Schopenhauer e Bergson

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SCHOPENHAUER E BERGSON
Catarina Rochamonte1
Tanto Schopenhauer quanto Bergson concebem a intuição como um tipo especial
de “conhecimento” do qual são capazes algumas individualidades privilegiadas: o artista,
de uma maneira limitada e efêmera e os santos ou místicos, de um modo mais completo e
duradouro. A intuição seria um contato com a realidade, anterior ao pensamento; uma
experiência que não é mera sensação, nem pura reflexão, mas algo que precisaria ser pensado
a partir da concepção bergsoniana da emoção ou da concepção schopenhaueriana de
sentimento. Não a mera agitação sensível que sucede uma representação, mas a vontade que a
antecede, como o sentimento que impulsiona a criação do artista ou a compaixão que impele à
caridade os grandes homens de bem. Um outro ponto de aproximação entre as filosofias de
Schopenhauer e Bergson é uma certa naturalização da vida moral ou religiosa. A santidade
estaria de alguma forma prefigurada na nossa natureza psicológica. Como resultado da
intensificação de um conhecimento interno distinto do conhecimento pragmático próprio
da inteligência, ou seja, como resultado de uma intensificação da intuição, teríamos a
compaixão e a caridade, cuja explicação metafísica remeteria ou ao processo de
mortificação da vontade, no caso da filosofia de Schopenhauer ou ao contato com a fonte
do Elã vital, no caso da filosofia de Bergson. Ambos os filósofos tomam por ponto de
partida a eliminação da mediação do conhecimento, tendo que lidar com as dificuldades de
uma analogia ou extensão desse conhecimento imediato para as outras coisas ou seres e
com a possibilidade ou impossibilidade de expressão conceitual desse saber que parece ser
de ordem prática e não teórica.
Palavras-chave: VONTADE – ELÃ VITAL – INTUIÇÃO
Schopenhauer e Bergson pertencem a uma mesma tendência filosófica por se
recusarem ambos a tomar a inteligência como algo absoluto, fazendo dela, antes, um
instrumento a serviço da vida. Embora possamos aproximar a noção de Elán Vital
1
Doutoranda em Filosofia pela UFSCar. E-mail: <[email protected]>.
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daquilo que para Schopenhauer seria Vontade de vida devemos ter em mente que a
vontade é concebida de modo distinto por cada um dos filósofos. Enquanto
Schopenhauer insiste na distinção entre Vontade e consciência, Bergson se recusa a
pensar uma vontade completamente nua, uma vontade irracional. A divergência dá-se,
pois, na concepção schopenhaueriana de Vontade como ímpeto cego, pois Bergson põe
nela a consciência, ainda que difusa e indistinta em suas manifestações inferiores.
Embora consciência e cérebro apresentem-se ligados no homem, sua hipótese é a de que
o cérebro é dispensável para a consciência. O cérebro seria um órgão especializado,
capaz de responder mais perfeitamente à função de escolha, própria da consciência.
Enquanto a medula contém um certo número de respostas prontas a estímulos possíveis,
o cérebro aciona um mecanismo motor escolhido e não simplesmente imposto.
Adotando uma perspectiva descendente na observação do reino animal veríamos
confundirem-se cada vez mais as funções medular e cerebral, isto é, fundirem-se cada
vez mais automatismo e escolha. Entretanto, a mera possibilidade de resposta, através
de movimentos, a uma determinada excitação é por Bergson compreendida como um
rudimento de consciência.
Schopenhauer, por sua vez, declara ter sido o primeiro filósofo a separar o
conhecimento da Vontade. A Vontade não seria inseparável do conhecimento e mero
resultado deste, mas algo fundamentalmente diferente e independente. A Vontade
poderia, pois, existir sem a consciência, sendo precisamente isso o que aconteceria em
toda a natureza, onde ela atuaria como Força. Essa Força, diz ele, é a mesma seja nas
ações arbitrárias dos animais, nos instintos orgânicos de seu corpo, na forma e
constituição desse próprio corpo, na vegetação das plantas e no reino inorgânico (a força
originária que se manifesta em fenômenos físico-químicos e a própria gravidade). Tudo
isso seria, em si mesmo, aquilo que em nós chamamos vontade. A diferença é que, em
nós, essa vontade seria aclarada pelo conhecimento. O argumento de Schopenhauer,
portanto, é que da ausência de conhecimento não se deve concluir a ausência de
vontade. A Força pela qual algo existe e atua é sempre a mesma, embora a sua
exteriorização possa ser provocada por causas propriamente ditas (reino inorgânico),
excitações (reino vegetal e movimentos involuntários do organismo animal) ou motivo
(reino animal). A força que conserva a vida e que nos mantém em atividade seria a
mesma tanto no vegetal, quanto no animal, com a diferença de que neste surge o cérebro
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como “um sensório exterior para a compreensão do mundo externo e a reação da
vontade sobre ele.2”
O ponto nevrálgico da filosofia de Schopenhauer é a negação da vontade livre, ou
melhor, da liberdade de ação, do livre arbítrio. Não fornecendo uma distinção
qualitativa entre o apetite natural e a vontade ou entre o mero automatismo e o ato livre,
Schopenhauer identifica o princípio de todas as nossas ações ao princípio ou potência
que mantém da vida. A motivação humana seria, então, uma forma de causalidade
divergente somente em grau do restante da natureza. A ação do homem seria necessária
porque teria por sua causa um motivo. Aceitar o Liberum arbitrium indiferentiae seria,
segundo Schopenhauer, o mesmo que aceitar a possibilidade de efeitos sem causas. Agir
segundo a própria vontade seria justamente, para Schopenhauer, agir segundo uma
determinação já que, como vimos, a vontade nada mais é que a mesma força que atua
desde o mundo inorgânico de maneira cega. Esse determinismo radical relaciona-se com
a perspectiva moral ascética que Schopenhauer pretende legitimar, na qual a única
liberdade da Vontade no fenômeno é a sua auto-aniquilação.
Schopenhauer considera como “verdade filosófica ” a referência do juízo à
identidade entre corpo e vontade da qual estamos conscientes de maneira imediata.
Trata-se de elevar a uma saber racional a experiência que cada indivíduo tem de seu
próprio corpo, ou, poderíamos dizer, de interpretar os dados imediatamente fornecidos à
consciência em cada ato de manifestação da vontade. Se o ponto de partida da
metafísica é a intuição, sua exposição teórica faz do filósofo desde o início um
intérprete. A expressão da suposta “verdade filosófica” equivale à construção de um
“pensamento único” capaz de articular todo um edifício teórico comumente chamado de
metafísica da Vontade, do qual não está excluído uma visão de mundo particular.
Para Schopenhauer, a nossa consciência está em parte voltada para as coisas,
atuando como faculdade de conhecimento, em parte voltada para dentro, atuando como
autoconsciência. Enquanto faculdade de conhecimento ela atua por intermédio do
princípio de razão, conhecendo não as coisas em si mesmas, mas os objetos postos em
uma relação com o indivíduo. Enquanto autoconsciência, seu conhecimento é imediato,
intuitivo, não reflexivo. A ciência estaria, de uma forma geral, subordinada ao princípio
de razão e mesmo cada forma específica do princípio de razão atuaria como fio
2
Schopenhauer, Sobre la voluntad en la naturaleza, p.67
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condutor de determinadas ciências particulares. A metafísica, na medida em que não
almeja um conhecimento relativo, precisaria partir dessa intuição dada na
autoconsciência, dessa coincidência misteriosa entre sujeito cognoscente e sujeito
volitivo e, a partir dai, decifrar o significado daquilo que ordinariamente só nos é dado
conhecer por intermédio do princípio de razão sob a forma da causalidade. Mas essa
fonte interna de conhecimento, mesmo sendo o ponto de partida mais seguro, precisaria
ainda ser articulada à fonte de conhecimento externa a fim de caracterizar a reflexão
propriamente filosófica. Essa articulação consiste em tentar compreender por meio de
analogia com aquilo que se nos dá na autoconsciência e se manifesta através do corpo,
os fenômenos ao quais só indiretamente temos acesso, o que caracterizaria, segundo o
professor Ruy de Carvalho uma espécie de intercâmbio entre o horizonte inteligível da
explicação e o horizonte compreensível da significação3. O filósofo interpreta a natureza
porque é capaz de se interpretar a si mesmo e conhecer a Ideia que ele mesmo é sob a
forma de seu próprio caráter a se manifestar no tempo através do corpo.
Schopenhauer não concebe a matéria como algo inerte, passivo, mas a
compreende como dotada de um princípio de movimento, de uma atividade, embora
cega, inconsciente. Significa isso que ele, assim como Bergson, aceita, de certa forma, o
vitalismo, com a diferença de que dá nome àquilo que antes dele se chamava vitalidade,
força vital, impulso formador: “nomes que dizem tanto quanto X4” A esse X,
Schopenhauer denomina Vontade. Mas o que legitima essa denominação? Segundo a
sua doutrina, eu posso conhecer internamente aquilo que se dá externamente com o meu
corpo na efetuação da minha vontade. Logo, eu sei o que é vontade. Como o meu corpo
– que supostamente foi a condição do conhecimento da minha vontade – também é
objeto entre objetos, então eu devo pressupor, por analogia, que no restante do mundo é
também vontade aquilo que seria conhecido como o conteúdo da representação se a isso
3
Em recente tese de doutorado, intitulada Schopenhauer, uma filosofia do limite, Ruy de Carvalho
Rodrigues Júnior defende que haveria mais ganhos em se compreender a noção schopenhaueriana de
Vontade como uma hermenêutica da representação do que enfatizar a dimensão ontológica do referido
princípio. Um dos fundamentos dessa defesa está naquilo que chamou tese da inteligibilidade reversa na
metafísica da natureza e no processo de objetivação da vontade do mundo, isto é, no fato de que “se pela
física (representação) podemos explicar o mundo, por ela não podemos compreendê-lo; por sua vez, se pela
metafísica compreendemos o que ele é - objetivação de uma Vontade em eterna discórdia consigo mesma-, por
outro lado, por ela não podemos explicá-lo, mas tão somente usá-la na tentativa de comunicação (Übertragen)
entre o que compreendemos internamente e conhecemos exteriormente.” (RODRIGUES, R.C. Schopenhauer: uma
filosofia do limite. 2011.305f. Tese doutorado em filosofia. PUC-SP, p.241)
4
Schopenhauer, Sobre la voluntad en la naturaleza. p.69
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fosse possível conhecer. Note-se que essa maneira de argumentar só é possível quando
penso na vontade como aquilo que Schopenhauer identifica a um ato do corpo. Mas
aquilo que conheço internamente quando conheço a mim pode mesmo se restringir à
vontade que se manifesta por um ato do corpo? Ou o conhecimento imediato que se dá
na minha autoconsciência me revela da maneira mais complexa as minhas volições, não
apenas aquelas que se exteriorizam em atos, mas, principalmente, as que permanecem
sem exteriorização possível? A riqueza dos meus estados psicológicos pode mesmo ser
refletida nas minhas manifestações corpóreas ou o chegar a uma manifestação no
mundo já oferece uma inevitável limitação? Se aquilo a que eu tenho acesso através de
uma percepção interna e imediata for de fato muito mais amplo do que aquilo que pode
ser traduzido como ação necessária no mundo, então a analogia proposta por
Schopenhauer não se sustenta, ou se sustenta dentro do limite de uma vontade que se
exterioriza através de movimentos.
Lembremos aqui da tese exposta por Bergson em Matéria e memória onde o
cérebro é apresentado como um órgão de atenção à vida, cujos dispositivos permitem ao
espírito responder à ação das coisas com reações motoras, efetuadas ou simplesmente
nascentes, respostas essas que asseguram a inserção do espírito na realidade. Para Bergson,
“há infinitamente mais numa consciência humana do que no cérebro correspondente5”.
Limitando-se a traduzir em movimentos uma pequena parte do que se passa na
consciência, o cérebro seria, para a atividade mental, o mesmo que a batuta do maestro
para a sinfonia6. O estado cerebral indicaria apenas uma reduzida parte do estado
psicológico, justamente porque só é capaz de armazenar o passado na forma de dispositivos
motores, enquanto a memória mesma, na forma de lembranças, seria a própria duração
acumulando-se a si própria; a vida psíquica na sua integridade.
Bergson não cansa de repetir que do fato de haver entre o cérebro e a consciência
uma relação de solidariedade não se segue que ambos se identifiquem. Para Bergson, com
a possibilidade de uma redução mecanicista na abordagem das ciências da natureza, a
totalidade do universo material em toda a sua complexidade vital passou a ser pensado
como uma grande máquina na qual deveriam engrenar-se inclusive os corpos vivos em
geral e o corpo do homem em particular7. A biologia, portanto, mesmo precisando lidar
5
6
7
BERGSON. A alma e o corpo in A energia espiritual. p.41
Idem, p.47
Idem, p . 39
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com algo não redutível à matéria, manteria sua filiação a esse instinto de precisão advindo
do gênio grego e “também gostaria de, por intermédio da fisiologia, reduzir as leis da vida
às da química e da física, ou seja, indiretamente, da mecânica”. Dentro desse contexto, o
problema mal posto e mal resolvido por Descartes da relação entre corpo e alma passa a ser
abordada pelos cientistas com os métodos de observação e experimentação externa de que
tradicionalmente dispõem, limitação que requer uma identificação entre pensamento e
cérebro, já que seu método de pesquisa desenvolveu-se tão somente para a análise daquilo
que é material. As filosofias que não apresentaram nada diferente da hipótese do
paralelismo rigoroso entre corpo e alma estariam ainda vinculadas a uma hipótese
“deduzida muito naturalmente dos princípios gerais de uma metafísica concebida, pelo
menos em grande parte, para dar um corpo às expectativas da física moderna”8.
A insistência de Bergson está em tentar elaborar um método de conhecimento que
leve em consideração o que o espírito tem de propriamente espiritual, o que o leva a
criticar toda a tentativa de abordagem do espiritual baseada em um método que só poderia
ser bem aplicado à matéria9: Ou seja, a boa relação entre ciência e metafísica passa
primeiramente por uma crítica da metafísica inconsciente presente nas ciências. Ao invés
de aplicar à interioridade psíquica, ao movente ou ao vital os métodos de mensuração
desenvolvidos mais propriamente para a análise do sólido, do inerte, Bergson propõe o
desenvolvimento de novas funções do pensamento que o torne apto a voltar-se para o
espírito, a metafísica devendo, então, constituir-se inicialmente não pelo desdobramento
das inclinações naturais da inteligência (o que tem feito tradicionalmente), mas por uma
"visão direta do espírito pelo espírito", função principal da intuição. Assim, a metafísica
voltando-se para o espírito através da intuição e a ciência voltando-se para a matéria
através da inteligência exercerão um controle mútuo e uma mútua influência. Se o real é
duração e essa duração é criação (imprevisibilidade e indeterminação), então a intuição,
que é intuição da duração, tem uma certa prioridade ontológica, mas o caráter originário e
8
Idem, p . 39
9
"De la première à la dernière page, le bergsonisme est une critique de la raison dans son effort pour
penser le spirituel; à mesure que l´intuition de la durée se dilate, la polémique garantit ses droits; dans
chacun de ses livres, Bergson s´applique a dépister les abus des sciences que s´approchent de l´esprit avec
l´outilage et l´idéal des sciences de la matière. Mais sa critique est toujours une mise au point plutôt qu´un
refus; il entend marquer des limites et montrer expérimentament que le fait spirituel est encore au delà de ces
limites. Dans ' Le donnés immediates' la qualité échappe à la psycho-phisique. Dans ' Matière et Mémoire', le
souvenir échappe à la psycho-physiologie. Dans ' L´Evolution Créatrice'. l´evolutionisme échappe à
l´evolutionisme des naturalistes. De même, dans ' Les deux sources', la vie morale echappe à la sociologie et
le mysticisme authentique à la psycho-pathologie." (Gouhier, H. Bergson et le christ des évangiles. p.111) .
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positivo da intuição, assim como o caráter secundário da inteligência não invalidam a
relação de complementaridade entre ambas. O êxito dessa relação, que equivale à relação
entre metafísica e ciência, depende de que cada uma se volte para o seu objeto próprio.
Não há entretanto uma consideração negativa da inteligência em Bergson, apenas
uma consideração pragmática, refletida na reiterada frase "antes de especular é preciso
viver". O papel da inteligência é "fabricar instrumentos e guiar a ação de nosso corpo sobre
os corpos circundantes, de tornar-nos senhores da matéria10", mas, como "a inteligência é
feita para utilizar a matéria, é pela estrutura da matéria, sem dúvida, que se modelou a da
inteligência11" Essa simetria, concordância, correspondência, entre inteligência e matéria
asseguraria então o caráter absoluto da ciência, de modo que a relação, proposta por
Bergson, de complementaridade entre ciência e metafísica, se construiria, no nosso
entender, a partir de uma crítica à tese kantiana da coisa-em-si ou da relatividade do nosso
conhecimento. Assim, tanto Kant quanto Schopenhauer, se enquadrariam na crítica
bergsoniana aos que pretendem "sob o pretexto de que não toca [m] no absoluto, decidir
absolutamente acerca de todas as coisas12". A diferença fundamental em relação à filosofia
de Bergson seria a tese da idealidade do tempo pressuposta na noção de coisa-em-si, pois
para Kant e para Schopenhauer superar a inteligência por meio da intuição seria sair do
tempo, enquanto para Bergson seria encontrá-lo. Intuição seria pensamento da duração,
que é o tempo não espacializado, não figurado, não representado, não fragmentado. O
tempo, para Bergson, não é apenas uma variável a ser isolada para fins de cálculo ou uma
forma a priori da nossa sensibilidade, mas é "retardamento", "elaboração", "veículo de
criação e de escolha", cuja existência prova que há indeterminação nas coisas13. A
inteligência capta a determinação, a intuição capta a indeterminação; a inteligência capta o
regular e o estável, a intuição capta a novidade e o esforço renovador.
A concepção bergsoniana de ciência e metafísica e da relação entre elas é
semelhante ao modo como Schopenhauer concebe as mesmas noções, mas dela difere
na medida em que melhor se delimitam os objetos dos dois saberes, distinguindo-se
mais claramente matéria e espírito, o que torna possível a seguinte crítica de Bergson à
Schopenhauer:
10
11
12
13
E.C. p.36
E.C. p.37
E.C. p.53
P.M. p.107
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[...] a palavra pode ter um sentido definido quando designa uma
coisa; perde-o assim que é aplicada a todas as coisas. Mais uma vez,
sei o que é a vontade caso se entenda por essa palavra minha
faculdade de querer, ou a dos seres que se me assemelham, ou mesmo
o ímpeto vital dos seres organizados, que se supõe então ser análogo
ao meu elã de consciência. Mas, quanto mais se aumentar a extensão
do termo, tanto mais se diminuirá sua extensão. Caso se englobe em
sua extensão a matéria, esvazia-se a sua compreensão dos caracteres
positivos pelos quais a espontaneidade contrasta com o mecanismo e
a liberdade com a necessidade. Quando, por fim, a palavra chega a
designar tudo o que existe, já não significa mais que existência. O que
se ganha então em dizer que o mundo é vontade, ao invés de constatar
muito simplesmente que ele é? 14
Embora haja uma clara convergência entre Schopenhauer e Bergson no que diz
respeito tanto à crítica ao positivismo quanto a crítica à metafísica tradicional, a ausência
de uma distinção nítida entre o biológico, o psíquico e o material impossibilitou, por parte
de Schopenhauer, uma compreensão mais adequada do espiritual; compreensão essa para a
qual tenderam os grandes esforços da filosofia bergsoniana. Tudo se passa como se
Schopenhauer apreendesse o Ser a partir daquilo que, para Bergson, seria apenas o nível de
duração da matéria e da vida nas suas manifestações inferiores, isto é, a partir de uma
concepção de matéria como continuidade indivisível de movimento (atividade) passível de
apreensão por percepção pura e de uma concepção de vida que se determina através do
instinto:
[...]porventura não é evidente que uma Vontade só é vontade sob a
condição de contrastar com aquilo que não quer? Como então o
espírito poderá contrastar com a matéria se a própria matéria é
vontade? Pôr a vontade por toda parte equivale a não deixá-la em
parte alguma, pois é identificar a essência daquilo que sinto em mim duração, jorro, criação contínua - com a essência daquilo que
percebo nas coisas, onde há evidentemente repetição, previsibilidade,
necessidade. Pouco me importa que se diga ' tudo é mecanismo' ou '
tudo é vontade' : nos dois casos, tudo está confundido. Nos dois casos,
'mecanismo' e 'vontade' tornam-se sinônimos de 'ser' e, por
conseguinte, sinônimos um do outro.15
Para Bergson há, no homem, entre a causa e o efeito uma possibilidade de espera,
de atenção, de recolhimento, de tensão. Não sendo apenas corpo, mas também memória,
14
15
P.M. p.52-53
P.M. p.52
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o homem pode tirar da profundidade do eu uma energia específica para agir. Se a vida
orgânica ou a vida ordinária no que tem de habitual, instintivo ou impulsivo se resolve
no determinismo de uma causalidade mecânica, a vida espiritual por sua vez possui uma
eficácia causal própria e transcendente: “O método que eu proponho para a metafísica e
para a teoria do conhecimento é fundada totalmente sobre essa constatação de uma
limitação da vida espiritual pela vida orgânica. […] Nesse sentido, a verdade metafísica
é, se vocês quiserem, transcendente à vida orgânica e imanente à vida espiritual”16.
Há uma irredutível diferença entre as noções de Élan Vital e de Vontade de vida: a
consciência. É difícil estabelecer isso porque ao mesmo tempo em que Bergson afirma
que na origem da vida está uma consciência, ou melhor, uma supra-consciência, ele
também afirma que não se trata da consciência diminuída que funciona em nós, mas de
algo entre a faculdade de “ver” e de “querer”17. Se, por um lado, Bergson remete a
consciência à Vontade, por outro lado essa vontade não deixa de ser consciência. Isso
soa estranho mas pode ser mais bem compreendido ao considerarmos a tese de A
evolução criadora segundo a qual o instinto e a inteligência são espécies distintas de
conhecimento que têm entretanto uma origem comum. Essa origem não pode ser
inferior à inteligência como seria o caso de uma vontade cega. A Vontade
schopenhaueriana é cega; o Élan vital não é (embora também não aja de uma maneira
finalista). Para Schopenhauer, como para Bergson, a inteligência (ou entendimento) é
uma lanterna cujo uso originalmente limitado às necessidades materiais pode ser
alargado mais e mais até abarcar o universo. Esse alargamento tem a ver com a
interiorização, que seria retorno da consciência à sua fonte. Mas se a fonte da
consciência é cega, a lanterna queda na escuridão; se a fonte da consciência é luz, a
lanterna tem sua potência elevada ao infinito. Para Schopenhauer, o entendimento,
enquanto faculdade de conhecimento externo e identificado ao cérebro tem seu papel
bem delimitado. Seria algo bastante próximo ao que é a inteligência para Bergson. Mas
qual seria o estatuto da consciência na filosofia de Schopenhauer? O que dizer da
autoconsciência ou da percepção interna e imediata de que parte a sua filosofia e que
16
BERGSON, Mélanges. Apud RIQUIER, C. Archéologie de Bergson. Temps et métaphysique.
p.361
17
"Pour que notre conscience coïncidât avec quelque chose de son principe, il faudrait qu´elle se
détachât du tout fait et s´attachât au se faisant. Il faudrait que, se retournant et se turnant sur elle-même, la
faculté de voir ne fit plus qu´un avec l´acte de vouloir." (E.C p.238).
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sustenta inclusive a viragem da vontade e sua negação? Será que o próprio
Schopenhauer, sem falar em seus intérpretes, não preteriu um pouco o significado dessa
noção a fim de manter a coerência de uma visão de mundo pessimista?
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BERGSON, Henri. L´evolution créatrice. 11ª ed; Paris: Quadrige/PUF, 2008.
______. Les deux sources de la morale et de la religion. 10ª ed. Paris: Quadrige/PUF,
2008
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. EDUSP, 2005
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