fatos do mundo da vida. O que ocorre é que esse discurso que diz tudo é vago, incerto e deixa uma colaboração lacunosa para o entendimento do termo. Essa lacuna deve-se, em parte, à grande expectativa que gerou-se em torno deste termo, principalmente com a chamada “Constituição Cidadã”, que serviu de álibi jurídico para os “donos do poder” 2, afim de ser ela a amenizadora dos anseios do povo, a que introduziu no imaginário coletivo a idéia de que somos um país justo, com leis que abrigam a todos, que somos todos iguais perante estas leis e, além do mais, que vivemos em uma sociedade igualitária 3. A titularidade que a atual Carta Magna de 1988 nos deu, de cidadãos, é a própria restrição do termo ao campo de atuação dos direitos políticos. 4 A Constituição, inúmeras vezes, apenas exprime uma das faces do modelo de cidadania brasileiro, mas, não corresponde aos fatores reais do Estado democrático de direito 5. Portanto, a força simbólica da Constituição, supriu os desejos do imaginário coletivo, mas deixou incógnito o problema ontológico da cidadania. No momento atual fala-se também que a cidadania enfrenta uma grande crise que faz com que a cidadania brasileira seja um modelo paradoxal. Isso é (re)discutível e analisável. Tal crise que encara à atual nova “ordem” sóciojurídica deve-se, em termos, à tumultuada indistinção conceitual e a atecnia com que não se identifica o verdadeiro problema, e aonde se instalou a “crise” ou que ótica científica foi utilizada para detectar esta crise. Contudo, no campo do positivismo jurídico (visão dogmática)6, na acepção restrita do termo, não há crise alguma detectada. Pelo contrário, a 2 Ver Raymundo Faoro, 1998, Os Donos do Poder, Globo, São Paulo, 13ª edição. Ver Roberto DaMatta:1997, Cidadania, A questão da cidadania num universo relacional, in A Casa & a Rua, Rocco, Rio de Janeiro. 4 Ver Marcelo Neves, Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente, 1994, in Revista de Ciências Sociais, vol. 37, Rio de Janeiro; Ver, também, Karl Marx, 1997, Zur Judenfrage, Dietz Verlag Berlin e Jürgen Habermas, 1992, Staatsbürgerschaft und nationale Identität, in Faktizität und Geltung, Suhrkamp, Frankfurt am Main. 5 Ver Ferdinand Lassalle, 1998, A Essência da Constituição, Lumen Júris, 4ª edição, Rio de Janeiro. 6 Ver Theodor Viehweg, 1997. 3 3 cidadania, para a dogmática jurídica, na sua acepção ativa, é o direito (obrigação) de votar e ser votado, é a participação do povo, quer direta, quer indireta, no governo da cidade. E, na acepção passiva, são cidadãos os que assim são denominados através tanto do jus-soli, quanto pelo jus-sanguinis. E aí se extingue a finalidade da cidadania7. Tudo posto, o esmoleiro, v.g., que encontra-se maltrapilho na porta da igreja, que não tem moradia, que o filho não tem escola para estudar, nem muito menos direito material à saúde, e que, por fim, come quando alguém lhe dá, ele é um cidadão completo para o direito dogmático, desde que desfrute dos estágios acima que traduzem o sentido do termo. Rechaçar isso utilizando-se dos argumentos contidos no próprio campo do direito dogmático e sem cair em uma visão romântica, é muito difícil. O Estado, por sua vez8, através desse direito positivo (dogmático), assume o papel social de padronizador das condutas individuais, ou identidades sociais, equiparando todos os cidadãos, principalmente através do voto e do discurso da participação popular 9 e cria a simbolização do Estado democrático de direito baseado na igualdade legal e social10. É uma eqüidade formal a que o Estado dispõe, claro, mas estamos também na seara do direito formal, dogmático e não poderíamos esperar outro procedimento. Isto é, as atitudes dos cidadãos são reconhecidas pelo sistema 11 estatal que, também, por sua vez, as delimita de acordo com regras impostas a todos os concidadãos por esse Estado. 7 Ver De Plácido e Silva, 1989:427; Creifelds Rechtswörterbuch, 1999:1199 (Staatsbürgerlich Rechte und Pflichten, Staatsbürgerschaft); Dicionário Técnico Jurídico, s/d e Polis Enciclopédia, 1983:824ss. 8 E aqui chamamos a atenção principalmente para o Estado capitalista com seus diagnósticos e prognósticos de condutas visando ao bem estar das relações econômicas. Ver Daniel Bell, 1973:448, Meritocracia e Igualdade, in O Advento da Sociedade Pós-Industrial, Cultrix, São Paulo, e Michel Crozier, 1963, O Fenômeno Burocrático, UNB. 9 A padronização das condutas sociais são alvo de constantes interferências do Estado em busca de uma comunicação consensual entre os cidadãos. Até porquê o mínimo de padronização possível é um elemento básico para a manutenção do Estado. Cláudio Souto, 1997:25, Sociologia do Direito, Fabris, nos diz: “Viver em grupo significa submeter-se à maneira de viver em grupo. E continua: “...o preço cobrado ao indivíduo socializado é bastante alto. A tendência do grupo é de exigir dos seus membros uma conduta o mais padronizada possível.” 10 Ver John Rawls, 2000:47, O Liberalismo Político, Editora Ática, São Paulo, 2ª edição. 11 Ver Gunther Teubner, 1989, Recht als autopoietisches System, Suhrkamp, Frankfurt am Main. 4 Contudo, sublinhamos, o termo e seu significado não representam um problema para o terreno jurídico positivo, pois há, no setor jurídico, uma visão analítico-pragmática, que não confunde cidadania com desníveis sociais ou conflito de classes 12. Saindo da análise puramente pragmática para ingressarmos na antropológica13 em busca da crise ou do paradoxo presente no modelo de cidadania brasileiro, podemos tentar entender este modelo dentro de nossa compreensão e vivência de mundo, pois o “caso brasileiro” nos impede de termos uma visão meramente jurídico-formal do fenômeno, e nos obriga a estudarmos a formação e o sentido deste modelo de cidadania entre nós, como nos explicita Roberto DaMatta, em Carnavais malandros e heróis, 1979:184ss.: Mas o que o caso brasileiro inegavelmente revela é que a noção de cidadania sofre uma espécie de desvio, seja para baixo, seja para cima, que a impede de assumir integralmente seu significado político universalista e nivelador. A análise antropológica acolhe o significado jurídico, mas não se satisfaz tão somente com ele, pois ele carece de plenitude na compreensão do modelo brasileiro. Portanto, esta análise expandi o exame jurídico ao alcance dos problemas de ordem social, político, religioso e econômico. Com isso, ela esculpi uma nova simbolização da cidadania ao olhar e transpor o entendimento jurídicopragmático. Ou melhor, ela continua de onde a análise dogmática para, a complementa e supri. Esse outro significado (ou visão), por não desautorizar o significado (visão) positivista do direito, ele vê, coopta e analisa o entorno do termo, a sua potencialidade, seu alcance e, o que é-nos mais interessante, o retorno da ação 12 A diferença é feita de forma clara por Marx, em Zur Judenfrage, em que faz a diferença entre droits de l’homme e droits du citoyen, ou Staatsbürger. Ver também Jürgen Habermas, 1992, Staatsbürgerschaft und nationale Identität, in Faktizität und Geltung. 13 Ver Dicionário da vida política e social, 1999:18ss, Plátno; Dictionnaire de Philosophie Politique, s/d :80ss, Puf, France; Dicionário de Política, Norberto Bobbio, 1998:92s, UNB; Dicionário de Sociologia, 1997:34s, Jorge Zahar Editor e Oxford concise dictionary of Sociology, 1996:33 e 54, New York. 5 (ou reação - seu feedback) a quem a originou, ou seja, aos próprios (con) cidadãos. Aqui, com certeza, se averigua a contra-prestação mínima que o Estado deve dar a quem, quer direta, quer indiretamente, o legitima e o mantém, bem como o zelo, desvelo ou indiferença das ações dos indivíduos para com o Estado e seu conseqüente ajustamento às normas de condutas sociais. Nesse momento e através do paradigma antropológico, percebemos a crise do atual modelo e podemos verificar como se efetiva a cidadania na sociedade brasileira. Por outro lado, também nos capacitamos a reconhecer que a restrição da cidadania, basicamente, aos direitos políticos, restrição esta comemorada por alguns como vitoriosa do atual modelo, não é satisfatória, nem ao menos justa e que, ao final, trata-se apenas de uma simbologia, no sentido de um simulacro, que tem como finalidade apenas dar a sensação de que vivemos em uma sociedade justa em que todos os indivíduos têm direitos iguais e são respeitados enquanto cidadãos. O que se percebe é que a figura do cidadão na sociedade brasileira recebe novos sentidos, contrastes e, por isso mesmo, perde parte de sua essência universal14, quer seja ela jurídica, quer a antropológica. Pois o Brasil é, infelizmente, um país de contrastes e de exclusões. 15 No Brasil a cidadania encontra-se regida pelas relações econômicas ou relacionais. O cidadão é aquele que obedece às leis impessoais (universais) e, também, às arbitrariedades que o diferencia daquele ideário político liberal gestor da cidadania16. O modelo de cidadania aqui, diferentemente de sociedades igualitárias como a norte americana, é baseada nas relações pessoais, familiares e de grupos. Ser cidadão no Brasil é diferente de ser sê-lo na sociedade norte americana. Lá o indivíduo (cidadão) é socializado por leis universais e códigos de conduta hegemônicos, independente de ser o presidente da República ou o mais 14 Ver Roberto DaMatta, 1997, opus cit. Ver Darcy Ribeiro, 1995, O povo brasileiro, Companhia das Letras, São Paulo, 2ª edição e Cristovam Buarque, 1993, A desordem do progresso, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 4ª edição. 15 6 humilde cidadão. Aqui o indivíduo sem recurso financeiro, o pobre, é socializado sabendo que tem que seguir a aquelas leis universais mas, também, às leis do preconceito, do descaso e da inflexibilidade da justiça. Estes são os “subcidadãos” 17, que não dispõe das conquistas modernas liberais-universalista e que, em uma sociedade hiper-relacional aos moldes da brasileira, onde vários e esdrúxulos códigos de comportamento operam simultâneo e paralelamente (familiar, parentesco, amizade, religioso enfim, laços pessoais que se tornam mais imperativos que as normas de conduta impessoais) às regras jurídicas, convivem com os abusos aos seus direitos básicos, tanto de cidadania, quanto aos direitos humanos 18. Outro tipo de cidadão existente no modelo brasileiro é aquele que encontra-se além das normas universais, são eles os “supercidadãos”19. Para eles não existe a lei, sim o “jeitinho”. Aqueles estão aquém das conquistas revolucionárias, estes estão além. Com estes dois paradoxais modelos de cidadania, tanto o “subcidadão”, quanto o “supercidadão”, encontramos a crise no modelo de cidadania brasileiro. Para aqueles há a descrença no Estado, na justiça e na própria condição cidadã, para estes há o tratamento do Estado como se fosse a sua associação esportiva, onde o espaço social passa a ser espaço privado. Este paradoxo põe em risco o próprio Estado democrático de direito, a partir do momento em que cria um simulacro que dá a impressão de uma “nova sociedade”, com outros costumes, outras regras de conduta e paralela à sociedade juridicamente constituída. Nesse simulacro, há uma rígida hierarquia, onde o aspecto da inclusão e da exclusão social cria um lugar interrelacional, em que o “subcidadão” serve e vive para os “supercidadãos” que se regateiam e convivem. Essa bifurcada cidadania aos moldes tupiniquim, traz consigo o desequilíbrio entre o público e o privado, a partir do momento em que a 16 Cf. Roberto DaMatta, 1997:72, opus cit. Cf. Roberto DaMatta, 1997:93, opus cit. 18 Ver sobre direitos humanos O paradoxo dos direitos humanos e três formas de seu desdobramento, tradução feita do texto de Niklas Luhmann, por Ricardo Henrique Arruda de Paula, in Themis, 2000, vol. 3, nº 1, p. 153, Fortaleza/Ceará. 17 7 externalidade de minhas vontades se sobrepõe às normas universais que me são exteriores. Assim os ícones do totalitarismo se tornam mais forte que os do liberalismo, as leis passam a existirem para não serem cumpridas por todos e os álibis ideológicos de que vivemos em uma democracia, que a Constituição abriganos, que somos cidadãos plenos, tornam-nos cidadãos simbólicos, em que de um lado não alcançamos as conquistas políticas da era moderna, e de outro não seguimos e nem obedecemos à Constituição. Nesse sentido o modelo de cidadania brasileiro é inconcluso: ou teremos ainda a cidadania efetiva, no sentido jurídico-antropológico, ou não teremos e viveremos uma “democracia restrita”. Portanto, esse modelo deturpa o modelo tradicional, dando preferência à infra-estrutura relacional, em detrimento da super-estrutura jurídica. Temos uma cidadania paradoxal, um modelo em que o indivíduo só adquire condições de possibilidade reais se estiver no campo das relações e que, ao contrário do modelo conceptivo original, ou estamos além ou aquém do que tanto proclamamos. * Ricardo Henrique Arruda de Paula Consultor Jurídico da Câmara Municipal de Fortaleza Mestrando em Direito pela UFC Mestrando em Filosofia pela UECE [email protected] 19 Cf. Roberto DaMatta, 1997:93, opus cit.