Proposta de Trabalho Para a Proposta de Seminário Temático “A Antropologia e seus Métodos: o Arquivo, o Campo, os Problemas”, XXV Encontro Anual de ANPOCS, Caxambu, 16-20 Outubro. Cecilia McCallum UFBA. Pesquisadora Participante, ISC – Instituto de Saúde Coletiva – Título O Saber Antropológico e a Totalidade nos Fatos Sociais Resumo A antropologia social colocou a metodologia em segundo plano durante a maior parte do século XX, elegendo a observação participante como “método” único ou hegemônico. A discussão teórica girava sempre em torno da análise dos “dados”, sem questionar em profundidade o status epistemológico dos mesmos no que dizia respeito aos métodos de “coleta”. Quando a crítica pós-modernista desconstruiu a etnografia, com o intuito de mostrá-la como visceralmente subjetiva (não-científica) e portadora velada da voz do colonizador, a antropologia social não dispunha de argumentos teóricos capazes de rechaçar as acusações de uma forma contundente. A reação, na maioria das vezes, consistia em ignorá-las, ou capitular. O presente artigo retoma dois aspectos do “fazer etnografia” para refletir sobre as práticas metodológicas atuais na antropologia brasileira e mundial, que se caracterizam, ao primeiro olhar, pelo uso de variadas técnicas e métodos de pesquisa, e não pelo uso predominante da “observação participante”. Esta reflexão defende o “fazer etnografia” como base de qualquer antropologia, da seguinte forma: em primeiro lugar, toma a etnografia não como simples estratégia de coleta de dados, e sim como uma postura epistemológica capaz de gerar diversas práticas de pesquisa, ou melhor, que exige a diversificação na abordagem dos temas concretos investigados. Isto é conseqüência lógica, no argumento apresentado no artigo, da natureza dos fatos sociais ditos “totais”. Em segundo lugar, como postura epistemológica, a etnografia não exige em todos os casos a presença física do pesquisador no contexto da pesquisa. Contudo, a investigação antropológica demanda um olhar imaginado de etnógrafo, que o torna como que presente ao campo e, mais, sempre alerta, de uma forma incorporada, à totalidade dos fatos sociais investigados. Eis o produto final: o saber antropológico, colorido sempre pela visão etnográfica. Favor Não Citar sem Permissão da Autora 1 O Saber Antropológico e a Totalidade nos Fatos Sociais Experimentei, enquanto criança, desejos impossíveis: o desejo de tornar-me outra – um adulto onipotente, uma outra menina, um bicho; o desejo de habitar outras paisagens, de me livrar dos limites físicos dos espaços que me circundavam. Fugia, durante horas, ocupada em longas viagens mágicas, lendo os clássicos da literatura infantil da língua inglesa. Sonhava, também, as minhas próprias aventuras e histórias, às vezes na companhia de amigos. Mais tarde, quando entrei firmemente no terreno da saudade e da memória (pois tive que partir definitivamente do país onde morava desde muito jovem), traçava voltas imaginárias para o passado. No entanto, sempre me deparei de novo com a minha própria realidade (que hoje, décadas depois, eu sei ter sido, em alguns momentos, bastante exótica e rica). Em geral, essa realidade só me oferecia a visão para o contato com o Outro e o seu mundo. Assim, durante viagens de carro intermináveis, olhava pela janela e desejava habitar aquela outra paisagem, entrar nos bosques, pular as cercas, voar como um cavalo árabe sobre a terra. Tornei-me antropóloga por vários motivos, mas, sem dúvida, a atração do Outro consta como um deles. Quando criança, eu queria viver a experiência da alteridade – estar na pele, vestir as roupas, ocupar o terreno dos outros; agora, já adulta, em alguns momentos quase cheguei à realização deste desejo. O conhecimento incorporado (“embodied knowledge”) gerado pelo “fazer etnografia” imita a fantasia infantil. A experiência da observação participante pode ser entendida como um processo de transformação, de corpo e mente, em outro. O processo, contudo, nunca se completa, mas deixa marcas indeléveis na consciência e corpo do pesquisador. Como inúmeros etnólogos testemunham, o processo é capaz de abalar a “segurança ontológica” que investe o cotidiano normal do “participante” (para inverter a ênfase usual no papel de ‘observador’), mesmo temporariamente. Mais tarde, a memória desse estado de ser transitório transforma-se numa segunda viagem, e em outras transformações, desta vez vivida através da memória, e que serão trabalhadas e escritas como “etnografia”. A imaginação e a rememoração, moldadas pelo processo de produção textual, gera outras fusões e aproximações com o Outro, de tal forma que o eventual leitor pode embarcar, também, na experiência etnográfica, através da identificação com o autor. 2 *** A antropologia praticada no hemisfério norte não abre mão da primazia da pesquisa etnográfica, realizada principalmente através da “observação participante”, base metodológica da disciplina. Raramente são discutidas questões teóricometodológicas na preparação para a pesquisa de campo, e os cursos preparatórios tomam a forma de ensino de distintas técnicas de pesquisa e maneiras de registrar os dados. “Pesquisa de campo” significa, em primeiro lugar, deslocar-se para morar em campo, como um nativo, e ali proceder à coleta de dados. Os antropólogos que ousam utilizar outros métodos, sem este deslocamento espacial e cultural, correm o risco de enfrentar um questionamento da sua própria identidade. Embora a especialização em temas e áreas geográficas ou culturais cresça cada vez mais, a pesquisa etnográfica continua normativa1. Por exemplo, alguns recentes livros metodológicos nem sequer consideram outros métodos e procedimentos como possíveis alternativas (Hastrup & Herevik 1994; Sanjek 1990). Já no hemisfério sul – ou pelo menos no Brasil – a “observação participante” não tem o status de método hegemônico e o “fazer etnografia” não é o objetivo principal dos antropólogos; em certas áreas de especialização, outras formas de realizar pesquisa e conceber seu produto final coexistem, ou até tendem a tomar o lugar daqueles métodos. Não é necessário se deslocar de casa durante um período de meses ou anos para realizar “o campo”. Pode-se sair de manhã e voltar para almoçar em casa durante o período em que se está engajado na pesquisa. Mesmo nessas condições, porém, as análises antropológicas requerem um certo sabor etnográfico, e devem prestar homenagem à etnografia como forma de escrita e maneira de pensar o social. Na presente comunicação, pretendo explorar alguns aspectos fundamentais dessa hegemonia (aparentemente ameaçada) da etnografia, a qual ainda caracteriza a disciplina, embora às vezes de modo quase imperceptível. Defendo a preeminência da visão etnográfica, baseada na observação participante, como marca fundamental da antropologia, mas não com o intuito de questionar a legitimidade das diversas técnicas e métodos utilizados em pesquisa dita antropológica, senão de resgatá-los para a disciplina, através de uma contextualização metodológica em linhas claras. Sugiro que 1 Goldman (1994) batiza este fenômeno de “hiper-especialização”. Com muita razão, nota que: “A antropologia contemporânea vem se caracterizando por uma espécie de enclausuramento, de encerramento em si mesma” (Ibid: 18-19). Ele diagnostica uma espécie de “crise do sujeito” ou uma 3 estas outras técnicas e métodos deveriam ser entendidos como necessariamente englobados pela visão etnográfica, o que significa que não devem ser considerados como equivalentes à observação participante, ou capazes de substituí-la. O meu argumento é simples: entendo que a experiência da pesquisa participante esteja sempre presente nas formas concretas do “saber antropológico”, embora a pesquisadora, ou o pesquisador, não tenha estado fisicamente presente no campo que é o seu objeto. Isto significa que é possível fazer “antropologia histórica”, mas apenas entre os limites epistemológicos postos pelo “fazer etnografia”. Em algumas especialidades antropológicas, a etnografia tem uma presença realmente pálida. Victora, Knauth e Hassen (2000), escrevendo sobre pesquisa qualitativa em saúde, denominam a “observação participante” como uma possível técnica de coleta de dados, essencialmente descritiva, entre tantas outras técnicas passíveis de serem escolhidas pelos pesquisadores, a depender do objetivo da pesquisa. Assim, são listadas “entrevistas; grupos focais; histórias de vida; elaboração de desenhos; rede de relações; análise de documentos, etc.” 2. Este é um caso em que o “fazer etnografia” desaparece enquanto ponto referencial. Para pesquisadores na área de saúde, o importante é facilitar o acesso aos dados, de forma sistemática e bem planejada, para então realizar uma análise adequada aos fins originais da pesquisa, pautados na “questão” a ser investigada. É importante notar que a pesquisa qualitativa na saúde é uma área em que se faz necessária muita clareza sobre que tipo de informação se pretende obter com a investigação, e na qual um dos objetivos comuns é, geralmente, subsidiar ações de intervenção. Ora, sabemos que a prática antropológica, desde o começo do século XX, privilegiou a sincronicidade, moldando-se a partir de um posicionamento metodológico contraposto àquele da história. Diferindo na sua ênfase, a tarefa que essa vertente, a antropologia da saúde, toma para si é gerada, pelo menos em parte, por outro contraste: a justaposição com a pesquisa “quantitativa”, que junto às ciências de saúde tem maior destaque do que a pesquisa “qualitativa” e goza de maior credibilidade. À pesquisa “qualitativa” é outorgado um papel de suplementar, hierarquicamente inferior ao da quantitativa, agente ao serviço das suas necessidades e não vice-versa. O que importa insegurança de identidade disciplinar, como se os antropólogos sentissem que têm pouco a contribuir fora da disciplina. 2 Nesse aspecto, esse texto é exemplar dos manuais sobre pesquisa em saúde. Veja por exemplo Campbell et al (1998). 4 (na visão das entidades financiadoras e seus assessores) é a “explicação” e a validade cientifica. O tipo de informação ou compreensão fornecida pelo método de observação participante dificilmente se adapta a este conjunto de valores e prioridades3. Parece-me que, como resultado, a etnografia, embora presente como marca de identidade originária (quase ancestral), deixa de ser foco de reflexão especial para esta subdisciplina4. Em muitos casos, um projeto de pesquisa qualitativa na área de saúde, no intuito de objetividade e rigor, concentra-se na coleta de entrevistas com uma determinada categoria de sujeitos, evitando colher informação vista como desnecessária (como seria o caso no “fazer etnografia”). Dispondo de tempo e recursos limitados, é preciso que os pesquisadores tenham clareza, desde o começo, sobre o tipo de informação requerida, e para que fins a requerem. No processo de planejar uma pesquisa, o “fazer etnografia” pode aparecer como uma estratégia para coletar dados, entre tantas outras possíveis, válida apenas em certas situações (numa aldeia indígena, por exemplo). Deste ponto de vista, assume o caráter de algo eventualmente descartável: o importante é acumular “os dados”, não o meio de atingi-los. Pior que isso, a etnografia pode aparecer, na lógica que impera na pesquisa qualitativa em saúde, como uma estratégia redundante, inadequada e até perigosa. Afinal, é necessário tratar da informação e ordenar os dados etnográficos, que podem ser diversos e confusos demais. Nesse tipo de pesquisa, é comum planejar a estratégia de análise dos dados com antecedência, e por isso a forma em que a informação será registrada é também concebida de antemão, para facilitar o preparo do produto final. O problema é que uma investigação “qualitativa” estruturada desta forma traz o risco de perderem-se nuances, possibilidades de interpretação, ou até a percepção mais objetiva de padrões sociais implicados no universo da investigação, que apenas uma abordagem mais livre e baseada na indução permitiria. Esta, porém, é apenas uma observação superficial, cuja aceitação depende da posição do pesquisador: concordaria com ela quem desejasse uma compreensão profunda do tema em questão; aqueles que buscam respostas claras e pragmatismo refutariam, facilmente, o comentário. O problema não é este; ou seja, a questão que se coloca não é de sofisticação, embora em textos sobre a relação entre pesquisas 3 A discussão deste tema na sociologia já se desenvolve desde a metdade do século XX. Veja Becker 1997. 4 Outras áreas e sub-disciplinas merecem uma discussão também, pois cada uma delas possui suas características e posições particulares em relação à etnografia. 5 qualitativas e quantitativas seja comum justificar a inclusão das primeiras como capazes de conferir esta qualidade ao saber produzido, uma sofisticação dificilmente presente nos grandes surveys que utilizam “instrumentos” ou questionários estruturados e fechados5. Embora útil enquanto uma oposição conceitual para fins didáticos, esta distinção entre tipos de método deve ser problematizada, o que pode ser feito de qualquer dos dois pontos de vista contrapostos. Os próprios especialistas em métodos quantitativos, como epidemiólgos e demógrafos, por exemplo, reconhecem o aspecto subjetivo dos seus inquéritos6. De fato, para “fazer etnografia” foi sempre necessário reunir diversos métodos e técnicas de pesquisa, entre os quais “quantitativos” e “qualitativos”, reunindo o uso de fontes secundárias (por exemplo, arquivos) e primárias, incluindo, além de informantes, a experiência do pesquisador na sociedade estudada. Seria errôneo, portanto, atribuir à etnografia o status de um modo de pesquisa puramente qualitativo. Sugiro que é necessário tomar cuidado com o nosso vocabulário, para não correr o risco de divorciar a antropologia de saúde (e outros ramos da antropologia, com as suas peculiaridades metodológicas) da antropologia em geral. A etnografia é mais do que uma simples estratégia de coleta de dados. Retratá-la assim implica o risco de reduzir a meta da pesquisa à apropriação de “dados”, e sugere uma compreensão pouco profunda da base epistemológica da antropologia. De que tipo de dados se trata? É neste ponto, no qual se focaliza a construção do saber, que surge a necessidade de entender a etnografia como a postura epistemológica que define a antropologia, e a observação participante como o método antropológico par excellence. Como postura epistemológica, a etnografia gera diversas práticas ou técnicas de pesquisa, exigindo a diversificação na abordagem dos temas concretos investigados. Por exemplo, ao chegar numa aldeia amazônica, passo os meus dias entre estudar a língua, anotar os nomes das pessoas, esboçar diagramas das suas relações de parentesco, gravar mitos, fotografar as atividades rituais e cotidianas, realizar medições (de terrenos ou roçados), pesagens (de produtos agrícolas) etc. Realizo também fisicamente o meu trabalho: apanho produtos do roçado, teço algodão, pesco, canto, danço, etc. Posso fazer um censo de todos os moradores da região, em bom estilo quantitativo, ou posso cultivar um informante-chave, mergulhando em longas conversas interpretativas, 5 6 Veja por exemplo Bowling 1997. Por exemplo, XXX. Veja a discussão feito por Hammersley 1996. 6 explorando a filosofia e a cosmologia nativa. Posso portar-me como nativa ou como observadora. È importante enfatizar que a utilização de diversas técnicas no fazer etnografia não é uma questão de “quanto mais dados, melhor”, nem de “quanto mais nativo eu sinto, mais legítimo o meu entendimento”. Tampouco é apenas uma questão de aproximar-se do objeto da investigação sob diversos ângulos. O principal aqui – o que faz com que seja possível produzir uma análise antropológica propriamente dita, é a concepção do produto final: que tipo de análise, que tipo de saber, estamos tentando produzir? É neste sentido que podemos falar de postura epistemológica: a pesquisa é direcionada a um certo tipo de saber. Não se trata, porém, de supor que um tipo de “objeto" determine um tipo de saber. A antropologia não está sujeita a uma crise de “objeto”, pois pode operar em qualquer contexto social e cultural, desde as sociedades mais simples às mais complexas (Goldman, 1994:16). O saber antropológico, no entanto, há de tratar do social, que vem a ter o status de seu objeto privilegiado; Gell (1998), numa passagem em que reflete sobre as peculiaridades teóricas e epistemológicas da antropologia, nota-o com muita propriedade, quando diz que os antropólogos não estudam a cultura, em primeira instância, mas as relações sociais através das quais “a cultura” vem a ser. Esse autor retrata a abordagem antropológica como de alcance temporal limitado, propriamente biográfica, em contraste com a perspectiva sociológica, que seria meta-biográfica. Gell considera que uma teoria terá o direito de se chamar “antropológica” apenas ao mostrar uma semelhança com outras teorias do gênero; e, para ele, nada melhor do que uma linhagem direta com as teorias de Marcel Mauss (na qual ele busca incluir a sua própria teoria). Mauss oferece uma possibilidade de abordar também os problemas em consideração neste texto – pelo menos uma pergunta, talvez uma solução. Para que uma análise possa ser considerada propriamente antropológica, seus “dados” (independentemente da técnica ou método da coleta) não teriam que ser tratados como constitutivos de um “fato social total”? É preciso refletir sobre a noção de fato social total. Sabemos que não há, de antemão, um fato social. Diante do sujeito em processo de objetivar-se, os fatos sociais vêm a ser. Por exemplo, um pai Kaxinawá pensa sobre sua filha de doze anos: já vaidosa, pintando o rosto com desenhos em urucum ou batom, arrumando o cabelo com óleos perfumados, olhando os homens (embora discretamente) ou paquerando abertamente um rapaz durante um ritual festivo, ela demonstra estar 7 pronta para casar. Logo, ele pensa na filha em sua condição de membro da sua própria metade, eminentemente casável. Nesse momento, e depois, quando incentiva o namoro e o casamento entre ela e um jovem primo da outra metade, ele afirma, em níveis múltiplos, a existência real das metades exogâmicas. Ao aceitar ou rejeitar o incentivo dado pelo pai, a jovem e os outros membros da sua família, na série de atos em que, como sujeitos, transformam os outros em “Outros”, tornam-se, eles mesmos, objetos. E desse modo, o casamento virá a ser, no fluxo da prática social, na sua complexidade multidimensional, um fato social total. Imaginemos agora uma médica em seu consultório numa maternidade pública, frente a frente com uma jovem de catorze anos, grávida de seis meses, fazendo sua primeira consulta pré-natal, na presença da mãe. A obstetra se distancia duplamente da experiência e da identidade da filha e da mãe, outorgando à primeira o status de “adolescente” em estado de “gravidez precoce”, e à segunda o papel de chefe de uma família desestruturada ou falha. Não há, podemos supor, comunicação fácil ou clara entre os três, nem qualquer base de acordo sobre o significado social da gravidez da jovem. A médica procura concentrar-se apenas nos aspectos biológicos do caso, mas deixa escapar uma atitude condenatória através de algumas frases e gestos. Distanciando-se assim, ela reforça de várias formas, para si própria, a categoria “gravidez na adolescência” (que adquire, assim, o valor de uma categoria nativa) tomando a jovem como mais um exemplo do que para ela é um “fato social”. No entanto, não é a “gravidez precoce” em si (expressão de valor ideológico, moralizante e idiossincrática, considerando-se, por exemplo, a perspectiva Kaxinawá) que será o “fato social” a merecer consideração pelo antropólogo – embora pudesse ser o seu pretexto de estudo. A imagem que a médica tenha da “gravidez na adolescência” como um “fato” (ou, ainda, “problema”) social, por um lado, e a experiência vivida pela mãe e pela filha, por outro, são aspectos integrantes de um “fato social total”. Outros aspectos incluiriam as relações com o genro e sua família, com os avós, bem como as concepções de gênero ou reprodução elaboradas no contexto social cotidiano das duas mulheres, a cultura sexual entre jovens, etc. Todos esses componentes seriam o objeto de um terceiro sujeito, – a antropóloga ou o antropólogo, que trataria de abordá-los em uma discussão de feição etnográfica. Estamos descrevendo momentos em que as alteridades se constituem na sua forma mais crua. Desses atos, em que os sujeitos criam objetos, e nesse processo objetivam-se, 8 a etnografia se sustenta: os etnógrafos se constituem como tais porque, em primeira instância, aproximam-se das experiências sociais dos “outros” (sejam índios amazônicos, sejam obstetras e seus pacientes) para a seguir distanciarem-se, ao descrevê-las e analisá-las. O processo de objetivação é, no mínimo, duplo, pois inclui, primeiro, a apreciação do etnógrafo quanto aos processos de objetivação vividos pelos sujeitos, e, segundo, a auto-objetivação propiciada pelo processo de analisar e escrever. É claro que estes cenários sociais imaginados e comentados inspiram-se no texto de Lévi-Strauss (1974)7 sobre a obra de Marcel Mauss, em particular no trecho em que ele aprecia o Ensaio sobre a Dádiva. Na interpretação de Lévi-Strauss, a noção maussiana de “fato social total” deve ser entendida como uma recusa ao uso dicotômico da oposição entre “sujeito” e “objeto”. Ele escreve: Quando Mauss fala de fatos sociais totais, implica (....) que esta dicotomia fácil e eficaz é interditada ao sociólogo, ou, pelo menos, que ela só pode corresponder a um estado provisório e fugidio do desenvolvimento da sua ciência (Lévi-Strauss 1974:16). O autor afasta-se, nesse texto, de qualquer conceito absoluto de uma “realidade” aberta ao estudo científico a ser conduzido por um sociólogo ou antropólogo. Não há possibilidade de estes últimos escaparem da sua condição de sujeitos ao buscarem entender as sociedades dos outros – dos índios, dos médicos, dos adolescentes – procurando, por exemplo, apropriar os métodos das ciências naturais. Para Lévi-Strauss, embora não haja resolução teórica ao dilema da impossibilidade da objetividade, o processo sociológico ainda encontra meios de atingir o seu objetivo em sua prática: Entendemos que, na própria medida em que a distinção teórica é impossível, pode na prática ser levada bem mais longe, até tornar um de seus termos negligenciável, (...). Uma vez colocada a distinção entre objeto e sujeito, o próprio sujeito pode de novo desdobrar-se do mesmo modo, e assim por diante de maneira ilimitada, sem ser jamais reduzido a nada. A observação sociológica, condenada, parece, pela insuperável antinomia (....) extrair-se graças à capacidade do sujeito de objetivarse indefinidamente, isto é (sem chegar jamais a omitir-se como sujeito), de 7 Originalmente publicado em 1950. 9 projetar para fora frações sempre decrescentes de si mesmo (Lévi-Strauss 1974:17). Todavia, isto nos coloca frente a um outro dilema: em que medida, então, podemos atribuir aos fatos sociais estudados uma autonomia ou, pelo menos, uma força epistemológica para gerar e moldar as nossas análises? Até que ponto a “realidade” é mediada pelo etnógrafo-sujeito, ou, ao contrário, a análise antropológica faz jus às experiências vividas (reais) dos seus objetos ou se desdobra em caminhos traçados por eles? Em que trecho da trajetória interpretativa deixamos para trás os “objetos” – o pai Kaxinawá, ou a jovem grávida – e seus mundos? Como, enfim, devemos conceber a relação entre a noção de “fato social total” e uma suposta “realidade” social? Na perspectiva que acabamos de elaborar aqui, os sistemas de reciprocidade discutidos por Mauss, como o kula, não são entendidos como fatos sociais isolados da presença do olhar do autor. Sua existência enquanto fatos sociais depende do processo de objetivação dupla, em que as pessoas estudadas constituem as suas próprias alteridades, para em seguida um terceiro “outro” tentar reconstruí-las. Querendo-se, é possível encontrar naquele trecho de Lévi-Strauss sinais de um caminho que levaria ao seu suposto “idealismo”; contudo, não há como negar que também há nele o colorido de um realismo franco. O autor lembra que Mauss tem o cuidado “de definir o social como a realidade”. Ora, o social só é real quando integrado em sistema – e eis o primeiro aspecto da noção de fato total: “depois de, um tanto forçosamente, haver dividido e abstraído, é preciso que os sociólogos se empenhem em recompor o todo”. (Lévi-Strauss 1974:14). Para Lévi-Strauss, a descoberta do papel e das formas sociais da sistematicidade é talvez o maior exemplo do brilhantismo de Mauss. Mas a sua apreciação da noção de fato social total não se restringe a isso, que facilmente podemos reconhecer nas obras “racionalistas” mais conhecidas desse estruturalista. Ele aponta, também, para a experiência concreta como um aspecto fundamental dessa noção. Nesse sentido, pode ser considerado “realista”, pois em nenhum momento distancia-se dos sujeitos para apegar-se a qualquer esfera cognitiva transcendental. Prossegue Lévi-Strauss: Mas o fato total não chega a ser total pela simples reintegração dos aspectos descontínuos: familial, técnico, econômico, jurídico, religioso, seja qual for o 10 aspecto pelo qual poderíamos ser tentados a apreende-lo exclusivamente. É preciso também que ele se encarne em uma experiência individual.... (Ibid). Lévi-Strauss, o pensador, alimenta-se de etnografia, e disto sabe muito bem. Enfim, a noção maussiana de fato social total elaborada nesse texto por LéviStrauss parece defender a necessidade do objetivismo pragmático, através do processo constante do analista objetivar-se, restringindo cada vez mais a sua própria subjetividade no esforço de entender os seus objetos (os nativos), de um modo que faz jus ao produto dessas “subjetividades outras” – um produto que emerge como sistemático e racional. Se, afinal de contas, Lévi-Strauss prefere uma objetividade alcançada na prática da análise, embora ilusória na teoria, outras abordagens mais recentes desta questão – a tensão entre objetivismo e subjetivismo na metodologia antropológica – assumem posição contrária, enfatizando a subjetividade do pesquisador. A experiência social - o encontro de diversas subjetividades - foi um importante foco dos debates teóricos da antropologia nos anos noventa. Atenção especial tem sido dada à conexão entre a experiência da pesquisa de campo, no curso da produção de etnografia, e o status epistemológico do saber antropológico 8. Referindo-se aos capítulos da coletânea “Social Experience and Anthropological Knowledge” que tratam das “diversas rotas entre a experiência social e o saber antropológico”, Hastrup (1994) faz a seguinte observação: na tentativa de transcender o vão entre conceitos antropológicos e conceitos locais, os autores descrevem as suas explorações individuais, traçando os seus itinerários até o produto final, e abrindo mão dos mapas e metáforas visuais de uso até então privilegiados nos textos antropológicos. Citando Stoller (1989), ela afirma que a objetificação extrema pregada por Descartes tem sido substituída pelo uso de modos de estudo mais sensíveis, fundados no uso dos sentidos, para produzir etnografia. “A experiência etnográfica não pode ser entendida ao pé da letra (‘taken at face value’), senão estudada na sua profundidade sensorial” (Hastrup 1994: 224). Hastrup defende o status metodológico e epistemológico da etnografia, entendendo a observação participante como uma etapa no “itinerário” ou viagem dos sentidos, da razão, da moral e das emoções do observador, em que compartilha (mas nunca plenamente) a experiência social dos “nativos”. Buscando 8 Stoller (1989); Hastrup (1995). Veja também outros artigos em Hastrup & Hervik (1994) e (de uma perspectiva distinta) James, Hockey & Dawson (1997). 11 subsídios na epistemologia desenvolvida pelos críticos da antropologia cognitiva 9, ela afirma: “Na vida real, o saber, tantas vezes isolado pela teoria, [que o trata] como se fosse cognição, não independe de emoção. As emoções, por conseqüência, pertencem ao reino da racionalidade (Sousa, 1990)”. Assim, para essa autora, as emoções, os desejos, as convicções morais, a própria subjetividade do antropólogo, constituem parte do material que vem a gerar o saber antropológico. Os mapas e os itinerários alternamse como quadros de referências (frames of orientation), e esta oscilação toma o lugar da ruinosa oposição (Bourdieu 1990), fundamental para as ciências sociais, entre objetividade e subjetividade. Mesmo assim, os antropólogos têm se mostrados tímidos para comentar seus itinerários ao saber, preferindo apresentarem-se como autores de mapas. Há muito a apreciar nestas observações, que trazem para a consideração metodológica as velhas distinções entre razão e afetividade, diferença e identidade10 – sem, contudo, tratar diretamente da questão dos distintos métodos empregados na antropologia. No trabalho de Hastrup, a observação participante e o “fazer etnografia” são entendidos como práticas normativas. Ela escreve num ambiente teórico formado após a primeira onda de crítica pós-modernista, que pôs em questão os próprios fundamentos do saber antropológico na observação participante, bem como a prática do “fazer etnografia” (Clifford & Marcus 1986). Hastrup pretende apontar uma saída para a suposta “crise” nas ciências humanas e na antropologia em particular. A antropologia “interpretativa” pregava a interpretação do texto cultural como a rota para o saber; apontando a presença da voz velada do neo-colonizador, tida como implícita nos pronunciamentos dos antropólogos modernos, criticou ferozmente a postura epistemológica racionalista que até então, segundo seus expoentes dessa antropologia, informava a produção das etnografias (Geertz 1988). Aquela autora busca desmistificar o potencial interacionista da etnografia, construído na “co-presença” dos sujeitos no campo, e não apenas através do diálogo e da multivocalidade. Assim, tenta apontar uma saída para a hegemonia dos conceitos-chaves da crítica pós-modernista, encapsulados no uso feito dos termos ‘linguagem’, ‘discurso’, ‘’representação’ e ‘texto’, e ela justifica a continuação da prática antropológica como radical e crítica, e não apenas enquanto uma máscara do colonizador. Esta visão é atraente, e soa razoável para muitos 9 Por exemplo, Strauss & Quinn (1994). E evoca outras discussões, por exemplo, aquela de Goldman (1994) sobre o pensamento de LévyBruhl. 1010 12 antropólogos que, como eu, tiveram experiências pessoais muito singulares no campo, as quais dificilmente podem ser equacionadas à imagem negativa do etnógrafo que se tornou moda nos anos noventa. Entretanto, uma ênfase demasiado forte na experiência e subjetividade do antropólogo implica em alguns riscos. O saber antropológico pode ser apresentado como se o único percurso possível em sua direção fosse a experiência vivida na “zona de contato”. Porém, embora esta seja uma presença poderosa nos principais textos antropológicos – mesmo naqueles clássicos que adotam a voz do observador ausente – não deve ser tomada como a característica principal do saber antropológico, mas apenas de sua forma primária, registrada sobretudo em notas de campo (Sanjek, 1990). Parece-me que a noção de “fato social total”, que exatamente incorpora a postura epistemológica do “fazer etnografia” sem estabelecer que o antropólogo necessariamente vá a campo, ajuda a solucionar este possível equívoco, além de contextualizar de forma clara as outras práticas de pesquisa antropológica. Não ambiciono chegar a uma conclusão nesta breve discussão. Apresento estas reflexões sabendo que não esgotam o leque de temas que acabei de apontar, na esperança de gerar discussão e debate. Considero que, para um texto ser considerado antropológico, é fundamental a postura epistemológica, não a prática, vinculada à etnografia. Como postura epistemológica, a etnografia não exige em todos os casos a presença física do pesquisador no contexto da pesquisa. Contudo, a investigação antropológica demanda um olhar imaginado de etnógrafo, que o torna como que presente ao campo e, mais, sempre alerta, de uma forma incorporada, à totalidade dos fatos sociais investigados. Eis o produto final: o saber antropológico, colorido sempre pela visão etnográfica. 13 BIBLIOGRAFIA CAMPBELL, Oona, CLELAND, John, COLLUMBIEN, Martine, & SOUTHWICK, Karen. 1998. Social Science Methods for Research on Reproductive Health. Geneva: WHO. CLIFFORD, J. & MARCUS, G. 1986. Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press. BECKER, Howard. 1997. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: HUCITEC. BOURDIEU, P. 1990. The Logic of Practice. Cambridge: Polity Press. BOWLING, A. 1997. Research Methods in Health: Investigating Health and Health Services. Buckingham/Philadelphia: Open University Press. GEERTZ, C. 1988. Works and Lives: The Anthropologist as Author. Stanford: Stanford University Press. GELL, Alfred. 1998. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Clarendon/Oxford University Press. GOLDMAN, Marcio. 1994. Razão e Diferença: Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl. 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