Ideais políticos e religiosos jacobitas em Medida por medida TAINÁ DUTRA ALMEIDA* Resumo Este ensaio tem como objetivo destacar elementos da peça shakespeariana Medida por Medida(1604) que fazem uma apologia aos ideais políticos e religiosos do rei James I, presentes particularmente no tratado Basilikon Doron (1599). Palavras-chave: James I; Realeza Sagrada; Iconoclastia do Mérito. Abstract This essay intends to show Measure for Measure (1604) as an apology of King James I’s religious and political ideas, namely those in his treatise Basilikon Doron (1599). Key words: James I; Sacred Kingship; Iconoclasm of Merit. * TAINÁ DUTRA ALMEIDA é Graduanda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Agradeço ao professor Alexander Martins Vianna do Departamento de Historia da UFRRJ pelas correções e sugestões feitas ao texto. 125 Introdução Na peça shakespeariana Medida por Medida (1604), é possível constatar uma série de elementos que se referem à política religiosa de James I. Sendo assim, levantase a premissa de que tal peça estaria permeada pela propaganda política do governo de James I, o que é pertinente uma vez que o monarca era o patrono da companhia de Shakespeare desde 1603, conferindo ao seu teatro um papel importante na veiculação das ideias religiosas e políticas jacobitas. Diante disso, procurar-se-á atentar para a caracterização de determinados personagens e a tipologia de suas máscaras cênicas, pois denotam correspondências com a política religiosa adotada pelo soberano da Inglaterra. As disputas entre as diversas doutrinas religiosas na Inglaterra desde a ruptura de Henrique VIII com Roma e as diferentes posições religiosas assumidas pelos soberanos subsequentes fizeram com que a ortodoxia oficial precisasse ser recorrentemente reafirmada a cada nova sucessão dinástica entre 1548 e 1603. Em 1599, o ainda rei da Escócia James VI (I) escreveu o tratado Basilikon Doron, no qual alertava para as ameaças católicas e puritanas à ordem civil e à autoridade régia (VIANNA, 2011a). É interessante notar que Basilikon Doron fora escrito após o rei da Escócia ter sido cogitado como sucessor na Inglaterra da rainha Elizabeth. Este tratado, além de um espelho de príncipe, era uma peça de propaganda política de James na Inglaterra. Tal propaganda era necessária, uma vez que o futuro sucessor de Elizabeth viria de um país marcado pelo Presbiterianismo, ao passo que a Inglaterra era episcopal. Não por acaso, James afirmase claramente simpático à forma episcopal de igreja reformada. Depois de assumir o trono da Inglaterra, James I tentaria, a partir de 1610, tornar episcopal a igreja da Escócia, enfrentando sérias resistências. Em Basilikon Doron, James questionava também a possibilidade de o mérito humano ser cooperativo com a graça divina. Ao afirmar isso, posicionava-se frontalmente contrário às ideias católicas e “puritanas” sobre eleição e graça; disso decorria a sua crítica teológica à possibilidade moral de padres católicos e súditos “puritanos” cogitarem-se tão perfeitos em matéria de fé a ponto de se colocar acima da autoridade régia e, no limite, poder assassinar um soberano que julgassem ímpio. A peça Medida por Medida justamente provoca a iconoclastia do mérito católico e puritano, tal como proposto criticamente em Basilikon Doron, ao explorar o antagonismo entre “católico” e “puritano” nas figuras, respectivamente, dos personagens Isabel e Ângelo. 126 Ângelo e o esvaziamento da Realeza Sagrada Em Medida por Medida, é possível perceber dois personagens que fazem referência à problemática da perfeição do eleito: o governante substituto Ângelo e a noviça Isabel. Apesar de ser ambientada em uma fictícia Viena católica, a peça reflete principalmente a problemática jacobita acerca dos puritanos. Depois da vitória da Inglaterra sobre a “Armada Invencível” dos Habsburgos, a “ameaça católica” era menos premente ao final do governo de Elizabeth do que a “questão puritana” para seu sucessor, pois James I malograra ao tentar acomodar as expectativas teológicas “puritanas” na estrutura da igreja episcopal ao patrocinar, em 1604, uma conferência em Hampton Court. Assim, são revestidos de particular significado contextual os personagens Ângelo e Isabel. Ângelo torna-se chave para problematizar o conceito de perfeição do eleito. Através de diversas falas e ações realizadas pelo personagem, pode-se dizer que tal figura representaria o estereótipo do puritano segundo as expectativas críticas do rei James I. A aversão é ainda mais acentuada uma vez que esse personagem também é figurado como hipócrita. Um bom exemplo que remeteria ao estereótipo do “puritano hipócrita” seria o fato de que Ângelo é referido inicialmente como sóbrio e de excelente condição moral, ou seja, a imagem construída acerca do mesmo remete à perfeição moral, que é abalada em seu encontro revelador com Isabel. É necessário atentar que, nesse universo em que a peça era encenada tendo em vista a perspectiva da religião oficial, a perfeição moral intramundana por mérito próprio era tida como impossível, já que o homem era entendido como um irremediável paradoxo de carne/espírito. Daí, não se deve surpreender com fato de que, na teleologia moral da peça, a inconsistência do personagem Ângelo seja revelada em seu encontro com Isabel. Tal inconsistência é proposital, uma vez que Ângelo, apresentado como um puritano, não poderia servir como exemplo moral para o público, particularmente em 1604, depois da conferência em Hampton Court. A caracterização de Ângelo tem como função realizar uma alusão aos perigos de se ter um puritano no poder, assim como, os seus erros doutrinais. Como a preocupação com o bom governo é evidente na peça, o uso tirânico das leis assumido por Ângelo chama a atenção do espectador para a figura do próprio James I, que se portava oficialmente como soberano da justiça e das almas, cuja finalidade seria proteger os súditos e temperar os efeitos da lei segundo pessoa, delito e circunstância. Comparativamente, o governo do puritano cênico Ângelo seria a desgraça para os súditos, ao passo que o governo de James seria uma representação ideal de bom governo. No mundo do Antigo Regime, havia uma responsabilidade oficial por parte do governante de deliberar casuisticamente, sendo necessário levar em consideração questões como o nascimento do indivíduo ou mesmo os costumes locais. A importância do monarca é fundamental nesse aspecto, uma vez que as leis existiam, mas necessitavam da temperança do soberano, como mediador da justiça, para circunstanciar os seus efeitos práticos (VIANNA, 2011b). Dito isso, pode-se entender a figuração de Ângelo como uma problemática encarnação do uso rigorista das leis, cujo efeito 127 paradoxal seria a própria anulação da relevância do soberano como centro da justiça e da equidade. A iconoclastia do mérito de Ângelo e Isabel Outro personagem problematizado é a figura da noviça Isabel, sendo importante destacar que a mesma só é um personagem-problema porque foi concebida à luz de um público protestante e da crítica anticatólica oficial. A figura de Isabel assume certas particularidades: em grande parte da peça, ela é apresentada como um exemplo moral, principalmente em relação ao personagem de Ângelo. O próprio código de composição de página da peça evidencia a elevação moral de Isabel, uma vez que suas falas são escritas em versos e não em prosa. Isabel parece funcionar como um antítipo de Ângelo. Tal fato fica evidente no duelo verbal ocorrido entre ambos no momento em que Ângelo faz a proposta de que Isabel, a fim de salvar a vida de Cláudio, sacrificasse sua virgindade/celibato. Nesse momento, ele mostra sua verdadeira face, revelando sua inconsistência moral: Meu nome limpo, a minha vida austera, Minha voz contra a sua, o cargo público, Pesarão tanto contra a acusação Que você sufocada no que afirma, Vai cheirar a calúnia. Libertei-me, Dou rédea solta à sensualidade. Trate de contentar meu apetite; Deixe para lá pudores que enrubescem E aquecem seus contrários. Seu irmão Se salva por seu corpo dado a mim: De outro modo ele não só morre, Mas sua maldade faz com que sua morte Venha após longa tortura. (...) Mentindo eu peso mais que a sua verdade. (SHAKESPEARE, 2004, p. 73) Apesar da imagem inicial de bela virtuosa, Isabel também não mantém consistência moral ao longo da peça. Na teleologia da peça, o choque entre os personagens moralmente rigoristas (puritano/Ângelo e católica/Isabel) revela as suas respectivas dificuldades de se manterem constantes na perfeição moral arrogada, provocando a iconoclastia do mérito nos mesmos termos doutrinais identificados no Basilikon Doron, em que James afirma os riscos, para o soberano e a ordem civil, da arrogante perfeição moral pretendida por clérigos católicos e súditos puritanos. No final das contas, Isabel cumpre, com êxito, a figuração do católico hipócrita, uma vez que aceita participar da farsa proposta pelo Duque Vicentio (disfarçado de frei) para revelar publicamente a hipocrisia puritana de Ângelo. Portanto, a peça põe em choque dois personagens com paixões pelo absoluto para que reciprocamente revelassem a inconsistência dos seus méritos publicamente arrogados. Nesse aspecto, há ainda de se considerar a crítica anticatólica ao celibato. O celibato de Isabel é problematizado, uma vez que o mesmo não confere a ela nenhuma aura divina protetiva. Inclusive, é por não pretender sacrificar (exercer a caritas) o seu celibato que a noviça Isabel aceita a ideia de seu irmão ser morto pelo efeito do uso rigorista da lei por Ângelo. E, no final das contas, é o artifício teatral do Duque Vicentio que preserva a sua virgindade e a vida de Cláudio, mas ao preço de Isabel participar de uma mentira. Portanto, a teleologia moral da peça cerca o celibato de Isabel de tantos paradoxos que é completamente esvaziado de sua pretendida santidade. Com isso, a peça expõe que compreender o celibato religioso como um meio de alcançar a 128 graça divina, ou mesmo como um sinal de superioridade moral frente aos laicos, seria um erro “papista” (VIANNA, 2011a). Considerando os estereótipos e tipologias cênicas, devemos focar agora a condição dramática do Duque Vicentio. Vicentio e a afirmação da Realeza Sagrada Como poder soberano, Vicentio reconhece que cometeu equívocos em sua conduta de governante ao agir com excessiva clemência, pois a consequência disso foi criar súditos arrogantes. Para corrigir tal situação, Vicentio finge que faria uma viagem e entrega a autoridade soberana de seu ducado a Ângelo que, como seu antítipo, governaria por meio do uso rigorista das leis e costumes antigos do fictício Ducado de Viena. Ao final da peça, pode-se perceber Vicentio como a figura de um bom governante que aprendeu a governar com justiça e equidade. Aliada a tal aprendizado, observa-se no decorrer da peça a questão do soberano como responsável pela vida espiritual de seus súditos. Na caracterização cênica de Vicentio, a peça explora a conhecida tópica literária do “rei oculto”, que implica em colocar o poder soberano numa situação de aprendizado franco sobre as opiniões de seus súditos a respeito de seu governante. No caso específico de Vicentio, ao fingir viajar e entregar o comando de seu ducado a Ângelo, há a escolha emblemática de se disfarçar de frei. Com exceção do público/leitor, todos os personagens da peça acreditavam que Vicentio estaria viajando, o que torna o público/leitor cúmplice das tramoias corretivas de Vicentio/frei. O disfarce de frei possibilita a Vicentio um trânsito social facilitado pelas diferentes esferas sociais de seus domínios. É por meio desta farsa que Vicentio poderá colher opiniões francas de seus súditos a respeito de seu próprio governo e do governo do substituto. Assim, por um lado, a tópica do “rei oculto” cumpre o seu papel moral na teleologia da peça: possibilita que Vicentio faça uma jornada de aprendizado sobre as diferentes linguagens sociais de seu domínio, aprendendo a governar com justiça e equidade. Por outro lado, o fato de estar oculto como frei possibilita que o mecanismo corretivo da comédia funcione, ao mesmo tempo em que possibilita que o soberano efetivo esteja travestido, aos olhos do público/leitor, de dignidade clerical. Na exploração da tópica do “rei oculto”, há várias possibilidades literárias de figurar disfarces para um poder preeminente. O fato de a peça Medida por Medida propor o disfarce do soberano efetivo como frei parece cumprir expectativas morais e teológicas que encontramos em Basilikon Doron, em que James afirma que o soberano não é completamente laicus, sendo uma amálgama – que deveria se traduzir em suas vestimentas – de guerreiro, magistrado e clérigo (VIANNA, 2011a). Ora, afirmar a figura do soberano como não completamente laicus situa-o, no caso da estrutura de autoridade da Igreja Episcopal, como moralmente superior a todos os súditos, inclusive dos clérigos. É importante considerar que, depois do longo reinado de Elizabeth, a figura masculina de James I encarnaria perfeitamente a imagem do soberano das almas, o que significava recuperar atributos que ficaram, durante o governo de Elizabeth, concentrados apenas nos arcebispos. Portanto, com o governo de James I, o soberano torna-se 129 plenamente a cabeça da religião do Estado. Na peça Medida por Medida, a atenção à vida espiritual dos súditos fica demarcada no momento em que Vicentio se encontra na prisão com o personagem Bernardino. O frei/duque, antes de tudo, procura fazer com que os prisioneiros se arrependam de seus atos e aceitem em paz a sua pena. No entanto, diferentemente de Cláudio, Bernardino é irredutível, não se arrependendo em hipótese nenhuma. Frente a isso, o frei/duque adia a execução de Bernardino, dizendo: Não tem preparo pra enfrentar a morte; Despachá-lo com a mente nesse estado Seria um crime. (SHAKESPEARE, 2004: 122) No universo teologicamente católico da Viena dos Habsburgos, um duque vienense não teria autoridade para preparar o “despacho da alma” de um súdito. Nesse sentido, seria uma matéria indiferente, para um duque vienense histórico, o arrependimento de um criminoso contumaz na hora da morte. No entanto, o fictício duque/frei de Medida por Medida sinceramente se importa com o estado da alma de Bernardino. É justamente nisso que consiste a alegoria mais direta à realeza sagrada de James I: o Duque Vicentio, travestido de frei, não é completamente laicus aos olhos do público/leitor e, nesses termos, atua como efetivo soberano da alma de Bernardino. Por fim, vale lembrar que, apesar de fazer uma alegoria a James, o duque disfarçado de frei também servia para ressaltar a problemática moral do clero e dos sacramentos católicos. O próprio disfarce de religioso funciona como uma banalização das vestes eclesiásticas católicas, assim como, do sacramento da confissão, que é deliberadamente utilizado na peça como condição de possibilidade para a farsa cômica corretiva envolvendo Ângelo, Isabel e Mariana. Assim, a peça representa os sacramentos católicos como inefetivos e facilmente falseáveis, ou seja, como um “engodo papista”, tal como apareciam recorrentemente na crítica anticatólica presente nas homilias da Igreja Episcopal (HELIODORA, 1978). Conclusão Na peça Medida por Medida, observase a presença de elementos da teologia política oficial do regime jacobita. A perfeição moral como algo alcançável através de méritos próprios que culminariam em uma vida “santificada” no mundo terreno é claramente problematizada na teleologia da peça. Afinal, ao pretender tal perfeição, particularmente no caso de súditos “puritanos”, estariam questionando a própria necessidade da existência de um soberano da justiça e das almas, uma vez que os pretendidos eleitos por mérito próprio figurar-se-iam como moralmente superiores aos magistrados, considerando-se livres das leis civis. Tais pretensões de perfeição moral são atribuídas a Ângelo e Isabel para, logo em seguida, serem desgastadas pelo próprio choque paradoxal entre ambos, o que faz emergir na trama o tema calvinista da iconoclastia do mérito. Por isso, o mérito que é arrogado por tais personagens no início da peça é destruído conforme desenvolvem as suas ações na trama arquitetada por Vicentio. Enfim, cabe ressaltar que a peça Medida por Medida não só pôde ser concebida, em 1604, como uma forma de propaganda antipuritana do governo de James I no contexto da conferência da Hampton Court, mas também como uma forma de corroboração das 130 expectativas doutrinárias anticatólicas da Igreja Episcopal da Inglaterra. Portanto, para além de um mero entretenimento, podemos afirmar que o teatro inglês era patrocinado pelo poder régio para servir como um meio educativo de disseminação de ideais políticos e religiosos da realeza sagrada jacobita. HELIODORA, Bárbara. Medida por Medida. In: HELIODORA, Bárbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 207-220 HELIODORA, Bárbara. Os teatros no tempo de Shakespeare. In: LEÃO, Liana de Camargo et alii. Shakespeare: Sua Época e Sua Obra. Curitiba: Beatrice, 2008, p. 65-78 Referências ROCHA, Roberto Ferreira da. O jogo político na Era dos Tudors: Absolutismo e Reforma. In: LEÃO, Liana de Camargo et alii. 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