XVII Encontro de Iniciação Científica XIII Mostra de Pós-graduação VII Seminário de Extensão IV Seminário de Docência Universitária 16 a 20 de outubro de 2012 INCLUSÃO VERDE: Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Sustentável MPH0706 O TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE NEGLIGÊNCIA VIVIANE SOUZA DA SILVA [email protected] POLÍTICAS SOCIAIS E TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ ORIENTADOR(A) MARIA FERNANDA TEIXEIRA BRANCO COSTA UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ O TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE NEGLIGÊNCIA1 Viviane Souza da Silva2 Orientadora: Maria Fernanda Teixeira Branco da Costa3 Resumo O presente artigo trata do trabalho social junto às famílias das crianças que receberam a medida de proteção de Acolhimento Institucional aplicada pelo Conselho Tutelar em um município do Estado de São Paulo. O texto tem por objetivo apresentar: os contextos familiares destas crianças, suas demandas e as intervenções realizadas durante o acompanhamento social desenvolvido pela assistente social do Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) do município, com vistas a apontar que o acompanhamento sistemático das famílias pode contribuir para a redução do tempo de permanência das crianças no Abrigo. A metodologia utilizada é a pesquisa exploratória, através da análise dos registros elaborados pela referida assistente social, no período compreendido entre os meses de maio a outubro de 2010. O texto apresenta informações relevantes acerca das famílias de crianças vítimas da negligência, uma forma de violência que se constitui como principal causa geradora da institucionalização, bem como apresenta a descrição do trabalho social desenvolvido, seus resultados e os desafios ao exercício profissional. Palavras-chave: Família; Negligência; Assistente Social. SOCIAL WORK WITH FAMILIES OF CHILDREN VICTIMS OF NEGLIGENCE Abstract This article deals with the social work with families of children receiving protective measure applied by Host Institutional Protection Council in a municipality of São Paulo. The text aims to present: the familiar contexts of these children, their needs and the interventions made during the monitoring social caseworker developed by the Center for Social Assistance Specialized Reference (CREAS) in the city, with a view to pointing out that the systematic monitoring of families can help reduce the length of stay of children in the shelter. The methodology is exploratory research, by analyzing the records prepared by the social worker said, in the period between the months of May to October 2010. The text presents relevant information about the families of children who are victims of neglect, a form of violence that constitutes a major cause of institutionalization generator and presents a description of social work developed, its results and the challenges the profession. Keywords: Family; Negligence; Social Worker. 1 XIII MPG - MOSTRA DE PÓS-GRADUAÇÃO Assistente Social, Especialista em Políticas Sociais e Trabalho Social com Famílias pela Universidade de Taubaté (UNITAU), [email protected] 3 Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Taubaté (UNITAU), [email protected] 2 1 INTRODUÇÃO Uma das temáticas emergentes na discussão sobre família é a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, em suas diversificadas formas: sexual, física, psicológica e negligência. Por vezes, diante da fragilização a que estão expostos, os pais ou responsáveis deixam de cumprir as responsabilidades no cuidado com os filhos, exercendo uma destas formas de violência: a negligência. Por decorrência da situação de miséria e extrema pobreza em que muitas famílias vivem no Brasil, grande parte chefiada por mulheres que precisam trabalhar fora de casa para garantir a sobrevivência familiar, a identificação da negligência é difícil ao se deparar com o questionamento de sua intencionalidade. A partir da observação dos casos de crianças sob medida protetiva de Acolhimento Institucional de um município do Estado de São Paulo, notou-se alto índice de aplicação de tal medida pelo motivo de negligência. Por não se distinguir a negligência intrafamiliar, que segundo Gimenes et al. (2006) refere-se a um comportamento inadequado dos responsáveis no cuidado das crianças ou o estado inadequado do exercício da paternagem e maternagem, da negligência estatal, compreendida pela falta de ofertas de políticas públicas, há uma grande tendência em culpabilizar as famílias ao invés de protegê-las. Diante desta realidade, o presente artigo tem por objetivo apontar a importância do acompanhamento sistemático das famílias como um dos componentes para a promoção da reintegração familiar das crianças em menor tempo possível, descrevendo as diversas demandas trazidas por estas famílias e o trabalho social realizado. 2 REFERENCIAL TEÓRICO Refletir sobre família nos dias atuais remete ao reconhecimento da amplitude e complexidade do assunto. Faz-se necessário considerar que a família é uma construção histórica e, portanto, passível de mudanças constantes ao longo dos tempos, recebendo influência direta e indiretamente dos demais setores da sociedade: cultura, política, economia e educação. Na visão do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) “o conceito de família utilizado refere-se ao conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, que reside na mesma unidade domiciliar e, também, à pessoa que mora só, em uma unidade domiciliar” (IBGE, 2005, p.313). No sentido mais amplo, a família refere-se ao grupo de indivíduos vinculados entre si por laços consanguíneos, consensuais ou jurídicos, com complexa rede de parentesco atualizadas de forma episódica por meio de intercâmbio, cooperação e solidariedade, com limites que variam de cultura, de uma região e classe social a outra (CARVALHO e ALMEIDA, 2003, p. 111). Abordar o assunto família em todas as suas dimensões e particularidades se torna uma tarefa difícil e complexa. É impossível identificá-la como um modelo único ou ideal, pois a família “se manifesta como um conjunto de trajetórias individuais e coletivas, que se expressam em arranjos diversificados, em espaços e organizações domiciliares peculiares” (KALOUSTIAN, 2002, p. 14). Além disso, como nos alerta Carvalho e Almeida (2003, p.111) diante do quadro de desigualdade produzido pelo sistema capitalista, as famílias se organizam diferentemente, na busca por “estratégias familiares” ou “estratégias de sobrevivência”. Conforme as diretrizes do Plano Nacional de Promoção, Proteção Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária: a família é compreendida como um grupo de pessoas com laços de consangüinidade, de aliança, de afinidade, de afetividade ou de solidariedade, cujos vínculos circunscrevem obrigações recíprocas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero. Arranjos familiares diversos devem ser respeitados e reconhecimentos como potencialmente capazes de realizar as funções de proteção e de socialização de suas crianças e adolescentes” (BRASIL, 2006, p.69). Contudo não se pode julgar a família como plenamente responsável pela oferta de proteção social aos seus membros, muito menos embarcar na lógica “neoconservadora” de que a família é a “célula mater” da sociedade, resgatando uma referência de “estrutura e normalidade”, visão típica de quem concebe a família nuclear tradicional como ideal. O conservadorismo moderno, que supõe uma forma peculiar de pensamento e experiência prática, é fruto de uma situação históricosocial específica: a sociedade de classes em que a burguesia emerge como protagonista do mundo capitalista. (...) A fonte de inspiração do pensamento conservador provem de um modo de vida do passado, que é resgatado e proposto como uma maneira de interpretar o presente e como conteúdo de um programa viável para a sociedade capitalista. (...) Os conservadores são assim “profetas do passado”. Recorrendo a categorias típicas do racionalismo capitalista, elabora-se a exaltação deliberada de formas de vida que já foram historicamente dominantes, e que passam a ser consideradas válidas para a organização da sociedade atual. (...) O conservadorismo não é assim apenas a continuidade e persistência no tempo de um conjunto de idéias constitutivas da herança intelectual européia do século XIX, mas de idéias que, reinterpretadas, transmutam-se em uma ótica de explicação e em projetos de ação favoráveis á manutenção da ordem capitalista. (...) Dentre as características do pensamento conservador, destaca-se sua vocação para o passado, terreno, germinativo da inspiração para a interpretação do presente (...) A sociedade tende a ser aprendida como constitutiva de entidades orgânicas, funcionalmente articuladas, cujo modelo é a família e a corporação” (IAMAMOTO, 2004, p. 21-26). A família tradicional é fruto da sociedade burguesa, precedida pela forma de organização da família patriarcal rural brasileira, resultado do modelo de família trazido pelos portugueses nos primeiros séculos de colonização, como nos ensina Costa (2006): Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808, o monopólio da família patriarcal rural - latifundiária e escravagista, é posto em questão. O poder se reorganiza, elementos culturais modernizadores são introduzidos na sociedade e estabelece-se uma nova ordem social e política. A instalação da família real no Rio de Janeiro, acelerou o processo de urbanização da cidade. A população aumentou consideravelmente e seus novos habitantes – aristocratas, diplomatas, comerciantes estrangeiros – impunham novas formas de sociabilidade, hábitos e costumes que passaram a ser imitados pela população nativa. Segundo Gilberto Freyre (1975), a sociedade brasileira foi submetida a um processo de “reeuropeização” (autores como Machado de Assis fazem referência ao papel “europeizante” da corte portuguesa). A família burguesa apresentava-se como uma família nuclear, reduzida ao pai, mãe e filhos, organizada hierarquicamente em torno de uma rígida divisão sexual de papéis, onde o homem era responsável pelo sustento da família e a esposa pela educação dos filhos e cuidados do lar (COSTA, 2006, p. 14). Ora, muitas mudanças ocorreram na sociedade brasileira, próprias da dinâmica capitalista, que resultaram em reflexos preponderantes no interior das famílias, como por exemplo, a crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho e sua emancipação política. Ou seja, tanto os padrões de exploração incidiram fortemente sobre o elemento feminino que se tornou um componente essencial da força de trabalho, quanto às demandas femininas ganharam força emancipatória, ainda que nem sempre as peculiares problemáticas femininas tenham sido recuperadas pelos movimentos feministas (NETTO, 1996, p. 92-96). Assim, as mulheres desempenham várias jornadas, pois mesmo inserida no mercado de trabalho, não rompe com a execução dos afazeres domésticos, já que o padrão dominante de família instituído lhe confere este espaço. Assim, as mulheres se tornam as protagonistas tanto na vida pública, quanto na vida privada. Nas camadas mais pobres da população, as famílias chefiadas por mulheres, de acordo com Carvalho (1998, p. 85), são em grande parte associadas às situações de vulnerabilidade econômica, pois a mulher, como único membro adulto do domicílio, é sua provedora, além de assumir funções domésticas e o cuidado com os filhos, o que implica sua vinculação em trabalhos mal remunerados em tempo parcial ou intermitente, gerando assim maiores dificuldades para garantir a subsistência da própria família. (PINTO et al, 2011, p.167) Por vezes, diante da fragilização a que estão expostas, deixam de cumprir, as responsabilidades no cuidado com os filhos, exercendo uma forma de violência: a negligência. Entende-se a negligência como “a omissão do cuidar, o não atendimento das necessidades básicas da criança, em variados níveis de gravidade” (PFEIFFER e HIRSCHHEIMER, 2010, p. 02). Portanto, a negligência é a submissão a atos ou atitudes de omissão, de forma crônica, intencional ou não, com prejuízos à higiene, nutrição, saúde, educação, estímulo ao desenvolvimento, proteção e afetividade. (MACEDO, MACEDO e FIGUEIREDO, 2010, p.07). Por decorrência da situação de miséria e extrema pobreza em que muitas famílias vivem no Brasil, grande parte chefiada por mulheres 4 que precisam trabalhar fora de casa para garantir a sobrevivência familiar, a identificação da negligência é difícil ao se deparar com o questionamento de sua intencionalidade. Os pais ou responsáveis pela criança podem falhar como provedores da criança em circunstâncias propositais ou não, sendo considerada negligência quando ela acontece voluntariamente e tem reflexos graves na vida daquele que é cuidado. Pode ser considerada negligência também, quando a ausência desses cuidados é caracterizada pela dor ou pelo prejuízo que ela proporciona, quando as necessidades fundamentais da criança não são supridas. A falha não é considerada negligência quando os responsáveis não possuem condições e acesso aos meios para suprir as necessidades daqueles que estão sob sua responsabilidade. Em outras palavras, o cuidador falha, não em vontade própria, mas pela falta de condições objetivas que lhe 4 Conforme dados do IBGE (Censo 2000), no estado de São Paulo, 24,1 % das famílias têm a mulher como responsável e, destas, os maiores percentuais em relação à idade das responsáveis pelos domicílios estão na faixa 35 a 54 anos, em um total de 43,7%. possibilitariam saciar as necessidades de suas crianças (GIMENES et al, 2006, p. 38). Pfeiffer e Hirschheimer (2010, p.20) ensinam que a negligência é responsável por mais de 40% dos casos de maus-tratos na infância. Comparada às outras formas de violência, é a que apresenta maior índice de mortalidade. Pesquisas apontam que é possível comparar dados do Brasil e da Inglaterra que, apesar de países com características sociais e culturas bem diferentes, a negligência, quando percebida, ocupa o mesmo primeiro lugar como forma de violência doméstica, com frequências semelhantes. Apesar de ser um tipo frequente de violência, a negligência é a que apresenta maior dificuldade para ser definida e identificada, pelo fato de não haver acordo sobre os parâmetros do que é adequado para determinada criança ou adolescente. A esta dificuldade acresce-se o fato de que é necessário estabelecer padrões para diferenciar o que é inabilidade ou impossibilidade e o que é falta de vontade dos pais ou responsáveis para prover suas crianças e adolescentes das necessidades mínimas aceitáveis (PFEIFFER e HIRSCHHEIMER, 2010, p. 05). Prado e Pereira (2008, p.284) alertam que de acordo com levantamento feito por Chalk, Gibbons e Scarupa em 2002 nos Estados Unidos, mais da metade dos casos confirmados de maus-tratos à criança envolve negligência: 58%. No Canadá, estudo realizado em três grandes províncias (Ontário, Québec e Alberta), com dados primários de uma amostragem em 51 instituições de atendimento às crianças vitimizadas, totalizando 7.672 investigações, apontou 25% de abuso físico, como forma primária de violência e em 23% do total de casos; 10% de violência sexual comprovada e 46% de negligência constatada entre todas as investigações. A negligência familiar pode ser física, psicológica e/ou educacional. Como apontam Pires e Miyazaki (2005, p.44), a negligência física inclui a maioria dos casos de maus tratos, e nela estão inseridos problemas como: a) ausência de cuidados médicos, pelo não reconhecimento ou admissão, por parte dos pais ou responsáveis, da necessidade de atenção ou tratamento médico, ou em função de crenças ou práticas religiosas; b) abandono e expulsão da criança de casa por rejeição; c) ausência de alimentação, cuidados de higiene, roupas, proteção às alterações climáticas; d) imprudência ou desobediência às regras de trânsito e falta de medidas preventivas para evitar intoxicação exógena; e) supervisão inadequada, como deixar a criança sozinha e sem cuidados por longos períodos. Já a negligência emocional inclui ações como falta de suporte emocional, afetivo e atenção, exposição crônica a violência doméstica, permissão para o uso de drogas e álcool (sem intervenção), permissão ou encorajamento de atos delinquentes, recusa ou não procura por tratamento psicológico quando recomendado. (PIRES e MIYAZAKI, 2005, p. 44). Ainda conforme Pires e Miyazaki (2005, p.44) a negligência educacional inclui a permissão dos pais ou responsáveis para faltar às aulas, a não realização da matrícula em idade escolar e a recusa para matricular a criança em escola especial quando necessário. As consequências físicas da negligência podem ser relativamente pequenas, como manchas roxas e pequenos cortes, ou severas, como ossos quebrados, hemorragia ou mesmo morte. Em longo prazo, as consequências podem ser muito sérias, como cegueira, retardo mental, deficiências físicas, paralisia, comprometimento neurológico, cardíaco ou hepático, enfim, diversas complicações clínicas que podem favorecer uma saúde frágil para o resto da vida. Da perspectiva psicológica, uma criança é negligenciada quando lhe faltam suporte apropriado, proteção, atenção, compreensão e afeição. As consequências emocionais imediatas são isolamento, medo e falta de confiança, que também podem permanecer pelo resto da vida, acrescidos de baixa autoestima, depressão, dificuldades de relacionamento, prejuízos mentais e emocionais de diversas ordens, ansiedade, transtornos alimentares e tentativas de suicídio. Enquanto os maus-tratos físicos podem ou não ser imediatamente visíveis, as situações de negligência podem não ser facilmente perceptíveis, mas suas consequências possivelmente duram a vida toda, e até mesmo transpõem gerações, afetando crianças, famílias e a sociedade (PRADO e PEREIRA, 2008, p. 284). Muitas vezes, a falha das famílias no que tange ao bom trato dos filhos provém do resultado de suas condições de vida que extrapola o que está sob seu controle. Uma vez que a negligência se define pela omissão no cuidado e satisfação das necessidades das crianças, a reconhecida ausência de condições econômicas dessas famílias dificulta o julgamento entre a prática abusiva e a impossibilidade de prover atenção devida, “caracterizando algumas famílias como vítimas e vitimizadoras nesse processo de negligência” (GIMENES et al, 2006, p.16). Em uma sociedade em que há fome e abandono social, falta saneamento básico e os sistemas de saúde, de educação e judiciário se apresentam disfuncionais, corrompidos e superlotados, a implantação de sistemas assistenciais ainda se encontra bastante incipiente, sobretudo ao se considerar o tamanho da demanda e as inúmeras carências. Estas envolvem desde espaços físicos adequados, instalações, contratação de pessoal habilitado, até o investimento em pesquisa e na formação e treinamento profissionais apropriados (PRADO e PEREIRA, 2008, p. 285). 3 MÉTODOS/PROCEDIMENTOS O presente texto traz uma pesquisa exploratória, a partir da pesquisa bibliográfica e também documental dos registros de atendimento às famílias das crianças vítimas de negligência realizadas pela assistente social do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), no período compreendido entre os meses de maio a outubro de 2010. A pesquisa documental contempla o levantamento de dados qualitativos do perfil e das demandas das famílias das crianças vítimas de negligência que se encontravam no abrigo de um município do Estado de São Paulo no ano de 2011, num total de 22 crianças em 10 famílias distintas. 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO A mulher magra, com odor típico de quem não se banhou por vários dias, nova de idade, mas com rosto envelhecido e marcado pelo sofrimento da luta diária pela sobrevivência comparece na hora marcada do atendimento na sede do CREAS. Lacrimejando, aflita e esbaforida, entra na sala, senta-se na cadeira, cruza as pernas e começa a falar: Eu quero meus filhos de volta!Eu sempre cuidei deles. Não os deixei sozinhos em casa por maldade. Precisava trabalhar. Precisava de dinheiro pra dar comida pra eles. Tinha que pagar o aluguel. Só pode ter sido coisa da dona da casa que quer ver o meu mal e quer me despejar. Eu já estava sem luz; a água já ia cortar. Não consegui comprar o leite especial que o bebê precisa tomar; lá no Posto também não tem. Vaga na creche eu não consegui. Ninguém me ajudou e o Conselho Tutelar foi lá e levou minhas crianças. Por favor, me diz o 5 que faço pra conseguir minhas crianças de volta . Histórias como esta, de suposta negligência intrafamiliar, ocasionando a aplicação da medida protetiva de Acolhimento Institucional são comuns nos municípios brasileiros. A partir dos registros existentes no CREAS, no período entre maio a outubro de 2010, constata-se que do total de crianças que receberam a medida protetiva de Acolhimento Institucional, 80% dos casos apresentam a negligência como o motivo que gerou a aplicação de tal medida. A pesquisa demonstra que aproximadamente 43% das crianças vítimas de negligência possuem pais separados, 33% das crianças moravam somente com a mãe, sem qualquer contato com o genitor e 24% das crianças viviam com o pai e a mãe quando foram encaminhadas para o Acolhimento Institucional e 95% recebem visitas de sua família de origem. A falta de acesso a serviços como creche e jornada ampliada, bem como a falta da rede social de apoio, aparece em 80% dos casos pesquisados e em sua totalidade, as mães desconhecem seus direitos e os direitos de seus filhos garantidos na legislação brasileira. Os dados comprovam que 100% dos casos já eram atendidos pela Secretaria Municipal de Assistência Social, através dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), ou seja, as famílias já eram usuárias dos serviços de Proteção Social Básica, que “tem como objetivos prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários” (BRASIL, 2004, p.33). Das famílias pesquisadas 90% são chefiadas por mulheres, que possuem baixa escolaridade. Os dados mostram que 45% dessas mães estão desempregadas, 33% desempenham trabalhos autônomos e de forma esporádica como diaristas, portanto sem renda fixa e 22% alcançaram um trabalho temporário sem vínculo empregatício. Outras situações de risco são constatadas na pesquisa: em 30% dos casos, as crianças foram exploradas através da mendicância e em 20% dos casos a mãe vive em situação de rua. Em 60% dos casos, as famílias não possuem moradia própria e em 20% dos casos, a moradia estava em condições precárias de higiene e de habitabilidade. Em 70% dos casos, as crianças foram encontradas sozinhas em casa, ou seja, sem a supervisão de um adulto responsável, por um longo período ou ainda foram deixadas na escola. Em 60% dos casos os responsáveis apresentam dependência química, seja pelo uso abusivo do álcool ou pelo uso de substâncias psicoativas; em 30% dos casos, a mãe possui problemas relacionados à saúde mental (transtornos psiquiátricos). Um dos aspectos mais relevantes que se pode afirmar, conforme também discutem Silva e Aquino (2005) é que a grande maioria das crianças tem família, em consonância com os apontamentos do Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC do Ministério do Desenvolvimento Social realizado pelo IPEA/CONANDA em 2003, no qual é apresentado que a grande maioria das crianças e 5 Texto ilustrativo, baseado em relatos descritos nos registros dos atendimentos realizados no CREAS às famílias de crianças em Acolhimento Institucional em um determinado município do Estado de São Paulo. adolescentes acolhidos no Brasil tem família (86,7%), sendo que 58,2% mantêm vínculos com os familiares; apenas 5,8% estão impedidos judicialmente desse contato e somente 5% são órfãos. Outro aspecto importante é que, ao relacionar as demandas das famílias de crianças em Acolhimento Institucional por motivo de negligência se reconhece que tais famílias sofrem as consequências da desigualdade social, presente na sociedade brasileira. Os contextos familiares dessas crianças estão permeados das múltiplas facetas da questão social, que segundo Behring e Santos (2009) é “expressão das contradições inerentes ao capitalismo”. Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo 23 alerte que nem a falta ou a carência de recursos materiais não é motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar, constata-se que na totalidade, as famílias das crianças pesquisadas são tidas como pobres, ou seja, sofrem com a privação material. Assim, a pobreza ainda tem sido motivo de culpabilização das famílias, sendo comum a opção de lançar olhares para práticas que punem famílias empobrecidas e perdendo de vista que este Estado que pune é o mesmo que não executa o que lhe é devido. Os dados sinalizam que geralmente a família que negligencia também é negligenciada pela falta de políticas intersetoriais e universalizantes. A questão da ausência de trabalho e renda é uma demanda preponderante dessas famílias, o que remete à compreensão que ao longo dos anos anteriores ao Acolhimento Institucional as mães já recorriam aos benefícios ofertados pela Assistência Social como forma de garantir os mínimos aos seus filhos. Enquanto figura central da vida doméstica, a mulher vem merecendo destaque na esfera pública como pessoa de referência para o recebimento de benefícios sociais devido ao fato de aplicar melhor dos recursos no âmbito familiar. No entanto, apesar do reconhecimento quanto aos cuidados e proteção da família, as políticas não têm se voltado para a perspectiva de gênero e desse modo, as desigualdades e discriminações continuam incidindo sob formas injustas de oportunidades. (AZEREDO, 2010, p. 577). Como ensina Tavares (2011) são as mulheres que se colocam como representantes das famílias na busca de respostas às necessidades, principalmente às demandas de sua prole e as próprias políticas reforçam tal fenômeno e, por consequência, o lugar das mulheres como responsável pelas necessidades sociais dos grupos familiares. Mais uma vez, e de maneira acentuada, constata-se que as famílias das crianças sob a medida de proteção abrigo são aquelas que na divisão social do trabalho situam-se na condição mais precária, ou seja, aquelas que, premidas pela desigualdade social, têm uma trajetória de trabalho infantil, pouco acesso à escolarização formal, desemprego ou trabalho precário e/ou com baixa remuneração (...) O maior número de responsáveis pelas crianças/adolescentes é mulher (FÁVERO, 2008, p.76). Em relação à existência de problemas mentais, os dados coletados estão em consonância com o que afirma Fávero (2008): A precariedade da condição socioeconomica a que essa população está submetida e a luta árdua e cotidiana pela sobrevivência podem desencadear ou agravar os problemas de saúde, principalmente aqueles relacionados à esfera mental. (FÁVERO, 2008, p. 54). Também em relação à dependência química, os dados comprovam o que ensina Carter e McGoldrick (2001) que o abuso sexual, o espancamento e a negligência podem ser experiências comuns das crianças no lar alcoolista. “A dependência de álcool e de outras drogas, muitas vezes, é uma estratégia, ainda que defensiva, para enfrentar a problemática vivenciada” (FÁVERO, 2008, p. 54). A partir desse quadro, passa-se à descrição do acompanhamento sistemático desenvolvido com essas famílias. O trabalho social teve por ênfase inicial o conhecimento da realidade das famílias das crianças em Acolhimento Institucional e se deu através da leitura dos processos judiciários, dos registros de atendimento nos CRAS e no CREAS e das entrevistas individuais, atendimentos familiares e visitas domiciliares. As histórias narradas pelos familiares revelam contextos, acontecimentos, vivências, carências, violências, afetos positivos e desafetos, injustiças e descuidos, enfim, revelam uma gama de fatores – isolados ou acumulados, que indicam que, de fato, cada caso é um caso, tem suas particularidades, mas, ao mesmo tempo, cada caso não existe isolado, pois para compreendê-lo em sua complexidade e totalidade, faz-se necessário inseri-lo na realidade histórico-social que o constrói. (FÁVERO, CLEMENTE e GIACOMINI, 2008, p.122123). A escuta qualificada garantiu a criação de vínculo entre o profissional e os usuários, numa relação de confiança que ampliou as possibilidades de avanços significativos no cumprimento das orientações e efetivação dos encaminhamentos, visto que “o estabelecimento de vínculos e a conformação de uma relação democrática entre profissionais e usuários são fundamentais para que o processo educativo alcance seus objetivos” (MIOTO, 2009, p. 504). As orientações e encaminhamentos constituíram parte fundamental do trabalho social, por exemplo, nos casos de dependência química, a articulação com o serviço de Saúde foi essencial, sendo tais casos atendidos pelo Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), através do atendimento psiquiátrico. As orientações e encaminhamentos são “ações de natureza socioeducativa que, como os próprios nomes indicam, interferem diretamente na vida dos indivíduos, dos grupos e das famílias” (MIOTO, 2009, p. 498). A viabilização do acesso à rede de serviços (creche, escola, assistência jurídica, transferência de renda, atendimento médico, auxílio condução) foi uma ação marcante no acompanhamento das famílias, já que conforme o Plano Nacional de Promoção, Proteção Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária dispõe que para essas famílias “o acesso a uma rede de serviços potencializada e integrada torna-se fundamental para a superação de suas vulnerabilidades” (BRASIL, 2006, p.32). O trabalho da assistente social também foi sustentado pelo atendimento em conjunto com profissional da Psicologia, com vistas a compreender a família de forma integral. Para a efetivação da atuação interdisciplinar, foi fundamental a manutenção de momentos de discussão de casos e elaboração conjunta de relatórios, respeitando-se os limites e especificidades de cada profissão, possibilitando, como ensina Ortiz (2009), a interlocução horizontal entre os diversos saberes e práticas, sem desconsiderar a natureza da contribuição de cada um dos sujeitos profissionais envolvidos. Para cada criança em Acolhimento Institucional foi elaborado um Plano Individual de Atendimento (PIA), contendo as metas e os prazos para atingi-las, de forma articulada com as demais políticas setoriais e os órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança do município. O PIA tem por base a elaboração de metas para a garantia dos direitos fundamentais da criança e de sua família, a partir de suas reais demandas e está previsto no quarto parágrafo do artigo 101 do Estatuto da Criança do Adolescente (ECA) que deve ser elaborado imediatamente após o acolhimento da criança. Ainda no mesmo artigo, nos parágrafos quinto e sexto, o ECA prevê que o plano individual levará em consideração a opinião da criança e a oitiva dos pais, devendo constar, dentre outros, os resultados da avaliação interdisciplinar, os compromissos assumidos pelos pais ou responsável e a previsão das atividades a serem desenvolvidas visando a reintegração familiar. Para tanto, a elaboração do PIA contou com a participação da família e das próprias crianças acolhidas, de forma a condizer com suas necessidades. A respeito disso, Rizzini (2006) descreve: Cabe acrescentar que, proteger a criança e o adolescente vítimas de violação de direitos, é também estar preparado para proteger e cuidar de sua família. Por fim, a família, que por diversos motivos, se encontra fragilizada, não deveria ser excluída do processo de decisão sobre o encaminhamento de seu caso e sobre as medidas de proteção designadas. (RIZZINI, 2006, p. 07). Os PIA’s foram devidamente homologados em Audiências Concentradas, precedidas de reuniões para discussão de caso, promovidas pela Vara da Infância e Juventude, conforme normativa 6 recente da Corregedoria Nacional de Justiça e cumprindo o dispositivo legal da direta supervisão da autoridade judiciária. A articulação com o Poder Judiciário contribuiu consideravelmente para o alcance do êxito na execução de cada um dos PIA’s elaborados. As reuniões para discussão de caso se constituíram em espaços fundamentais para desmistificação do conceito hegemônico de família, ainda tão presente no campo judiciário. Atendimentos que focaram os esclarecimentos sobre o tramite processual, a legislação social brasileira, os limites institucionais e os direitos constitucionais também contribuíram para a promoção da autonomia e do desenvolvimento da consciência crítica de algumas famílias, que puderam dar passos primordiais para o alcance da reintegração familiar das crianças. 5 CONCLUSÃO O trabalho social, ainda que extremamente importante para a garantia dos direitos das crianças e de suas famílias, não pode ser concebido como única alternativa para a reintegração familiar nos casos de Acolhimento Institucional. O alcance da efetivação de políticas sociais universais que de fato promovam a autonomia das famílias ainda está distante, visto que na sociedade de classes, as políticas são compensatórias e são um produto concreto do desenvolvimento capitalista, de suas contradições, da acumulação crescente do capital e sua implementação “é um jogo complexo de conflitos e tensões, que envolve diferentes protagonistas, interesses, projetos e estratégias” (RAICHELIS, 2010, p. 755). Assim, a importante contribuição do trabalho do assistente social é a identificação de que a demanda trazida pelas famílias é típica de uma sociedade capitalista, de um país periférico como o Brasil e de um contexto de crise do capitalismo internacional globalizado e, portanto, suas condições de vida “não são obra do destino e nem estão exclusivamente fundadas nas suas escolhas pessoais, más ou não, feitas dentro de um leque pré-existente de escolhas, que também é histórico e tem conteúdo de classes” (ORTIZ, 2009, p. 197). 6 Instrução normativa nº 02 de 30 de junho de 2010 que disciplina a adoção de medidas destinadas à regularização do controle de equipamentos de execução da medida protetiva de acolhimento (institucional ou familiar), e de crianças e adolescentes sob essa medida. Um dos grandes desafios da atuação profissional é efervescer a engrenagem das políticas setoriais de maneira que atendam as demandas da família de forma integral, sem sedimentar ou fragmentar suas necessidades, mas potencializando suas capacidades para que exerçam sua função protetiva e de fato se tornem sujeitos de sua própria histórica, exercendo sua cidadania e sua consciência crítica. Assim, a contribuição das políticas públicas e sociais poderia ser maior “caso houvesse, de fato, uma articulação entre diversos setores sociais como educação, emprego e renda, saúde, habitação, saneamento e urbanização” (AZEREDO, 2010, p. 587). Conforme Barroco (2011), o exercício profissional do assistente social contribui para o enfrentamento da avassaladora investidura do neoconservadorismo e vai de encontro à materialização do projeto ético-político da profissão, que assume essa luta – ainda que limitada, através do desenvolvimento de estratégias coletivas de capacitação e organização política, de discussão nos locais de trabalho, de articulação com outras categorias, entidades e movimentos sociais. Superar os processos de intervenção pensados apenas no âmbito do atendimento direto se constitui outro grande desafio do exercício profissional. Para tanto, o assistente social deve desenvolver outras possibilidades de se trabalhar com famílias, especialmente “os espaços da proposição, articulação e avaliação das políticas sociais” (MIOTO, 2004, p. 03). Para tanto, transformar as queixas individuais em demandas coletivas também é desafiante e implica na desenvoltura de um trabalho social num processo educativo capaz de possibilitar, conforme Mioto (2009) que: o usuário – com informação e reflexão – ganhe mais autonomia para circular no espaço social, tomar decisões sobre as formas de conduzir sua vida, avançar na consciência de sua cidadania e ter participação em diferentes instâncias da esfera, pública, especialmente nas de controle social” (MIOTO, 2009, p.08). Neste sentido, para Iamamoto (2009), a socialização das informações, enquanto atividade profissional exercida pelo assistente social merece atenção, pois mais do que um mero repasse de dados é uma transmissão na ótica do direito social, que procura tornar-se transparente ao sujeito que busca os serviços as reais implicações de suas demandas, extrapolando uma abordagem individual à medida que considera a realidade dos sujeitos como parte de uma coletividade. Lutar pelo exercício profissional que contemple uma atuação sem preconceitos, discriminação e culpabilização das famílias também são desafios postos, visto que muitos trabalhadores sociais ainda trazem consigo a cultura da institucionalização, a visão de incapacidade das famílias pobres e o cerceamento de condutas como solução para os casos. Conforme Barroco (2011), o assistente social precisa se capacitar para enfrentar o discurso dominante da naturalização e moralização para não reproduzi-lo e nem incorporar o exercício da coerção. Ora, é preciso “resistir contra o gigantesco aparato, técnicas e procedimentos desenvolvidos para conhecer, dirigir e controlar as vidas das pessoas” (FRAGA, 2011, p.186). Também é de suma importância o trabalho social no âmbito da prevenção, para que a atuação não se inicie somente quando os problemas já estão demasiadamente agravados e os vínculos rompidos. Conclui-se quão importante se constitui o trabalho social executado de forma sistemática, numa dimensão socioeducativa, que demanda tempo para planejamento, registro e avaliação, como forma de apoio e resposta para que crianças não permaneçam institucionalizadas e quiçá seja reduzida a aplicação da medida de Acolhimento Institucional. REFERÊNCIAS AZEREDO, Verônica Gonçalves. Entre paredes e redes: o lugar da mulher nas famílias pobres. In: Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 103, p. 576-590, jul./set.2010. BARROCO, Maria Lucia S. Barbárie e neoconservadorismo: os desafios do projeto ético-político. In. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 106, p. 205-218, abr./jun.2011. BEHRING, Elaine Rosseti; SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. Questão Social e Direitos. In: Serviço Social: direitos e competências profissionais. CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL – CFESS; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL – ABEPSS. 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