Construções existenciais com o verbo SER no português

Propaganda
Construções existenciais com o verbo SER no português brasileiro contemporâneo
Elisângela Gonçalves
Universidade Estadual de Campinas
No português arcaico, observa-se a variação entre ser e haver, verificando-se, no
final do século XVI, somente o uso de aver existencial (ao mesmo tempo em que se
consta o emprego de existir). Antes de funcionar como existencial, aver era verbo
possessivo, que passou a ser representado por ter entre os séculos XV e XVI. No
português brasileiro (PB), ter ainda ocupa o lugar de aver como existencial, sendo mais
empregado ao menos na oralidade (Mattos e Silva 2002). De acordo com estudos sobre
as construções existenciais no português, o emprego do verbo ser existencial não é mais
encontrado na atualidade. Neste trabalho, entretanto, apresento construções existenciais
com o verbo ser no português brasileiro contemporâneo, exemplificadas em (1) a
seguir, em que o verbo ser pode ser substituído pelos verbos haver, ter e existir, sem
aparente prejuízo ou alteração de sentido:
(1) a. Lá no Rio de Janeiro é/há/tem/existe uma violência terrível. (Vitória da Conquista, BA,
Séc. XX)
b. olha... as empregadas... tinha uma cozinheira que ficava só por conta da cozinha é tão
trabalhosa né... que era/havia/tinha/existia só uma pessoa... agora lá no norte tinha
assim uns... meninos que ficavam dentro de ca:::sa sabe. (Projeto NURC/RJ, Séc. XX)
c. Ah, bom tem/ são/há/tem/existem lembranças muito boas né. (Campinas, SP. Séc. XX)
Baseio-me na versão minimalista da Teoria de Princípios e Parâmetros
(Chomsky 1995) e assumo a proposta de Freeze 1992, para quem as sentenças
existenciais são caracterizadas pela presença de um DP indefinido pós-verbal e de um
locativo na posição de sujeito, ou seja, em [Spec,TP].
Na modalidade escrita do PB e do português europeu (PE) dos séculos XIX e
XX, não se verificam construções existenciais com o verbo ser nos dados do Projeto
Análise Contrastiva de Variedades do Português, mas sim com o verbo haver (e com
ter, somente no PB). Com relação ao português oral, delineiam-se duas realidades: (1)
de um lado, no português europeu atual, somente o verbo haver faz parte da
configuração de sentenças existenciais; (2) de outro, no português brasileiro
contemporâneo, as construções existenciais dispõem de três realizações para o verbo
existencial: ter (o seu verbo existencial canônico), haver e ser.
Neste trabalho, argumento que esses fatores podem ser explicados a partir da
incorporação de traços a v copular, resultando na realização fonológica de cada um
desses verbos. O processo de mudança nas existenciais do português, no período arcaico
e médio, originou-se quando o verbo haver deixou de indicar posse, passando a figurar
entre as existenciais. Para a realização fonológica de haver possessivo, a preposição
dativo-benefactiva a era incorporada a v copular. Todavia, essa preposição perdeu seu
valor estativo, não mais podendo licenciar verbos de posse. À medida que isso ocorria, v
passou a incorporar o traço de Caso partitivo, o que resultou na realização fonológica de
haver existencial (Avelar 2007). Enquanto as construções existenciais com ser não
estavam sujeitas a restrições de definitude, tendo em vista que seus DPs possuíam traço
de Caso nominativo (checando seu traço de Caso nominativo contra o traço de T), não o
partitivo, as existenciais com haver passaram a ser fortemente marcadas pelo Efeito de
Definitude, tendo em vista que o Caso envolvido passou a ser justamente o partitivo (cf.
Belletti 1988). Em decorrência disso, outras alterações foram desencadeadas, visto que
os DPs passaram a ocupar categoricamente a posição pós-verbal, assim como não
ocorre concordância entre o Tema e o verbo.
O PB, por sua vez, verificou uma mudança adicional: a inserção de ter como
verbo existencial em meados do século XIX. Seguindo Avelar 2008, assumo que essa
mudança está atrelada ao enfraquecimento da morfologia verbal do sistema flexional do
PB, e consequente perda do sujeito nulo, o que não se verificou no PE. Na ausência de
um sujeito fonológico em sentenças com ter, estas passaram a ser interpretadas como
existenciais, com um sujeito locativo em [Spec, TP]. Logo, uma sentença como a
apresentada em (2) a seguir possui interpretações diversas por falantes do PE e do PB.
Assim como ser, ao contrário de haver, ter permite a ocorrência de DPs pós-verbais
definidos. Isso se deve ao fato de o Tema checar traço de Caso acusativo contra os
traços de v; desse modo, as restrições de definitude sofrem um afrouxamento.
(2) Tem muita roupa naquele armário.
PE: (Ele) tem muita roupa naquele armário.
PB: Há muita roupa naquele armário.
Uma vez que o PB dispõe do verbo ter como seu verbo existencial canônico, o
que justificaria o emprego de mais dois verbos, haver e ser, para tal fim? Haver é o
verbo empregado na linguagem escrita, sendo resultado de um processo de
escolarização, não fazendo, portanto, parte da gramática nuclear do falante (Kato 2005,
Avelar 2006). Ser, por sua vez, é empregado, na oralidade, quase que exclusivamente
em contextos de ênfase, marcado por quantificadores e advérbios intensificadores, como
em (1) acima e em (3a) a seguir. Isso não é novidade entre as línguas, pois, no russo,
registram-se quatro formas de se expressar as construções existenciais, sendo uma delas,
conforme Dong 1996, a chamada estrutura elíptica (formada de um AdvP ou PP e um
NP), que é marcada por expressividade e, muitas vezes, usada na ficção e poesia.
Um complicador para a consideração das sentenças existenciais nesta proposta é
o fato de ser muito frequente no PB a não-realização de um locativo em suas
existenciais, como no exemplo em (3) a seguir, em que não é sequer possível a
recuperação de um locativo pelo contexto precedente.
(3) a. A gente vive na sensação de que é só violência.
b. [...] mas tem gente que não tem aquela mentalidade e quer imitar. (Vitória da Conquista,
BA. Séc. XX)
Tendo em vista que considero que é o elemento locativo o responsável pela
interpretação existencial de uma sentença, postulo, seguindo Ribeiro 1996, a existência
de um locativo nulo, a versão encoberta do clítico adverbial hy empregado no português
arcaico e de sintagmas preposicionados. Desse modo, é possível validar para o
português a hipótese de Freeze 1992.
Referências:
AVELAR, J. O. 2008. On the Emergence of TER as an Existential Verb in Brazilian
Portuguese. In CRISMA, P.; LONGOBARDI, G. (Ed.). Historical Syntax and Linguistic
Theory. Oxford: Oxford University Press.
_______. 2007. Relatório Científico de Pós-Doutoramento. Projeto Verbos Possessivos em
Contextos Existenciais na História do Português. Universidade Estadual de Campinas, 59f.
_______. 2006. Gramática, competição e padrões de variação: casos com "ter/haver" e "de/em"
no português brasileiro. Revista de Estudos da Linguagem, v. 14, p. 99-144.
BELLETTI, A. 1988. The Case of Unnacusatives”. Linguistic Inquiry. 19 (1): 1-34.
CHOMSKY, N. 1995. The minimalist program. Cambridge: MIT Press.
DONG, Z. 1996. The Structures of Existential Sentences. Linguistic Analysis. 26: 3-4.
FREEZE, R. 1992. Existential and Other Locatives. Language 68: 553-595.
KATO, M. A. 2005. A gramática do letrado: questões para a teoria gramatical. In: MARQUES,
M. et al. (Org.). Ciências da linguagem: trinta anos de investigação e ensino. Braga: CEHUM
(U. do Minho), p. 131-145.
MATTOS E SILVA, R. V. 2002. Vitórias de ter sobre haver nos meados do século XVI: usos e
teorias em João de Barros. In: ______.; MACHADO FILHO, A. V. L. (Org.). O português
quinhentista: estudos lingüísticos. Salvador: EDUFBA, p. 119-142.
RIBEIRO, I. M. 1996. A formação dos tempos compostos: a evolução histórica das formas ter,
haver e ser. In: ROBERTS I.; KATO, M. A. (Org.). Português brasileiro: uma viagem
diacrônica, Campinas, Editora UNICAMP, 1003, p. 343-386.
Download