da oralidade ao texto escrito

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LETICIA RACHEL FERNANDES DA SILVA
UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
Curso de Letras Português Inglês
DA ORALIDADE AO TEXTO ESCRITO
Breve análise crítica do conto “Desenredo” de Guimarães Rosa à luz do
conceito de mímesis na literatura
Trabalho apresentado à disciplina Teoria da Literatura I
Professor Wander Lourenço
NITERÓI
ANO 2015
“O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima.”
“Desenredo” - Guimarães Rosa
Introdução:
O conto Desenredo, de Guimarães Rosa, torna-se marcante na literatura brasileira, a
partir do enfoque inusitado dado pelo autor, que obriga o leitor a posicionar-se diante do
texto como se dentro dele estivesse; e, na companhia daquele que detém o
conhecimento dos personagens, do espaço e da trama que os envolve, sutilmente
também venha a caminhar por entre boatos e fatos, emoções e desejos que são trazidos à
tona em cada parágrafo, com inquestionável maestria.
A obra de Guimarães Rosa é acima de tudo um tratado sobre a oralidade na escrita;
exímio artesão das palavras, é reconhecido por seu leitores como um grande contador de
“causos”. Neste conto, em especial, através do uso de um subterfúgio utilizado logo no
início do texto, quando convida seus leitores a tornarem-se “ouvintes” da narrativa, o
autor apresenta-se capaz de traçar um paradigma perfeito do fazer literário; e dentro de
uma estética simples, porém repleta de significados, materializa o conceito de mímesis
de forma sutil, tanto através da trama, ou enredo, como de seus personagens.
O conceito de mímesis na literatura
A partir da premissa de que ao discurso literário urge necessariamente obedecer a um
contexto, surge a compreensão de que não existe originalidade na criação do texto
escrito, seja qual for o seu teor, pois não seria possível compreender o novo se não
houvesse conformação com um modelo ou referência anterior.
Desta forma desponta o conceito de mímesis, ou imitação; assunto muito extenso, sobre
o qual desde a Antiguidade diversos autores filosofaram, sendo os seus principais
pensadores, Platão e Aristóteles.
Segundo Aristóteles, a mímesis não seria um fenômeno exclusivo do processo artístico;
pois todo o aprendizado humano, todas as atividades do homem na sociedade em geral
incluem inevitavelmente procedimentos miméticos. A mímesis se desdobra e se
consolida no dia a dia do ser humano em atividades das mais variadas e produtivas,
desde a aquisição da fala, a prática de rituais religiosos, aquisição de cultura em geral, e
claro, na produção de literatura.
Segundo Maria Aparecida Baccega, a linguagem verbal se destaca, pois ela é o veículo
que possibilita as mudanças sociais; a elaboração e a construção do futuro; a
transmissão de idéias, técnicas e artes; a interpretação e a comunicação; a solidificação
da prática social de um grupo e a continuidade do processo histórico. Além de
viabilizar a comunicação, toda a dinâmica da sociedade está impregnada pela palavra,
sendo assim, um centro irradiador que inter-relaciona vários aspectos semiológicos.
Dada a percepção da crucial importância da palavra como elemento de fundamentação
social, nota-se a razão pela qual Aristóteles defendia a idéia de que o poeta seria o
imitador do real por excelência e também seu intérprete, elevando assim a Tragédia, a
Epopéia e a Comédia ao ápice da mímese na literatura grega clássica, pois na visão
aristotélica, e como afirma em seu tratado Poética, a mímesis seria o que nos distingue
dos animais.
Não era esse contudo, o pensamento platônico. Em sua obra República, Platão
argumentava que, a imitação na poesia é sobretudo produção de imagens e resultado de
pura inspiração e entusiasmo do artista perante a natureza das coisas aparentemente
reais. Ao perceber a enorme influencia das obras literárias na sociedade grega, ao ponto
de chegarem a serem veneradas como verdadeiras enciclopédias, Platão posicionava-se
como ferrenho adversário dos gêneros literários e defendia a prática da reflexão
filosófica como única forma de alcançar um maior equilíbrio político e ético da
mímesis.
A dinâmica do binômio escrita/oralidade em Desenredo
Segundo Roland Barthes, “o mundo existe, o escritor fala - isto é literatura.” A visão
literária é então entendida como uma visão do mundo, e principalmente a compreensão
deste aspecto primordial; que através do pleno domínio da técnica como um
determinado autor dispõe da sua própria linguagem ao longo dos textos, assim o
reconhecemos, ou, o identificamos, através dos mesmos.
Quando, no último parágrafo de seu conto, Guimarães Rosa conclui a narrativa com a
frase: - “E pôs-se a fábula em ata.” – ali conclui-se a metáfora criada pelo autor, que
expôs de forma prática o que é processo da mímesis na literatura. A descrição dos fatos
cotidianos, do ambiente onde se passa a narrativa, a tentativa de registrar com o máximo
de detalhes possíveis as emoções de cada personagem envolvido e o relato da trama que
os liga uns aos outros, ou seja, o enredo literário, nada mais é do que a imitação da vida.
Quando o relato que é natural ao ser humano, ou seja, a prática da oralidade, passa a ser
registrado em forma de texto escrito, alça então uma nova dimensão da realidade.
Em Desenredo, o autor escolhe chamar esta nova dimensão de “fábula”, sendo este o
clímax do processo de mimese dentro do fazer literário; o momento em que a realidade
criada no texto escrito não é mais aquela que se conhece como real, mas consegue
agregar valores sociais, históricos, culturais e características emocionais à sua própria
consciência individual ou pessoal. Neste processo, quando o escritor consegue de uma
forma esteticamente organizada, entrelaçar a realidade objetiva com traços de sua
própria personalidade, destaca-se o valor artístico da obra; a mimese literária não é um
processo fácil, implica na abordagem da realidade a partir de uma consciência estética
elaborada. Alguns autores referem-se a este processo mimético literário como “a
desrealização do real”; neste ponto nos arriscaríamos a levantar a hipótese de que,
justamente devido a esta percepção profunda de todos estes elementos que estavam tão
habilmente implícitos e tão abrangentes em seu conto, Guimarães Rosa decidiu dar-lhe
o título de: “Desenredo”.
A reflexão crítica da mimese, e mais especificamente do binômio escrita/ oralidade, foi
abordado por Platão em seu conto “A invenção da escrita”, onde o autor vale-se de dois
personagens - o Deus Thoth, ao qual supostamente seria atribuída a invenção da escrita,
e o governador do Egito, Tamuz, a quem seria apresentada a nova arte, ou invenção.
Valendo-se desta metáfora, e destes dois personagens, Platão apresenta então os seus
argumentos a favor e contra o ato de “transformação” da oralidade em escrita.
Platão seria o pensador por excelência deste processo, haja vista o fato de ter sido ele o
responsável por transportar os conhecimentos adquiridos através do convívio com seu
mestre, Sócrates, do campo das idéias e da oralidade para os relatos escritos. Torna-se
patente inclusive a dificuldade de identificar até onde o pensamento socrático invade a
reflexão platônica, tendo sido Sócrates assumidamente defensor da oralidade; de acordo
com ele, a escrita seria uma forma de fechar o conhecimento, apresentando-o de forma
acabada, que prenderiam o seu autor ao restrito campo das afirmações estáticas, e, se
essas afirmações estivessem erradas, a escrita não só perpetuaria o erro, como garantiria
a sua transmissão. Na época de Sócrates a transmissão do conhecimento dava-se
essencialmente por via oral, daí a grande importância da reflexão trazida neste conto de
Platão.
Guimarães Rosa consegue tecer com perfeição este desequilíbrio, inevitavelmente
sempre presente na obra literária, expressando-o através da incerteza das informações
que apresenta ao leitor/ouvinte: “ ... Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e
Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó
Joaquim apareceu...”; e , em outro ponto: “Azarado fugitivo, e como à Providência
praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso...”. O escritor
preocupa-se de não oferecer um relato acabado, deixa-o, ao contrário, com ares de
incerteza, assim como em todo relato oral, toda estória contada, todo boato, algo que se
ouviu falar e se repete; existem informações incertas: o nome da mulher seria um ou
outro, o nome do marido, sequer é mencionado, e como morreu, paira a dúvida.
Em seu conto “A Invenção da Escrita”, Platão cria uma alegoria onde dois personagens
dialogam; o Deus Thoth representa a argumentação em defesa da utilidade da escrita,
enquanto que o suposto governador do Egito, Tamuz, refutaria a sua eficácia:
“ Quando chegaram à escrita, disse Thoth: "Esta arte, caro rei, tornará os egípcios
mais sábios e lhes fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande
auxiliar para a memória e a sabedoria”.”
Ao que Tamuz lhe responde que tal invenção não seria capaz de auxiliar a memória,
muito pelo contrário, os homens tornariam-se mais esquecidos, passando a confiar
apenas nos relatos escritos, e não dominariam um assunto em si mesmos, apenas
superficialmente.
Nota-se que a preocupação platônica primordial, seria apenas com a transmissão de
conhecimento; porém a mimese na literatura vai muito além da imitação da oralidade no
sentido da tentativa de registro da realidade objetiva; a mimese é capaz de adquirir ares
de superioridade e liberdade não reconhecidos por Platão, quando parte do prisma do
que é real, e vai em busca do imaginário, do sonho, da fantasia, do absurdo e do ilógico.
Na poesia, “O menino que carregava água na peneira” de autoria de Manoel de Barros,
contemplamos este paradoxo em relação à utilidade da escrita como um elemento
criador de uma nova dimensão da realidade; o texto remete à reflexão do potencial do
escritor para construção de todo um universo paralelo, um mundo surreal, onde
qualquer coisa que se possa pensar é possível de ser registrada através das palavras.
“O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!”
Enquanto no pensamento platônico, a utilidade do registro da oralidade seria apenas
uma forma de perpetuar o conhecimento, na visão do poeta Manoel de Barros a escrita
seria um instrumento capaz de dar asas à imaginação e criar todo o tipo de realidade
abstrata.
Conclusão:
O conto de Guimarães Rosa situa-se então como um marco a mais na reflexão crítica
necessária sobre a mímesis na literatura. Do ponto de vista que a oralidade permite e
incentiva a constante transformação do pensamento, com seus acréscimos ou
subtrações, e o seu registro cria e perpetua um novo campo de idéias palpáveis e
sensíveis, concordamos com o autor de Desenredo de que realmente faz-se necessário
“pôr-se a fábula em ata”, pois afinal, “ o real e válido na árvore, é a reta que vai para
cima.”.
Bibliografia
Aristóteles, Arte retórica e arte poética. São Paulo, Difel, 1964
Baccega, Maria Aparecida, Palavra e Discurso, 2ª.ed. São Paulo,Ática, 2007
Cf Merchior, J. Guilherme, A astúcia da mimese. Rio de Janeiro: J Olympio, 1972
Cf. Mímesis. Semiótica, Neuchâtel,2, 1970
Chaui, Marilena, Convite à filosofia.13ª. Ed. São Paulo, Ática, 2003
Proença Filho, Domício, Estilos de época na literatura,15ª. ed. São Paulo: Ática, 2002
http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-debarros/08/04/2015 ás 17:30h
Apostilas Estácio do Curso de Letras - Oficina Literária e Filosofia da Educação
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