Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 Uma interpretação do conceito de justiça em John Ralws1 Bárbara Raquel de Azeredo da Silva2 Jéferson Luis de Azeredo3 Resumo Neste trabalho, faz-se um quadro teórico com alguns pensadores clássicos como Rousseau e Kant, que discutem o conceito de justiça, para só então relacionar com o contratualista John Ralws, este que apresenta uma alternativa intermediária entre o liberalismo extremado e o socialismo ortodoxo, que denomina "justiça como eqüidade". Neste artigo apresenta-se a ideia de Rawls, em que o contrato social entre os indivíduos é substituído por uma situação hipotética apropriada para assegurar a todos os seus membros, que as deliberações consensuais básicas estabelecidas sejam sempre eqüitativas. Assim, o modelo de justiça se traduz em uma clara justiça distributiva dos bens que compõem uma determinada sociedade que se diz minimamente justa com seus cidadãos; Em uma sociedade verdadeiramente democrática todos os bens devem estar ao alcance de todos, independentemente de raça, cor, classe social, etc. Palavras-chave: justiça; contrato social; equidade; sociedade; John Ralws. Abstract In this paper, we present a theoretical framework with some classical thinkers like Rousseau and Kant, who discuss the concept of justice, only to then relate to the contractarian John Ralws, this featuring an intermediate alternative between liberalism and socialism extreme Orthodox who calls "justice as fairness". This paper presents the idea of Rawls, in which the social contract between individuals is replaced by a hypothetical situation appropriate to ensure that all its members agreed that resolutions basic requirements are always fair. Thus, the justice model translates into a clear distributive justice of the goods that make up a given 1 Artigo elaborado em novembro de 2008. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002), bem como Pós-graduação em Gestão Tributária e Mestrado em Direito pela Unisinos. Professora do curso de Direito da UNESC. E-mail: [email protected] 3 Mestre em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC; Especialização em Didática e Metodologia do Ensino Superior; Bacharelado em Filosofia pela UNIFEBE; Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília - UCB; Participante/pesquisador do Grupo de Pesquisa: LITTERA. Professor do curso de direito da UNESC. E-mail: [email protected] 2 1 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 society that says minimally fair to its citizens, in a truly democratic society all goods must be available to all regardless of race, color, social class, etc. Keywords: justice; contract social; equity; company; John Ralws. Sumário Introdução – 1. Contratualismo: influências ao debate - 1.1. A influência de Rousseau - 1.2. Kant e a Justiça - 2. John Rawls e sua teoria da justiça - 2.1. A Sociedade para Rawls - 2.2. Da primazia do justo sobre o bem – Considerações finais – Referências. Introdução O ser humano, desde o começo de seu tempo enquanto ser de relações distributivas e sociais, sempre tivera a sua frente o desafio de estabelecer coerentemente o conceito de Justiça, através de uma conceituação que possa satisfazer a necessidade de explicar sua existência e o modus operandi, ou seja, todas as relações que são estabelecidas na sociedade. Busca-se nesse trabalho, traçar uma linha lógica e que satisfaça em partes, a pergunta: o que se pode relacionar de diferenças e semelhanças entre alguns contratualistas clássicos e a contribuição contemporânea de John Ralws em relação à justiça (esta em especial)? Para tanto, este trabalho não se objetiva investigar as várias escolas e os sistemas ou suas posições sobre a Justiça. Embora, necessariamente, se traga algo neste sentido. O objeto do estudo é principalmente o conceito de Justiça desenvolvida por John Rawls. A reconstrução do contratualismo a partir de um pacto social, democraticamente estabelecido e renovável, com a possibilidade de permitir até mesmo a desobediência civil como forma de expressar um direito de resistência, é a novidade proposta por Rawls. Tal teoria, passível de críticas quanto ao método e também ao conteúdo, constitui-se ainda como instrumento robusto útil para se avaliar a legitimidade da dominação política, econômica e social exercida nas sociedades concretas modernas, quanto ao conceito do justo quanto ao conceito do igualitário, considerando o caráter substancial e não somente formalista que o autor confere a esses princípios. 1. Contratualismo: influências ao debate 2 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 Antes da abordagem sobre John Rawls e seu conceito de justiça, imperioso reavivar as contribuições de Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant sobre o tema, pois ambos são sempre lembrados quando se adentra no estudo deste conceito, devido a sua contribuição. 1.1 A influência de Rousseau Ante as questões suscitadas por Jean-Jacques Rousseau em uma das suas principais e conhecidas obras “O Contrato Social” com relação à legitimidade do pacto social, ao problema da liberdade, ao despotismo, entre outros, que se seguiram aos pensamentos de seus antecessores como Hobbes e Locke, foi construída uma teoria que explicava o sistema jurídico. Tem-se que no século XVII a grande preocupação teve por núcleo a discussão da passagem do estado de natureza para a sociedade civil, como forma de lutar contra a origem divina dos soberanos, aqui também se reconhece como sendo uma teocracia. O Iluminismo4 surge na confluência ao que às vezes tomava a forma de fanatismo e comodismos, diante da falta de explicações para tantas dúvidas, estas que geravam falsas crenças ou senso comum. Embora não explícito, pura e simplesmente, que a Idade Média se curvara à ignorância, muito do que se produziu depois se deve ao esforço de muitos que foram até mesmo esquecidos ou negados a uma outra verdade. Como não é objeto desse trabalho analisar a obra de Rousseau numa perspectiva mais focalizada, mas sim, a sua contribuição para o conceito de justiça, pode-se, perscrutar sobre a idéia que possuía do homem, cujo estigma do Estado liberal que se iniciava tinha no individualismo a chave, ao contrário o homem de Rousseau está perfeitamente ligado ao coletivo, tanto que a lei que nasce da entrega do individual em nome do coletivo como salvaguarda da idéia de justiça com eqüidade nascida da vontade geral. (OLIVEIRA, 2003, p. 2007). A idéia de igualdade natural fez Rousseau, com o uso da razão, ter percebido a existência de uma desigualdade, fruto dessa visão limitada/estreita, tanto que em sua obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” ele alerta para o fato de o homem ser a causa da própria infelicidade (1999, p. 70). Para Rousseau, a lei traz uma forma de justiça que deve respeitar a igualdade formal, a partir das ações dos homens, justos ou injustos. A sua importância está na reflexão sobre o 4 Aqui interpretado com movimento de pensadores que defendiam que o racional-lógico deveria ser levado adiante substituindo as crenças religiosas e o misticismo, que, segundo eles, bloqueavam a evolução do homem, sendo que este deveria ser o centro e buscar respostas para as questões que, até então, eram justificadas somente pela fé. 3 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 homem enquanto vivendo no estado natural e o homem numa sociedade civilmente organizada, a justiça como ideal da democracia liberal. Rousseau concebe a justiça, por sua vez, como um sistema de legislação que deve estar, antes de tudo, ao serviço da liberdade e da igualdade. No “Contrato Social” (apud MARTINS, 2005, p. 33) diz que: se considerarmos humanamente as coisas desprovidas de sansão natural as leis de justiça são vãs entre os homens. Produzem somente o bem do malvado e o mal do justo, quando este as observa para com todos sem que ninguém os observe para com ele. Por conseguinte tornam-se necessárias convenções e leis para unir o direito aos deveres e conduzir justiça ao seu fim. Assim, Rousseau emprega o termo justiça em dois sentidos distintos, aqui destacados: a) como exigência da razão universal, com desenvolvimento possível apenas no social; b) como conjunto de regras cuja observação permite a perpetuação e coerência do corpo social. A República de Rousseau é um Estado de liberdade e de justiça, que garante a cada um os seus direitos em virtude da própria natureza, do poder político e do seu exército democraticamente participado. Referindo-se ainda as leis vigentes, não as considera satisfatórias (leis instituídas na monarquia, na aristocracia). Assim, sua intenção era estabelecer um padrão das leis (que seria uma forma de superar as oposições entre indivíduo e Estado), alicerçado inicialmente na igualdade, sendo esse critério indispensável para o contrato social. Portanto, a justiça estabelecida na lei deve ter reciprocidade entre os indivíduos, cada um tendo seus direitos e deveres, tanto o soberano quanto os súditos. Por isso, as leis precisam representar toda a sociedade, interpretadas como vontade geral (não no sentido de uma união das vontades individuais e sim da vontade do corpo político). Porém, Rousseau não descarta a possibilidade de “guias” para a tomada de decisões, isto é, um Legislador que possua uma “inteligência superior”. Tal legislador teria uma das tarefas mais exigentes na sociedade: estipular regras e normas que limitam a liberdade de cada indivíduo em nome do bem desses. Para tanto deve ser capaz de exercer tal poder sem beneficiar-se, o legislador não deve tornar-se um governante autoritário afastado do corpo político. As leis no contrato social asseguram a liberdade civil através dos direitos e deveres de cada cidadão no corpo político da sociedade estabelecida. Mas para isso, cada cidadão deve “doar-se” completamente, submetendo-se ao padrão coletivo. 4 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 1.2. Kant e a Justiça A contribuição de Immanuel Kant, de tão significativa, continua sendo até hoje um dos pontos de partida para a discussão e à reflexão no tocante ao problema da justiça, principalmente com a “Fundamentação da Metafísica dos Costumes de 1785”, onde busca demonstrar o fundamento da filosofia moral, e que serve de apoio à idéia do contratualismo inicialmente formulado por Locke em seu “Segundo Tratado de Governo” (OLIVEIRA, 2003). Para Kant todo o ser racional é dotado de uma vontade, e onde ele a atua na idéia de liberdade, e estritamente nela, é uma razão legisladora que dá ou fixa as leis. Ele distingue a “lei”, fruto da razão das normas, postas a partir de um ato de vontade. Sua distinção também se faz na conceituação da disciplina da ação, numa mudança de teleológicos de “fim” e de “bem”, para os conceitos deontológicos de “dever” e de “lei”. Assim, Kant colocou-se à busca de uma fundamentação da idéia de uma lei moral à qual todos devem obedecer independentemente dos fins a que são propostos. Kant inicia pontuando que a única coisa, neste mundo ou “fora dele”, que poderá ser considerada integralmente boa é uma boa vontade, todas as demais como: saúde, riqueza, capacidades pessoais, virtudes e inclusive a felicidade, poderão ser boas ou más conforme sua dependência ao modo como são empregadas e do mérito que se tem de possuí-las. Uma boa vontade, ou seja, aquela que persiste na obediência ao dever motivada apenas pelo sentido de cumprimento do dever, é a única que foge dessa referência5. Como o dever é precisamente a obrigatoriedade de uma ação por força de uma lei moral, a demonstração do conceito de lei moral conduzirá a do conceito de dever, que permitirá, por sua vez, reconhecer uma boa vontade (BARROS II, 2006, p. 70-89). Como comenta Chagas (2008, p. 130), Kant, que já se havia dedicado, na sua obra “Crítica da razão pura”, a uma minuciosa e cuidadosa explicação da divisão de trabalho entre razão e experiência a propósito do exercício especulativo da razão, dispõe agora, que também no exercício prático da razão a distinção entre o racional e o empírico é indispensável. Com efeito, explica que nenhuma lei moral pode ser obtida a partir da experiência, visto que toda experiência é particular e contingente, enquanto toda lei é universal e necessária. Assim, é 5 Como o valor moral da ação se mede pela sua conformidade à lei moral, é impossível que uma vontade que sempre cumpre intencionalmente com a lei moral não seja uma vontade integralmente boa. 5 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 apenas na razão que se deve buscar o conceito de lei moral, porque tudo que é racional é universal e necessário. A vontade é a capacidade de determinar a ação a partir de princípios. Tais princípios são orientações de ação que seriam inevitáveis para uma vontade integralmente boa, mas são apenas obrigatórios para a vontade humana, que, não sendo de todo determinada pela razão, mas em parte influenciada também pela inclinação, não é integralmente boa. Por isso, para a vontade humana esses princípios se formulam como imperativos. Os imperativos podem ser hipotéticos ou categóricos. Os imperativos hipotéticos ordenam uma certa ação sob a condição de que o sujeito pretenda alcançar um certo fim. Se esse fim é contingente, como construir uma casa, preparar um alimento, obter lucro numa atividade, etc., então o imperativo hipotético apenas indica qual o meio apto a alcançar esse fim para todo aquele que queira alcançá-lo e se chama, nesse caso, uma regra técnica. Se, por outro lado, o fim colimado é necessário (como o é a felicidade, que nenhum ser humano pode deixar de querer) (COELHO, s.d, p. 20), então o imperativo hipotético fornece uma certa orientação de ação com vista a certa concepção desse fim e se chama, nesse caso, um conselho de prudência. Diferentemente, o imperativo categórico é aquele que ordena incondicionalmente, o que significa que ele ordena independentemente dos fins (contingentes ou necessários) que o sujeito tem em vista. Por isto, uma lei moral, que pretende universalidade e necessidade, só poderá caber na forma de um imperativo categórico. Encontrar o conteúdo do imperativo categórico e o da lei moral coincidem. O imperativo categórico, porque é incondicionado, não pode ordenar a realização de uma certa ação, nem ter em vista um certo fim. Deve formular-se de tal modo que contemple apenas a forma da universalidade e necessidade. Assim, Kant propõe para ele a seguinte formulação: “Age de modo que possas querer que a máxima de tua ação se converta também numa lei universal” (KANT, 1973, p. 223). Toda ação cuja máxima passe pelo teste de universalização é moralmente correta, enquanto a ação cuja máxima não passe por esse teste é moralmente incorreta. Numa segunda formulação, Kant enuncia o imperativo categórico como segue: “Age de modo a tratar a humanidade, seja na tua pessoa, seja de qualquer outro, sempre também como um fim, e nunca simplesmente como um meio” (KANT, 1973, p. 240). Dessa forma, rompe com a idéia aristotélica de um agente que, para medir a validade moral da ação, só precisa levar em conta os seus próprios fins. Agora, cada uma das outras pessoas deve ser vista como tendo um valor absoluto (uma dignidade) e não um valor relativo a fins que se tem em vista (um preço). 6 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 Cada pessoa é um fim em si mesma, motivo por que toda realização dos fins de uma deve procurar coordenar-se com a realização também dos fins das outras. Quanto à justiça, que Aristóteles havia identificado com a eqüidade, Kant a identifica com a universalidade e com a autonomia. Sempre que um sujeito estiver diante de uma norma que seja capaz de querer como lei universal e da qual ele possa reconhecer-se ao mesmo tempo como destinatário e legislador, ele se encontrará ante uma norma justa. A justiça, estando conectada com o imperativo categórico, está acima de qualquer fim e de qualquer bem, não sendo uma virtude entre outras, mas uma condição indispensável de validade moral. Sendo assim, a “Crítica da razão pura” e a “Crítica da razão prática”, contribuíram para afirmar que o contratualismo se confirma na possibilidade de racionalmente os homens escolherem a forma de sociedade e de suas leis, o pacto firmado é confirmador da justiça possível e previamente consentida, conceituando-a e explicando-a. O Estado para Kant era resultado da sua visão apenas jurídica, um conjunto de leis a obrigar os homens que estivessem sob o seu domínio, a expressar a influência do positivismo em sua concepção, sem superação do jusnaturalismo. A justiça seria o resultado da vontade e da liberdade do homem enquanto ser racional, manifestada nas leis, a exigir o respeito de todos. 2. John Rawls e sua teoria da justiça No caminho de trajetória da tradição do contrato, Rawls se mantém unido a sua forma original, só que acrescentando variantes que o conduzem a um patamar diferente. Uma de suas pretensões foi de propor uma alternativa ao pensamento utilitarista (evidenciado em sua época). A teoria da justiça de John Rawls, especialmente contida na obra “Uma teoria da justiça”, é uma das mais importantes desenvolvidas no século XX. O autor pretende "elaborar uma teoria da justiça que seja uma alternativa para essas doutrinas que há muito tempo dominam a nossa tradição filosófica – a utilitária e a intuicionista" (RAWLS, 2000, p. 3). A teoria busca integrar as liberdades civis e políticas com os direitos econômicos, sociais e culturais. Entre o liberalismo extremado e o socialismo ortodoxo, o autor propõe uma alternativa intermediária, que denomina "justiça como eqüidade" ("justice as fairness"). É precisamente o conceito de "justiça como eqüidade" que vai caracterizar a origem, a natureza e a função dos princípios de justiça social propostos por Rawls. Entretanto, o consenso original concebido por ele não é o que inaugura a sociedade civil e define uma forma particular de governo. São os princípios de justiça social, propostos na sua doutrina e 7 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 aplicáveis às desigualdades existentes na estrutura básica de qualquer sociedade, que constituem o objeto do consenso original. Rawls recupera a noção de contrato social, que é originariamente uma categoria jusnaturalista, para apresentá-la não mais como um acordo entre os homens para a criação de uma sociedade política, mas como uma formulação racional capaz de re-nortear as normas sociais, a partir do conceito de justiça. Sua premissa de uma justiça como equidade estava exigindo uma reelaboração do contrato, mas agora com uma roupagem nova. Assim, altera-se uma visão que possibilitaria estabelecer as bases necessárias para a sua teoria do contrato, adequando-se as exigências das sociedades atuais (pluralistas, liberais e democráticas). Uma essencial característica da concepção contratualista de justiça é que a estrutura básica da sociedade é o objeto primeiro da justiça. A estrutura básica é entendida como a maneira pela qual as mais importantes instituições sociais se encaixam num sistema, esta estrutura vai possibilitar a melhor forma pela qual as instituições distribuem os direitos e deveres fundamentais e moldam a divisão dos benefícios gerados pela cooperação social. Nessa estrutura básica inclui-se a constituição política, as formas reconhecidas de propriedade, e a organização da economia, assim como a natureza da família. O objetivo de Rawls na formulação de sua teoria seria chegar a uma concepção de princípios primeiros, pensando com eles oferecer diretrizes razoáveis para as questões clássicas e conhecidas de justiça social. Para uma nova perspectiva de contrato Rawls (2000, p. 30) diz que: Um contrato social é um acordo hipotético; a) entre todos, e não apenas entre alguns membros da sociedade (como cidadãos), e não como indivíduos que ocupam uma determinada posição ou exercem um determinado papel em seu interior. b) segundo a forma kantiana dessa doutrina, à qual denomino “justiça como equidade”, as partes são consideradas pessoas morais livres e iguais, e c) o conteúdo do acordo consiste nos princípios primeiros que devem regular a estrutura básica. O contrato social é substituído por uma situação hipotética apropriada para assegurar a todos os seus membros, que as deliberações consensuais básicas estabelecidas sejam sempre eqüitativas. Reunidas assim, status quo fictício, ou na posição original, pessoas livres e iguais, concebidas normativamente, com intenção única de promover seus interesses, percebendo que a associação cooperativa é a melhor maneira para a preservação de seus objetivos, fazem a escolha dos princípios de justiça que determinarão o futuro da sociedade. Este acordo razoável é acompanhado de restrições de conhecimento, pela escolha de indivíduos como representantes ideais, na fixação de bens essenciais a serem garantidos e pelo reconhecimento 8 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 prévio de princípios através de uma escolha racional. Nesta situação hipotética ocorrem um procedimento no qual em um determinado momento em uma determinada sociedade, indivíduos com objetivos de terminados e que se relacionam com outros indivíduos que também possuem objetivos próprios e até diferentes, em reunião devem escolher, em vista de seus conhecimentos circunstanciais, um entre vários caminhos de ações possíveis. O contrato de Rawls é inerente a sua filosofia moral quando afirma que o que é justo é o que é melhor para a sociedade. A sociedade justa, bem estruturada, deve ser fundamentada de tal modo que as pessoas possam conviver com todas as diferenças religiosas, étnicas e culturais, enquanto pessoas livres e iguais, e, portanto, que possam viver com dignidade. Em sua concepção, as pessoas só viverão bem se forem minimamente justas entre elas. Assim a teoria da justiça nos é apresentada como um procedimento de construção, mais precisamente uma construção procedimental capaz de representar, teoricamente, os dois princípios fundamentais de justiça política. A idéia central da teoria da justiça é que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do acordo original. Estes princípios são os que regulam todos os acordos subsequentes, pactos e contratos. 2.1. A sociedade para Rawls A sociedade é vista por Rawls, como uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que, em suas relações, reconhecem a existência de regras de condutas como obrigatórias, as quais, na maioria das vezes, são cumpridas e obedecidas, especificando um sistema de cooperação social para realizar o bem comum. Nesse contexto, surgem tanto identidade de interesses como conflito de interesses entre as pessoas, pois estas podem acordar ou discordar pelos mais variados motivos, quanto às formas de repartição dos benefícios e dos ônus gerados no convívio social. É precisamente aí que desempenham seu papel os princípios da justiça social. Nas palavras de Rawls (2000, p. 5), exige-se um conjunto de princípios para escolher entre várias formas de ordenação social que determinam essa divisão de vantagens e para selar um acordo sobre as partes distributivas adequadas. Esses princípios são os princípios da justiça social: eles fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social. Para Rawls (2000, p. 64), são dois os princípios da justiça social: 9 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos. Tais princípios, segundo ele, aplicam-se à estrutura básica da sociedade, presidem a atribuição de direitos e deveres e regem as vantagens sociais e econômicas advindas da cooperação social. 2.2. Da primazia do justo sobre o bem Por fazer críticas à doutrina utilitarista, Rawls constrói sua teoria da justiça de forma mais abrangente. Ele afirma a prioridade da liberdade sobre todos os outros valores morais e políticos. Assim, chega a sua tese fundamental que é a prioridade do justo sobre o bem: Podemos expressar essa idéia dizendo que na justiça como equidade o conceito de justo precede o de bem. Um sistema social justo que define o escopo no âmbito do qual os indivíduos devem desenvolver seus objetivos, e oferecer uma estrutura de direitos e oportunidades e meios de satisfação pelos quais e dentro dos quais esses fins podem ser equivalentemente perseguidos. A prioridade do justo sobre o bem revela uma concepção deontológica da justiça, ao contrário do utilitarismo que deriva o justo do bem através de uma concepção teológica da justiça (SILVEIRA, 2007). Para o utilitarismo a sociedade mais justa é aquela em que a felicidade é maximizada, contradizendo o princípio liberal da legitimidade, impondo uma concepção particular do bem como critério de justiça, enquanto o respeito pela prioridade da liberdade subentende o respeito pelo pluralismo moral e pela diversidade das concepções de bem. Assim, o modelo de justiça de Rawls se traduz em uma clara justiça distributiva, onde ocorre uma melhor distribuição dos bens que compõem uma determinada sociedade que se diz minimamente justa com seus cidadãos. Para ele em uma sociedade verdadeiramente democrática todos os bens devem estar ao alcance de todos, independentemente de raça, cor, classe social, etc. Considerações finais 10 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 À guisa de conclusão, esse pequeno estudo sobre o conceito de justiça permitiu dedicarse a discutir os problemas de moral e dos seus valores, jamais podendo deixar de lado a questão objeto do estudo: Justiça. Visto em Kant, que o contrato social constitui uma simples ideia da razão, uma pressuposição lógica e não um fato histórico ou empírico. O contrato, para ele, não é o princípio que permite conhecer a origem do Estado, mas como ele deve ser, é a regra e não a origem da Constituição do Estado. E ainda, não é o princípio da sua fundação, mas o da sua administração que ilumina o ideal da legislação, do governo e da justiça pública. Nestes termos, Kant proclama o contrato social como o contrato originário pelo qual todas as pessoas limitam a sua liberdade exterior, em ordem a recebê-la de novo como membros da comunidade. Na sua base, há um pacto civil que trata de organizar uma multidão de seres razoáveis e de instaurar um ser comum, o qual constitui uma espécie do imperativo categórico político. É assim que define direito público, como o conjunto das leis que necessitam ser proclamadas universalmente para poderem gerar um estado jurídico. É um sistema de leis para um povo, isto é, uma multiplicidade de homens ou de povos que, estando numa relação recíproca uns para com os outros, têm necessidade, para poderem usar do seu direito, de um estado jurídico dependente de uma vontade que os unifica, isto é: de uma Constituição. Kant transforma assim o direito natural numa coisa que é imanente ao homem, em algo que é por ele querido. Já para John Rawls, a justiça cumpre um papel nos limites do pacto contratual, sem antecedentes axiológicos a perturbar o contrato, nascida apenas do que seria uma vontade geral, em vista da garantia da liberdade nos moldes do liberalismo avançando na redistribuição como forma não de buscar uma igualdade material plena, mas de compensar aqueles que não foram beneficiados naturalmente no plano da distribuição primária. Assim, a justiça para Rawls é equidade, no momento inicial do pacto, partindo-se da suposição que todos são iguais, e que por isso podem determinar a forma de atuar na defesa dos seus direitos, fixar os direitos e categorizar os bens que interessam ao grupo social. Num segundo momento a justiça é vista como um bem, partindo da ideia de que não havia conceito de bem, tal conceito agora é fixado contratualmente, como também os seus princípios aptos a produzir vantagens para todos – o que somente seria justo, ou para alguns quando se destinar a melhorar os menos privilegiados – como redistribuição. Justiça e igualdade, à moda liberal, andam juntos no conceito proposto pela teoria de Rawls, representando efetivamente, sem assumir, uma postura de defesa do neoliberalismo. 11 Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011 A justiça de Rawls, que tem na idéia de autonomia e no imperativo categórico de Kant sua base, é a reinterpretação do conceito deste. Enfrenta a teoria problemas como a questão da igualdade “natural” e da igualdade “liberal”. Produzindo, então, como forma de compatibilizar dois princípios, o primeiro nascido do momento primário da aceitação diante de fatos e circunstâncias naturais de uma pretensa igualdade firmada pelo direito e envolto num “véu de ignorância”, e o segundo, numa forma de justiça distributiva, compensatória, resultando necessariamente benefícios para os menos aquinhoados. Referências BARROS II, João R. Progresso Moral na Filosofia da História de Kant entre 1781 e 1798. Dissertação, 2006 Unisinos. Disponível em: http://bdtd.unisinos.br/tde_busca/arquivo301. Acesso em: jul. 2008. CHAGAS, Flavia C. Kant e Henrich: Sobre a “Sittliche Einsicht, In: REVISTA INTUITIO Porto Alegre V.1 – no 2 Nov. 2008, p. 119-136. COELHO, André L. S. Críticas de Jurgen Habermas a “justica como equidade”, de John Rawls. 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