ELABORANDO O LUTO: APROXIMAÇÕES ENTRE O PSICODRAMA E A NEUROCIÊNCIA EM UM ESTUDO DE CASO RESUMO O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a contribuição do psicodrama na elaboração e ressignificação do luto, estabelecendo conexões com a neurociência. Assim, apresentou-se um estudo de caso, analisando como a interface dessas duas áreas contribuiu para a evolução do tratamento do cliente até a sua alta. Palavras-chave: Psicodrama; neurociência; luto; estudo de caso. ABSTRACT: This study aims to demonstrate the psychodrama’s contribution in the development and redefinition of mourning, establishing connections with neuroscience. Thus, it presented a case study analyzing how the interface of these two areas has contributed to the evolution of customer treatment until discharge. Keywords: Psychodrama; neurosciences; mourning; case study. 1 INTRODUÇÃO A importância e a necessidade de vivenciar o luto fazem do tema um motivo de pesquisa. As pessoas demonstram uma grande dificuldade em falar e aceitar a morte como algo natural e a literatura que aborda esse tema com viés no psicodrama é escassa. É importante para qualquer pessoa encarar a fase da perda, principalmente, ainda na infância. A criança que perde sua mãe e que é, naturalmente, excluída da cena natural da morte, por acharem que ela não conseguiria vivenciar essa perda, transmuta em medo, o que é a naturalidade do ciclo da vida, da qual a morte faz parte. O estudo de caso escolhido aborda o sofrimento e as repercussões de um adolescente que não conseguiu vivenciar o luto pela perda da mãe, e, através de acompanhamento psicoterápico fundamentado na teoria psicodramática bipessoal, além de conhecimentos de neurociência, conseguiu ressignificar e elaborar o luto. O resultado positivo do tratamento deuse em virtude da possibilidade do cliente reestruturar sua matriz de identidade, que conforme 1 concebeu Moreno (1997), “é a placenta social da criança, o locus em que ela mergulha suas raízes”. Moreno relata nos seus escritos que, além do lócus nascendi, os valores religiosos, a espontaneidade e os papéis que o ser humano exerce no decorrer da vida constroem as nossas conservas culturais, ao mesmo tempo em que destroem a nossa criatividade, cristalizando-as (MORENO, 1997, p. 114 ) O acompanhamento psicoterápico desenvolvido com o adolescente valoriza a experiência vivida no aqui e agora, através da realidade suplementar, em que o momento de ser, viver e criar fez da cena dramática algo real, mesmo o paciente sabendo que aquela cena era irreal. O tempo que Moreno conceitua é um tempo subjetivo, que para a criança consiste em uma só dimensão: o presente, é a síndrome da fome de atos. Para o adulto existem três dimensões: passado, presente e futuro (GARRIDO apud MORENO, 1996). Ao desenvolver cenas do passado, no aqui e agora, a pessoa consegue trabalhar feridas abertas. São estados espontâneos de curta duração, plenos de acontecimentos e às vezes saturados de inspirações. Esse estado inconsciente compõe-se de momentos poucos e raros, sendo que as nossas conservas culturais muitas vezes nos impedem de vivenciar estes momentos, os quais, talvez, nem cheguem a existir para o indivíduo. Algumas técnicas psicodramáticas, tais como: duplo, espelho, inversão de papéis, psicodrama internalizado e psicodrama interno, foram aplicadas na terapia bipessoal, com o intuito de investigar e aproximar-se mais do processo natural do “conhecer-se a si próprio”. O paciente em luto, passou a perceber que o momento não era passado, nem presente ou futuro, mas sim o aqui e agora e dentro da sua subjetividade, permitiu-se, com o seu terapeuta, vivenciar a cena do luto e da despedida da mãe. Com isso, elaborou melhor a sua perda e prosseguiu, convivendo com essa realidade e oportunizando-se à socialização, decorrência natural de nossa condição humana, para a qual ele fechou-se, por força do trauma experienciado. 2 DESENVOLVIMENTO DO TEMA 2.1 O PSICODRAMA, A NEUROCIÊNCIA E O LUTO A abordagem psicodramática foi desenvolvida pelo psiquiatra romeno Jacob Levy Moreno. Para ele, o individuo é concebido e estudado através de suas relações interpessoais, essa inter-relação entre as pessoas constitui o eixo fundamental de sua teoria. “Para investigála, Moreno criou a socionomia, cujo nome vem do latim sócio =companheiro, grupo, e do 2 grego nomos = regra, lei, ocupando-se, portanto, do estudo das leis que regem o comportamento social e grupal” (GONÇALVES et. alli.,1988, p.41) Segundo Ramalho (2002), o conceito de espontaneidade, é uma referência no pensamento moreniano e dominou todo o seu estudo, durante sua vida. Esta é definida como “a capacidade de responder de formas novas às situações recentes ou às situações antigas” (RAMALHO, 2002, p.38). Desta forma, a espontaneidade, a criatividade e a sensibilidade seriam recursos inerentes aos homens que, desde o início, estariam acompanhados, tanto de elementos favoráveis ao seu desenvolvimento, quanto de tendências destrutivas. Nessas últimas, estariam as conservas culturais que são “padrões de comportamentos estereotipados, com valores e formas de participação na vida social que acarretam a automatização do ser humano” (RAMALHO, 2002, p.38). Destaca-se que o psicodrama propõe-se a preparar o indivíduo, justamente, para não se submeter a essas conservas culturais. Segundo Garrido Martín (1996), no que é corroborado por Ramalho (2002), Moreno tem como motivação central de sua obra, o que ele próprio definiu como “filosofia do momento”. Esta busca captar a realidade humana, tal como é em si, em suas circunstâncias reais ou existenciais, destarte, prioriza o tempo presente: o aqui-e-agora, vivido da experiência subjetiva. Para esta filosofia, o futuro e o passado só têm importância se materializados no presente. Conclui Garrido Martín (1996), identificando que a influência do Existencialismo heroico vienense na obra de Moreno, foi marcante de tal modo que, aquilo que este denomina de “filosofia do momento” coincide com aquela forma de existencialismo. Entendendo que a religião hassídica também serviu de forte inspiração para Moreno desenvolver a sua obra, faz-se necessário tecer algumas palavras sobre a mesma. Segundo Fonseca Filho (1980), o hassidismo prega a necessidade de se manter Deus em uma relação horizontal com os homens e não em um plano de verticalidade, como se observa em algumas religiões. Encerra o autor, ressaltando que “o melhor exemplo disto estaria no “Testamento do Pai”. Moreno traz a imagem não do Deus distante, mas do Deus próximo (...) que fala sem intermediários, que fala diretamente aos homens. O Deus moreniano caracteriza-se pela subjetividade e pela criatividade” (FONSECA FILHO, 1980, p.05). Já para Gonçalves et al. (1988), o fator tele é um conceito relevante e fundamental da teoria moreniana, sendo definido como a capacidade de se perceber de forma objetiva o que 3 acontece nas situações e o que se passa entre as pessoas. Complementa explicando que é a percepção interna entre dois indivíduos. (GONÇALVES et al., 1988) Outro conceito central na teoria psicodramática é o de realidade suplementar e foi introduzido para auxiliar na apresentação e na verdade pessoal do protagonista. Ela não constitui uma técnica e sim a realidade com que se trabalha todo o tempo em que se dramatiza (RAMALHO, 2011) Para o psicodrama, a formação da identidade de uma pessoa é constituída a partir de sua matriz, que é “o lugar (locus) onde a criança se insere desde o nascimento, relacionando-se com objetos e pessoas dentro de um determinado clima” (GONÇALVES et al, 1988, p.60) De acordo com os ensinamentos de Moreno, nas primeiras fases de desenvolvimento do indivíduo, este encontra-se no primeiro e no segundo universo. O primeiro refere-se à matriz de identidade total indiferenciada, em que o ser confunde-se com o meio e diferenciada, em que a pessoa começa a perceber o meio e a diferenciar-se dele. É no segundo universo que surge uma brecha entre fantasia e realidade, a partir do qual as pessoas começam a desenvolver dois tipos de papéis: o papel social e o papel psicodramático: o primeiro mais relacionado à realidade e o segundo mais ligado à fantasia e à interioridade (RAMALHO, 2011). A autora ainda acrescenta que as etapas de formação da matriz de identidade são cinco: a primeira fase é a indiferenciação, na segunda já existe uma relativa atenção ao outro, na terceira percebe-se um foco da atenção do “eu”, na quarta fase existe a possibilidade de estar no papel do outro e na última fase, identifica-se a possibilidade do outro estar no seu papel. Moreno faz a associação das fases da matriz de identidade para a aplicação das técnicas psicodramáticas: a primeira fase corresponde à técnica do duplo, a segunda e terceira ‘a técnica do espelho, a quarta e a quinta correspondem à técnica da inversão de papéis. (RAMALHO, 2011). Ademais, Moreno (1974) afirma que é na matriz de identidade que surgem gradativamente os papéis e define o papel como sendo a maneira de funcionamento que uma pessoa assume em momento específico, no qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos. Outrossim, o autor referenciado, assevera que: "O jogo ou treinamento de papéis permite explorar as possibilidades de um indivíduo de representar os papéis determinados" (MORENO, 1974, p. 122). E finaliza: "O conceito de jogo psicodramático de papéis é simples. Sua finalidade é proporcionar ao ator uma visão dos pontos de vistas de outras pessoas, ao atuar no papel de outros, seja em cena, seja na vida real." (MORENO, 1974, p. 181). 4 Outro marco de destaque da teoria moreniana é a sua teoria socionômica, que, muito provavelmente, fora influenciada pelos seus trabalhos realizados com os grupos abertos em campos de refugiados de guerra, com crianças e prostitutas nas ruas e parques de Viena, dentre outros. O seu objetivo principal era o estudo das relações sociais entre os indivíduos que findariam por influenciar a individualidade de cada um (RAMALHO, 2002). Segundo Santos (2003), baseado em sua teoria, Moreno elaborou um método de estudo, que, diferentemente, de outros métodos de intervenção em Psicologia, enfatiza as relações entre os indivíduos, a fim de que o processo de coletividade possa fluir da melhor maneira e por meio do qual a possibilidade de respeito mútuo e cooperação entre as pessoas seja possível (SANTOS, 2003). Ressalte-se, por último, que Moreno trabalhou, inicialmente, com o teatro espontâneo e, a partir de uma experiência prática com um grupo de atores, este descobriu a ação terapêutica da dramatização, modificando-se assim “o teatro espontâneo em teatro terapêutico e este, em psicodrama. Moreno definiu-o como “um método que procura a fundo a verdade através da ação” (LUCCHIARI, 1993, p.17). Feitas essas considerações iniciais acerca da obra de Moreno, entende-se como oportuno o estabelecimento de algumas conexões entre a abordagem do psicodrama e a neurociência. Destaque-se que, o conhecimento prévio da neurociência e por consequência da fisiologia das emoções, possibilita uma atuação mais direcionado do terapeuta na clínica. De acordo com Tarashoeva e Marinova (2008), a neuroplasticidade e a mudança terapêutica dar-se-ão pela importância do fator terapêutico que é a experiência emocional corretiva. Quando uma pessoa passa por uma experiência traumática na primeira infância, essa experiência é fixada na memória implícita1 e pode ocasionar algum tipo de sintoma na vida posterior. O psicodrama, por meio de suas técnicas, possibilita uma re-vivência, com toda a intensidade, da situação traumática, reproduzindo um ambiente seguro e possibilitando a minimização dos sintomas. (TARASHOEVA; MARINOVA, 2008) 1 Segundo os ensinamentos de Liggan et ali (1999), apud Trashoeva e Marinova (2008), quanto à plasticidade cerebral, a memória pode ser subdividida em duas categorias: a implícita e a explícita. O sistema de memória explícita representa “a recordação consciente de fatos e eventos: estruturas cerebrais – estruturas de lobo temporal, especialmente hipocampo, estrutura límbico-diencefálicas, disponível para a evocação consciente.” Enquanto que o sistema de memória implícita trata-se de “uma conservação heterogêneas de capacidades; armazena a experiência emocional relacionada ao processo de vinculação precoce: estruturas cerebrais: gânglios basais; não disponível para evocação consciente” (LIGGAN et ali (1999), apud TRASHOEVA E MARINOVA, 2008, p. 24-25). 5 Complementando esse raciocínio, os referidos autores ainda esclarecem que: “o psicodramatista experiente identifica os “indicadores” relacionados com o sintoma, desbloqueia o circuito associativo das memórias e vai junto com o protagonista de uma cena a outra, fazendo todo o caminho de volta na espiral do desenvolvimento do sintoma, até as suas raízes” (TARASHOEVA; MARINOVA, 2008, p.28) Tarashoeva e Marinova (2008), ainda asseveram que o hipocampo é uma estrutura cerebral responsável pela consolidação da memória, estabelecendo que parte da informação será armazenada na memória de longo prazo. A experiência emocional que um indivíduo passa de maneira intensa e completa leva a uma forte ativação do hipocampo, sendo a memória vívida armazenada. “O processo de formação da memória baseia-se na neuroplasticidade e inclui remodelação dos dendritos, crescimento dos axônios e formação de novas sinapses” (TARASHOEVA; MARINOVA 2008, p.29). Os citados autores, por fim, destacam que a abordagem psicodramática não apaga a memória da experiência traumática e sim constrói uma nova que tem a mesma força e é positiva. Coexistindo com a antiga e que a equilibra. Desta forma, o circuito associativo é interrompido e o sintoma desaparece (TARASHOEVA; MARINOVA, 2008). Por outro lado, Cozolino, 2002 apud Hug e Fleury, 2008 define que o cérebro social é constituído por estruturas neurológicas como a amígdala, o cingulado anterior, a área orbito frontal do córtex pré-frontal e a porção frontal do lobo temporal. “Essas estruturas expandiram e constituíram uma rede neural em decorrência de informações sociais e emocionais necessárias para a sobrevivência do ser humano”, sendo o sistema neural o responsável pela organização das experiências precoces de relacionamento interpessoal. (COZOLINO, 2002 apud HUG; FLEURY, 2008, p.217), Ainda de acordo com esses autores, as memórias implícitas de procedimento refletem as memórias sensoriais, motoras, afetivas e cognitivas das experiências de cuidado. Essas memórias são evocadas a partir das experiências interpessoais durante a vida, que leva o individuo a se aproximar, ou se afastar de outros em função de informações contínuas e inconscientes relacionadas a decisões de aproximação ou evitação. O que repercute, diretamente no processo de manutenção e exclusão de pessoas do nosso círculo de convivência (COZOLINO, 2002 apud HUG; FLEURY, 2008) 6 Enfim, a neurociência ajuda na compreensão de como as experiências interpessoais precoces constroem e modelam o cérebro, ressaltando a importância da psicoterapia na criação de uma matriz interpessoal capaz de reconstruí-lo. É justamente fazendo uma interface entre essas duas áreas do conhecimento humano que se possibilita uma melhor compreensão das necessidades do paciente, tal qual o cliente ora foco deste trabalho. Este carregava consigo experiências traumáticas como a da morte de sua genitora, ainda na infância e, somente com um trabalho intenso de psicoterapia psicodramática, associado aos conceitos estruturados pela neurociência foi possível elaborar o seu luto, tema que merece uma atenção especial, sobre o qual passará a se discorrer. De acordo com Parkers (1998), o luto não consiste em um estado, mas em um processo, não se confunde com a perda, mas uma reação a essa perda, a qual não é um simples estresse e deve ser significativa, como o falecimento de um ente querido. O autor ainda arremata, afirmando que dessa perda inicial podem advir outras perdas secundárias, as quais repercutem nos papéis sociais desempenhados por aquele que sofreu a perda (PARKERS,1998). Quando uma perda acontece de maneira inesperada pode provocar uma desordem, causando uma sensação de impotência. De acordo com Perazzo (1986), esses sentimentos na infância estão ligados ao desaparecimento no campo visual da criança, que fatalmente desenvolverá sentimentos de tristeza, medo e solidão. É muito difícil perder alguém na infância, pois este é o momento de desenvolvimento de estruturação da matriz de identidade que, como já referido para Moreno é a placenta social do indivíduo, o locus nascendi. (MORENO ,1997) A outro giro Cassorla (1998) ainda acrescenta que, quando uma pessoa nega a morte ou se recusa a entrar em contato com o seu sentimento, esse luto será mal elaborado, e tem-se uma chance maior de adoecimento, caindo em melancolia ou em outro processo substitutivo (CASSORLA,1998). Após trazer alguns conceitos e realizar ponderações acerca da abordagem do psicodrama, de seu vínculo com a neurociência e esclarecer o que vem a ser o luto, torna-se necessário descrever nuances do caso clínico, para melhor compreensão de como era o paciente e da sua evolução no tratamento, a partir das intervenções realizadas, tendo como suporte os dois ramos do conhecimento acima referidos. 7 3 O CASO CLINICO EM ANÁLISE. O cliente “G” iniciou a psicoterapia individual em agosto de 2010 e, após pouco mais de quatro anos de acompanhamento, teve alta em dezembro de 2014. Durante esse período, oscilou sua frequência de atendimento entre uma e duas vezes por semana, a depender da demanda que o momento requeria. A necessidade da psicoterapia deu-se em virtude do falecimento de sua genitora (suicídio) e das mudanças ocorridas a partir deste fato, da dependência do vídeo game e do isolamento social. Como na época o paciente não tinha vínculos de proximidade com o pai, foi morar com a tia e mudou-se do local onde residia, tendo se afastado dos vínculos familiares e de seus referenciais, fato que contribuiu para o agravamento de seu estado emocional. Nos primeiros meses de atendimento, o cliente não verbalizava nada, contudo comparecia às sessões, pontualmente, em seu horário. Após sete meses o cliente começou a falar sobre seu cotidiano, muito superficialmente, e sobre assuntos pelos quais nutria curiosidade, nenhum deles, entretanto, relacionado aos seus sentimentos, sendo que ainda não saia de casa e jogava muito, além de responder muitas vezes de maneira desconectada. No segundo ano de psicoterapia, o cliente contou de maneira confusa o ocorrido com sua genitora e, ao longo do tratamento por meio de técnicas psicodramáticas foi organizando e lembrando-se de fatos marcantes. Para Moreno (1974), o adolescente encontrava-se fixado na primeira fase de desenvolvimento do indivíduo, referente à matriz de identidade total indiferenciada, em que a pessoa não distingue fantasia de realidade e em que só há um tempo (MORENO ,1974). É importante frisar a forte culpa sentida pelo cliente em razão do falecimento de sua genitora, justificando-se a descrição do ocorrido neste momento, para uma melhor compreensão daquele sentimento. Um certo dia, quando o cliente tinha oito anos, ao retornar da escola, chegando em casa, bateu na porta e chamou sua mãe para abri-la. A mãe respondia que já ia abrir, contudo não o fazia, falando algumas vezes que estava vindo, entretanto, sua voz mudava a cada fala, ficando mais enrolada e ela não aparecia. Depois de certo tempo, que o cliente não tem exata ideia, foi chamar a tia que morava em cima e quando esta chegou, diante da ausência de resposta da irmã ao seu chamamento, pediu ajuda de terceiros para arrombar a porta e, ao 8 entrarem, encontraram a genitora do cliente morta, registrando-se que aquela não havia sido a primeira tentativa. O cliente, mesmo sendo criança, acompanhou toda a cena e o seu desenrolar, até o sepultamento de sua genitora, que somente ocorreu no dia seguinte e, a partir de então, sua vida mudou completamente. No ano de 2012, quando o cliente conseguiu organizar as lembranças e falar a respeito do falecimento da mãe, recebeu a notícia que sua tia materna tinha falecido, descobrindo depois, que, tal qual a sua genitora, ela também havia se suicidado. Esta tia não era a sua mãe adotiva Em relação a este segundo evento traumático, associado à carga que o paciente já trazia, cumpre realizar uma ponderação. De acordo com os ensinamentos trazidos por Gazziniga e Heartherton (2005), “a culpa é um estado emocional negativo associado à ansiedade, tensão e agitação. A experiência de culpa, incluindo a sua iniciação, manutenção e evitação, raramente faz sentido fora do contexto da interação interpessoal” (GAZZINIGA; HEARTHERTON, 2005, p.319). No caso do cliente acompanhado o psicodrama proporcionou, através de técnicas e da realidade suplementar, uma revivência no aqui e agora do dia do falecimento de sua genitora, bem como do dia do sepultamento. Foram dramatizadas várias cenas, experimentandos diversos papéis e externalizandos sentimentos guardados e/ou desconhecidos. Essa revivência das emoções que ajuda o indivíduo a amplificar sua consciência e ter insigth, foi de suma importância para o cliente iniciar o seu processo de elaboração do luto. Ao longo da psicoterapia, o paciente demonstrou melhora na alta ansiedade, na culpa pelo falecimento (suicídio) de sua genitora, na dependência emocional da tia, que passou a ser sua mãe adotiva, e no fortalecimento dos vínculos referenciais. Contudo, continuou a apresentar dificuldades de socialização, insegurança, falta de estrutura do pensamento, baixa atenção e concentração, além de baixo rendimento escolar e o padrão rígido de comportamento. O adolescente fora encaminhado para avaliação com uma neurologista e uma psiquiatra pela condição de pré-morbidade e baixa no rendimento escolar, confirmando-se o transtorno depressivo e o transtorno de déficit de atenção, fato que justificou necessidade da medicação para a depressão e atenção. Além do acompanhamento psicológico e psiquiátrico, esta profissional também o encaminhou para uma psicopedagoga, eis que o transtorno de aprendizagem precisava ser trabalhado de maneira eficiente e para que seu rendimento melhorasse, uma vez que repercutia de forma negativa em sua autoestima. 9 É importante ressaltar que no ano terceiro ano de psicoterapia o tio materno do adolescente que residia em outro estado, escorregou do telhado e faleceu. O que, novamente, repercutiu de forma negativa nas sessões, eis que o cliente tinha receio de perder a mãe adotiva e de ficar sozinho, apesar dos conflitos interpessoais que tinha com a mesma. Acrescente-se que o adolescente desenvolveu transtorno obsessivo compulsivo por conferir diversas vezes as coisas (abrir e fechar): torneira, zíper, porta, etc. Alegava que antes era com menor frequência e não o incomodava, mas os pensamentos e comportamentos tinham piorado, oportunidade em que a psiquiatra entrou retomou a medicação. Durante o acompanhamento psicoterápico, as dificuldades e os sintomas foram trabalhados, mas o cliente oscilava em virtude de novas das situações que surgiam e das dificuldades de funcionamento do mesmo. A atuação com o psicodrama, abordagem que oferece uma diversidade de trabalho ao profissional, contribuiu para que o adolescente não desistisse da psicoterapia, nem faltasse às sessões, apesar do transtorno depressivo que tinha. Ademais, percebendo a gravidade e a intensidade do trauma, ocasionado pelas sucessivas perdas ainda na infância, a psicoterapia centrou-se na construção de novos registros de memórias paralelas, o que foi possível em razão da neuroplasticidade e de intervenções terapêuticas de re-vivências, o que acarretou uma experiência emocional corretiva. Tudo isso possibilitou que o cliente superasse o enrijecimento de seus sintomas e, no momento em que teve sua alta, já se encontrava em considerável estágio de socialização, inclusive aceitando bem viajar para residir em novo endereço, acompanhando sua mãe adotiva que se mudou com o objetivo de ficar mais próxima dos familiares, ante a inexistência da qualquer parente no Estado de Sergipe. CONSIDERAÇÕES FINAIS Constatou-se ao longo do trabalho, que a abordagem psicodramática, por meio de seus conceitos e técnicas, possibilitou ao cliente vivenciar e elaborar seu luto, reestruturar sua matriz de identidade, trabalhar a culpa sentida pelo falecimento de sua genitora, fortalecer seus vínculos e diminuir os conflitos interpessoais com o irmão e a mãe adotiva. Ademais, flexibilizou o padrão rígido de comportamento que apresentava e promoveu um resgate de sua espontaneidade e criatividade, passando a lidar, de maneira mais saudável, com seus transtornos, melhorar a socialização, criar autonomia, retornar o curso de sua vida. 10 Assim, compreende-se que a intervenção psicodramática, associada aos conceitos trazidos pela neurociência, potencializou os efeitos do tratamento, uma vez que, compreendendo melhor a fisiologia das emoções, o uso das referidas técnicas foi sendo alterado, de maneira a melhor compatibilizar-se com o estado do cliente em cada sessão, além de prepará-lo para o processo de conscientização e elaboração de seu luto, causa principal de seu tratamento, que acontecia diariamente, no intervalo entre os encontros com a profissional até o momento de seu desligamento. Portanto, registra-se a necessidade de uma interface entre os diversos ramos do conhecimento, para uma melhor e mais completa intervenção do profissional de saúde, em especial dos que lidam com as emoções, o que reflete diretamente na qualidade do tratamento que promove e na recuperação mais eficiente de seu cliente. REFERÊNCIAS CASSORLA, Roosevelt M. S. (Coord.). Da morte: estudos brasileiros. 2. ed. Campinas: Papirus, 1998. FONSECA FILHO, Jose de. Souza. Psicodrama da loucura: correlações entre Buber e Moreno. São Paulo: Ágora, 1980. FLEURY, Heloisa Junqueira; KHOURI, George Salim ; HUG, Edward. Psicodrama e neurociência: contribuições para a mudança terapêutica. São Paulo: Ágora, 2008. GARRIDO MARTÍN, Eugenio. Psicologia do encontro: J.L. Moreno/Eugenio Garrido Martín; [tradução Maria de JESUS A. Albuquerque]. – São Paulo: Ágora, 1996. GAZZANIGA, Michael S.; HEATHERTON, Todd F. Ciência Psicológica: mente, cérebro e comportamento, trad. Maria Adriana Verírissmo Veronese. 2ª. 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