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ELABORANDO O LUTO: APROXIMAÇÕES ENTRE O PSICODRAMA E A
NEUROCIÊNCIA EM UM ESTUDO DE CASO
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a contribuição do psicodrama na elaboração
e ressignificação do luto, estabelecendo conexões com a neurociência. Assim, apresentou-se um
estudo de caso, analisando como a interface dessas duas áreas contribuiu para a evolução do
tratamento do cliente até a sua alta.
Palavras-chave: Psicodrama; neurociência; luto; estudo de caso.
ABSTRACT:
This study aims to demonstrate the psychodrama’s contribution in the development and redefinition of
mourning, establishing connections with neuroscience. Thus, it presented a case study analyzing how the
interface of these two areas has contributed to the evolution of customer treatment until discharge.
Keywords: Psychodrama; neurosciences; mourning; case study.
1 INTRODUÇÃO
A importância e a necessidade de vivenciar o luto fazem do tema um motivo de
pesquisa. As pessoas demonstram uma grande dificuldade em falar e aceitar a morte como algo
natural e a literatura que aborda esse tema com viés no psicodrama é escassa. É importante para
qualquer pessoa encarar a fase da perda, principalmente, ainda na infância. A criança que perde
sua mãe e que é, naturalmente, excluída da cena natural da morte, por acharem que ela não
conseguiria vivenciar essa perda, transmuta em medo, o que é a naturalidade do ciclo da vida,
da qual a morte faz parte.
O estudo de caso escolhido aborda o sofrimento e as repercussões de um adolescente
que não conseguiu vivenciar o luto pela perda da mãe, e, através de acompanhamento
psicoterápico fundamentado na teoria psicodramática bipessoal, além de conhecimentos de
neurociência, conseguiu ressignificar e elaborar o luto. O resultado positivo do tratamento deuse em virtude da possibilidade do cliente reestruturar sua matriz de identidade, que conforme
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concebeu Moreno (1997), “é a placenta social da criança, o locus em que ela mergulha suas
raízes”. Moreno relata nos seus escritos que, além do lócus nascendi, os valores religiosos, a
espontaneidade e os papéis que o ser humano exerce no decorrer da vida constroem as nossas
conservas culturais, ao mesmo tempo em que destroem a nossa criatividade, cristalizando-as
(MORENO, 1997, p. 114 )
O acompanhamento psicoterápico desenvolvido com o adolescente valoriza a
experiência vivida no aqui e agora, através da realidade suplementar, em que o momento de ser,
viver e criar fez da cena dramática algo real, mesmo o paciente sabendo que aquela cena era
irreal.
O tempo que Moreno conceitua é um tempo subjetivo, que para a criança consiste em
uma só dimensão: o presente, é a síndrome da fome de atos. Para o adulto existem três
dimensões: passado, presente e futuro (GARRIDO apud MORENO, 1996).
Ao desenvolver cenas do passado, no aqui e agora, a pessoa consegue trabalhar feridas
abertas. São estados espontâneos de curta duração, plenos de acontecimentos e às vezes
saturados de inspirações. Esse estado inconsciente compõe-se de momentos poucos e raros,
sendo que as nossas conservas culturais muitas vezes nos impedem de vivenciar estes
momentos, os quais, talvez, nem cheguem a existir para o indivíduo.
Algumas técnicas psicodramáticas, tais como: duplo, espelho, inversão de papéis,
psicodrama internalizado e psicodrama interno, foram aplicadas na terapia bipessoal, com o
intuito de investigar e aproximar-se mais do processo natural do “conhecer-se a si próprio”. O
paciente em luto, passou a perceber que o momento não era passado, nem presente ou futuro,
mas sim o aqui e agora e dentro da sua subjetividade, permitiu-se, com o seu terapeuta,
vivenciar a cena do luto e da despedida da mãe. Com isso, elaborou melhor a sua perda e
prosseguiu, convivendo com essa realidade e oportunizando-se à socialização, decorrência
natural de nossa condição humana, para a qual ele fechou-se, por força do trauma
experienciado.
2 DESENVOLVIMENTO DO TEMA
2.1 O PSICODRAMA, A NEUROCIÊNCIA E O LUTO
A abordagem psicodramática foi desenvolvida pelo psiquiatra romeno Jacob Levy
Moreno. Para ele, o individuo é concebido e estudado através de suas relações interpessoais,
essa inter-relação entre as pessoas constitui o eixo fundamental de sua teoria. “Para investigála, Moreno criou a socionomia, cujo nome vem do latim sócio =companheiro, grupo, e do
2
grego nomos = regra, lei, ocupando-se, portanto, do estudo das leis que regem o
comportamento social e grupal” (GONÇALVES et. alli.,1988, p.41)
Segundo Ramalho (2002), o conceito de espontaneidade, é uma referência no
pensamento moreniano e dominou todo o seu estudo, durante sua vida. Esta é definida como “a
capacidade de responder de formas novas às situações recentes ou às situações antigas”
(RAMALHO, 2002, p.38).
Desta forma, a espontaneidade, a criatividade e a sensibilidade seriam recursos
inerentes aos homens que, desde o início, estariam acompanhados, tanto de elementos
favoráveis ao seu desenvolvimento, quanto de tendências destrutivas. Nessas últimas, estariam
as conservas culturais que são “padrões de comportamentos estereotipados, com valores e
formas de participação na vida social que acarretam a automatização do ser humano”
(RAMALHO, 2002, p.38). Destaca-se que o psicodrama propõe-se a preparar o indivíduo,
justamente, para não se submeter a essas conservas culturais.
Segundo Garrido Martín (1996), no que é corroborado por Ramalho (2002), Moreno
tem como motivação central de sua obra, o que ele próprio definiu como “filosofia do
momento”. Esta busca captar a realidade humana, tal como é em si, em suas circunstâncias reais
ou existenciais, destarte, prioriza o tempo presente: o aqui-e-agora, vivido da experiência
subjetiva. Para esta filosofia, o futuro e o passado só têm importância se materializados no
presente.
Conclui Garrido Martín (1996), identificando que a influência do Existencialismo
heroico vienense na obra de Moreno, foi marcante de tal modo que, aquilo que este denomina de
“filosofia do momento” coincide com aquela forma de existencialismo.
Entendendo que a religião hassídica também serviu de forte inspiração para Moreno
desenvolver a sua obra, faz-se necessário tecer algumas palavras sobre a mesma. Segundo
Fonseca Filho (1980), o hassidismo prega a necessidade de se manter Deus em uma relação
horizontal com os homens e não em um plano de verticalidade, como se observa em algumas
religiões. Encerra o autor, ressaltando que “o melhor exemplo disto estaria no “Testamento do
Pai”. Moreno traz a imagem não do Deus distante, mas do Deus próximo (...) que fala sem
intermediários, que fala diretamente aos homens. O Deus moreniano caracteriza-se pela
subjetividade e pela criatividade” (FONSECA FILHO, 1980, p.05).
Já para Gonçalves et al. (1988), o fator tele é um conceito relevante e fundamental da
teoria moreniana, sendo definido como a capacidade de se perceber de forma objetiva o que
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acontece nas situações e o que se passa entre as pessoas. Complementa explicando que é a
percepção interna entre dois indivíduos. (GONÇALVES et al., 1988)
Outro conceito central na teoria psicodramática é o de realidade suplementar e foi
introduzido para auxiliar na apresentação e na verdade pessoal do protagonista. Ela não constitui
uma técnica e sim a realidade com que se trabalha todo o tempo em que se dramatiza
(RAMALHO, 2011)
Para o psicodrama, a formação da identidade de uma pessoa é constituída a partir de
sua matriz, que é “o lugar (locus) onde a criança se insere desde o nascimento, relacionando-se
com objetos e pessoas dentro de um determinado clima” (GONÇALVES et al, 1988, p.60)
De acordo com os ensinamentos de Moreno, nas primeiras fases de desenvolvimento
do indivíduo, este encontra-se no primeiro e no segundo universo. O primeiro refere-se à matriz
de identidade total indiferenciada, em que o ser confunde-se com o meio e diferenciada, em que
a pessoa começa a perceber o meio e a diferenciar-se dele. É no segundo universo que surge
uma brecha entre fantasia e realidade, a partir do qual as pessoas começam a desenvolver dois
tipos de papéis: o papel social e o papel psicodramático: o primeiro mais relacionado à realidade
e o segundo mais ligado à fantasia e à interioridade (RAMALHO, 2011).
A autora ainda acrescenta que as etapas de formação da matriz de identidade são
cinco: a primeira fase é a indiferenciação, na segunda já existe uma relativa atenção ao outro, na
terceira percebe-se um foco da atenção do “eu”, na quarta fase existe a possibilidade de estar no
papel do outro e na última fase, identifica-se a possibilidade do outro estar no seu papel.
Moreno faz a associação das fases da matriz de identidade para a aplicação das técnicas
psicodramáticas: a primeira fase corresponde à técnica do duplo, a segunda e terceira ‘a técnica
do espelho, a quarta e a quinta correspondem à técnica da inversão de papéis. (RAMALHO,
2011).
Ademais, Moreno (1974) afirma que é na matriz de identidade que surgem
gradativamente os papéis e define o papel como sendo a maneira de funcionamento que uma
pessoa assume em momento específico, no qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos.
Outrossim, o autor referenciado, assevera que: "O jogo ou treinamento de papéis
permite explorar as possibilidades de um indivíduo de representar os papéis determinados"
(MORENO, 1974, p. 122). E finaliza: "O conceito de jogo psicodramático de papéis é simples.
Sua finalidade é proporcionar ao ator uma visão dos pontos de vistas de outras pessoas, ao
atuar no papel de outros, seja em cena, seja na vida real." (MORENO, 1974, p. 181).
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Outro marco de destaque da teoria moreniana é a sua teoria socionômica, que, muito
provavelmente, fora influenciada pelos seus trabalhos realizados com os grupos abertos em
campos de refugiados de guerra, com crianças e prostitutas nas ruas e parques de Viena, dentre
outros. O seu objetivo principal era o estudo das relações sociais entre os indivíduos que
findariam por influenciar a individualidade de cada um (RAMALHO, 2002).
Segundo Santos (2003), baseado em sua teoria, Moreno elaborou um método de
estudo, que, diferentemente, de outros métodos de intervenção em Psicologia, enfatiza as
relações entre os indivíduos, a fim de que o processo de coletividade possa fluir da melhor
maneira e por meio do qual a possibilidade de respeito mútuo e cooperação entre as pessoas seja
possível (SANTOS, 2003).
Ressalte-se, por último, que Moreno trabalhou, inicialmente, com o teatro espontâneo
e, a partir de uma experiência prática com um grupo de atores, este descobriu a ação terapêutica
da dramatização, modificando-se assim “o teatro espontâneo em teatro terapêutico e este, em
psicodrama. Moreno definiu-o como “um método que procura a fundo a verdade através da
ação” (LUCCHIARI, 1993, p.17).
Feitas essas considerações iniciais acerca da obra de Moreno, entende-se como
oportuno o estabelecimento de algumas conexões entre a abordagem do psicodrama e a
neurociência. Destaque-se que, o conhecimento prévio da neurociência e por consequência da
fisiologia das emoções, possibilita uma atuação mais direcionado do terapeuta na clínica.
De acordo com Tarashoeva e Marinova (2008), a neuroplasticidade e a mudança
terapêutica dar-se-ão pela importância do fator terapêutico que é a experiência emocional
corretiva. Quando uma pessoa passa por uma experiência traumática na primeira infância, essa
experiência é fixada na memória implícita1 e pode ocasionar algum tipo de sintoma na vida
posterior. O psicodrama, por meio de suas técnicas, possibilita uma re-vivência, com toda a
intensidade, da situação traumática, reproduzindo um ambiente seguro e possibilitando a
minimização dos sintomas. (TARASHOEVA; MARINOVA, 2008)
1
Segundo os ensinamentos de Liggan et ali (1999), apud Trashoeva e Marinova (2008), quanto
à plasticidade cerebral, a memória pode ser subdividida em duas categorias: a implícita e a
explícita. O sistema de memória explícita representa “a recordação consciente de fatos e
eventos: estruturas cerebrais – estruturas de lobo temporal, especialmente hipocampo, estrutura
límbico-diencefálicas, disponível para a evocação consciente.” Enquanto que o sistema de
memória implícita trata-se de “uma conservação heterogêneas de capacidades; armazena a
experiência emocional relacionada ao processo de vinculação precoce: estruturas cerebrais:
gânglios
basais;
não
disponível
para
evocação
consciente”
(LIGGAN et
ali (1999), apud TRASHOEVA E MARINOVA, 2008, p. 24-25).
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Complementando esse raciocínio, os referidos autores ainda esclarecem que:
“o psicodramatista experiente identifica os “indicadores”
relacionados com o sintoma, desbloqueia o circuito associativo das
memórias e vai junto com o protagonista de uma cena a outra,
fazendo todo o caminho de volta na espiral do desenvolvimento do
sintoma, até as suas raízes” (TARASHOEVA; MARINOVA, 2008,
p.28)
Tarashoeva e Marinova (2008), ainda asseveram que o hipocampo é uma estrutura
cerebral responsável pela consolidação da memória, estabelecendo que parte da informação será
armazenada na memória de longo prazo. A experiência emocional que um indivíduo passa de
maneira intensa e completa leva a uma forte ativação do hipocampo, sendo a memória vívida
armazenada. “O processo de formação da memória baseia-se na neuroplasticidade e inclui
remodelação dos dendritos, crescimento dos axônios e formação de novas sinapses”
(TARASHOEVA; MARINOVA 2008, p.29).
Os citados autores, por fim, destacam que a abordagem psicodramática não apaga a
memória da experiência traumática e sim constrói uma nova que tem a mesma força e é
positiva. Coexistindo com a antiga e que a equilibra. Desta forma, o circuito associativo é
interrompido e o sintoma desaparece (TARASHOEVA; MARINOVA, 2008).
Por outro lado, Cozolino, 2002 apud Hug e Fleury, 2008 define que o cérebro social é
constituído por estruturas neurológicas como a amígdala, o cingulado anterior, a área orbito
frontal do córtex pré-frontal e a porção frontal do lobo temporal. “Essas estruturas expandiram
e constituíram uma rede neural em decorrência de informações sociais e emocionais
necessárias para a sobrevivência do ser humano”, sendo o sistema neural o responsável pela
organização das experiências precoces de relacionamento interpessoal. (COZOLINO, 2002
apud HUG; FLEURY, 2008, p.217),
Ainda de acordo com esses autores, as memórias implícitas de procedimento refletem
as memórias sensoriais, motoras, afetivas e cognitivas das experiências de cuidado. Essas
memórias são evocadas a partir das experiências interpessoais durante a vida, que leva o
individuo a se aproximar, ou se afastar de outros em função de informações contínuas e
inconscientes relacionadas a decisões de aproximação ou evitação. O que repercute, diretamente
no processo de manutenção e exclusão de pessoas do nosso círculo de convivência
(COZOLINO, 2002 apud HUG; FLEURY, 2008)
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Enfim, a neurociência ajuda na compreensão de como as experiências interpessoais
precoces constroem e modelam o cérebro, ressaltando a importância da psicoterapia na criação
de uma matriz interpessoal capaz de reconstruí-lo.
É justamente fazendo uma interface entre essas duas áreas do conhecimento humano
que se possibilita uma melhor compreensão das necessidades do paciente, tal qual o cliente ora
foco deste trabalho. Este carregava consigo experiências traumáticas como a da morte de sua
genitora, ainda na infância e, somente com um trabalho intenso de psicoterapia psicodramática,
associado aos conceitos estruturados pela neurociência foi possível elaborar o seu luto, tema que
merece uma atenção especial, sobre o qual passará a se discorrer.
De acordo com Parkers (1998), o luto não consiste em um estado, mas em um
processo, não se confunde com a perda, mas uma reação a essa perda, a qual não é um simples
estresse e deve ser significativa, como o falecimento de um ente querido. O autor ainda
arremata, afirmando que dessa perda inicial podem advir outras perdas secundárias, as quais
repercutem nos papéis sociais desempenhados por aquele que sofreu a perda (PARKERS,1998).
Quando uma perda acontece de maneira inesperada pode provocar uma desordem,
causando uma sensação de impotência. De acordo com Perazzo (1986), esses sentimentos na
infância estão ligados ao desaparecimento no campo visual da criança, que fatalmente
desenvolverá sentimentos de tristeza, medo e solidão. É muito difícil perder alguém na infância,
pois este é o momento de desenvolvimento de estruturação da matriz de identidade que, como já
referido para Moreno é a placenta social do indivíduo, o locus nascendi. (MORENO ,1997)
A outro giro Cassorla (1998) ainda acrescenta que, quando uma pessoa nega a morte
ou se recusa a entrar em contato com o seu sentimento, esse luto será mal elaborado, e tem-se
uma chance maior de adoecimento, caindo em melancolia ou em outro processo substitutivo
(CASSORLA,1998).
Após trazer alguns conceitos e realizar ponderações acerca da abordagem do
psicodrama, de seu vínculo com a neurociência e esclarecer o que vem a ser o luto, torna-se
necessário descrever nuances do caso clínico, para melhor compreensão de como era o paciente
e da sua evolução no tratamento, a partir das intervenções realizadas, tendo como suporte os
dois ramos do conhecimento acima referidos.
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3 O CASO CLINICO EM ANÁLISE.
O cliente “G” iniciou a psicoterapia individual em agosto de 2010 e, após pouco mais
de quatro anos de acompanhamento, teve alta em dezembro de 2014. Durante esse período,
oscilou sua frequência de atendimento entre uma e duas vezes por semana, a depender da
demanda que o momento requeria. A necessidade da psicoterapia deu-se em virtude do
falecimento de sua genitora (suicídio) e das mudanças ocorridas a partir deste fato, da
dependência do vídeo game e do isolamento social.
Como na época o paciente não tinha vínculos de proximidade com o pai, foi morar
com a tia e mudou-se do local onde residia, tendo se afastado dos vínculos familiares e de seus
referenciais, fato que contribuiu para o agravamento de seu estado emocional.
Nos primeiros meses de atendimento, o cliente não verbalizava nada, contudo
comparecia às sessões, pontualmente, em seu horário.
Após sete meses o cliente começou a falar sobre seu cotidiano, muito
superficialmente, e sobre assuntos pelos quais nutria curiosidade, nenhum deles, entretanto,
relacionado aos seus sentimentos, sendo que ainda não saia de casa e jogava muito, além de
responder muitas vezes de maneira desconectada. No segundo ano de psicoterapia, o cliente
contou de maneira confusa o ocorrido com sua genitora e, ao longo do tratamento por meio de
técnicas psicodramáticas foi organizando e lembrando-se de fatos marcantes.
Para Moreno (1974), o adolescente encontrava-se fixado na primeira fase de
desenvolvimento do indivíduo, referente à matriz de identidade total indiferenciada, em que a
pessoa não distingue fantasia de realidade e em que só há um tempo (MORENO ,1974).
É importante frisar a forte culpa sentida pelo cliente em razão do falecimento de sua
genitora, justificando-se a descrição do ocorrido neste momento, para uma melhor compreensão
daquele sentimento.
Um certo dia, quando o cliente tinha oito anos, ao retornar da escola, chegando em
casa, bateu na porta e chamou sua mãe para abri-la. A mãe respondia que já ia abrir, contudo
não o fazia, falando algumas vezes que estava vindo, entretanto, sua voz mudava a cada fala,
ficando mais enrolada e ela não aparecia. Depois de certo tempo, que o cliente não tem exata
ideia, foi chamar a tia que morava em cima e quando esta chegou, diante da ausência de
resposta da irmã ao seu chamamento, pediu ajuda de terceiros para arrombar a porta e, ao
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entrarem, encontraram a genitora do cliente morta, registrando-se que aquela não havia sido a
primeira tentativa. O cliente, mesmo sendo criança, acompanhou toda a cena e o seu desenrolar,
até o sepultamento de sua genitora, que somente ocorreu no dia seguinte e, a partir de então, sua
vida mudou completamente.
No ano de 2012, quando o cliente conseguiu organizar as lembranças e falar a respeito
do falecimento da mãe, recebeu a notícia que sua tia materna tinha falecido, descobrindo depois,
que, tal qual a sua genitora, ela também havia se suicidado. Esta tia não era a sua mãe adotiva
Em relação a este segundo evento traumático, associado à carga que o paciente já
trazia, cumpre realizar uma ponderação. De acordo com os ensinamentos trazidos por Gazziniga
e Heartherton (2005), “a culpa é um estado emocional negativo associado à ansiedade, tensão e
agitação. A experiência de culpa, incluindo a sua iniciação, manutenção e evitação, raramente
faz sentido fora do contexto da interação interpessoal” (GAZZINIGA; HEARTHERTON,
2005, p.319).
No caso do cliente acompanhado o psicodrama proporcionou, através de técnicas e da
realidade suplementar, uma revivência no aqui e agora do dia do falecimento de sua genitora,
bem como do dia do sepultamento. Foram dramatizadas várias cenas, experimentandos diversos
papéis e externalizandos sentimentos guardados e/ou desconhecidos. Essa revivência das
emoções que ajuda o indivíduo a amplificar sua consciência e ter insigth, foi de suma
importância para o cliente iniciar o seu processo de elaboração do luto.
Ao longo da psicoterapia, o paciente demonstrou melhora na alta ansiedade, na culpa
pelo falecimento (suicídio) de sua genitora, na dependência emocional da tia, que passou a ser
sua mãe adotiva, e no fortalecimento dos vínculos referenciais. Contudo, continuou a apresentar
dificuldades de socialização, insegurança, falta de estrutura do pensamento, baixa atenção e
concentração, além de baixo rendimento escolar e o padrão rígido de comportamento.
O adolescente fora encaminhado para avaliação com uma neurologista e uma
psiquiatra pela condição de pré-morbidade e baixa no rendimento escolar, confirmando-se o
transtorno depressivo e o transtorno de déficit de atenção, fato que justificou necessidade da
medicação para a depressão e atenção.
Além do acompanhamento psicológico e psiquiátrico, esta profissional também o
encaminhou para uma psicopedagoga, eis que o transtorno de aprendizagem precisava ser
trabalhado de maneira eficiente e para que seu rendimento melhorasse, uma vez que repercutia
de forma negativa em sua autoestima.
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É importante ressaltar que no ano terceiro ano de psicoterapia o tio materno do
adolescente que residia em outro estado, escorregou do telhado e faleceu. O que, novamente,
repercutiu de forma negativa nas sessões, eis que o cliente tinha receio de perder a mãe adotiva
e de ficar sozinho, apesar dos conflitos interpessoais que tinha com a mesma. Acrescente-se que
o adolescente desenvolveu transtorno obsessivo compulsivo por conferir diversas vezes as
coisas (abrir e fechar): torneira, zíper, porta, etc. Alegava que antes era com menor frequência e
não o incomodava, mas os pensamentos e comportamentos tinham piorado, oportunidade em
que a psiquiatra entrou retomou a medicação.
Durante o acompanhamento psicoterápico, as dificuldades e os sintomas foram
trabalhados, mas o cliente oscilava em virtude de novas das situações que surgiam e das
dificuldades de funcionamento do mesmo.
A atuação com o psicodrama, abordagem que oferece uma diversidade de trabalho ao
profissional, contribuiu para que o adolescente não desistisse da psicoterapia, nem faltasse às
sessões, apesar do transtorno depressivo que tinha. Ademais, percebendo a gravidade e a
intensidade do trauma, ocasionado pelas sucessivas perdas ainda na infância, a psicoterapia
centrou-se na construção de novos registros de memórias paralelas, o que foi possível em razão
da neuroplasticidade e de intervenções terapêuticas de re-vivências, o que acarretou uma
experiência emocional corretiva.
Tudo isso possibilitou que o cliente superasse o enrijecimento de seus sintomas e, no
momento em que teve sua alta, já se encontrava em considerável estágio de socialização,
inclusive aceitando bem viajar para residir em novo endereço, acompanhando sua mãe adotiva
que se mudou com o objetivo de ficar mais próxima dos familiares, ante a inexistência da
qualquer parente no Estado de Sergipe.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constatou-se ao longo do trabalho, que a abordagem psicodramática, por meio de seus
conceitos e técnicas, possibilitou ao cliente vivenciar e elaborar seu luto, reestruturar sua matriz
de identidade, trabalhar a culpa sentida pelo falecimento de sua genitora, fortalecer seus
vínculos e diminuir os conflitos interpessoais com o irmão e a mãe adotiva. Ademais,
flexibilizou o padrão rígido de comportamento que apresentava e promoveu um resgate de sua
espontaneidade e criatividade, passando a lidar, de maneira mais saudável, com seus
transtornos, melhorar a socialização, criar autonomia, retornar o curso de sua vida.
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Assim, compreende-se que a intervenção psicodramática, associada aos conceitos
trazidos pela neurociência, potencializou os efeitos do tratamento, uma vez que, compreendendo
melhor a fisiologia das emoções, o uso das referidas técnicas foi sendo alterado, de maneira a
melhor compatibilizar-se com o estado do cliente em cada sessão, além de prepará-lo para o
processo de conscientização e elaboração de seu luto, causa principal de seu tratamento, que
acontecia diariamente, no intervalo entre os encontros com a profissional até o momento de seu
desligamento.
Portanto, registra-se a necessidade de uma interface entre os diversos ramos do
conhecimento, para uma melhor e mais completa intervenção do profissional de saúde, em
especial dos que lidam com as emoções, o que reflete diretamente na qualidade do tratamento
que promove e na recuperação mais eficiente de seu cliente.
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