......... ........ ........... ........ .... ....... .... .... ... Educação . .... ... ........ ........ ....... .... .... ........... ... a r t&i Tecnologia g o Problemas e pseudoproblemas em Ciências Fabio Wellington Orlando da Silva1 Este trabalho analisa o conceito de problema, a apresentação de um objetivo passível de ser atingido através de uma metodologia válida, e o de pseudoproblema, no qual se propõe atingir um objetivo de alcance impossível, apesar de respeitar todas as regras formais exigidas para a formulação de problemas. A seguir, discute-se a dificuldade de distinguir um caso do outro em situações reais e as implicações dessa dificuldade no julgamento da viabilidade de projetos científicos. PALAVRAS-CHAVE: PROJETOS CIENTÍFICOS; HISTÓRIA DA CIÊNCIA; PROBLEMA; PSEUDOPROBLEMA. 1 INTRODUÇÃO Um importante conceito usualmente empregado pelos pesquisadores é o de problema. Apesar de não haver uma descrição única ou universal desse conceito, pode-se referir a um problema como a apresentação de um objetivo que deverá ser alcançado através de procedimentos considerados válidos pela comunidade científica. Assim, nem todos os desafios podem ser classificados nesta categoria, mas somente aqueles que comportem objetivos passíveis de ser atingidos e por meios válidos. Os demais pertencem a outra espécie e serão denominados pseudoproblemas, ad ot an d o- se a mesma d esig n ação usad a p or Wittgenstein no campo da Metafísica [1]. A estória que se segue servirá para ilustrar a diferença, sob essa ótica, entre o que se pode denominar ou não um problema. Trata-se de um diálogo entre os pais de dois meninos da mesma escola. O primeiro pai afirma: “Meu filho gostaria de ter um irmão mais novo para brincar”. O segundo responde: “O meu gostaria de ter um irmão mais velho. Todos os dias, ele pede um irmão mais velho”. No primeiro caso, tem-se um problema. O garoto quer um irmão mais novo. Em princípio, é possível satisfazê-lo, há um caminho a ser percorrido para se alcançar o objetivo estabelecido (a resolução do problema). 1 Quanto ao segundo caso, não há solução, pelo menos até o presente. Não é possível voltar no tempo e providenciar um irmão mais velho para o menino. Poder-se-ia talvez conseguir um amiguinho de mais idade. Mas isto seria apenas um jogo de palavras, um “faz de contas”. O que o garoto realmente deseja não se pode obter. É inócuo investir tempo e recursos neste caso, pois não se trata de um problema a ser resolvido. Alguém teria afirmado que o homem somente se propõe os problemas que seja capaz de resolver. Tal asserção é passível de diversas interpretações. Uma delas seria a de que as pessoas jamais se propõem resolver casos que não comportem soluções. Se essa foi sua intenção, será proveitoso recordar alguns exemplos históricos amplamente conhecidos que desafiaram a criatividade de muitos pesquisadores através dos séculos, até que se demonstrasse a impossibilidade de resolvê-los. Entre os mais significativos, destacam-se a quadratura do círculo e a solução de equações de qualquer grau através de radicais. Uma interpretação alternativa para a referida asserção é que somente pode ser considerado um problema o desafio que comporte uma solução. Os desafios não passíveis de ser resolvidos não devem ser considerados problemas. Neste caso, a frase em questão revela-se uma tautologia: os desafios que o homem seja capaz de resolver são problemas; o homem somente se coloca os problemas que seja capaz de resolver, pois os desafios para os quais não consegue encontrar uma solução devem ser classificados de outra Professor do DADB/CEFET-MG e Doutor em Física pela Universidade de Montpellier (França). Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 ...... ... ........ ........ ........... .... .... .... ... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . forma. Neste sentido, atualmente podem ser considerados problemas: dividir oito maçãs em inteiros iguais para quatro pessoas (são duas maçãs para cada uma); determinar a velocidade mínima de escape da Terra (trata-se de uma aplicação da Mecânica Newtoniana); calcular a raiz quadrada de 16 (quatro). Por outro lado, não constituem problemas: fazer um homem de 50 anos retornar à idade de 15; inverter o fluxo de calor, fazendo-o fluir espontaneamente do corpo mais frio para o corpo mais quente; dividir duas maçãs em três inteiros iguais. Assim, a distinção entre as duas situações parece muito simples: se for possível dar uma solução ao caso, trata-se de um problema; se não for, trata-se de um pseudoproblema. A dificuldade surge quando, apesar de não se encontrar uma solução, não se pode demonstrar que ela não exista. No mundo das crianças, isso ocorre com elevada freqüência, onde a fantasia dos contos de fadas parece, às vezes, mais real do que os objetos concretos. No senso comum dos adultos, também não é raro. O sebastianismo e os movimentos messiânicos estão a confirmá-lo. Há incidências também no universo mais refinado da ciência, no qual as probabilidades de sucesso costumam ser cuidadosamente analisadas. Por exemplo, é o que houve, durante muitos séculos, com as equações algébricas de ordem superior a quatro. Um caso ainda pior se dá quando os conhecimentos disponíveis em determinada época parecem apontar para a impossibilidade de uma solução, apesar dela existir. Isto aconteceu com a Teoria da Evolução e com a Teoria da deriva dos continentes. Não é sem motivo a prece dos Alcoólicos Anônimos, pedindo a serenidade para aceitar as coisas que não podem modificar, coragem para modificar aquelas que podem e sabedoria para distinguir umas das outras [2]. A questão permanece essencialmente a mesma: onde está a linha divisória? A angústia individual, que pode estar entre os fatores do alcoolismo, e a angústia coletiva, às vezes secular, revelada pela História da Ciência, constituem expressões da mesma dificuldade humana. A solução e sua condição de existência submetem-se ainda às restrições impostas pelo enunciado, isto é, devem respeitar as regras do jogo. Uma pequena alteração nas condições de contorno pode representar a transição de uma categoria para outra. Eis um exemplo. Diversos países não-desenvolvidos lutam contra a inflação que corrói o salário e assola o povo. Para combatê-la ou mantê-la sob controle, seus governos adotam medidas de todos os tipos: tabelamento de preços, choques econômicos, equiparação das moedas locais com a de países de economia mais estável, seqüestro de depósitos bancários etc. Este parece um problema com algumas tentativas de soluEduc. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 ção. Alguns administradores, porém, desistiram desse jogo, recorreram à ajuda externa e submeteram-se às suas regras. A partir de então, perderam a autonomia, presos por contratos internacionais draconianos, restando-lhes a humilde tarefa de aplicar as determinações que lhe são impostas. Sem autonomia para interferir no processo, a inflação deixou de ser um problema, passando a constituir apenas um fato. A solução, se existir, já não se encontra mais ao alcance de suas mãos atadas, tornou-se inacessível. Neste caso, tem-se um pseudoproblema. O questionamento da legitimidade de um tema não é recente e remonta pelo menos a Kant. Na Dialética Transcendental [3], a última parte da Crítica da Razão Pura, esse autor pretendeu demonstrar a impossibilidade da Metafísica, considerando ilegítimos seus objetos de estudo, ou seja, a psicologia racional, o universo como uma coisa em si (o que levaria às antinomias da razão pura) e as provas da existência de Deus. Wittgenstein, no prólogo do Tractatus [4], é bastante incisivo, ao afirmar: “Este livro trata dos problemas filosóficos, e mostra, segundo creio, que a colocação desses problemas se deve ao mal entendimento da lógica de nossa linguagem.” Para ele, as proposições filosóficas não têm sen tid o, são pseudoproposições. Carnap, um dos membros do Círculo de Viena, fortemente influenciado pelo Tratactus, publicou em 1932 um artigo intitulado “Superação da Metafísica por meio da Análise Lógica da Linguagem” [5]. Nesse trabalho, pretendia demonstrar que a Metafísica se compõe de enunciados carentes de significado, mais precisamente de pseudoenunciados. Para Kripke [6], há verdades contingentes e a priori e verdades necessárias e a posteriori. Porém isto não significa que as coisas não poderiam se passar de outra forma. Pescador [7], em sua crítica a Kripke, indaga: “que es posible? Parece que debemos excluir en principio del ambito de lo posible todo cuanto encierre contradición, como que una figura sea a la vez redonda y cuadrada, o que el agua moje y no moje. Pero es posible simplemente todo cuanto no encierre contradición?”. Se o caráter de legitimidade de uma questão motivou tantas indagações na área da Filosofia, que se desenvolve no domínio da razão, o que não dizer quando se passa às ciências empíricas, como a Física e a Geologia? O presente artigo apresenta alguns exemplos históricos amplamente conhecidos para caracterizar a situação dramática gerada pela busca de soluções que, à semelhança do adágio popular, quanto mais se procurava encerrá-las, mais pareciam escorrer entre os dedos, apesar de não se poder demonstrar que fossem inatingíveis. Em seguida, serão discutidos alguns critérios usualmente adotados pelas agên- ......... ........ ........... ........ .... ....... .... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . cias de fomento para avaliar a probabilidade de sucesso de um projeto científico, as quais, explicitamente ou não, invocam, para o emprego de tal expediente, a justificativa de evitar investir naqueles que ofereçam um risco excessivo. Finalmente, à luz dos exemplos históricos, pretende-se demonstrar a fragilidade de tais métodos, pois a principal característica da pesquisa científica, que a distingue dos demais empreendimentos humanos, é a incerteza de seus resultados. Em ciência, sobretudo empírica, muitas vezes, é extremamente difícil distinguir um problema de um pseudoproblema. 2 REVISÃO HISTÓRICA Os exemplos que se seguem e as informações correspondentes podem ser encontrados no livro Grandes Debates da Ciência [8] ou nas referências adicionais acrescentadas ao longo do texto. 2.1 A Quadratura do Círculo Quanto mede o lado de um quadrado que tem a mesma área de um círculo de diâmetro conhecido? Segundo Pitágoras, o número é a medida de todas as coisas. Portanto, deve haver um número para expressar tudo o que existe. Mas o que fazer quando esse número se recusa a ser escrito? É o caso do número π . Por isso, ele deu origem à primeira grande crise da História da Matemática. Os pitagóricos, inconformados, trataram de escondê-lo e se referiam a ele como o indizível. Boyer, em sua História da Matemática [9], afirma que “na juventude de Platão, a descoberta do incomensurável causou um verdadeiro escândalo lógico, pois pareceu arruinar teoremas envolvendo proporções.” A questão da quadratura do círculo, que se arrastou através dos séculos, pode ser assim enunciada: trace um segmento de reta com o auxílio de uma régua; ponha as pontas de um compasso em cada extremidade do segmento; mantenha uma das pontas fixa e gire a outra para descrever um círculo; em seguida, construa, em um número finito de passos, usando apenas a régua e o compasso, um quadrado que tenha a mesma área do círculo. A solução foi tentada por egípcios e gregos, sem sucesso. Arquimedes até inventou um método inte- ressante, denominado Cálculo de Exaustão. Consistia em descrever um polígono inscrito e um circunscrito ao círculo. A seguir, media a área do polígono maior, do menor e extraía a média das duas. À medida que aumentava o número de lados dos polígonos, a média obtida tendia para a área do círculo, permitindo-lhe aproximar-se, a cada passo, do quadrado desejado. A idéia é engenhosa, mas o objetivo não pode ser alcançado em um número finito de passos [10]. Dinóstrato propôs uma solução usando a trissectriz de Hípias, mas também violava as regras do jogo, que só permitem círculos e retas. Em 1655, Thomas Hobbes apresentou no capítulo 20 do seu De Corpore o que lhe parecia uma solução. Hobbes (1588-1679) era filósofo e preceptor da nobreza, nascido em Malmsburg, Inglaterra. Seus assuntos prediletos eram a Geografia e a Astronomia, mas conhecia bem a Lógica e, em 1628, aos 40 anos, deixou-se apaixonar pela Geometria de Euclides. A obra mais conhecida de Hobbes, o Leviatã, publicada em 1651, granjeara-lhe muitas inimizades, apesar de seu autor ser uma pessoa de trato muito agradável. Entre os inimigos de Hobbes, estava John Wallis, eminente matemático, criptógrafo e clérigo britânico. O principal interesse de Wallis era a Teologia e fôra ordenado bispo de Winchester em 1640. Em 1649, foi escolhido para ocupar o cargo de Professor Saviliano de Geometria, em Oxford. De ânimo combativo e irritado com a obra filosófica de Hobbes, escolheu o flanco da quadratura do círculo para atacálo. A disputa entre eles foi longa e migrou para muitas áreas, com acusações e críticas alternadas de ambos os lados. Os dois homens terçaram armas por mais de vinte anos, sem uma batalha decisiva para nenhum dos combatentes. Finalmente, em 1822, mais de dois séculos após o início daquela disputa, Ferdinand Lindemann, um matemático alemão, demonstrou que este caso é impossível de ser resolvido na forma proposta. Portanto, a quadratura do círculo, que trouxe tantos dissabores a Hobbes e a Wallis, não era um problema. Só que, até o ano de 1822, ninguém sabia disso. 2.2 A Genética e a Teoria da Evolução Qual é o mecanismo que realiza a variação e a modificação das espécies? Charles Darwin nasceu em 12 de fevereiro de Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 ...... ... ........ ........ ........... .... .... .... ... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1809, em Shrewsbury, Inglaterra. O avô, Erasmus, era muito conhecido como médico e naturalista. O pai, Robert, também era médico, aliás rico e bem sucedido. Após cursar dois anos de medicina em Edimburg, porém, ficou evidente a falta de vocação do jovem Charles nessa área e matriculou-se na escola de Teologia de Cambridge, mas seu verdadeiro interesse eram as aulas de ciências naturais. Em 1831, foi apresentado ao capitão Fitzroy, do Beagle, um navio de 235 toneladas, incumbido de fazer o levantamento da costa da América do Sul. Durante a viagem, que durou cinco anos, Darwin coletou farto material de observação. Finalmente, em 10 de julho de 1858, Darwin apresentou uma síntese de sua teoria à Sociedade Lineana de Londres, publicando o texto integral de A Origem das Espécies no ano seguinte e A Descendência do Homem em 1871. Em ambos, sustentava a teoria da variação natural. Darwin protelou por aproximadamente vinte anos a publicação de A Origem das Espécies. O tratado é volumoso e o leitor costuma sentir-se entediado com o excessivo número de exemplos fornecidos para sustentar a teoria. Apesar disso, há um ponto fraco no texto original do qual Darwin jamais conseguiu desvencilharse de forma conveniente: qual é o mecanismo que realiza a variação e a modificação das espécies? Na época, acreditava-se que, no cruzamento de dois seres vivos, as variantes deveriam se mesclar e estabilizar em um grau intermediário, impedindo, portanto, o trabalho da seleção natural. A solução para esse problema apareceu em um periódico tcheco de pequena expressão em 1866. Há quem sustente que Darwin tinha em seu gabinete uma cópia não lida do artigo. O autor era um monge austríaco e botânico experimental de nome Johann Mendel. Filho de camponeses e jardineiros, Mendel nasceu em 1822, na Morávia, então parte da Áustria. Durante a infância, ajudava o pai na fazenda. Cursou a escola primária na aldeia de Heinzedorf e o Gymnasium em Troppau. Com muita dificuldade financeira, estudou durante quatro anos no Instituto Olmutz e, a conselho de um de seus professores, entrou para o mosteiro dos agostinianos em Altbrunn, adotando o nome de Gregor. Esse mosteiro possuía um jardim, no qual realizaria os célebres experimentos com ervilhas. Para encontrar as leis que governam a hereditariedade, Mendel separou os diversos traços que caracterizavam uma ervilha e estudou um traço de cada vez. Por exemplo, descobriu que, em qualquer par de traços contrastantes, um é dominante e o outro recessivo, o que é hoje conhecido como a lei da dominância. Apesar da importância, o artigo, na época de sua publicação, não produziu impacto na comunidade científica, que praticamente não tomou conhecimento dele. Em 1900, dezesseis anos após a morte de Mendel, três cientistas de outros países, trabalhando de forma Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 independente, encontraram o artigo esquecido. Entre eles, cita-se Hugo de Vries, um pesquisador holandês que trabalhava com fisiologia das plantas. Além de revelar ao mundo o texto do antigo sábio, De Vries também admitiu que os recém-descobertos raios-X, da mesma forma que penetravam o tecido vivo, poderiam alterar o material genético. Essa hipótese, confirmada em 1919 pelo americano Hermann Muller, demonstrou que o meio ambiente pode modificar o material genético, impondo modificações que podem ser transmitidas à posteridade. Com essas duas contribuições, o mecanismo que Darwin procurou com tanto empenho foi finalmente desvendado. Assim, pode-se admitir que Darwin encontrava-se diante de um problema. 2.3 A Idade da Terra Quantos anos tem a Terra? Em 1650, James Ussher, bispo irlandês, contando a série de gerações descritas na Bíblia, determinou o ano de 4004 a.C. como o ano da criação do universo. George-Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), um francês de Montbard, autor de uma História Natural em 44 volumes, organizador do Jardim de Plantas de Paris, calculou o tempo de resfriamento da Terra a partir do estado de fusão de uma massa primitiva e encontrou o valor de 75 mil anos. Benoit de Maillet (1656-1738), levando em consideração o declínio do nível do mar, estimou a idade em 2 bilhões de anos, em um trabalho que seria publicado apenas em 1748, dez após sua morte. Entre os pesquisadores que avaliaram a idade da Terra, encontra-se William Thomson (1824-1907), ou lorde Kelvin. Ele foi cientista, engenheiro, professor e homem de negócios bem sucedido. Registrou cerca de 70 patentes e publicou mais de 600 artigos, em uma época na qual as facilidades de publicação eram bem menores que as de hoje. Aos 22 anos já era professor titular de Filosofia Natural da Universidade de Glasgow. Como professor, Thomson introduziu demonstrações em suas aulas de Física e certa vez levou até um rifle de carregar pelo cano e disparou com ele em um pêndulo durante a aula. Em 1866, usando um dispositivo de sua invenção, orientou com sucesso o assentamento de um cabo submarino entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Registre-se que ele fôra convidado a participar do projeto depois que uma outra equipe havia fracassado. Uma das áreas de maior interesse de Thomson era a Termodinâmica. Aliás, publicara aos 18 anos um artigo intitulado Transferência uniforme de calor em ......... ........ ........... ........ .... ....... .... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . corpos sólidos homogêneos e sua conexão com a teoria matemática da eletricidade. Ele conhecia o trabalho de Sadi Carnot, demonstrando que trabalho e calor podem ser convertidos um no outro, mas estava convencido que uma parte do calor fornecido não estava disponível para a realização de trabalho, ou seja, é impossível transformar completamente o calor fornecido por uma fonte quente em trabalho. Estava também a par de um fato conhecido daqueles que se ocupavam da escavação de minas e poços: quanto mais se cava, maior é a temperatura. Entre nós, quem quiser verificar este fenômeno pode visitar uma das muitas grutas do Estado de Minas Gerais como, por exemplo, a do Maquiné, no município de Cordisburgo: a temperatura fica mais elevada à medida que se penetra chão adentro. Da combinação desses conhecimentos, Thomson publicou em 1851 um artigo que se tornaria um marco na História da Ciência: a Segunda Lei da Termodinâmica. Para calcular a idade da Terra, Thomson supôs que a Terra e o Sol constituíam inicialmente um único corpo e se separaram em algum momento do passado. Desde então, a Terra vem se resfriando, de forma contínua e uniforme. A princípio, usou esse modelo para estimar por quanto tempo o sistema solar poderia permanecer em seu estado atual. Em 1842, aventou a possibilidade de estender esse cálculo para o passado e avaliar há quanto tempo o resfriamento vinha ocorrendo. Finalmente, em 1846, comunicou o resultado desse cálculo: cerca de 100 milhões de anos. Tend o em vista, porém, as aproximações requeridas pelo modelo, estimou um tempo entre 20 e 400 millhões de anos. Nos anos seguintes, diversos físicos leram, refizeram e confirmaram o cálculo. Todavia, a estimativa entrava em colisão direta com as observações geológicas, segundo as quais o estado atual da crosta requer um passado de bilhões de anos, e a então recente teoria da evolução de Darwin, que exige um processo evolutivo muito mais longo que o previsto pelo artigo. Por este motivo, Thomson desdenhava uma parte dos geólogos e jamais aceitou a Teoria da Evolução. Em 18 96 , o físico fran cês An toin e Henri Becquerel descobriu a radioatividade. Em 1903, Pierre Curie e Albert Laborde, também franceses, demonstraram que, graças à radioatividade, o elemento químico rádio possuía uma capacidade de irradiar calor continuamente, não se resfriando até a temperatura ambiente, como ocorre com a maioria dos elementos. Em seguida, foram reconhecidos novos elementos radioativos e o fato de que uns poderiam se transformar em outros, como o urânio em rádio e o rádio em chumbo. Essas descobertas revelaram uma nova fonte de calor, da qual até então não se suspeitava e, portanto, não havia sido computada por lorde Kelvin. Em 1907, o físico americano Bertram Bordem Boltwood propôs um novo método para datação das rochas: considerando que o chumbo descendia do urânio, conhecendo-se a velocidade de desintegração do urânio em chumbo e a concentração de chumbo em uma pequena amostra de minério de urânio, seria possível avaliar a idade da rocha. Cálculos desse tipo permitiram situar a rocha mais antiga encontrada na Terra como de aproximadamente 4,3 bilhões de anos, um valor muito acima das estimativas anteriores, confirmando a possibilidade da Teoria da Evolução. Sir Ernest Rutherford fôra convidado a falar, em um encontro da Royal Institution de 1904, no qual Lorde Kelvin estava presente, justamente sobre o tema da energia armazenada pelos átomos radioativos. As palavras de Sir Rutherford, porém, foram de reconhecimento ao velho sábio: “Lorde Kelvin havia posto um limite à idade da Terra, desde que não se descobrisse nenhuma outra fonte de calor. Esse enunciado profético refere-se ao que estamos considerando hoje, o rádio!”. Ele tinha razão. Ao publicar seu trabalho, Lorde Kelvin não poderia prever essa nova fonte de calor. Assim, uma dificuldade que, inicialmente, parecia insuperável para a Teoria da Evolução e para a Teoria Geológica foi resolvida graças a uma descoberta imprevisível, passando a constituir um problema resolvido. 2.4 A Deriva dos Continentes Por que os continentes se ajustam como as peças de um quebra-cabeças? Sabe-se há muito tempo que os continentes se ajustam como as peças de um jogo-de-montar. Pelo menos desde 1596, quando Abraham Ortelius, um cartógrafo holandês observou a complementaridade entre as formas da costa leste da América do Sul e a costa oeste da África. Em 1620, Francis Bacon assinalou também essa complementaridade em sua obra Novum Organon. Desde então, diversos autores têm feito referência a ela, conforme consta do levantamento realizado pelo Prof. James Romm, publicado em 1994. Em 1912, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, Alfred Wegener publicou um artigo e proferiu uma conferência com uma hipótese audaciosa: em um passado remoto, todos os continentes estiveram reunidos em uma única massa, que ele denominou Pangéia. Há 200 milhões de anos, iniciou-se um proEduc. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 ...... ... ........ ........ ........... .... .... .... ... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . cesso de separação da Pangéia em diversos fragmentos, até alcançar o aspecto atual. Wegener era professor de Astronomia e de Meteorologia da Universidade de Marburgo, Alemanha. Apesar de seu caráter pacifista, foi obrigado a servir durante a guerra. Atingido duas vezes, tornouse incapaz para o serviço ativo, passando a trabalhar em tempo integral no serviço meteorológico militar. Aproveitou esse tempo para escrever o livro A Origem dos Continentes e Oceanos, publicado na Alemanha em 1915, com apenas 94 páginas e sem um índice, no qual desenvolve as idéias esboçadas no artigo de 1912. Em 1919, foi lançada uma nova edição, mais bem organizada, com novas evidências e com um índice, a qual despertou a atenção dos cientistas europeus. A terceira edição, de 1922, foi traduzida para diversas línguas, entre elas o inglês. A semelhança entre esse livro e o de Darwin não se restringiu ao título. Ambos abriram novos campos de pesquisa e geraram muita controvérsia à época de seu lançamento. Da mesma forma que Darwin, também ele não foi o primeiro a enunciar sua teoria. O próprio Wegener reconheceu os créditos, entre os quais a H. Wettstein. Mas, como Darwin, foi ele o primeiro a construir uma teoria suficientemente sólida e coesa para não ser ignorada. Uma outra semelhança é que, assim como Darwin não foi capaz de propôr um mecanismo satisfatório para sua teoria (a seleção natural), Wegener não foi capaz de demonstrar o mecanismo que produzia a deriva dos continentes. Wegener apontou dois possíveis candidatos: as forças de afastamento dos pólos, devidas à rotação da Terra, e forças de afastamento lateral, resultantes da ação gravitacional do Sol e da Lua. Ele sabia que essas forças não seriam suficientes e reconhecia que “ainda não havia nascido o Newton da teoria da deriva dos continentes”. É dispensável dizer que Wegener recebeu críticas de todos os lados. Sua teoria foi chamada, entre muitas coisas, de um “conto de fadas”. Em uma carta a seu sogro, ele desabafou: “Essas pessoas que insistem em lidar apenas com fatos e não querem saber de hipóteses estão elas próprias empregando uma falsa hipótese sem o perceber!”. Como se vê, não eram apenas suas concepções científicas que estavam à frente de seu tempo, mas sua concepção da própria ciência. Durante o assentamento do cabo telegráfico entre a Europa e a América, no século XIX, foi descoberta, a meio caminho entre os dois continentes, uma cadeia submersa de montanhas, aproximadamente paralela às duas costas, conhecida como a Dorsal Mediana do Atlântico. Posteriormente, foram descobertas dorsais em todos os mares do mundo. Com a evolução dos processos de datação, descobriu-se que as rochas do leito submarino não passam de 200 milhões de anos, ou seja, são muito mais jovens que as do Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 continente. Demonstrou-se ainda que a crosta oceânica, além de ser constituída de materiais diferentes da crosta continental, é mais fina, apesar de ambas se encontrarem sobre um material mais denso que elas próprias. Em 1960, Harry H. Hess, da Universidade de Princeton, foi capaz de reunir informações como essas, provenientes de diversas fontes e concluir que o fundo do mar está sendo criado nas dorsais oceânicas, vindo do interior da Terra sob a forma de lava quente e maleável. A corrente de lava, ao emergir, afasta os continentes e se acumula no fundo do oceano, formando a grande cadeia de montanhas. A nova síntese, denominada “Tectônica de Placas”, considera a Terra dividida em diversas placas duras e rígidas, de espessura variável, incluindo não apenas a crosta, mas uma parte do manto superior, as quais estão em movimento relativo. Isso ainda não elimina todas as dificuldades da teoria da deriva dos continentes, mas outras respostas estão aparecendo. Por exemplo, uma proposta apresentada em 1995 sugere que o empuxo do velho fundo oceânico mergulhando de volta na Terra origina a maioria dos movimentos das placas. Atualmente, a teoria de Wegener é amplamente aceita. A maioria dos problemas suscitados por ela já foram resolvidos. Todavia, quando ele faleceu em 1930, ainda não existiam muitas das técnicas, nem os equipamentos, que permitiram obter as informações necessárias para explicar o mecanismo da deriva dos continentes. O que na época parecia representar um atestado de óbito da teoria não passa hoje de um problema científico. 2.5 Equações Algébricas de grau maior que 4 Resolver uma equação algébrica de grau n em x significa encontrar o valor de x que satisfaça à igualdade axn + bxn-1 + cxn-2 + ….+vx + z = 0, onde a, b,c…z são números reais constantes chamados de coeficientes e n, n-1, n-2…1 são números inteiros constantes chamados de expoentes. O maior expoente presente na equação (n) determina sua ordem. Em uma equação de primeiro grau, n = 1. Resolvê-la significa encontrar o valor de x que satisfaça a igualdade ax+z=0. Por exemplo, em 2x-6=0, a solução é x=3. Uma equação do segundo grau pode ser escrita sob a forma ax2 + bx + z = 0. Sua solução foi encontrada por Bhaskara, o mais importante matemático do século doze, um indiano que viveu de 1114 a cerca de 1185. Em seu trabalho mais conhecido, o Lilavati, ......... ........ ........... ........ .... ....... .... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . compilou problemas de diversos autores, dentre os quais Brahmagupta (séc. VII), além de suas próprias observações. Em 1545, Gerônimo Cardano (1501-1576) publicou a Ars Magna, obra na qual revelava a resolução da equações cúbicas (n=3) e quárticas (n=4). Boyer afirma que “a resolução das equações cúbica e quártica foi talvez a maior contribuição à álgebra desde que os babilônios, quase quatro milênios antes, aprenderam a completar o quadrado para equações quadráticas” [11]. Nos séculos seguintes, a par com os grandes desenvolvimentos na Matemática, muitos dos melhores gênios da humanidade tentaram, em vão, resolver a equação de quinto grau, a quíntica. Nessa parte da estória, surge a figura de Niels Henrik Abel (1802-1829). Nascido em família numerosa, era filho de um pastor de uma pequena aldeia da Noruega. Aos 16 anos, seu professor lhe recomendou a leitura dos grandes livros de Matemática. Assim, ao perceber, em suas leituras, que Euler provara o teorema binomial apenas para expoentes racionais, completou o trabalho de Euler, fornecendo uma prova válida para o caso geral. Ele também buscou a solução para a quíntica. Inicialmente, pensou havê-la encontrado, mas acabou publicando em 1824 uma artigo Sobre a resolução algébrica de equações algébricas, no qual forneceu a primeira prova de que nenhuma solução é possível. A busca secular havia terminado. Não é possível uma fórmula geral, expressa em operações algébricas explícitas entre os coeficientes de uma equação polinomial de grau superior a quatro. Portanto, não havia mais o que buscar: a q u ínt ica n ão é um p robl ema, mas u m pseudoproblema. 3 PARADIGMAS E JOGOS Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas [12], apresentou uma descrição para o progresso da ciência centrada no conceito de paradigma. Segundo esse autor, é a existência do paradigma que distingue a ciência da não-ciência. É ele que orienta a busca e a seleção dos fenômenos observáveis. Ainda assim, todos os paradigmas conterão anomalias, isto é, haverá sempre alguns desafios propostos, os quais, apesar de respeitarem o conjunto de conceitos compartilhado pela comunidade científica e colocados de acordo com as regras admitidas pelo grupo, em princípio não terão uma solução possível. Já ocorreu de articular-se o paradigma para resolver certas anomali- as, como no caso da descoberta do planeta Netuno para salvar a Teoria da Gravitação Universal. Em outras, porém, a operação não foi tão bem sucedida, como nas tentativas para ajustar a órbita do planeta Mercúrio. Kuhn refere-se ao trabalho dentro da ciência normal, portanto à luz do paradigma, como a solução de um quebra-cabeça [13]: “para ser classificado como quebra-cabeça, não basta a um problema possuir uma solução assegurada. Deve obedecer as regras que limitam tanto a natureza das soluções aceitáveis como os passos necessários para obtê-las.” Enquanto jogo, um problema só faz sentido se tiver uma solução possível: “O valor intrínseco não é critério para um quebra-cabeça. Já a certeza de que este possui uma solução pode ser considerado como tal.” Portanto, “resolver um problema da pesquisa normal é alcançar o antecipado de uma nova maneira” e “uma das razões pelas quais a ciência normal parece progredir tão rapidamente é a de que seus praticantes concentram-se em problemas que somente a sua falta de engenho pode impedir de resolver.” Todavia, Kuhn observa que haverá sempre uma vasta gama de desafios os quais, embora aparentemente estejam de acordo com as regras do jogo, ou seja, a priori poderiam e deveriam ser vencidos, que talvez jamais o sejam. Aqui não se trata de, nem mesmo, distinguir a ciência da não-ciência, mas de delimitar o que é possível daquilo que não o é dentro da pesquisa científica. O reconhecimento da impossibilidade de superação de tais dificuldades dentro de um paradigma pode gerar um desconforto tão grande que os cientistas se vejam forçados a modificá-lo ou a substituí-lo por outro. Este é um ponto crucial, pois, em ciência, muitas questões não podem ser definidas como pseudoproblemas justamente porque são questões a ser resolvidas a posteriori, não a priori. Por exemplo, veja-se o caso de Darwin. Ele ofereceu diversas alternativas para tentar explicar a seleção natural. Ele acreditava que a seleção natural existia e operava de alguma forma, mas não foi capaz de explicitar seu mecanismo. Alguém menos persistente poderia ter abandonado o flanco de batalha, entregando-se às inúmeras críticas levantadas contra seu trabalho, a maioria completamente desarrazoada, mas algumas bem fundamentadas, tocando nesse ponto essencial. Uma dificuldade suplementar era o tempo muito longo necessário para a diferenciação das espécies. Os cálculos de Thomson não pareciam deixar dúvidas a esse respeito. Estaria, portanto, a teoria da seleção natural diante de um desafio insolúvel? Apenas o futuro poderia trazer a resposta. 4 PROJETOS DE PESQUISA Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 ...... ... ........ ........ ........... .... .... .... ... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Diretores de laboratórios, agências de fomento, institutos universitários, departamentos de pesquisas de grand es empresas, col ocam- se todos, freqüentemente, a mesma questão: qual projeto de pesquisa merece receber um julgamento favorável? Uma decisão favorável tomada erroneamente poderá acarretar prejuízos elevados e condenar equipes inteiras a um trabalho desnecessário; o excesso de cautela, porém, poderá impedir o acesso a descobertas relevantes ou permitir que grupos rivais obtenham a prioridade dos resultados, levando a conseqüências econômicas igualmente desastrosas. Julgar a viabilidade de um projeto não é tarefa simples. Jamais haverá certeza absoluta e as conclusões propiciadas por qualquer projeto somente aparecem ao seu término, o que não significa, nem mesmo, que as hipóteses de um projeto fracassado fossem totalmente infundadas. Significa apenas que, na forma como foi conduzido, os objetivos não foram alcançados. Descobertas e análises futuras poderão fazê-lo renascer das cinzas, como a Fênix mitológica. Os analistas de projetos procuram avaliar alguns parâmetros mínimos de viabilidade. Diversas agências exigem que se faça um estudo piloto. Estudos pilotos são como operações exploratórias: o paciente é exposto à maior parte dos riscos da operação sem os respectivos benefícios e, depois de tudo, ainda podem falhar. Estudo piloto também não é projeto, é apenas um ensaio. Se a ciência tivesse operado dessa forma no passado, investindo em novos projetos somente depois de avalizados por estudos preliminares, muitas descobertas jamais teriam sido realizadas. Um outro parâmetro para se avaliar a viabilidade de um projeto se refere à experiência do coordenador na respectiva área. Isso dificulta a migração de pesquisadores de uma área para outra, justamente um dos mecanismos mais promissores de renovação da ciência, devido às visões complementares que oferece. Veja-se o exemplo de Darwin e de Wegener, cujos trabalhos mais significativos ocorreram justamente fora de sua área de formação. A cobrança excessiva por resultados positivos tem levado muitos pesquisadores a incluir em seus projetos de pesquisa, como apenas possíveis, alguns resultados já obtidos. Assim conseguirão justificar, em sua prestação de contas, pelo menos parte das verbas investidas. Mas isso é transformar o projeto em uma fraude institucionalizada. Os exemplos históricos demonstram que não se pode saber com absoluta certeza se um projeto de pesquisa é promissor ou não. Então, seria possível pelo menos determinar quanto tempo se deve esperar até decidir se um programa de pesquisa degenerou seriamente? Esta é uma pergunta que até mesmo Imre Lakatos se colocava, um autor que descrevia a Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 ciência sob a ótica de programas de pesquisa. Em um livro introdutório às diversas visões da ciência, podese ler: “Dentro da astronomia newtoniana, nunca foi possível estar certo de que um sucesso importante não se encontrava do outro lado da esquina. Para darmos um exemplo histórico genuíno, mais de setenta anos se passaram antes que a previsão de Copérnico a respeito das fases de Vênus fosse confirmada como correta, e vários sécul os an tes que a p revisão copernicana de que as estrelas fixas deviam mostrar paralaxe fosse confirmada. Por causa da incerteza do resultado de tentativas futuras de desenvolver e testar um programa de pesquisas, não se pode nunca dizer, de programa algum, que ele degenerou para além de toda a esperança. Sempre é possível que alguma modificação engenhosa de seu cinturão protetor conduza a alguma descoberta espetacular, que trará o programa de volta à vida e o colocará numa fase progressiva.” [14]. Ou ainda, “O próprio Lakatos admite que os méritos relativos de dois programas somente pod em ser d ecid id os ‘ olhan do-se para trás’”.[15] Feyerabend [16], com sua teoria do vale-tudo, defendia que simplesmente não se sabe o quê e quando vai funcionar. Esta posição seria muito fértil, se houvesse pessoas, tempo e recursos para se tentar todas as alternativas possíveis. Se é que há limite para as possibilidades da imaginação humana. De qualquer forma, os recursos disponíveis, por maiores que sejam, serão sempre limitados, o que inviabiliza o valetudo em oposição ao método. A quadratura do círculo e a quíntica povoaram o dia-a-dia dos sábios durante séculos, até que se demonstrasse sua impossibilidade. Se esse fato ocorreu em Matemática, uma área de estudo que independe da experiência, o que não dizer das ciências empíricas? No presente trabalho foram escolhidos exemplos históricos de grande notoriedade apenas para criar uma base comum de discussão. Entretanto, longe de ser um fato extraordinário, trata-se de um fenômeno corriqueiro. A dúvida e a incerteza a respeito do sucesso dos projetos fazem parte da própria ciência. Do contrário, se a exeqüibilidade fosse uma característica fácil de ser determinada, a comissão julgadora das agência de fomento poderia selecionar somente os projetos que apresentassem essa característica e classificá-los de acordo com um critério qualquer, como o impacto sobre a comunidade científica, o retorno do capital investido ou os benefícios sociais decorrentes. Infelizmente, não é assim que funciona. Por mais banal que seja o tema, o estado de dúvida é uma condição com a qual se deve aprender a conviver. Seja ele qual for: reduzir o número de discordâncias em um cristal através de uma nova técnica (pode ser até que o número aumente), selecionar as bactérias para um tipo particular de fermenta- ......... ........ ........... ........ .... ....... .... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ção (as condições ambientais de preparação podem escapar aos parâmetros inicialmente previstos) ou resolver analiticamente uma determinada equação diferencial (poderá simplesmente não ser resolvida). Por isso a pesquisa científica é tão emocionante! Enquanto o processo estiver em curso, haverá dúvida. Se o desafio proposto foi resolvido, houve um instante no qual a chave do problema foi encontrada. Nem sempre o pesquisador se apercebe disso imediatamente. Às vezes, anda com a chave no bolso durante dias e meses, sem saber que está com ela. Até tomar consciência de ter encontrado a solução. Mas nem sempre é assim que as coisas se passam. O excesso de cautela, porém, será sempre um fator de esterilidade. Permanecem atuais as palavras de Abelardo, escritas há mais de oito séculos, em Sic et Non [17]: “A primeira chave da sabedoria é a interrogação assídua e freqüente…É duvidando que se chega à interrogação e investigando que se chega à verdade.” Pretende-se hoje, em muitos lugares, administrar a ciência como se fosse uma empresa: investe-se nos projetos que parecem mais promissores. Mas, enquanto as empresas dispõem de uma poderosa ferramenta para subsidiar suas decisões - a ciência, ela própria não dispõe de um mecanismo seguro sobre o qual apoiar suas ações. Na vida diária, os cidadãos se apóiam nas previsões da lei científica para se orientar, na esperança de optar pela alternativa mais provável. Nas palavras de Bronowski [18], “uma lei científica é uma regra pela qual guiamos nossa conduta e pela qual procuramos assegurar-nos de que nos conduzirá a um futuro conhecido. (…) A vida é um processo de olhar para a frente. Volta-se para o porvir como as falenas para a luz que as atrai.” Todavia, quando se trata da construção da própria ciência, não há caminhos seguros ou regras infalíveis: “A idéia de conduzir os negócios da ciência com o auxílio de um método que encerre princípios firmes, imutáveis e incondicionalmente obrigatórios, vê-se diante de considerável dificuldade, quando posta em confronto com os resultados da pesquisa histórica.” Por exemplo, se os projetos que entravam em conflito com a previsões de lorde Kelvin tivessem sido descartados, a humanidade teria perdido décadas de contribuições importantes. 5 CONCLUSÃO Ao se lançar em qualquer empreendimento, geralmente procura-se obter um mínimo de garantias quanto à sua viabilidade. Essa regra, bastante observada em projetos comerciais, tem a finalidade precípua de assegurar, ainda que estatisticamente, o retorno do investimento. No campo da pesquisa científica, entretanto, impõe-se uma outra realidade. Pelo fato de buscar exatamente o desconhecido, não pode haver garantia. Qualquer tentativa de previsão se baseia forçosamente nos resultados já obtidos, enquanto a pesquisa busca resultados novos, inusitados. Para os caminhos percorrid os, há map as e ind icad ores; n as selvas inexploradas, não há estradas ou placas de sinalização. Os exemplos históricos aqui analisados demonstraram que, muitas vezes o que se julgava inverossímil em certa época, acabou se realizando, enquanto soluções consideradas prováveis revelaram-se impossíveis de ser alcançadas. Nas palavras de Albert SzentGyorgyi, encontrada no Scientific Quotation [19]: ”Pesquisar significa partir para o desconhecido com a esperança de se encontrar algo novo para trazer para casa. Se você sabe antecipadamente o que vai fazer, e até o que vai encontrar, então isso não é pesquisa de forma nenhuma: é apenas um tipo de ocupação honrosa”. Em suma, na ciência, a única certeza parece ser mesmo a do agricultor: Se tudo correr bem, uma parte das sementes plantadas deverá germinar e produzir a safra; se o agricultor reduzir o número de sementes para evitar perdas, talvez não tenha nada para colher. Não há outro caminho a seguir, senão depositar em cada cova mais de uma semente e zelar para que pelo menos uma delas se transforme em uma planta e dê o fruto desejado. Dará sempre certo? Nem sempre. Então por que prosseguir? Talvez a resposta, melhor que em Szent-Gyorgyi, esteja em Guilheme d’Orange, o Taciturno: “Não é preciso esperança para empreender, nem sucesso para preservar”. Este sim, parece ter sido o lema dos cientistas de todas as gerações, ainda que inconscientemente. 6 ABSTRACT This article deals with the concept of problem, as a presentation of possible objectives that we try to attain with an acceptable methodology, and pseudoproblem, as a description of impossible objectives, although presented in accordance with the same formal rules. Thereafter, we discuss some difficulties to disti ng uish bet ween these cases in some real situati on s and the d iffi cul ties invol ved in the evaluation of scientific projects. Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 ...... ... ........ ........ ........... .... .... .... ... .... ... Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 PALAVECINO, S. R. Wittgenstein y los juegos de lenguaje. Belo Horizonte: FUMARC, 1999, p. 106. 2 Trata-se da Oração da Serenidade, de autor desconhecido: Concedei-nos, Senhor,/A Serenidade necessária/para aceitar as coisas/que não posso modificar,/A coragem para modificar/ aquelas que posso/E Sabedoria para/distinguir umas das outras. 3 Ver M. G. MORENTE, Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1980. 4 Apud. H. PESCADOR. Princípios de Filosofia del Lenguaje. Madrid: Alianza Editorial, 1984, p. 245. 5 ibid, p. 243. 6 Ibid. p. 453. 7 Ibid. p. 243. 8 HELLMAN, H. Grandes debates da Ciência: dez das maiores contendas de todos os tempos. São Paulo: Unesp, 1999. 9 BOYER, Carl B. História da Matemática. 2a ed. São Paulo: Edgard Blücher, 1991, p. 61. 10 A chave para o Cálculo da Exaustão é o Axioma de Arquimedes, que o próprio sábio de Siracusa atribuiu a Eudoxo de Cnido: Dadas duas grandezas que têm uma razão, isto é, nenhuma delas sendo zero, pode-se achar um múltiplo de qualquer delas que seja maior que a outra. Deste axioma, por uma reductio as absurdum, pode-se obter: Se de uma grandeza qualquer subtrairmos uma parte não menor que sua metade e do resto novamente subtrair-se não menos que a metade e se esse processo for continuado, finalmente restará uma grandeza menor que qualquer grandeza da mesma espécie. Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.72-81, jan./jun. 2002 11 BOYER, Carl B. História da Matemática. 2a ed. São Paulo: Edgard Blücher, 1991, p. 197. 12 KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978. 13 Ibid., p. 61 14 apud CHALMERS, Alan F. O que é Ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 120. 15 Ibid., p. 121 16 FEYERABEN, Paul. Contra o Método. 2a ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1985. 17 apud VILELA, Orlando. O Drama de Eloísa e Abelardo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. 18 BRONOWSKI, Jacob. O Senso comum da Ciência. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977. 19 apud MCKAY, Allan L. & EBISON, Maurice. Scientific Quotations: the harvest of of a quiet eye. New York: Crane/Russak, 1977, pg. 145.