O CIENTIFICISMO: TENDÊNCIA IMPERANTE NO PENSAMENTO DO SÉCULO XIX Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. [email protected] O cartesianismo não se restringiu apenas ao terreno do conhecimento. Nos séculos subseqüentes à sua formulação estendeu-se, também, ao plano social. A culminância desse processo seria a emergência da moderna burocracia, fenômeno detalhadamente estudado por Max Weber. A administração burocrática pura emergiu da forma de dominação racional. Partiu da tentativa, típica da modernidade pós-cartesiana, de estender o domínio da razão sobre o mundo (e, forçosamente, sobre as organizações). A respeito, escreve Weber: “A administração burocrática pura, ou seja, a administração burocrático-monocrática aplicada ao expediente é, consoante a experiência, a forma mais racional de se exercer uma dominação. É racional nos seguintes sentidos: em precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiança; implica, portanto, para o soberano e os interessados, exercício de cálculo; pressupõe, também, aplicabilidade formalmente universal a todo tipo de tarefas; pressupõe, outrossim, possibilidade de aperfeiçoamento técnico para atingir o melhor resultado. O desenvolvimento das formas modernas de associações em todo tipo de terrenos (estado, igreja, exército, partido, exploração econômica, associação de interessados, uniões, fundações e quaisquer outras que possam ser mencionadas) coincide totalmente com o desenvolvimento e incremento crescente da administração burocrática: a sua aparição é, por exemplo, o germe do estado moderno ocidental” [Max Weber, Economia y Sociedad, tradução espanhola de J. Medina Echavarría et alii, México: Fondo de Cultura Econômica, 1977, vol. I, p. 178]. Se bem é certo que a culminância do processo de racionalização da sociedade é a moderna burocracia, na forma descrita por Weber, o seu advento esteve precedido de amplo trabalho de reflexão sobre a forma em que se poderia compreender e organizar a sociedade à luz do conhecimento científico. Os pensadores iluministas, por exemplo, esforçaram-se por aplicar o modelo de racionalidade científica (à luz do qual se tinha consolidado a nova ciência da natureza nos séculos XVII e XVIII) à organização da sociedade. Dessa empreitada surgiram, no limitar dos séculos XVIII e XIX, na França, na Inglaterra e na Alemanha, quatro grandes tendências que buscavam, de uma forma ou de outra, a racionalidade social. Mencionemo-las: 1. Tendência da matemática social, representada por Condorcet e Laplace, herdeiros do modelo da aritmética política proposto por Lagrange e Lavoisier. A expressão matemática social foi criada por Condorcet em sua obra Quadro geral da ciência que possui por objeto a aplicação do cálculo às ciências morais e políticas, publicada pela primeira vez em 1795 e conhecida, em edições posteriores, com o título mais conciso de Matemáticas e sociedade [México: Fondo de Cultura Econômica, 1990]. Laplace caracterizou esse esforço matemático da seguinte forma, na sua obra Ensaio filosófico sobre as probabilidades: “Apliquemos às ciências morais e políticas o método fundado na observação e no cálculo, método que nos tem servido tão bem nas ciências naturais” [cit. por Pierre Rosanvallon, in: Le moment Guizot, Paris: Gallimard, 1985, p. 18-25]. É conhecida a aplicação feita por Augusto Comte desse princípio na sua física social, pretensão que já o marquês de Pombal tinha tentado na sua aritmética política. Essas duas tendências inspirariam, aliás, no universo cultural brasileiro, o fenômeno do cientificismo, que deu ensejo à geometria política de frei Caneca, ao poder legitimado pelo saber dos nossos positivistas no final do século XIX, ao princípio do equacionamento técnico dos problemas, formulado e posto em prática por Getúlio Vargas e a segunda geração castilhista e à engenharia política do general Golbery do Couto e Silva [cf. Paim, organizador, Pombal na cultura brasileira, Rio de Janeiro: Associação Cultural Brasil-Portugal / Tempo Brasileiro, 1982; R. Vélez Rodríguez, “O fenômeno do cientificismo na cultura brasileira”, Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, 39, nº 161, p. 17-31]. 2. Tendência da fisiologia social, representada por Cabanis, Bichat, Vicq D´Azir, Pinel e Saint-Simon. A fonte principal desta vertente foi a obra de Cabanis Relações do físico e do moral no homem, publicada em 1802. Ele entendia que, no homem, o aspecto moral é indissociável da dimensão física. Tanto o governo quanto as políticas de saúde devem obedecer às mesmas leis que constituem a ciência do homem, disciplina que abarca três capítulos: a fisiologia, a análise das idéias e a moral. Cabanis estava convencido de que, a partir do conhecimento das necessidades e das faculdades do homem, os legisladores poderiam elaborar uma acertada sintomatologia dos seus males sociais e formular, como verdadeiros médicos sociais, o tratamento mais adequado às doenças da coletividade. Esses cuidados de higiene social permitiriam às sociedades evoluir pacificamente, livres das doenças identificadas com as paixões revolucionárias. Tratava-se, sem dúvida, de garantir ao corpo social a sua evolução orgânica. A respeito, frisava Cabanis: “É necessário, numa palavra, que a higiene aspire a aperfeiçoar a natureza geral (...). Para atingir essa finalidade, é necessário seguir uma concepção digna de uma época de regeneração; é hora de ousarmos fazer com nós mesmos o que tão felizmente temos feito com outros companheiros nossos de existência (os animais e as plantas); é necessário que ousemos rever e corrigir a obra da natureza” [cit. por Rosanvallon, Le moment Guizot, p. 22-23]. 3. Tendência da economia política, representada por Hume, Jean-Baptiste Say, Destutt de Tracy, Roederer, Adam Smith, etc. e que se desenvolveu como herança da moral escocesa do século XVIII que pretendia oferecer uma alternativa racional às teorias contratualistas. Seria possível, como pensava Hume, reduzir a política a uma ciência referida à economia e aos negócios públicos. Essa temática foi retomada por ideólogos como Jean-Baptiste Say que, no seu trabalho intitulado Tratado de economia política, publicado em 1803, identificava a nova ciência por ele proposta com um saber racional alicerçado na experiência, irredutível à matemática, mas passível de ser resumido em poucos princípios evidentes para todos. A respeito, escrevia Say: “Assim como as ciências exatas, a economia política se compõe de um número reduzido de princípios fundamentais e de um grande número de corolários ou deduções desses princípios. O importante para os progressos da ciência é que os princípios decorram naturalmente da observação; em seguida, cada autor multiplica ou reduz, de acordo com sua vontade, o número e conseqüências, conforme o objetivo a que se propõe. (...) Um tratado de economia política se reduzirá, então, a um pequeno número de princípios que nem sequer precisaremos basear em provas, pois eles serão apenas o enunciado daquilo que todo mundo já saberá, disposto numa ordem apropriada, a fim de poder apreender seu conjunto e suas relações” [Jean-Baptiste Say, Tratado de economia política, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 45]. 4. Tendência historicista, cujo formulador foi Hegel, seguido pelos autores da denominada esquerda hegeliana. O filósofo alemão definia claramente a ambiciosa meta que assinalava ao saber filosófico, nos seguintes termos, em Princípios da filosofia do direito: “Precisamente porque a filosofia é o fundamento do racional, ela é a inteligência do presente e do real e não a construção de um além que se encontraria Deus sabe onde” [cit. por Jean Hyppolite, Génèse et structure de la Phénomenologie de l´Esprit de Hegel. Paris: Aubier, 1946]. Se bem é certo que, nesse texto, se ressalta a idéia do compromisso da filosofia com a realidade histórica do homem, é certo também que ela é entendida como pensamento do mundo, devendo, portanto, incorporar todos os aspectos do real. “Conceber o que é – escreve Hegel – eis a tarefa da filosofia, pois o que é, é a razão. No que concerne ao indivíduo, cada um é filho de seu tempo; do mesmo modo, a filosofia resume seu tempo no pensamento”. Tamanha missão, dar conta de tudo, faz com que a filosofia, na condição de sistema, chegue sempre tarde, como a coruja de Minerva, “que levanta vôo quando as sombras da noite se aproximam”. É o que Hegel reconhece, com os seguintes termos: “Para dizer uma palavra sobre a pretensão de ensinar como deve ser o mundo, indicaremos que, em todo caso, a filosofia chega sempre muito tarde. Na condição de pensamento do mundo, ela somente aparece quando a realidade cumpriu e terminou seu processo de formação”. Marx reformulou o historicismo hegeliano, colocando-o no contexto do materialismo histórico. Os aspectos essenciais do historicismo de Marx poderiam ser sintetizados da seguinte forma: segundo ele, a consciência da necessidade nasce não apenas da exterioridade da natureza, mas também da própria história humana, da interioridade das condições históricas, da sociedade humana e de suas formas, bem como das relações e condições que influem em sua consolidação. O estímulo para o movimento e a transformação é interior à própria realidade humana, não apenas natural e exterior. A necessidade é, portanto, não apenas exigência natural, mas também força geradora e motora da história. Em vez do homem abstrato da natureza, temos o homem concreto e vivo da história por meio da classe social; o homem que adquiriu consciência de classe, o proletário organizado para a luta; esse é o principal ator da história. A massa humana, que tinha sido idealizada por Feuerbach, encontra em Marx uma formulação concreta e atuante [cf. Marx – Engels – Moses Hess, A ideologia alemã, São Paulo: Hucitec, 1987].