SCHOPENHAUER E BERGSON Catarina Rochamonte1 Tanto Schopenhauer quanto Bergson concebem a intuição como um tipo especial de “conhecimento” do qual são capazes algumas individualidades privilegiadas: o artista, de uma maneira limitada e efêmera e os santos ou místicos, de um modo mais completo e duradouro. A intuição seria um contato com a realidade, anterior ao pensamento; uma experiência que não é mera sensação, nem pura reflexão, mas algo que precisaria ser pensado a partir da concepção bergsoniana da emoção ou da concepção schopenhaueriana de sentimento. Não a mera agitação sensível que sucede uma representação, mas a vontade que a antecede, como o sentimento que impulsiona a criação do artista ou a compaixão que impele à caridade os grandes homens de bem. Um outro ponto de aproximação entre as filosofias de Schopenhauer e Bergson é uma certa naturalização da vida moral ou religiosa. A santidade estaria de alguma forma prefigurada na nossa natureza psicológica. Como resultado da intensificação de um conhecimento interno distinto do conhecimento pragmático próprio da inteligência, ou seja, como resultado de uma intensificação da intuição, teríamos a compaixão e a caridade, cuja explicação metafísica remeteria ou ao processo de mortificação da vontade, no caso da filosofia de Schopenhauer ou ao contato com a fonte do Elã vital, no caso da filosofia de Bergson. Ambos os filósofos tomam por ponto de partida a eliminação da mediação do conhecimento, tendo que lidar com as dificuldades de uma analogia ou extensão desse conhecimento imediato para as outras coisas ou seres e com a possibilidade ou impossibilidade de expressão conceitual desse saber que parece ser de ordem prática e não teórica. Palavras-chave: VONTADE – ELÃ VITAL – INTUIÇÃO Schopenhauer e Bergson pertencem a uma mesma tendência filosófica por se recusarem ambos a tomar a inteligência como algo absoluto, fazendo dela, antes, um instrumento a serviço da vida. Embora possamos aproximar a noção de Elán Vital 1 Doutoranda em Filosofia pela UFSCar. E-mail: <[email protected]>. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 94 daquilo que para Schopenhauer seria Vontade de vida devemos ter em mente que a vontade é concebida de modo distinto por cada um dos filósofos. Enquanto Schopenhauer insiste na distinção entre Vontade e consciência, Bergson se recusa a pensar uma vontade completamente nua, uma vontade irracional. A divergência dá-se, pois, na concepção schopenhaueriana de Vontade como ímpeto cego, pois Bergson põe nela a consciência, ainda que difusa e indistinta em suas manifestações inferiores. Embora consciência e cérebro apresentem-se ligados no homem, sua hipótese é a de que o cérebro é dispensável para a consciência. O cérebro seria um órgão especializado, capaz de responder mais perfeitamente à função de escolha, própria da consciência. Enquanto a medula contém um certo número de respostas prontas a estímulos possíveis, o cérebro aciona um mecanismo motor escolhido e não simplesmente imposto. Adotando uma perspectiva descendente na observação do reino animal veríamos confundirem-se cada vez mais as funções medular e cerebral, isto é, fundirem-se cada vez mais automatismo e escolha. Entretanto, a mera possibilidade de resposta, através de movimentos, a uma determinada excitação é por Bergson compreendida como um rudimento de consciência. Schopenhauer, por sua vez, declara ter sido o primeiro filósofo a separar o conhecimento da Vontade. A Vontade não seria inseparável do conhecimento e mero resultado deste, mas algo fundamentalmente diferente e independente. A Vontade poderia, pois, existir sem a consciência, sendo precisamente isso o que aconteceria em toda a natureza, onde ela atuaria como Força. Essa Força, diz ele, é a mesma seja nas ações arbitrárias dos animais, nos instintos orgânicos de seu corpo, na forma e constituição desse próprio corpo, na vegetação das plantas e no reino inorgânico (a força originária que se manifesta em fenômenos físico-químicos e a própria gravidade). Tudo isso seria, em si mesmo, aquilo que em nós chamamos vontade. A diferença é que, em nós, essa vontade seria aclarada pelo conhecimento. O argumento de Schopenhauer, portanto, é que da ausência de conhecimento não se deve concluir a ausência de vontade. A Força pela qual algo existe e atua é sempre a mesma, embora a sua exteriorização possa ser provocada por causas propriamente ditas (reino inorgânico), excitações (reino vegetal e movimentos involuntários do organismo animal) ou motivo (reino animal). A força que conserva a vida e que nos mantém em atividade seria a mesma tanto no vegetal, quanto no animal, com a diferença de que neste surge o cérebro Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 95 como “um sensório exterior para a compreensão do mundo externo e a reação da vontade sobre ele.2” O ponto nevrálgico da filosofia de Schopenhauer é a negação da vontade livre, ou melhor, da liberdade de ação, do livre arbítrio. Não fornecendo uma distinção qualitativa entre o apetite natural e a vontade ou entre o mero automatismo e o ato livre, Schopenhauer identifica o princípio de todas as nossas ações ao princípio ou potência que mantém da vida. A motivação humana seria, então, uma forma de causalidade divergente somente em grau do restante da natureza. A ação do homem seria necessária porque teria por sua causa um motivo. Aceitar o Liberum arbitrium indiferentiae seria, segundo Schopenhauer, o mesmo que aceitar a possibilidade de efeitos sem causas. Agir segundo a própria vontade seria justamente, para Schopenhauer, agir segundo uma determinação já que, como vimos, a vontade nada mais é que a mesma força que atua desde o mundo inorgânico de maneira cega. Esse determinismo radical relaciona-se com a perspectiva moral ascética que Schopenhauer pretende legitimar, na qual a única liberdade da Vontade no fenômeno é a sua auto-aniquilação. Schopenhauer considera como “verdade filosófica ” a referência do juízo à identidade entre corpo e vontade da qual estamos conscientes de maneira imediata. Trata-se de elevar a uma saber racional a experiência que cada indivíduo tem de seu próprio corpo, ou, poderíamos dizer, de interpretar os dados imediatamente fornecidos à consciência em cada ato de manifestação da vontade. Se o ponto de partida da metafísica é a intuição, sua exposição teórica faz do filósofo desde o início um intérprete. A expressão da suposta “verdade filosófica” equivale à construção de um “pensamento único” capaz de articular todo um edifício teórico comumente chamado de metafísica da Vontade, do qual não está excluído uma visão de mundo particular. Para Schopenhauer, a nossa consciência está em parte voltada para as coisas, atuando como faculdade de conhecimento, em parte voltada para dentro, atuando como autoconsciência. Enquanto faculdade de conhecimento ela atua por intermédio do princípio de razão, conhecendo não as coisas em si mesmas, mas os objetos postos em uma relação com o indivíduo. Enquanto autoconsciência, seu conhecimento é imediato, intuitivo, não reflexivo. A ciência estaria, de uma forma geral, subordinada ao princípio de razão e mesmo cada forma específica do princípio de razão atuaria como fio 2 Schopenhauer, Sobre la voluntad en la naturaleza, p.67 Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 96 condutor de determinadas ciências particulares. A metafísica, na medida em que não almeja um conhecimento relativo, precisaria partir dessa intuição dada na autoconsciência, dessa coincidência misteriosa entre sujeito cognoscente e sujeito volitivo e, a partir dai, decifrar o significado daquilo que ordinariamente só nos é dado conhecer por intermédio do princípio de razão sob a forma da causalidade. Mas essa fonte interna de conhecimento, mesmo sendo o ponto de partida mais seguro, precisaria ainda ser articulada à fonte de conhecimento externa a fim de caracterizar a reflexão propriamente filosófica. Essa articulação consiste em tentar compreender por meio de analogia com aquilo que se nos dá na autoconsciência e se manifesta através do corpo, os fenômenos ao quais só indiretamente temos acesso, o que caracterizaria, segundo o professor Ruy de Carvalho uma espécie de intercâmbio entre o horizonte inteligível da explicação e o horizonte compreensível da significação3. O filósofo interpreta a natureza porque é capaz de se interpretar a si mesmo e conhecer a Ideia que ele mesmo é sob a forma de seu próprio caráter a se manifestar no tempo através do corpo. Schopenhauer não concebe a matéria como algo inerte, passivo, mas a compreende como dotada de um princípio de movimento, de uma atividade, embora cega, inconsciente. Significa isso que ele, assim como Bergson, aceita, de certa forma, o vitalismo, com a diferença de que dá nome àquilo que antes dele se chamava vitalidade, força vital, impulso formador: “nomes que dizem tanto quanto X4” A esse X, Schopenhauer denomina Vontade. Mas o que legitima essa denominação? Segundo a sua doutrina, eu posso conhecer internamente aquilo que se dá externamente com o meu corpo na efetuação da minha vontade. Logo, eu sei o que é vontade. Como o meu corpo – que supostamente foi a condição do conhecimento da minha vontade – também é objeto entre objetos, então eu devo pressupor, por analogia, que no restante do mundo é também vontade aquilo que seria conhecido como o conteúdo da representação se a isso 3 Em recente tese de doutorado, intitulada Schopenhauer, uma filosofia do limite, Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior defende que haveria mais ganhos em se compreender a noção schopenhaueriana de Vontade como uma hermenêutica da representação do que enfatizar a dimensão ontológica do referido princípio. Um dos fundamentos dessa defesa está naquilo que chamou tese da inteligibilidade reversa na metafísica da natureza e no processo de objetivação da vontade do mundo, isto é, no fato de que “se pela física (representação) podemos explicar o mundo, por ela não podemos compreendê-lo; por sua vez, se pela metafísica compreendemos o que ele é - objetivação de uma Vontade em eterna discórdia consigo mesma-, por outro lado, por ela não podemos explicá-lo, mas tão somente usá-la na tentativa de comunicação (Übertragen) entre o que compreendemos internamente e conhecemos exteriormente.” (RODRIGUES, R.C. Schopenhauer: uma filosofia do limite. 2011.305f. Tese doutorado em filosofia. PUC-SP, p.241) 4 Schopenhauer, Sobre la voluntad en la naturaleza. p.69 Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 97 fosse possível conhecer. Note-se que essa maneira de argumentar só é possível quando penso na vontade como aquilo que Schopenhauer identifica a um ato do corpo. Mas aquilo que conheço internamente quando conheço a mim pode mesmo se restringir à vontade que se manifesta por um ato do corpo? Ou o conhecimento imediato que se dá na minha autoconsciência me revela da maneira mais complexa as minhas volições, não apenas aquelas que se exteriorizam em atos, mas, principalmente, as que permanecem sem exteriorização possível? A riqueza dos meus estados psicológicos pode mesmo ser refletida nas minhas manifestações corpóreas ou o chegar a uma manifestação no mundo já oferece uma inevitável limitação? Se aquilo a que eu tenho acesso através de uma percepção interna e imediata for de fato muito mais amplo do que aquilo que pode ser traduzido como ação necessária no mundo, então a analogia proposta por Schopenhauer não se sustenta, ou se sustenta dentro do limite de uma vontade que se exterioriza através de movimentos. Lembremos aqui da tese exposta por Bergson em Matéria e memória onde o cérebro é apresentado como um órgão de atenção à vida, cujos dispositivos permitem ao espírito responder à ação das coisas com reações motoras, efetuadas ou simplesmente nascentes, respostas essas que asseguram a inserção do espírito na realidade. Para Bergson, “há infinitamente mais numa consciência humana do que no cérebro correspondente5”. Limitando-se a traduzir em movimentos uma pequena parte do que se passa na consciência, o cérebro seria, para a atividade mental, o mesmo que a batuta do maestro para a sinfonia6. O estado cerebral indicaria apenas uma reduzida parte do estado psicológico, justamente porque só é capaz de armazenar o passado na forma de dispositivos motores, enquanto a memória mesma, na forma de lembranças, seria a própria duração acumulando-se a si própria; a vida psíquica na sua integridade. Bergson não cansa de repetir que do fato de haver entre o cérebro e a consciência uma relação de solidariedade não se segue que ambos se identifiquem. Para Bergson, com a possibilidade de uma redução mecanicista na abordagem das ciências da natureza, a totalidade do universo material em toda a sua complexidade vital passou a ser pensado como uma grande máquina na qual deveriam engrenar-se inclusive os corpos vivos em geral e o corpo do homem em particular7. A biologia, portanto, mesmo precisando lidar 5 6 7 BERGSON. A alma e o corpo in A energia espiritual. p.41 Idem, p.47 Idem, p . 39 Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 98 com algo não redutível à matéria, manteria sua filiação a esse instinto de precisão advindo do gênio grego e “também gostaria de, por intermédio da fisiologia, reduzir as leis da vida às da química e da física, ou seja, indiretamente, da mecânica”. Dentro desse contexto, o problema mal posto e mal resolvido por Descartes da relação entre corpo e alma passa a ser abordada pelos cientistas com os métodos de observação e experimentação externa de que tradicionalmente dispõem, limitação que requer uma identificação entre pensamento e cérebro, já que seu método de pesquisa desenvolveu-se tão somente para a análise daquilo que é material. As filosofias que não apresentaram nada diferente da hipótese do paralelismo rigoroso entre corpo e alma estariam ainda vinculadas a uma hipótese “deduzida muito naturalmente dos princípios gerais de uma metafísica concebida, pelo menos em grande parte, para dar um corpo às expectativas da física moderna”8. A insistência de Bergson está em tentar elaborar um método de conhecimento que leve em consideração o que o espírito tem de propriamente espiritual, o que o leva a criticar toda a tentativa de abordagem do espiritual baseada em um método que só poderia ser bem aplicado à matéria9: Ou seja, a boa relação entre ciência e metafísica passa primeiramente por uma crítica da metafísica inconsciente presente nas ciências. Ao invés de aplicar à interioridade psíquica, ao movente ou ao vital os métodos de mensuração desenvolvidos mais propriamente para a análise do sólido, do inerte, Bergson propõe o desenvolvimento de novas funções do pensamento que o torne apto a voltar-se para o espírito, a metafísica devendo, então, constituir-se inicialmente não pelo desdobramento das inclinações naturais da inteligência (o que tem feito tradicionalmente), mas por uma "visão direta do espírito pelo espírito", função principal da intuição. Assim, a metafísica voltando-se para o espírito através da intuição e a ciência voltando-se para a matéria através da inteligência exercerão um controle mútuo e uma mútua influência. Se o real é duração e essa duração é criação (imprevisibilidade e indeterminação), então a intuição, que é intuição da duração, tem uma certa prioridade ontológica, mas o caráter originário e 8 Idem, p . 39 9 "De la première à la dernière page, le bergsonisme est une critique de la raison dans son effort pour penser le spirituel; à mesure que l´intuition de la durée se dilate, la polémique garantit ses droits; dans chacun de ses livres, Bergson s´applique a dépister les abus des sciences que s´approchent de l´esprit avec l´outilage et l´idéal des sciences de la matière. Mais sa critique est toujours une mise au point plutôt qu´un refus; il entend marquer des limites et montrer expérimentament que le fait spirituel est encore au delà de ces limites. Dans ' Le donnés immediates' la qualité échappe à la psycho-phisique. Dans ' Matière et Mémoire', le souvenir échappe à la psycho-physiologie. Dans ' L´Evolution Créatrice'. l´evolutionisme échappe à l´evolutionisme des naturalistes. De même, dans ' Les deux sources', la vie morale echappe à la sociologie et le mysticisme authentique à la psycho-pathologie." (Gouhier, H. Bergson et le christ des évangiles. p.111) . Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 99 positivo da intuição, assim como o caráter secundário da inteligência não invalidam a relação de complementaridade entre ambas. O êxito dessa relação, que equivale à relação entre metafísica e ciência, depende de que cada uma se volte para o seu objeto próprio. Não há entretanto uma consideração negativa da inteligência em Bergson, apenas uma consideração pragmática, refletida na reiterada frase "antes de especular é preciso viver". O papel da inteligência é "fabricar instrumentos e guiar a ação de nosso corpo sobre os corpos circundantes, de tornar-nos senhores da matéria10", mas, como "a inteligência é feita para utilizar a matéria, é pela estrutura da matéria, sem dúvida, que se modelou a da inteligência11" Essa simetria, concordância, correspondência, entre inteligência e matéria asseguraria então o caráter absoluto da ciência, de modo que a relação, proposta por Bergson, de complementaridade entre ciência e metafísica, se construiria, no nosso entender, a partir de uma crítica à tese kantiana da coisa-em-si ou da relatividade do nosso conhecimento. Assim, tanto Kant quanto Schopenhauer, se enquadrariam na crítica bergsoniana aos que pretendem "sob o pretexto de que não toca [m] no absoluto, decidir absolutamente acerca de todas as coisas12". A diferença fundamental em relação à filosofia de Bergson seria a tese da idealidade do tempo pressuposta na noção de coisa-em-si, pois para Kant e para Schopenhauer superar a inteligência por meio da intuição seria sair do tempo, enquanto para Bergson seria encontrá-lo. Intuição seria pensamento da duração, que é o tempo não espacializado, não figurado, não representado, não fragmentado. O tempo, para Bergson, não é apenas uma variável a ser isolada para fins de cálculo ou uma forma a priori da nossa sensibilidade, mas é "retardamento", "elaboração", "veículo de criação e de escolha", cuja existência prova que há indeterminação nas coisas13. A inteligência capta a determinação, a intuição capta a indeterminação; a inteligência capta o regular e o estável, a intuição capta a novidade e o esforço renovador. A concepção bergsoniana de ciência e metafísica e da relação entre elas é semelhante ao modo como Schopenhauer concebe as mesmas noções, mas dela difere na medida em que melhor se delimitam os objetos dos dois saberes, distinguindo-se mais claramente matéria e espírito, o que torna possível a seguinte crítica de Bergson à Schopenhauer: 10 11 12 13 E.C. p.36 E.C. p.37 E.C. p.53 P.M. p.107 Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 100 [...] a palavra pode ter um sentido definido quando designa uma coisa; perde-o assim que é aplicada a todas as coisas. Mais uma vez, sei o que é a vontade caso se entenda por essa palavra minha faculdade de querer, ou a dos seres que se me assemelham, ou mesmo o ímpeto vital dos seres organizados, que se supõe então ser análogo ao meu elã de consciência. Mas, quanto mais se aumentar a extensão do termo, tanto mais se diminuirá sua extensão. Caso se englobe em sua extensão a matéria, esvazia-se a sua compreensão dos caracteres positivos pelos quais a espontaneidade contrasta com o mecanismo e a liberdade com a necessidade. Quando, por fim, a palavra chega a designar tudo o que existe, já não significa mais que existência. O que se ganha então em dizer que o mundo é vontade, ao invés de constatar muito simplesmente que ele é? 14 Embora haja uma clara convergência entre Schopenhauer e Bergson no que diz respeito tanto à crítica ao positivismo quanto a crítica à metafísica tradicional, a ausência de uma distinção nítida entre o biológico, o psíquico e o material impossibilitou, por parte de Schopenhauer, uma compreensão mais adequada do espiritual; compreensão essa para a qual tenderam os grandes esforços da filosofia bergsoniana. Tudo se passa como se Schopenhauer apreendesse o Ser a partir daquilo que, para Bergson, seria apenas o nível de duração da matéria e da vida nas suas manifestações inferiores, isto é, a partir de uma concepção de matéria como continuidade indivisível de movimento (atividade) passível de apreensão por percepção pura e de uma concepção de vida que se determina através do instinto: [...]porventura não é evidente que uma Vontade só é vontade sob a condição de contrastar com aquilo que não quer? Como então o espírito poderá contrastar com a matéria se a própria matéria é vontade? Pôr a vontade por toda parte equivale a não deixá-la em parte alguma, pois é identificar a essência daquilo que sinto em mim duração, jorro, criação contínua - com a essência daquilo que percebo nas coisas, onde há evidentemente repetição, previsibilidade, necessidade. Pouco me importa que se diga ' tudo é mecanismo' ou ' tudo é vontade' : nos dois casos, tudo está confundido. Nos dois casos, 'mecanismo' e 'vontade' tornam-se sinônimos de 'ser' e, por conseguinte, sinônimos um do outro.15 Para Bergson há, no homem, entre a causa e o efeito uma possibilidade de espera, de atenção, de recolhimento, de tensão. Não sendo apenas corpo, mas também memória, 14 15 P.M. p.52-53 P.M. p.52 Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 101 o homem pode tirar da profundidade do eu uma energia específica para agir. Se a vida orgânica ou a vida ordinária no que tem de habitual, instintivo ou impulsivo se resolve no determinismo de uma causalidade mecânica, a vida espiritual por sua vez possui uma eficácia causal própria e transcendente: “O método que eu proponho para a metafísica e para a teoria do conhecimento é fundada totalmente sobre essa constatação de uma limitação da vida espiritual pela vida orgânica. […] Nesse sentido, a verdade metafísica é, se vocês quiserem, transcendente à vida orgânica e imanente à vida espiritual”16. Há uma irredutível diferença entre as noções de Élan Vital e de Vontade de vida: a consciência. É difícil estabelecer isso porque ao mesmo tempo em que Bergson afirma que na origem da vida está uma consciência, ou melhor, uma supra-consciência, ele também afirma que não se trata da consciência diminuída que funciona em nós, mas de algo entre a faculdade de “ver” e de “querer”17. Se, por um lado, Bergson remete a consciência à Vontade, por outro lado essa vontade não deixa de ser consciência. Isso soa estranho mas pode ser mais bem compreendido ao considerarmos a tese de A evolução criadora segundo a qual o instinto e a inteligência são espécies distintas de conhecimento que têm entretanto uma origem comum. Essa origem não pode ser inferior à inteligência como seria o caso de uma vontade cega. A Vontade schopenhaueriana é cega; o Élan vital não é (embora também não aja de uma maneira finalista). Para Schopenhauer, como para Bergson, a inteligência (ou entendimento) é uma lanterna cujo uso originalmente limitado às necessidades materiais pode ser alargado mais e mais até abarcar o universo. Esse alargamento tem a ver com a interiorização, que seria retorno da consciência à sua fonte. Mas se a fonte da consciência é cega, a lanterna queda na escuridão; se a fonte da consciência é luz, a lanterna tem sua potência elevada ao infinito. Para Schopenhauer, o entendimento, enquanto faculdade de conhecimento externo e identificado ao cérebro tem seu papel bem delimitado. Seria algo bastante próximo ao que é a inteligência para Bergson. Mas qual seria o estatuto da consciência na filosofia de Schopenhauer? O que dizer da autoconsciência ou da percepção interna e imediata de que parte a sua filosofia e que 16 BERGSON, Mélanges. Apud RIQUIER, C. Archéologie de Bergson. Temps et métaphysique. p.361 17 "Pour que notre conscience coïncidât avec quelque chose de son principe, il faudrait qu´elle se détachât du tout fait et s´attachât au se faisant. Il faudrait que, se retournant et se turnant sur elle-même, la faculté de voir ne fit plus qu´un avec l´acte de vouloir." (E.C p.238). Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 102 sustenta inclusive a viragem da vontade e sua negação? Será que o próprio Schopenhauer, sem falar em seus intérpretes, não preteriu um pouco o significado dessa noção a fim de manter a coerência de uma visão de mundo pessimista? REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: BERGSON, Henri. L´evolution créatrice. 11ª ed; Paris: Quadrige/PUF, 2008. ______. Les deux sources de la morale et de la religion. 10ª ed. Paris: Quadrige/PUF, 2008 SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. EDUSP, 2005 Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 103