REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓGOLA: O ANONIMATO DO

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Revista Aporia Jurídica
- Curso de Direito da Faculdade CESCAGE - ISSN – 2358-5056
REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓGOLA: O ANONIMATO
DO DOADOR DE GAMETAS E O DIREITO À IDENTIDADE
GENÉTICA
ASSISTED REPRODUCTION HETERÓGOLA: THE GAMETES OF ANONYMOUS DONOR
AND THE RIGHT TO IDENTITY GENETIC
Andressa ALVES TABORDA*
Submetido em: 18 de outubro de 2016
Aprovado em: 15 de dezembro de 2016
Como citar este Artigo Científico:
ALVES TABORDA, Andressa. Reprodução assistida heteróloga: o anonimato do doador de gametas e
o direito à identidade genética. In: Revista Aporia Jurídica (on-line). Revista Jurídica do Curso de
Direito da Faculdade CESCAGE. 6ª Edição. Vol. 1 (jul/dez-2016). p. 201-220.
Área do Conhecimento: Estudos Contemporâneos de Direito Privado
Modalidade: Artigo Científico
Sumário: 1 Introdução, 2 Da Reprodução Assistida, 3 Família e Filiação, 4 Do Direito à Identidade
Genética, 5 Do Anonimato do Doador de Gametas, Ponderação de Interesses nos Direitos
Fundamentais, 7 Considerações Finais , 8 Referências.
Resumo: A tecnologia das reproduções assistidas tem como intuito possibilitar para aqueles
que são acometidos pela esterilidade ou infertilidade o direito de procriação. Tal técnica
também é muito utilizada por casais homoafetivos ou até mesmo por pessoas solteiras. Essa
técnica baseia-se na utilização de material genético de doadores anônimos os quais agem tão
somente como um agente auxiliador para a concretização da tão sonhada gestação. Esse
procedimento causa muita repercussão no Ordenamento Jurídico Brasileiro pois não conta
com legislação especifica, sendo regulamentada por resoluções do Conselho Federal de
Medicina. Uma característica marcante do procedimento da reprodução assistida heteróloga é
a colisão de direitos fundamentais no que tange a prerrogativa do anonimato do doador de
gametas e o direito à identidade genética. Sendo de extrema importância as garantias
constitucionais envolvidas e a atualidade do tema em questão, o presente trabalho tem por
objetivo buscar, através da interpretação do Ordenamento Jurídico e análise de entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais, uma possível relativização dos direitos envolvidos, partindo
do geral para o específico, para tanto será utilizado o método de estudo dedutivo. Ainda,
estando o assunto em atual discussão se faz necessário o método dialético. Diante da dúvida
de qual direito deve prevalecer, deve-se colocar em prática a ponderação de interesses
fundamentais, que diz respeito a análise do caso concreto, sendo dever do aplicador de direito
interpretar a situação com base nas informações trazidas aos autos e garantir a aplicação
efetiva das garantias de forma equilibrada e harmônica.
Palavras-chave: Reprodução assistida heteróloga. Direitos fundamentais. Colisão de
garantias constitucionais. Direito à intimidade. Direito à personalidade.
*
Acadêmica do 10° período curso de Direito do Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais – Cescage.
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Abstract: The technology of assisted reproduction has the intention to allow those who are
affected by sterility or infertility to procreate. This technique is commonly used by
homosexual couples and even by single people. The heterologous assisted reproduction is the
most common procedure. This technique is based on the use of genetic material donated by
anonymous donors which only act as assistants, helping others to achieve their dream. This
procedure causes now much repercussion in the Brazilian legal system as it does not have a
specific legislation, being regulated by resolutions made by the Federal Council of Medicine.
A striking feature of the heterologous assisted reproduction procedure is the collision between
the Fundamental Rights in the prerogative of the anonymity of gamete donor and the right to
genetic identity. Considering the extreme importance of the constitutional rights involved and
the fact that it is a contemporary matter, this research aims, through the interpretation of the
legal system and doctrinal analysis, to relativization the rights involved, starting from general
to the specific, for that matter, the deductive study method will be used. Still, being the
subject a contemporary matter, the dialectical method is also necessary. Facing the doubt of
which law must prevail, the weighting fundamentals of interests must be put into practice,
which refers to the analysis of the case, being duty of the to interpret the situation based on
the information brought to the written procedure, and ensure one effective application of
guarantees in a balanced and harmonious way.
Keywords: Assisted Reproduction heterologous. Rights Basics. Collision constitutional
guarantees. Intimacy to right. Personality to rigth.
1. INTRODUÇÃO
O direito ao anonimato do doador de gametas é uma garantia que está assegurada
pela Constituição Federal de 1988 como uma prerrogativa fundamental inviolável, porém, não
mais importante que o direito a identidade genética, trata-se de um direito de extrema
importância para a formação do ser humano, pois proporciona a compreensão de muitos
aspectos da própria vida, tais como descoberta das raízes, traços, semelhanças, bagagem
genético-cultural, auxiliando na construção da própria personalidade e contribuindo para o
processo de dignificação.
O presente artigo traz à tona o conflito existente entre essas garantias, quais sejam o
direito de anonimato do doador de gametas versus o direito à identidade genética na
reprodução assistida heteróloga, e as possíveis soluções para a temática, visto que ambos
tratam de garantias fundamentais e são de extrema importância para as partes envolvidas.
O Direito à identidade genética é uma garantia que não está regulamentada pelo
Ordenamento Jurídico Brasileiro, porém, tem como base na interpretação por analogia a não
discriminação entre os filhos e o direito da personalidade, fundamental para a construção do
indivíduo, por isso é de extrema importância que o nascido através da reprodução assistida
saiba a sua origem genética.
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Por outro lado, a prerrogativa do doador de gametas também não pode ser esquecida.
A intimidade é um direito inviolável e refere-se à vida privada. Portanto se o doador jamais
teve a intenção de ter um filho, nada mais justo que ele seja isento de qualquer
responsabilidade decorrente da ―paternidade‖.
Há entendimentos de que o anonimato do doador de gametas deve ser interpretado
como uma forma de estímulo para que as pessoas doem seu material genético e dessa forma
possibilitem para aquelas com dificuldades de ter filhos a chance de constituir uma família.
Com a tecnologia cada dia mais avançada é inevitável que as técnicas de reprodução
assistida não se aperfeiçoem cada vez mais, se hoje com a medicina atual o tema já gera uma
grande repercussão, imagina futuramente, com a medicina ainda mais avançada, o problema
será maior ainda, por isso se faz necessário que o Ordenamento Jurídico Brasileiro se
posicione o quanto antes acerca do tema, afim de prevenir futuras grandes discussões acerca
da temática.O presente artigo traz à tona o conflito existente entre garantias fundamentais
extremamente importantes, tanto para o doador de gametas quanto para a criança concebida
pela técnica da reprodução assistida.
2. DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA
Diferente da forma natural de reprodução, a técnica de reprodução assistida não
resulta da fecundação decorrente do ato sexual, o método de R.A consiste na união de forma
artificial dos gametas femininos e masculinos. Trata da intervenção do homem no método de
reprodução humana.
A reprodução assistida é a forma mais comum utilizada por casais heterossexuais e
homossexuais como meio de alcançar o tão desejado sonho de ter filhos.
Para Diniz, ―reprodução humana assistida é um conjunto de operações para unir,
artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um ser humano‖ (DINIZ
2002, p. 475).
Já para Maria de Fátima Freire de Sá, reprodução assistida é:
[...] conjunto de técnicas que favorecem a fecundação humana, a partir da
manipulação de gametas e embriões objetivando principalmente combater a
infertilidade e propiciando o nascimento de uma nova vida humana. (SÁ 2002, p.
284)
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A frustração de não poder dar continuação ao seu legado pode trazer sérios
problemas conjugais e familiares, atingindo diretamente à dignidade, conforme podemos
observar no posicionamento de Maria Helena Machado:
A impossibilidade de procriar não atinge somente psicologicamente o indivíduo,
como atinge diretamente o casal. Na mulher, priva-a insubstituível sensação do
estado de mãe. Enquanto no homem, o atinge no que ele tem de mais profundo,
causando-lhe graves desordens psicológicas e emocionais.( MACHADO 2011, p.
33)
Neste contexto, as técnicas de reprodução assistida trouxeram para os casais
impossibilitados de terem filhos uma nova esperança de constituir a tão sonhada família.
Segundo o médico Dr. Bruno Brum Scheffer existem 5 tipos de técnicas de R.A:
A ciência coloca à disposição do homem, na atualidade, cinco variedades de
técnicas de reprodução [...]. São elas a inseminação artificial, a fecundação artificial
in vitro (FIV), a GIFT (transferência intratubária de gametas), a ZIFT (transferência
de zigoto nas trompas de falópio) e a PROST (transferência em estágio de prónúcleo). (SCHEFFER, 2003, p. 191)
A técnica de R.A pode dar-se de duas maneiras sendo elas a reprodução assistida
homóloga e a heteróloga. A primeira não traz grandes controvérsias visto que o material
genético utilizado na reprodução pertence ao marido ou companheiro da receptora, portanto,
pressupõe-se que o casal não é infértil, apenas não ocorre a fecundação de forma natural com
o ato sexual. Não haverá maior aprofundamento quanto à reprodução assistida homóloga, haja
vista que não é o tema abordado no presente trabalho, sendo que o enfoque principal é estudar
a reprodução assistida nos casos em que o material genético utilizado é doado por um
anônimo.
Já a segunda diz respeito à técnica de reprodução que se utiliza de material genético
doado por um terceiro, um estranho em relação ao casal, que neste caso age como tão somente
um agente auxiliador para a concretização do desejo de paternidade.
Neste sentido, Maria Helena Machado afirma que:
O cônjuge ou companheiro que não produzir espermatozoides ou produzi- los em
número inferior ao necessário para que ocorra a fertilização, poderá resolver o seu
problema de infertilidade, utilizando-se de espermatozoides de doadores, através dos
bancos de sêmen. Neste caso, tem-se uma inseminação artificial heteróloga.
(MACHADO 2011, p. 33)
Vale lembrar que prática de doação do material genético é considerada lícita e válida,
contudo, não pode visar fins lucrativos.
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3. FAMILIA E FILIAÇÃO
Para Venosa família consiste em um ―vínculo que une duas ou mais pessoas, em
decorrência de uma delas descender da outra ou de ambas descenderem de um genitor
comum‖. (VENOSA, 2008, p. 203)
Vale ressaltar que não é requisito essencial para a caracterização da família a
descendência consanguínea, de modo mais amplo, pode-se dizer que se define como família
também aquelas que possuem adotantes e adotados. Neste sentido, Diniz dispõe que:
[...] relação vinculatória existente não só entre pessoas que descendem umas das
outras ou de um mesmo tronco comum, mas também entre um cônjuge ou
companheiro e os parentes do outro, entre adotante e adotado e entre pai
institucional e filho socioafetivo. (DINIZ, 2007, p. 409)
Dessa forma, é possível conceituar família de modo geral como o conjunto de
pessoas que possuem grau de parentesco entre si e vivem na mesma casa formando um lar.
As relações de parentesco estão regulamentadas pelos artigos 1.591 a 1.595 do atual
Código Civil, porém, este ainda não trata das relações provenientes ao vinculo socioafetivo.
Dentre tantas definições encontradas, Maria Berenice Dias trás uma a qual abrange todos os
tipos de relações, definindo que as relações de parentesco podem ser:
Como as estruturas familiares dispõem de diversas origens, vários são os critérios
utilizados para classificar as relações de parentesco , a depender da identificação que
se queira estabelecer entre duas pessoas. O parentesco decorre das relações
conjugais , de companheirismo e de filiação , maternal ou paternal . Pode ser natural,
biológico, civil, adotivo, por afinidade, em linha reta ou colateral. (DIAS 2015, p.
375).
O estado de filiação pode ser dividido por três critérios, sendo eles o biológico, o
jurídico e o afetivo. Brevemente pode-se conceituar como sendo biológico os casos em que se
deve ser levado em consideração a ligação genética entre pais e filhos, é o mais conhecido,
em decorrência da popularização do exame de DNA, o jurídico em que a paternidade é
conferida por presunção, nos casos em que os filhos são concebidos na constância do
casamento, conforme preceitua o artigo 1.597 do Código Civil, e por fim, o mais atual, o
critério afetivo, que é ligado ao melhor interesse da criança, considerando que é pai aquele
quem cria com amor, carinho, etc., e geralmente é utilizado nos casos em que há, por
exemplo, o auxílio da técnica da reprodução assistida, sendo o único critério a ter certeza de
que não existe nenhum vínculo genético entre pais e filhos, deixando de lado a presunção de
paternidade baseada na verdade genética, e trazendo uma nova visão de paternidade atrelada à
verdade afetiva.
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Embora que a Constituição Federal alegue que é proibido qualquer tipo de
discriminação entre os filhos, o Código Civil trata em capítulos diferentes a relação do estado
de filiação entre as crianças havidas na constância do casamento e fora deste. O capítulo
intitulado como o ―Da Filiação‖ (arts. 1. 596 a 1. 606, CC), dispõe sobre a prole constituída
na constância do matrimônio, enquanto que os descendestes nascidos fora do casamento
encontram amparo no capítulo ―Do Reconhecimento dos Filhos‖ (arts. 1.607 a 1.617, CC).
Tal divisão ampara-se na presunção de paternidade atribuída pelo legislador, conforme Maria
Berenice Dias explica:
A diferenciação advém do fato de o legislador, absurdamente, ainda fazer uso de
presunções de paternidade. Tal tendência decorre da visão sacralizada da família e
da necessidade de sua preservação a qualquer preço, nem que para isso tenha de
atribuir filhos a alguém, não por serem pai ou mãe, mas simplesmente para a
mantença da estrutura familiar.(DIAS, 2015, p. 383)
Para ser considerada ―família legítima‖ esta deveria ser constituída na constância do
casamento, somente desta forma conseguiria a proteção estatal.
Fica clara a discriminação entre os filhos quando observado que a legislação ao
referir-se a prole diz respeito exclusivamente aqueles que foram concebidos na constância do
casamento. Para a biologia, pai somente é aquele que através do ato sexual fecunda a mulher,
que por sua vez gera o filho no ventre e dá a luz uma nova vida, contrariando a visão do
direito, que por sua vez, acredita que o pai na maioria das vezes será o marido da mãe.
As presunções de paternidade tinham como intuito a proteção e o prestígio da
família, estabelecendo que filhos eram exclusivamente aqueles nascidos após 180 dias da
celebração do casamento, ou 300 dias após o término de um relacionamento. (CC, art. 1597, I,
II). Tal entendimento ainda é utilizado pela legislação atual.
A partir do Código Civil de 2002, a presunção de paternidade deixou de ser
exclusivamente biológica, visto que, também decorre a presunção de paternidade absoluta,
conforme ocorre na reprodução assistida heteróloga, por exemplo.
Vale ressaltar que a entidade familiar passou por diversas mudanças no decorrer dos
anos até chegar aos conceitos atuais, através de normas que
buscavam acompanhar o
desenvolvimento da sociedade e aos novos tipos de convívios trazidos pela coletividade,
como por exemplo, a Lei do Divórcio, que garantiu a igualdade dos quinhões na sucessão
entre os filhos havidos dentro e fora do casamento. Entretanto, não será feito grande
aprofundamento na evolução histórica do instituto familiar visto que, o objetivo maior do
presente trabalho é discutir a possível relativização do direito do anonimato do doador de
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gametas com o direito a identidade genética.
O reconhecimento do filho havido fora do casamento se deu após o advento de duas
normas, quais sejam Decreto Lei 4.73, de 24/09/1942 e Lei 883, de 21/10/1949, contudo, era
necessária a dissolução do casamento do genitor, bem como, a investigação de paternidade só
era autorizada com exclusivo fim da prestação de alimentos, porém, os descendentes ainda
eram registrados como filhos ilegítimos e tinham direito de receber somente a metade da
herança que viessem a receber os herdeiros legítimos e legitimados.
O advento de duas normas, nos anos de 1 9425 e 1 949,6 autorizou o
reconhecimento do filho havido fora do matrimônio, mas somente após a dissolução
do casamento do genitor. O máximo a que se chegou foi conceder o direito de
investigar a paternidade para o fim único de buscar alimentos, tramitando a ação em
segredo de justiça. Ainda assim, tais filhos eram registrados como filhos ilegítimos e
só tinham direito, a título de amparo social, à metade da herança que viesse a receber
o filho legítimo ou legitimado. (DIAS, 2015, p. 388)
A Constituição Federal derrubou a discriminação que havia entre a prole e trouxe
consigo em seu artigo 227, § 6º a proibição do tratamento desigual, bem como, salvaguardou
os seus direitos, revogando os artigos do Código Civil que discorriam sobre os filhos espúrios.
Com a nova regra implantada pelo texto da Constituição Federal, foi necessário
alargar o conceito de entidade familiar, distendendo a proteção não só para as famílias
constituídas pelo casamento, mas sim para os casais que vivem em união estável e também
para as famílias monoparentais, que são aquelas que somente um dos pais da criança se
encarrega pelas responsabilidades e criação do mesmo.
Além das modalidades familiares citadas acima, vale ressaltar que atualmente
existem também outros tipos de estrutura de convívio, como por exemplo as relações
decorrentes da união homoafetiva, as quais também são vistas pelo ordenamento jurídico
como entidade familiar, portando, também fazem jus a proteção estatal distendidas à prole.
Deste modo, com a modernidade da medicina o ato sexual deixou de ser o único
meio pelo qual o casal poderia realizar o sonho da paternidade e da maternidade, as técnicas
de reprodução assistida estão cada vez mais aprimoradas e a porcentagem de sucesso dos seus
procedimentos é razoavelmente favorável para proporcionar o direito de procriação para
aqueles que, de forma natural, não poderiam ter filhos.
Com isso, os casais homossexuais também podem constituir a tão sonhada família, e
isso faz com que a presunção da paternidade deixe de ser exclusivamente baseada no fato
biológico, forçando o aplicador do direito olhar com outros olhos e interpretar também a
presunção de paternidade baseada no fato sociofetivo.
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Todas essas mudanças trouxeram novos conceitos de vínculos que retratam
a
realidade atual da sociedade, pode-se citar como exemplo o vínculo pela filiação social,
estado de filho afetivo, filiação sociofetivo, dentre outros. Essas expressões nada mais
significam que a ligação afetiva entre pai e filho, que vai muito além da ligação biológica. O
conceito de paternidade está relacionado muito mais com o amor, carinho, educação, do que
somente a ditames biológicos.
4. DO DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA
O direito à identidade genética é um direito que baseia-se na dignidade da pessoa
humana o qual encontra-se fundamentado na Constituição Federal de 1.988 em seu artigo 1º,
inciso III. Segundo Lobô (2011, p. 227), tal prerrogativa encontra- se ligada intimamente com
o direito da personalidade que toda pessoa humana é detentora, sendo de extrema importância
para a formação do ser humano, pois proporciona a compreensão de muitos aspectos da
própria vida, tais como descoberta das raízes, traços, semelhanças, bagagem genético-cultural
e auxiliando na construção da própria personalidade, contribuindo para o processo de
dignificação.
O direito à identidade genética vai muito além do simples fato do conhecimento da
ascendência biológica. É a partir dessa prerrogativa que o indivíduo nascido através da
técnica da reprodução assistida busca peculiaridades intrínsecas da sua personalidade, que
podem influenciar de maneira significante na forma em que conduzirá a sua vida, bem como,
a importância de tal informação na prevenção de doenças genéticas que poderá desencadear .
O direito ao conhecimento da origem genética [...] é o direito da personalidade, que
toda pessoa humana é titular, na espécie direito à vida, pois as ciências biológicas
têm ressaltado a insuperável relação entre medidas preventivas de saúde e
ocorrências de doenças em parentes próximos, além de integrar o núcleo da
identidade pessoal, que não se resume ao nome. (LÔBO 2011, p. 227)
Belmiro Pedro Welter (2003, p. 229) defende que: ―Em qualquer caso, o filho, o pai
e a mãe têm o direito de investigar e/ou de negar a paternidade ou a maternidade biológica,
como parte integrante de seus direitos de cidadania e de dignidade de pessoa humana‖, ou
seja, a prerrogativa de buscar a verdade biológica é um direito assegurado a todo e qualquer
cidadão, independente da forma em que foi concebido, seja pela técnica da reprodução
assistida ou não.
[...] o livre-desenvolvimento da personalidade de uma pessoa passa pelo
conhecimento de sua ascendência, cuidando-se de um direito inerente à condição
humana, imprescritível e irrenunciável e se for preciso confrontar o direito do adulto
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de preservar sua intimidade e o do filho em conhecer sua origem, nesse juízo de
ponderação deve preponderar o superior interesse da criança. (MADALENO, 2013,
p. 503)
O direito ao conhecimento da identidade genética teve sua origem nos Tribunais
Alemães, os quais desde aquela época priorizam o direito e o interesse maior da criança. Em
se tratando de direitos fundamentais na mesma hierarquia de valores, ou seja, o direito do
adulto em ter a sua privacidade preservada e o da criança em saber a sua descendência
genética, deve prevalecer o da criança.
A reprodução assistida heteróloga gera muita discussão, principalmente no âmbito
jurídico, envolvendo questões éticas que ainda não foram abordadas de forma clara pela
legislação, neste sentido Donizetti questiona:
A possibilidade de se ―fabricar um filho‖ por meio da inseminação artificial
heteróloga, por exemplo, trouxe à baila uma questão bastante intrigante, que é o
resultado desse fenômeno absolutamente inovador: o filho tem o direito ao
conhecimento das suas origens genéticas? Até que ponto a imposição do anonimato
dos doadores e receptores de gametas é salutar para a preservação da integridade
psíquica do ser humano?(DONIZETTI 2007, p. 116)
O artigo 227, § 6º da CF de 1988, o qual prevê a igualdade entre os filhos garantindo
a estes os mesmos direitos e qualificações, deve ser interpretado de maneira extensiva para
que possa assegurar a prole as mesmas garantias. Seguindo esta linha de raciocínio, deve-se
assegurar aos indivíduos nascidos através das técnicas de reprodução assistida o direito de
conhecer a sua verdade biológica. Ora, se não deve haver distinções entre os descendentes
conforme acima citado, por que somente os filhos concebidos através da relação sexual teriam
o direito de conhecer sua ascendência biológica? Tal prerrogativa também deve estar
disponível para as crianças nascidas através das técnicas de R.A, pois se trata de um direito de
personalidade, o qual a luz da Constituição Federal é garantido a todo e qualquer cidadão sem
qualquer tipo de discriminação.
No tangente à especialidade da fecundação artificial heteróloga, o anonimato do
doador pode ser quebrado, assim como o anonimato do pai biológico na adoção por ação de
estado, que garanta ao filho o direito à personalidade e ao conhecimento da sua origem
genética, para poder verificar doenças hereditárias e evitar impedimentos matrimoniais.
(KRELL 2011. p. 186)
O Conselho Federal de Medicina instituiu a Resolução n.1.957/2010, com o intuito
de resguardar a possibilidade do conhecimento da identidade genética, bem como, resguardar
a identidade civil dos doadores, estabelecendo que todas as clínicas de reprodução assistida
devem guardar de forma permanente o registro de dados clínicos em caráter geral:‖ IV 209
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DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES [...] 4 - As clínicas, centros ou serviços que
empregam a doação devem manter, de forma permanente, um registro de dados clínicos de
caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores.‖
Apesar da implementação da resolução acima citada, não existe previsão legal que
permita ao filho concebido pelas técnicas de reprodução assistida, a prerrogativa de buscar a
sua verdade biológica baseada na sua curiosidade ou interesse de saber a respeito da sua
ascendência genética, critério que, por sua vez, determinará em muitos fatores em sua vida,
como por exemplo, a prevenção de doenças genéticas.
É necessário frisar que o direito ao reconhecimento da identidade genética não gera,
em momento algum, vínculos obrigacionais da pessoa do doador de gametas para com a
criança gerada, e muito menos, se espera que do descobrimento da origem genética possam
surgir laços afetivos, o que se discute neste caso. É tão somente a garantia fundamental da
criança concebida através da técnica da reprodução assistida poder ter o conhecimento da
origem da sua árvore genealógica, direito essencial básico para a formação de sua
personalidade, até mesmo para que o concebido pela técnica de R.A não venha a ter
relacionamentos com as pessoas do mesmo laço sanguíneo, neste sentido:
[...] o objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o
direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual
apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus
parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade
de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de
conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por
doador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por
inseminação artificial heteróloga [...]. (LÔBO, 2004, p.13).
Deste modo, pode-se dizer que o direito à identidade genética é uma garantia
fundamental que deve ser respeitada pelo Ordenamento Jurídico, pois esta está intimamente
ligada com o reconhecimento pessoal, formação de características e da personalidade, sendo
assim, deve ser escolha do indivíduo saber ou não a sua ascendência genética.
Quando o indivíduo busca saber da sua origem genética não está discutindo seu
status de filiação, muito pelo contrário, procura somente exercer o direito de personalidade:
O estado de filiação, decorrente da estabilidade dos laços afetivos construídos no
cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade
ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de
sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de
direito de família, e a segunda, de direito da personalidade. As normas de regência e
os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram. Para garantir a tutela do
direito da personalidade, não é necessário investigar a paternidade. O objeto da
tutela do direito ao conhecimento da origem genética é a garantia do direito da
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personalidade, na espécie, direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para
a necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos
próximos, para prevenção da própria vida. (LOBO, 2004, p. 53)
Desta forma resta claro que não é necessário atribuir a paternidade para poder
exercer o direito de personalidade, e conhecer a sua ascendência biológica ambas as situações
são e discutem coisas diferentes.
O biodireito depara-se com as consequências da dação anônima de sêmen humano
ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma
conclusão da bioética apontam para a atribuição da paternidade aos que fazem dação
anônima de sêmen para os chamados ―bancos de sêmen" de instituições
especializadas ou hospitalares. Em suma, a identidade genética não se confunde com
a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser
humano constrói entre a liberdade e o desejo. (LOBO, 2004, p. 54)
Mesmo nas situações em que o indivíduo tenha conhecimento da identidade civil dos
seus pais biológicos, este não terá direitos sucessórios ou qualquer tipo de obrigação que
decorra do vínculo filiatório, como por exemplo, direito a alimentos.
Dessa forma, nota-se que apesar de a paternidade socioafetiva ser extremamente
importante para a formação de um indivíduo, esta por si só não afasta o direito do
conhecimento a ascendência biológica.
O reconhecimento da identidade genética é uma garantia que já é aplicada em outros
países, os quais possibilitam aos indivíduos nascidos das técnicas da reprodução assistida o
conhecimento da sua carga biológica, ou até, em alguns casos, o conhecimento da identidade
civil dos seus pais biológicos, contudo, defendem que não há nenhum efeito sobre a relação
de parentesco.
No direito alemão, o Tribunal Constitucional, em decisão de 1994, reconheceu
nitidamente o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, mas
―sem efeitos sobre a relação de parentesco‖. O direito espanhol, ao admitir
excepcionalmente a revelação da identidade do doador do material fecundante,
expressamente exclui qualquer tipo de direito alimentar ou sucessório entre o
indivíduo concebido e o genitor biológico. O Código Civil argentino (art. 327) não
admite reconhecimento nem ação de filiação do filho adotado contra a família de
origem, mas permite conhecer quem é a mãe e o pai biológicos, sem fim de
parentesco (art. 328). Na França, o art. 342 do Código Civil prevê a solução criativa
da ―ação para fins de subsídios‖, que permite a qualquer criança, sem paternidade
estabelecida, reclamar subsídios, para sua manutenção, de todos os homens que
tiveram relação sexual com a mãe, no período legal da concepção, sem atribuição de
parentesco, em virtude de terem assumido risco para a geração da criança; e a Lei n.
2.002-93 permitiu o acesso a suas origens das pessoas adotadas e dos ―pupilos do
Estado‖, sem efeito sobre o estado civil e a filiação — alimentos, sucessão, poder
familiar. (LOBO, 2011, p. 228-229)
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Em tese negar o direito ao conhecimento da identidade genética é tão lesivo quanto
quebrar o sigilo do doador de gametas e violar o seu direito a privacidade. O tema em questão
é um tema atual e importantíssimo que sofre muita divergência doutrinária e necessita de uma
legislação específica. Cabe ao Ordenamento Jurídico Brasileiro possibilitar a relativização
entre tais garantias e assegurar de modo efetivo de nenhum cidadão tenha seu direito violado
ou reduzido.
5. DO ANONIMATO DO DOADOR DE GAMETAS
Com o avanço científico da medicina, surgiram várias técnicas e meios de
reprodução humana, as quais não necessariamente decorrem da relação sexual, são
reproduções realizadas em laboratório, conhecidas como reprodução assistida ou inseminação
artificial.
Conforme já explicado anteriormente, tal técnica pode se dar de duas maneiras,
sendo elas a reprodução assistida homóloga e a heteróloga. A primeira não traz grandes
controvérsias visto que o material genético utilizado pertence ao marido ou companheiro da
receptora. Já a segunda diz respeito ao procedimento em que se utiliza de material genético
doado por um terceiro, um estranho em relação ao casal, que neste caso age como tão somente
um agente auxiliador para a concretização do desejo de paternidade.
Para que seja possível ocorrer a fecundação in vitro pelo meio da reprodução
assistida heteróloga é necessário a existência de doadores de gametas, os quais recorrem as
clínicas de fertilização artificial para lá deixarem armazenado o seu material genético.
Vale ressaltar que muitos dos doadores sujeitam-se a doar seu material genético, pois
estão cientes de que sua identidade pessoal e genética serão resguardadas, bem como, sabem
que se por ventura seu material vier a ser utilizado, isso não desencadeará nenhum vínculo,
seja afetivo ou obrigacional, decorrentes da paternidade com a criança gerada.
Essa também é a lição doutrinária de Juliana Frozel de Camargo ao escrever ser
''ponto quase pacífico na legislação estrangeira de que não se estabelece vínculo de
filiação entre o terceiro doador, estranho ao casal e a criança nascida pela técnica
reprodutiva, já que não houve a intenção de paternidade e maternidade, portanto, não
há qualquer responsabilidade sobre essa criança. A verdade afetiva deve bastar para
a filiação, ou seja, os fundamentos sociológico e psicológicos da parentalidade
devem prevalecer, tanto que os filhos adotivos, sem nenhum vínculo biológico, são
considerados filhos do casal, em um conceito jurídico de filiação. Ainda que não
exista lei específica, a analogia ao instituto da adoção, o estudo dos princípios que o
orientaram, além do exame da legislação estrangeira, não deixam dúvidas de que pai
e mãe são aqueles que lutaram e realmente desejaram a criança. (CAMARGO, 2003,
apud MADALENO, 2013, p.536)
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Seguindo nesta linha de raciocínio nota-se que o doutrinador atenta-se para o fato de
titular e atribuir as obrigações e deveres como pais somente para aqueles que desejaram no
seu íntimo a vontade de ter filhos. O simples ato generoso do indivíduo ser um doador de
material genético não atribui a ela qualquer vínculo obrigacional para com a criança
concebida.
Ainda que, se por ventura, a identidade pessoal do doador venha à tona e se torne de
conhecimento para criança concebida, esta não terá direitos decorrentes do exercício familiar,
tal fato deverá ser interpretado simples e meramente como um exercício ao conhecimento da
sua vida íntima, ficando desobrigado o doador de qualquer vínculo obrigacional.
Quem acolhe desde o nascimento como genitor do coração, constitui a voluntária
paternidade ou maternidade socioafetiva da solidariedade, com gestos reais de amor
que formatam e contam a verdadeira história de uma filiação. Essa relação não pode
ser desconstituída, é irretratável, não deve e nem pode ser desfeita em nome da
filiação da sucessão, o investigante vai apenas identificar o doador do material
genético que lhe deu origem e existência, vai conhecer sua identidade estática ao
exercer o direito ao conhecimento da sua vida íntima, e não no exercício da sua vida
familiar, porque família ele já tem e neste núcleo construiu sua identidade dinâmica.(
MADALENO, 2013, p. 505)
Deste modo, nota-se que a verdade biológica não prevalece sobre a verdade
socioafetiva. Paternidade é muito mais do que o simples material genético, é o amor dedicado
ao filho por uma vida inteira, é o ensinamento de valores, o amor incondicional, e isso não
pode ser imposto a uma pessoa que se quer desejou ter filhos.
É por esta razão que o anonimato deve sempre ser resguardado, respeitando a
intimidade do doador e a sua escolha, não submetendo-o a sentimentos que nunca foram
desejados.
O Conselho Federal de Medicina estabelece que não deve ocorrer o conhecimento da
identidade civil do receptor do material doado com o doador e vice-versa. Mais uma vez,
frisa-se que o doador de gametas age tão somente como um agente auxiliador para a
concretização do desejo de paternidade e maternidade.
O direito de anonimato do doador de gametas encontra-se fundamentado no direito a
intimidade, uma garantia fundamental elencada no artigo 5º, inciso X da CF/88. Além disso,
acredita-se que a possibilidade do reconhecimento da identidade genética prejudicaria e
reduziria em muito o número de doações, levando em consideração que o ponto principal
que incentiva os doadores a sujeitar-se a tal procedimento é justamente seu anonimato, bem
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como, a garantia de que este estaria desobrigado a criar laços afetivos ou obrigacionais
decorrentes da paternidade.
Acerca da temática, Denise Hammerschmidt:
A intimidade é um direito inerente à pessoa, que não é preciso ser conquistado para
possuí-lo nem se perde por desconhecê-lo. É uma característica própria do ser
humano pelo mero fato de sê-lo. Esse direito, que na Constituição Federal brasileira
tem características de direito fundamental (art. 5°, X), apresenta suas raízes no
direito ao respeito da liberdade da pessoa, que se encontra na base de todo tipo de
convivência e de relações humanas. (HAMMERSCHMIDT, 2007, p. 93).
Ou seja, para a doutrinadora toda pessoa é detentora do direito à intimidade,
Por ser um tema atual e não ter legislação específica o anonimato do doador de
gametas versus o direito à identidade genética gera grandes discussões na seara do Direito.
Para os defensores do anonimato, devem ser protegidas as suas garantias fundamentais,
qual seja, o direito a intimidade bem como o da dignidade da pessoa humana:
No âmbito do Direito, os argumentos desfavoráveis ao anonimato do doador são de
ordem constitucional, porquanto esteados no entendimento de que a imposição dessa
obrigatoriedade atenta contra a Lei fundamental. Para essa corrente, a observância
do anonimato do doador de gametas pelos ―estabelecimentos‖ que cuidam da
infertilidade, bem como para aqueles que fazem a doação do material, contraria o
princípio da dignidade da pessoa humana, que, segundo eles, atinge tanto a criança,
que nascerá com a utilização do material recebido, quanto o próprio
doador.(DONIZETTI, 2007. p. 120)
Outro entendimento quando ao sigilo do doador de gametas é que deve ser levado em
consideração melhor interesse da criança, conforme explica Gama:
O anonimato dos pais naturais – na adoção – e o anonimato da pessoa do doador –
na reprodução assistida heteróloga – se mostram também necessários para permitir a
plena e total integração da criança na sua família jurídica. Assim, os princípios do
sigilo no procedimento (judicial ou médico) e do anonimato do doador têm como
finalidades essenciais a tutela e a promoção dos melhores interesses da criança e do
adolescente, impedindo qualquer tratamento odioso no sentido da discriminação e
estigma relativamente à pessoa adotada ou fruto da procriação assistida heteróloga.
(GAMA, 2003, p. 903)
Além de ser observado o direito da dignidade da pessoa humana e da personalidade,
os quais vão garantir o sigilo do doador, deve-se atentar para o fator positivo que a falta da
informação da verdade genética acarretará na vida da criança. Seguindo a linha de
pensamento do doutrinador acima, o não conhecimento da ascendência genética por parte da
criança faz com que ela fique mais conectada a sua família afetiva, limitada somente aos laços
afetivos, sem que a verdade biológica possa interferir de forma expressiva na sua vida.
Que o anonimato do doador de gametas é garantido é sabido, pois embasado no
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direito à intimidade e à dignidade da pessoa humana estão assegurados pela Constituição
Federal, a questão que surge é se essa garantia deve prevalecer quando posta à frente de outro
direito fundamental, qual seja a identidade genética.
Em suma, nota-se que ambas as garantias tratam de situações importantes e que
acarretam grandes implicações na vida daqueles que foram ligados pela reprodução assistida
heteróloga.
Diante da falta de legislação específica que discorra sobre a temática, o que resta é
esperar um posicionamento do Ordenamento Jurídico que traga para a sociedade uma norma
regulamentadora podendo garantir a aplicabilidade de ambos os direitos forma plena,
proporcionando uma relativização de garantias justa e equilibrada para ambos submetidos a
essa situação.
Enquanto essa norma regulamentadora não estiver disponível para ser aplicada de
fato na sociedade e não mostrar uma direção a ser seguida, devem os aplicadores do direito
utilizar da técnica da ponderação de interesses, tema esse que será visto a seguir em título
próprio.
6. PONDERAÇÃO DE INTERESSES NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Segundo a clássica formulação de Kelsen, as normas constitucionais estão
estruturadas no mais alto grau hierárquico da Ordem Jurídica: ―A estrutura hierárquica da
ordem jurídica de um Estado é, grosso modo, a seguinte: pressupondo-se a norma
fundamental, a constituição é o nível mais alto dentro do Direito nacional [...].‖ (KELSEN,
2000, p. 182).
Dessa forma pode-se dizer que a Constituição Federal é a guardiã de um sistema de
normas e princípios, que orienta todo um ordenamento jurídico, trazendo consigo a ideia de
―Lei Maior‖, possui eficácia superior perante as demais leis, que deverão ser subordinadas
àquela, sob pena de serem consideradas normas inconstitucionais.
Visto as garantias fundamentais trabalhadas na presente pesquisa, ou seja, o direito
ao anonimato do doador de gametas, baseado na intimidade e na vida privada, bem como o da
identidade genética, embasado nos princípios da dignidade da pessoa humana e no direito da
personalidade, nota-se que tais prerrogativas encontram-se tuteladas pela mesma base legal,
ou seja, pelos princípios fundamentais elencados na Constituição Federal.
Superada a ideia de que as normas constitucionais possuem o mesmo grau
hierárquico e que os princípios trazidos por essa temática estão no mesmo pé de igualdade,
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não sendo possível que um prevaleça sobre o outro, faz-se necessário para a solução deste
embate, o uso da técnica de ponderação de interesses, o qual deverá ser aplicado no caso
concreto e, que nas suas devidas circunstancias, fará prevalecer um direito fundamental sobre
o outro, buscando sucessivamente a concordância de ambas as partes envolvidas, bem como,
objetivando sempre solucionar o caso de uma maneira harmônica e equilibrada.
Ponderação (também chamada, por influência da doutrina norte-americana de
balancing) será entendida neste estudo como a técnica de solução de conflitos
normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas
formas hermenêuticas tradicionais. Na verdade, a simples questão do que é a
ponderação exige um exame mais aprofundado, tanto porque a idéia tem sido
empregada pela jurisprudência de forma generosa. (BARCELLOS, 2005, p. 23)
Ponderar, segundo o dicionário online de português Dicio, é meditar; pensar
excessivamente acerca de esse será a obrigação do aplicador de direito ao julgar a colisão de
interesses entre o anonimato do doador de gametas e o direito à identidade genética no caso
concreto.
[...] tratando-se de duas normas constitucionais com idêntica hierarquia e força
vinculante, caberá ao julgador ponderar e harmonizar os conflitos constitucionais em
jogo, de acordo com o caso concreto, a ele apresentado, recorrendo inclusive ao
princípio da proporcionalidade. (KRELL, 2011, p.177)
O trabalho do aplicador do direito será de analisar a situação trazida aos autos e da
forma mais criteriosa e prudente possível, ponderar os interesses a ele apresentados e escolher
qual princípio deverá prevalecer.
A escolha entre um dos princípios não significa dizer que o não escolhido será
invalido, muito pelo contrário, ambos são garantias importantíssimas e que influenciam de
forma decisiva na vida dos envolvidos, já que cada um tem seu valor e tratam de interesses
sociais, contudo seria inviável ao Ordenamento Jurídico garantir as duas prerrogativas ao
mesmo tempo, levando em conta que são interesses totalmente opostos um do outro. Por isso
o uso da técnica da ponderação de interesses se faz tão importante, pois é somente através
dela que Ordenamento Jurídico conseguirá, na falta de uma norma regulamentadora, a
relativização dessas garantias tão importantes.
Deste modo, cabe ao aplicador do direito fazer uma profunda reflexão acerca do caso
concreto e observar qual a relevância dos princípios discutidos em questão e quais as
consequências que eles acarretarão na vida das pessoas envolvidas e, por fim, chegar a uma
conclusão para enfatizar o direito fundamental que mais se destacou diante das circunstancias,
garantindo que este seja aplicado de forma plena e harmônica.
Que o anonimato do doador de gametas e o direito à identidade genética estão
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assegurados pela Constituição Federal e são garantias fundamentais não há dúvidas. Contudo,
o assunto ainda é recente para o Ordenamento Jurídico o qual não acompanhou de forma
efetiva a desenvolvimento da medicina no que diz respeito as técnicas de reprodução
assistida heteróloga, e não desenvolveu uma legislação própria que venha a regular os casos
que foram discutidos nesse trabalho.
Cabe ao aplicador do direito, na falta de uma norma específica do Ordenamento
Jurídico que regulamente acerca da relativização e aplicabilidade dos direitos, utilizar-se da
técnica da ponderação de interesses, para que dessa forma seja dada uma possível solução
para o caso, ponderando as garantias de forma justa e harmônica.
Tal técnica surge como uma possível solução para a relativização do direito ao
anonimato do doador de gametas e o direito a identidade genética. Busca através da análise
profunda do caso concreto harmonizar os direitos fundamentais debatidos, e garantir de forma
justa e equilibrada a aplicação de um deles.
Contudo, a existência dessa técnica não supre a necessidade do assunto possuir uma
legislação específica que regulamente a temática, isso porque estando o assunto a mercê da
interpretação subjetiva de cada aplicador do direito, podem ocorrer entendimentos diferentes
em cada caso concreto, visto que cada Juiz traz consigo uma bagagem de valores, princípios,
experiências vividas que podem, de certa forma, influenciar na neutralidade do aplicador do
direito ao julgar o caso concreto.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do estudo e das reflexões, utilizando-se do posicionamento do Ordenamento
Jurídico Brasileiro e de bibliografia analisadas é possível tecer algumas considerações acerca
da temática.
A técnica de reprodução humana assistida é uma das mais utilizadas por pessoas
solteiras ou casais heterossexuais/homossexuais para a concretização do desejo da
paternidade.
Nota-se que em virtude da falta de legislação específica diante da reprodução
assistida heteróloga, nasce uma grande discussão acerca da colisão entre os direitos
fundamentais inerentes a pessoa do doador de gametas e o nascido através da técnica da
reprodução assistida. Por se tratarem de direitos fundamentais e estarem sob o mesmo grau
hierárquico não há o que se falar na prevalência de um sobre o outro.
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Diante da relevância da temática na vida daqueles que foram concebidos através das
técnicas da reprodução assistida, se faz necessário que o Ordenamento Jurídico Brasileiro
origine uma norma regulamentadora que traga uma possível relativização das garantias
fundamentais para serem aplicadas de forma harmônica e equilibrada.
Para alguns doutrinadores como Paulo Lobô, Rolf Madaleno, Olga Krell, dentre
outros resta claro que o direito da criança em saber a sua origem genética deve ser priorizado,
e que se for necessário, este deve prevalece sobre os direitos de intimidade e privacidade do
adulto.
Falar em direito à identidade, de certa forma, não se restringe somente a história
genética do indivíduo, vai muito além. É através do conhecimento da ascendência biológica
que a criança concebida através da técnica da reprodução humana assistida descobrirá suas
origens culturais, características, costumes, e até mesmo se possui alguma tendência para
desenvolver doenças genéticas, o que é de extrema importância, pois tal informação poderá
servir no tratamento preventivo desses males.
Outro ponto marcante do que diz respeito ao direito à identidade genética é que, pela
analogia, tal prerrogativa também encontra-se baseada no tratamento igualitário entre os
filhos, que assegurado pela Constituição Federal dispõe que a prole, independente do modo de
concepção, devem ser tratados de formas iguais, sendo estes detentores das mesmas garantias,
ou seja, se a criança adotada tem direito de saber quem são seus pais biológicos o indivíduo
concebido através das técnicas de reprodução assistida também tem.
Em tese, negar o direito à identidade genética é tão lesivo quanto violar o direito à
intimidade e à vida privada. Não há como discutir a efetividade de cada um e escolher qual é
o mais importante. Enquanto não houver uma legislação específica que mostre o caminho a
ser seguido o tema estará em constante discussão.
Diante da construção teórica que foi sendo paulatinamente realizada nesta pesquisa e
enquanto o poder legislativo não supre tal omissão legal se sugere como a medida que tende a
contornar esse conflito de interesses é o uso da técnica de ponderação de interesses.
Tal técnica consiste na interpretação do caso concreto, na análise feita em cada ação
judicial que pleiteia acerca o direito ao conhecimento da identidade genética ou da
desobrigação de vínculos filiatórios, obrigando o aplicador do
direito analisar os fatos
trazidos aos autos, ponderando os interesses das partes, e chegando a uma melhor conclusão, a
qual deverá ser justa e harmônica.
Dessa forma o aplicador do direito poderia proporcionar a relativização dos direitos
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fundamentais sem ferir o princípio da dignidade da pessoa humana, prerrogativa que está
presente tanto no direito ao anonimato do doador de gametas e no direito à identidade
genética.
Embora que o assunto já seja discutido por muitos juristas e doutrinadores o tema em
questão é muito relevante e que abre um grande espaço para discussão no âmbito jurídico. É
preciso um estudo aprofundado do tema para que o Ordenamento Jurídico possa de forma
eficaz estabelecer parâmetros para servir de respaldo aos aplicadores do direito usar de forma
prudente tal legislação e dessa forma garantir a relativização das garantias fundamentais sem
ferir o princípio da dignidade da pessoa humana.
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