A Modernização Tecnológica da Agricultura Brasileira e o Modelo Linear de Desenvolvimento analisados à luz dos estudos CTS Arilson Pereira do Vale1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná-UTFPR E-mail: [email protected] Resumo: este artigo procurará refletir sobre o processo de modernização tecnológica da agricultura brasileira na tentativa de identificar a compreensão que se tinha sobre Ciência & Tecnologia; em que medida as noções de Ciência & Tecnologia que permearam esse processo se expressaram nas políticas públicas para o setor; quais foram as implicações desse processo de modernização para a agricultura e os agricultores de base familiar e como pensar a relação Ciência, Tecnologia e Sociedade a partir da participação cidadã e democrática na definição, regulação e gestão das políticas públicas. Neste último tópico, em especial, será apresentado alguns elementos teóricos do Filósofo da Tecnologia, Andrew Feenberg. A conclusão do presente artigo apontará interesses de investigação sobre os APL (Arranjos Produtivos Locais) como tentativa de melhor compreender os fundamentos dessa política pública em confronto com os questionamentos e reflexões desenvolvidas no decorrer do texto, porém ainda de forma embrionária. Palavras-chave: Modernização Tecnológica. Estudos CTS. Teoria Crítica da Tecnologia. Tecnologia Social. Arranjos Produtivos Locais. INTRODUÇÃO A dinamicidade e a complexidade que envolve as relações sociais exigem sempre do pesquisador um olhar que tome por pressuposto a dialética das múltiplas faces que constituem a realidade social. Nessa perspectiva apontamos aqui que pensar a relação Ciência, Tecnologia & Sociedade envolve desde a compreensão dos fundamentos epistêmicos e conceituais dessa relação, a percepção de como esses fundamentos se materializam nas relações sociais e de trabalho, a identificação das implicações econômicas, políticas, culturais, ideológicas, ético-morais, etc. dessa mesma relação e a proposição de novas leituras e interpretações que possam apresentar alternativas a contextos hegemônicos. MODELO LINEAR DE DESENVOLVIMENTO Conforme DAGNINO, DAVIT e THOMAS (1996), até a década de 50 a América Latina segue o Modelo Linear de Inovação onde se considerava que o desenvolvimento científico e tecnológico era condição necessária e suficiente para a 1 Doutorando em Tecnologia pelo PPGTE (Programa de Pós-Graduação em Tecnologia) da UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná). Docente do Departamento de Estudos Sociais da UTFPR. 2 geração de desenvolvimento econômico e social dos países periféricos. Conforme BAZZO, 2003, p.120-122), (...) Ciência e tecnologia são apresentadas como formas autônomas da cultura, como atividades valorativamente neutras, como uma aliança heróica de conquista cognitiva e material da natureza. (...) O bem-estar nacional depende do financiamento da ciência básica e do desenvolvimento sem interferência da tecnologia, assim como da necessidade de manter a autonomia da ciência para que o modelo funcione. O crescimento econômico e o progresso social viriam por conseqüência. (BAZZO, 2003, p.120-122) Para ALMEIDA (2001) a noção de modelo nessa perspectiva passa a exercer uma dimensão ideológica que submete o significado do “desenvolvimento” à ideologia da “modernização”. (...) a idéia de desenvolvimento é reduzida à de modernização e, em conseqüência disso, os países do Terceiro Mundo são julgados à luz dos padrões dos países desenvolvidos, todos de modernização precoce. Este etnocentrismo conduziu à aplicação no mundo inteiro de um modelo único de modernização e, portanto, a ver "em atraso" os países "subdesenvolvidos". (ALMEIDA, 2001, p.37). É nesse contexto, que o Estado Brasileiro, enquanto agente de políticas de modernização e desenvolvimento econômico e técnico, desenvolve políticas econômicas voltadas à modernização de setores considerados tradicionais, arcaicos e atrasados, como por exemplo a agricultura. Assim sendo, para que a agricultura pudesse ser inserida no sistema econômico fazia-se necessária a sua modernização via extensão de avanços técnico-científicos ao campo. Os planos de desenvolvimento oficiais inspirados nesta visão desenvolvimentista passam a definir as competências dos agricultores e as características do sistema técnico que eles devem colocar em operação. Os órgãos públicos de difusão de tecnologia têm a tarefa de "enquadrar" os agricultores no "modelo" de desenvolvimento idealizado, segundo os cânones da modernização. Trata-se da ampliação de clientela do desenvolvimento, aportando novos conhecimentos àqueles que estão em atraso na rota do progresso, ou seja, os "retardatários da modernização". Nesta visão, o desenvolvimento é um processo considerado único, que leva do atrasado ao moderno, tendo, portanto, uma concepção linear. Este novo "modelo" moderno, "desenvolvimentista", encampado pelos agricultores empresariais modernos, é o único possível e desejável. (ALMEIDA, 2001, p.40). Como afirma PASSINI (1999, p.1), comentando MASCARETTI (1994), "partiase da premissa de que a simples transferência de tecnologias melhoradas promoveria o desenvolvimento econômico de uma dada região”. Leia-se "transferência de tecnologias melhoradas", a introdução de máquinas, implementos, fertilizantes, agrotóxicos, etc. na produção agrícola brasileira. Portanto, se partia do pressuposto de progresso linear materializado no desenvolvimento científico-tecnológico de máquinas e pacotes químicos, estes seriam responsáveis pelo aumento da produtividade do campo e conseqüente modernização de nossa agricultura. A premissa da "transferência de tecnologia" ou da "adoção de pacotes 3 tecnológicos" obedece a uma perspectiva epistemológica própria, onde a Tecnologia passaria por estágios evolutivos ascendentes em direção a uma modernização sempre melhorada, representada, no caso específico, pelas máquinas e agrotóxicos. E tal perspectiva de modernização partia igualmente do pressuposto de uma pretensa neutralidade da Tecnologia ao identificá-la como fator suficiente para o desenvolvimento da Agricultura Brasileira, independentemente do contexto em que foi gerada e dos fatores sócio-culturais, políticos e econômicos que permearam determinadas opções tecnológicas. Para os teóricos da modernização, o desenvolvimento de nossa agricultura estava necessariamente ligado à utilização de insumos industriais (máquinas e implementos, fertilizantes, defensivos, etc) na forma de "pacotes tecnológicos" disponíveis, principalmente, no mercado internacional. A partir de meados dos anos 60, após concluído o ciclo de modernização agropecuária nos países desenvolvidos, passa a existir em disponibilidade no mercado internacional um conjunto de tecnologias biológicas, químicas e mecânicas, na forma de um verdadeiro "pacote tecnológico". Estas novas técnicas, associadas, especialmente, aos produtos trigo, soja, milho e arroz irrigado, encontravam-se em poder de grandes grupos industriais, ligados, principalmente, ao capital norte-americano, que passa a procurar novos mercados para a sua reprodução, agora nos países menos desenvolvidos. (PEREIRA, 1992, p. 116). A abordagem desses teóricos foi determinante no direcionamento políticoeconômico adotado para o setor agrícola do país. Conforme SANTOS (1987, p. 40), citado por PEREIRA (1992, p. 118), "(...) a estratégia de políticas recomendada por estes autores era no sentido de, no curto prazo, criar instrumentos e desenvolver um conjunto de ações capazes de difundir rapidamente, entre os agricultores, o estoque de conhecimentos acumulados no país e no exterior". Um sério problema decorrente dessa perspectiva de desenvolvimento atrelado aos avanços técnicos registrados nos países de capitalismo avançado se refere à falta de pesquisa para a agricultura familiar, e que se reflete no perfil do pesquisador agropecuário formado em nossas instituições e no distanciamento entre centros de pesquisa agropecuário e agricultores familiares. As promessas eram o aumento da produtividade, fim da fome e riqueza para o campo. Porém, o resultado desse processo de modernização desenvolvimentista decretado foi o empobrecimento material e sociocultural do agricultor e o empobrecimento da terra, conseqüência direta da adoção de técnicas químicas na produção. Ou seja, a modernização também foi marcada por seu caráter poluente. 4 Segundo o Professor BRANDENBURG, o Brasil perde anualmente algo próximo a 1 milhão de toneladas de terras férteis e afirma ainda o mesmo autor: A modernização representada pelos interesses do capital industrial simplesmente irá transferir técnicas e um conhecimento gestado na matriz da indústria dos Países cêntricos da economia. Nesse sentido, as novas práticas agrícolas tiveram como base empírica de experimentação sistemas produtivos estranhos aos nossos ecossistemas agrícolas. Em conseqüência, máquinas inadequadas às condições físicas de solo irão provocar processos erosivos, variedades de plantas rústicas serão extintas pela introdução de sementes padrões, como o milho híbrido. Essa mudança da base técnica, se por um lado eleva a produção e a produtividade de alguns produtos, por outro simplifica os ecossistemas agrícolas, gerando conseqüências de ordem físico-biológica e de ordem social à medida em que compromete a sobrevivência de grupos de famílias rurais (2001, p. 5). Ocorreu assim, com a adoção desse modelo de modernização, um processo de empobrecimento do homem do campo. Empobrecimento sociocultural resultante da invasão cultural e destruição dos valores do homem do campo e um empobrecimento propriamente dito. Pois além do resultado imediato desse processo, caracterizado pelo forte êxodo rural, outras conseqüências advieram desse decreto modernizante. Nossa estrutura agrária contava com a abundância de terra e mão-de-obra, ao se determinar pela adoção de novos fatores de produção (capital e insumos industriais) aprofundou-se uma diferenciação sócio-econômica em prejuízo daqueles que não dispunham das condições necessárias a essa adaptação. Assim observa FLEISCHFRESSER, citado por PASSINI (1999, p. 12): Os produtores que não dispunham das condições materiais (tamanho dos estabelecimentos e dos recursos) exigidas para a adoção da inovação, foram expulsos; os que dispunham de condições mínimas ou de acesso à infra-estrutura de estímulo à adoção, se tecnificaram; alguns que já possuíam condições materiais, se capitalizaram; e uma parcela dos menores, que ainda não foi expulsa, se mantém combinando a produção agrícola para o mercado e autoconsumo, e se assalariando temporariamente (1988, p. 41-42). Igualmente afirma JÉQUIER & BLANC, citados por MACHADO & RODRIGUES (1997, p. 18): (...) as tecnologias de grande escala e de forte coeficiente de capital, implantadas na Europa Ocidental, na América do Norte ou no Japão podem ser muito eficazes, mas sua introdução nas sociedades mais pobres e menos desenvolvidas coloca, muitas vezes, mais problemas do que pode resolver. Estas tecnologias são de fato muito custosas em relação à renda das populações locais, elas exigem infra-estrutura industrial e um sistema de educação cujo desenvolvimento necessita decênios e as transformações sociais que ela provoca tendem a ser mais abruptas e mais profundas do que nas culturas de que são originárias (...). (1976, p. 18). A contradição que estamos aqui apontando é o forte caráter excludente desse modelo adotado no contexto brasileiro. Os pacotes tecnológicos importados objetivavam aumento de produtividade com redução de mão-de-obra e área cultivável. No Brasil, sendo esses dois fatores abundantes, o Estado teve que promover incentivos na forma de subsídios para que fossem adotados tais pacotes, visto serem mais caros 5 que os métodos tradicionais de produção. E tais incentivos, na forma de crédito rural, privilegiaram os médios e grandes produtores rurais. Os agricultores familiares, com pequenos estabelecimentos, produção diversificada e voltada ao mercado interno, foram marginalizados por uma política agrícola que se voltava às grandes áreas, à produção de alguns produtos considerados mais dinâmicos e ao mercado de exportação. Segundo MARTINE & GARCIA (1987, p.22-23), (...) O principal instrumento que viabilizou o novo modelo agrícola, calcado na tecnificação e utilização maciça de insumos industriais, no aumento da exportação de produtos agrícolas e que, consequentemente, ocasionou a transformação da sociedade rural nos últimos anos, foi o crédito rural. (...) Peça essencial do projeto de modernização tecnológica e do processo de consolidação do complexo agro-industrial, o crédito rural subsidiado constituiu um instrumento de articulação e convergência entre os seguintes atores sociais: os proprietários rurais/burguesia agrária, o grande capital com interesses na agricultura (...), os capitais de origem urbana preocupados com a aplicação de capital produtivo na agricultura e com a especulação de terras, os bancos e o Estado. O DESER (Departamento de Estudos Sócio-Econômicos Rurais) resume bem o que significou o crédito rural na lógica de uma política agrícola modernizante: Em razão de uma política agrícola excludente e seletiva implantada no país, o crédito rural, principal instrumento desta política, foi destinado prioritariamente para regiões mais desenvolvidas, para os maiores proprietários e para os produtos mais dinâmicos (sobretudo os exportáveis). Os agricultores mais capitalizados foram os principais beneficiários do crédito rural subsidiado, provocando a descapitalização da grande maioria dos agricultores familiares. O crédito foi seletivo, concentrador de renda, impositor de tecnologias não adaptadas ao meio ambiente e à realidade sócio-econômica dos agricultores familiares. (DESER, p.25). O êxodo rural, conseqüência direta desse modelo adotado, chegou a 28 milhões de pessoas expulsas do campo nos últimos 30 anos do século passado, provocando o inchaço dos centros urbanos, o agravamento dos níveis de miséria, desemprego e violência e a fome de milhões de brasileiros. Em 1970, 44% da população brasileira vivia no campo, em 1991 esse percentual era de 24,5%. Todo esse processo também foi responsável por uma forte concentração fundiária. Levantamentos do INCRA no período de 1972-1978, citados por PASSINI (1999, p. 14-15) mostram o seguinte: * Em 1972, as propriedades com menos de 10 ha representavam 32,1% do total de propriedades do país. Em 1978, elas já representavam apenas 28,5%. A sua participação na área total cai, no período, de 1,4% para 1%; * Em 1972, as propriedades com menos de 100 ha representavam 85,5% do total. Em 1978, esse percentual cai para 84,2%. A sua participação na área também decresce de 17,5% para 14,8%; * As maiores propriedades, com área superior a 10 mil ha, não obstante representarem apenas 0,1% do total, crescem em termos de participação na área total, no mesmo período, de 19,0% para 25,0%. E as gigantescas propriedades, maiores que 100 mil ha, aumentaram sua participação na área total de 4,4% para 7,5%. Como se percebe, o modelo de modernização da Agricultura Brasileira teve um forte caráter de concentração fundiária e exclusão dos agricultores familiares. Também é nítido o atrelamento imposto da agricultura ao setor urbano industrial. A agricultura é 6 transformada num ramo da indústria, pois fica subordinada aos padrões tecnológicos de produção definidos pela indústria, conforme os insumos e equipamentos desenvolvidos. Assim afirma MARTINE & GARCIA (1987, p. 20): "(...) a agricultura passou a ter um papel importante, não somente como produtora de matérias-primas e alimentos, mas também como mercado para o parque industrial em termos de máquinas e, posteriormente, de outros insumos agrícolas”. A própria política de crédito rural prescrevia a adoção de pacotes tecnológicos marcados pelo emprego de técnicas modernas dependentes do setor urbano-industrial. O que está se operando é uma forte subordinação da terra ao capital segundo as necessidades do desenvolvimento capitalista. Ou seja, é a explícita lógica da penetração das relações capitalistas no campo. Porém, uma conseqüência pouco abordada pelos críticos desse modelo de modernização desenvolvimentista adotado se refere à desintegração dos valores socioculturais próprios do homem rural até esse período. Valores estes que se caracterizavam por uma profunda relação de respeito e identificação com a terra e solidariedade entre os grupos sociais. Práticas comunitárias como a troca de dias de serviço entre as famílias de agricultores e os mutirões comunitários organizados para o plantio, capina e principalmente colheita da produção, deram lugar a práticas cada vez mais individualistas. A terra vira mercadoria, mero instrumento para a obtenção do lucro. Metaforicamente falando, uma verdadeira natureza morta, pois, a partir de agora, acredita-se que o sucesso na produção é graças aos implementos agrícolas e agrotóxicos, e não graças à fertilidade do solo e às relações sociais de trabalho estabelecidas no processo produtivo. Podemos assim afirmar que a introdução das relações capitalistas no campo promoveu a desintegração dos valores culturais próprios do homem do campo. BRANDENBURG (2001, p. 3) afirma: "(...) a modernização da agricultura tanto pode levar à expropriação e à exclusão social que resulta no rompimento de suas raízes culturais, como a perda de identidade e a massificação cultural promovida pela urbanização de um estilo de vida”. Enfim, todo esse processo descrito encontrou sua sustentação numa Teoria de Modernização que em seus fundamentos teóricos se sustentava numa pretensa neutralidade do conhecimento científico e no papel determinístico dos acúmulos e inovações tecnológicas. 7 UMA JORNADA CONTRA-HEGEMÔNICA (...) os pesquisadores engajados na luta dos trabalhadores devem questionar o desenvolvimento tecnológico: seu desenho, sua utilização, as razões de sua introdução, sua viabilidade econômica e tecnológica e as conexões causais entre investimento, inovação, produtividade, competitividade e bem-estar social. (NOVAES, 2010, p.66) Os estudos de CTS se desenvolvem essencialmente na tentativa de esclarecer que o fenômeno Ciência & Tecnologia não são entidades autônomas e que só é possível melhor compreendê-lo enquanto fenômeno profundamente social, ou seja, com profundas implicações econômicas, políticas, culturais, ideológicas, ético-morais, etc. (...) entender a ciência-tecnologia não como um processo ou atividade autônoma que segue uma lógica interna de desenvolvimento em seu funcionamento ótimo (resultante da aplicação de um método cognitivo e um código de conduta), mas sim como um processo ou produto inerentemente social onde os elementos não-epistêmicos ou técnicos (por exemplo: valores morais, convicções religiosas, interesses profissionais, pressões econômicas, etc.) desempenham um papel decisivo na gênese e na consolidação das idéias científicas e dos artefatos tecnológicos. (BAZZO, 2003, p.126) Esse novo campo de investigação e estudos em CTS na América Latina, onde se tem a percepção da ciência e da tecnologia em sua estreita relação com a sociedade, se situa entre o final dos anos 60 e princípios dos anos 70. A percepção clássica de C&T que se tinha até aqui, como já descrito, se expressou num “modelo linear de desenvolvimento”. Somente a partir dos estudos do PLACTS (Plano Latino Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade) com Amílcar Herrera, Jorge Sábato e Oscar Varsavsky, é que se procura dar ênfase aos aspectos históricos e políticos do desenvolvimento em Ciência e Tecnologia e pensar um modelo alternativo à Teoria da Inovação. Para DAGNINO (2008), pensar a relação Ciência, Tecnologia e Sociedade exige o questionamento das idéias de neutralidade científica e determinismo tecnológico, bem como a necessidade de pensarmos para além dos discursos reformistas e genéricos de uma “C&T a serviço da sociedade” e efetivamente percebermos o caráter de construção social da C&T para empreendermos uma jornada contra-hegemônica capaz de pensar uma PCT mais adequada ao nosso modelo de desenvolvimento. Nesse contexto de reflexão, os estudos em CTS apontam na direção da necessidade de “(...) regulação social da ciência e da tecnologia, promovendo a criação de diversos mecanismos democráticos que facilitam a abertura de processos de tomada de decisão em questões concernentes a políticas científico-tecnológicas” (BAZZO, p. 127). Ou seja, a participação cidadã e democrática na definição, regulação e gestão das políticas públicas sobre ciência e tecnologia, passa a ser considerada fator essencial para 8 pensar C&T enquanto fenômeno profundamente social. E, apesar das dificuldades que se apresentam ao pensar na participação cidadã e na gestão democrática das políticas públicas em ciência e tecnologia, é justamente em razão da concepção tecnocrática, determinista e de pretensa neutralidade que se situa o grande desafio de nosso tempo, o qual seja o de uma profunda revisão epistemológica da natureza da ciência e da tecnologia. Revisão esta que supere a dicotomia estabelecida por uma cultura funcionalista entre utilidade/eficácia X validade. Assim afirma BAZZO: “(...) A ciência e a tecnologia atuais são sem dúvida, muito eficazes. O problema é se seus objetivos são socialmente valiosos.” (p.141) Enfim, nesse processo os estudos em CTS tornam-se peça fundamental frente à necessidade dessa nova alfabetização científica e tecnológica capaz de “(...) propiciar a formação de amplos seguimentos sociais de acordo com a nova imagem da ciência e da tecnologia que emerge ao ter em conta seu contexto social. (...) uma imagem mais realista da natureza social da ciência e da tecnologia”. (BAZZO, p.144-146) Para o Professor Ricardo NEDER (2010), nesse processo de percepção e construção da C&T enquanto fenômeno profundamente social, podemos encontrar valioso suporte teórico na abordagem o Filósofo da Tecnologia Andrew Feenberg. Feenberg, embora herdeiro da tradição da Teoria Crítica, porém diferentemente do pessimismo de Adorno e Horkheimer (1996), aposta na visão otimista quanto ao desenvolvimento de formas de controle de uma Ciência e Tecnologia a partir do fortalecimento e esclarecimento do papel das instituições técnicas e da sociedade. Assim afirma Feenberg: “Precisamos desenvolver uma teoria que considere o crescente peso dos atores públicos no desenvolvimento tecnológico” (2010, p.188). Ou seja, o diálogo filosófico de Feenberg é orientado para os sujeitos sociais capazes de uma ação social e política de democratização dos sistemas técnicos e em oposição a toda manifestação determinista que nega a relação dos fatores técnicos e sociais no desenvolvimento tecnológico, pois, segundo Feenberg tais enunciados deterministas são “(...) definições tendenciosas, que fazem a tecnologia parecer mais funcional e menos social do que de fato é” (2010, p.77). Portanto, Feenberg enfatiza os aspectos contextuais da tecnologia em contraposição à versão descontextualizada do determinismo tecnológico onde a tecnologia aparece como auto-geradora e único fundamento da sociedade moderna. Sua teoria em última instância está comprometida com a democratização da tecnologia e das instituições técnicas. 9 Feenberg, diferentemente de Heidegger, não vê a tecnologia exclusivamente como um sistema de controle, mas procura perceber sua dimensão social e suas profundas implicações emancipadoras enquanto “(...) Lócus da mudança social” (FEENBERG, 2010, p.237). Portanto, desenvolvimento tecnológico não é incompatível com desenvolvimento humano-sócio-ambiental, somente incompatível enquanto subordinado às demandas capitalistas hegemônicas. Dessa forma as resistências sociais são capazes do estabelecimento de um novo design técnico. Assim afirma Feenberg: (...) Heidegger depende de uma definição estreita de tecnologia que, pelo menos desde Bacon e Descartes, tem enfatizado sua vocação de controlar o mundo, excluindo o seu igualmente essencial contexto de inserção. Acredito que esta definição reflete o ambiente capitalista no qual a tecnologia moderna, primeiramente, se desenvolveu. (...) O estreito foco da tecnologia moderna satisfaz às necessidades de uma hegemonia particular; não é uma condição metafísica. (...) A hegemonia que se encarnou na própria tecnologia deve ser questionada na luta pela reforma tecnológica. (2010, p.92) Tal necessária reforma tecnológica demanda a compreensão de que a tecnologia se adapta às mudanças sociais e que os Códigos Técnicos são estabelecidos no horizonte cultural da sociedade e se refletem no desenho técnico do objeto e, portanto, a tecnologia não é “(...) um mero meio para se chegar a um fim: padrões de desenho técnico definem partes principais do ambiente social, tais como espaços urbanos e construções, ambientes de trabalho, atividades e expectativas médicas, estilos de vida e assim por diante” (FEENBERG, 2010, p.90). Portanto, para Feenberg a tecnologia é essencialmente social e carrega implicações emancipadoras, o que significa afirmar que os interesses sociais ou os valores culturais influenciam a concretização dos princípios técnicos. E, se a hierarquia social autoritária é uma dimensão contingente do progresso técnico, “(...) deve haver um modo alternativo de racionalizar a sociedade que leve à democracia em lugar de formas centralizadas de controle (FEENBERG, 2010, p.71).” E é justamente nessa perspectiva de incorporação das dimensões políticas e ideológicas na análise do fenômeno científico e tecnológico que podemos pensar no desenvolvimento de uma política de C&T como elemento de luta contra a desigualdade e promoção da inclusão social. Ou seja, uma Tecnologia Social. (...) o conhecimento científico e tecnológico tal como hoje existe não é capaz de promover um estilo de desenvolvimento que proporcione maior equidade econômica, justiça social e sustentabilidade ambiental, (...) é preciso criar uma plataforma cognitiva diferente da atual, concebida de acordo com uma perspectiva distinta de desenvolvimento. É nessa perspectiva que se situa a Tecnologia Social (...) marco analítico-conceitual para a elaboração de uma política de conhecimento (ou de C&T) capaz de alavancar um cenário de desenvolvimento que, em seus múltiplos aspectos, garanta cidadania e sustentabilidade. (DAGNINO, 2010, p.39-40) 10 ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS A partir das considerações até aqui expostas, apresentamos agora algumas indagações preliminares sobre os Arranjos Produtivos Locais enquanto política pública dedicada ao “desenvolvimento regional”. Conforme definição encontrada no portal do Ministério da Ciência e Tecnologia, Arranjo Produtivo Local - APL é o termo que se usa para definir uma aglomeração de empresas com a mesma especialização produtiva e que se localiza em um mesmo espaço geográfico. Os APLs mantêm vínculos de articulação, interação, cooperação e aprendizagem entre si, contando também com apoio de instituições locais como Governo, associações empresariais. (...) Atuar na perspectiva de arranjos produtivos locais significa, ademais, considerar a dimensão espacial e territorial da produção e o contexto social e político onde esta se localiza, possibilitando uma ação mais efetiva do governo, ao possibilitar o diálogo entre os diversos atores direta e indiretamente envolvidos. Igualmente ALBAGLI & BRITO (2002) assim definem os APL: Arranjo Produtivo Local (APL) é definido como a aglomeração de um número significativo de empresas que atuam em torno de uma atividade produtiva principal, bem como de empresas correlatas e complementares como fornecedoras de insumos e equipamentos, prestadoras de consultoria e serviços, comercializadoras, clientes, entre outros, em um mesmo espaço geográfico (um município, conjunto de municípios ou região), com identidade cultural local e vínculo, mesmo que incipiente, de articulação, interação, cooperação e aprendizagem entre si e com outros atores locais e instituições públicas ou privadas de treinamento, promoção e consultoria, escolas técnicas e universidades, instituições de pesquisa, desenvolvimento e engenharia, entidades de classe e instituições de apoio empresarial e de financiamento. Enfim, o debate que ora apresentamos, como já dito ainda em fase embrionária, propõe algumas questões para considerações, pesquisa e investigação: 1. Em que medida a proposição teórico/metodológica dos Arranjos Produtivos Locais (APL) dialogam com os conceitos da Teoria Crítica da Tecnologia de Andrew Feenberg? 2. Quem são os atores envolvidos e qual é o papel e o grau de participação dos mesmos na formulação, implementação e avaliação do processo? 3. Qual é a relação e o papel das Universidades e dos Institutos de Pesquisa Tecnológica na concepção teórica e metodológica dos APL? 4. Qual a compreensão teórica dos APL sobre “desenvolvimento” e como a relação Ciência, Tecnologia e Sociedade é compreendida? 5. É possível uma educação científica e tecnológica com vistas à inclusão social a partir dos APL? 6. Quais os limites e aproximações dos APL com a Tecnologia Social? Ou melhor, é possível estabelecer esse diálogo? 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T.W. & HORKHEIMER, M. 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