Mudanças possíveis na produção de alimentos. Flávia Charão Marques 1 Há setenta anos findava a Segunda Guerra Mundial, um marco histórico para o ocidente que apontava para uma série de desafios, dentre eles, a urgência em produzir alimentos em escala suficiente para alimentar o mundo. Este imperativo associado ao momento político e aos avanços tecnológicos que a própria guerra havia favorecido fez surgir uma corrida em direção ao que ficou conhecido como ‘modernização da agricultura’, grosso modo, dependente de inovações tecnológicas de ordem mecânica, química e biológica. Uma vez institucionalizado, o projeto de modernização legitimou, sob a égide da prosperidade, uma trajetória auto-evidente de desenvolvimento. Para a produção de alimentos isto significou o descarte e a deslegitimação das formas ‘tradicionais’ de agricultura e a opção pela lógica do atrelamento da agricultura à indústria, de um lado aquela que produziria as máquinas e insumos, e de outro as que processariam os alimentos. De fato, em poucos anos, o mundo assistiu um crescimento sem precedentes da produção agrícola, embora tenha vindo com ele a dependência dos agroquímicos, o uso excessivo de combustíveis fósseis e a diminuição da biodiversidade. Seguindo este rápido panorama histórico, se pode destacar que a produção de algumas poucas variedades de grãos em larga escala possibilitou o estabelecimento de um modelo exportador altamente desigual entre países e regiões e, associado a ele, emergiu um regime alimentar que está relacionado aos produtos industrializados de fácil e rápido preparo. Em seguida, já nos anos 1990, com a concentração das corporações agroalimentares transnacionais e das grandes redes varejistas, vem o acirramento do distanciamento do local onde se produz do local onde se consome, fazendo com que a comida de todos os dias viaje muitos quilômetros até chegar a nossas mesas. Assim mesmo, estava confirmado que este sistema agroalimentar era capaz de produzir e distribuir grandes volumes de gêneros alimentícios. Todavia é, no mínimo, desconcertante ouvirmos recorrentemente as 2 congratulações pelos sucessivos recordes de safras, ao mesmo tempo em que a FAO registra, em 2014, que 805 milhões de pessoas estão cronicamente desnutridas. Além do que, é publicamente compartilhada a noção de que a obesidade e outras enfermidades relacionadas ‘ao comer’ são crescentes na população. Aqui, não é o caso de aprofundar uma discussão sobre as causas estruturais da fome ou dados epidemiológicos sobre a obesidade, mas especialmente chamar a atenção para a necessidade de uma maior reflexão sobre a relação do padrão produtivo da agricultura, os alimentos e a alimentação. Indo um pouco além, se poderia propor, inclusive, um outro olhar sobre a agricultura, nos perguntando, por exemplo: onde foi parar a agricultura dos agricultores? Aquela agricultura como uma atividade criada e recriada por meio de processos sociais e cognitivos essencialmente ligados ao local, e tão diversa quanto os ecossistemas e a miríade de repertórios culturais que as pessoas fizeram emergir ao longo de séculos nos mais variados lugares do mundo. Um olhar de longe parece mostrar que a monotonização da agricultura (que chegou igualmente à nossa dieta) acabou por homogeneizá-la, porém, focando mais atentamente nos daremos conta de que ela não foi suficiente para extinguir práticas locais; e que, mesmo os milhões de agricultores que adentraram na modernização, nunca foram receptores passivos da intensificação, do aumento de escala, da especialização e da integração às cadeias do agronegócio. Ainda que o padrão tenha sido bastante internalizado por alguns, ele também foi desconstruído e redesenhado por outros. A modernização, então, analisada ‘mais de perto’ resultou, também, em uma diferenciação. E é justamente desta heterogeneidade de respostas, associada à incrível diversidade de fatores de produção (clima, solos, agrobiodiversidade,etc.), que emergem múltiplos saberes e potencialidades para outras formas de se produzir alimentos que, por sua vez, estão diretamente associadas a imensa criatividade de transformá-los em ‘comida’. Aqui, se deve esclarecer um pouco que formas são estas que podemos vislumbrar. Vistas como práticas que se ‘desviam’ daquele caminho aparentemente obrigatório, elas reúnem características, tais como: a) incorporação de processos de reciclagem de nutrientes, fixação do nitrogênio atmosférico e favorecimento de regulação biótica; b) gestão dos agroecossistemas com ênfase na conservação do solo, da água, da energia e no incremento da agrobiodiversidade; c) redução no uso de insumos externos e não renováveis; d) transição para a eliminação do uso de agrotóxicos, radiação, antibióticos e outros químicos nos sistemas de produção vegetal e animal; e) integração das práticas e conhecimentos locais com o conhecimento proveniente das instituições técnico-científicas; e) promoção à criação de relações de confiança e interdependência entre os agricultores, a população urbana e a rural; f) estabelecimento de formas mais justas e sustentáveis de distribuição e comercialização dos alimentos. Mesmo com um rápido olhar, é possível perceber que o principal atributo destas outras agriculturas é a complexidade, sendo importante distinguir bem complexo de complicado. Mas, por que não olhar para estas formas diversas de agricultura como complicadas, como impossíveis, como românticas, ou inatingíveis? Os argumentos podem ser vários, destaca-se dois. O primeiro remete à própria origem e característica da agricultura como atividade humana, considerando-a como fruto de processos co-evolutivos relacionados ao local, em sua particularidade social e natural. Uma segunda argumentação poderia defender que muito mais complicado foi homogeneizar os sistemas produtivos, reduzir nossa base alimentar para cerca de 30 espécies vegetais e mudar toda organização social no campo e na cidade para cumprir metas pré-determinadas de salvaguarda de interesses políticoeconômicos apenas de alguns. Este pequeno texto, preparatório para o Seminário, buscou problematizar alguns aspectos no sentido de provocar nossa reflexão acerca da produção de alimentos, sendo assim, as duas linhas de argumentos acima permitem introduzir ‘dois antídotos’, as noções de re-localização da agricultura e da reconexão de produtores e consumidores de alimentos. Esclarecendo um pouco melhor, é necessário enfatizar que a localização da agricultura não se trata de isolamento, embora a ênfase esteja no (re)descobrimento dos recursos e vocações locais, um dos elementos mais relevantes está justamente na capacidade de estabelecer renovadas relações entre todos os envolvidos, por exemplo, entre cooperativas, agroindústriasfamiliares, ONGs, a extensão rural, institutos de pesquisa, universidades, diferentes órgãos de Estado, dentre outros. Esta ‘trama’ que envolve pessoas e suas organizações se estende (ou deveria) aos consumidores, quase sempre moradores das cidades e que cada vez mais vêm refletindo sobre o que comem. A articulação entre consumidores e produtores, muitas vezes, se dá em torno de produtos específicos (orgânicos, integrais, regionais, artesanais, etc.) ou das configurações territoriais, tradições culturais e gastronômicas. No entanto, uma reflexão emergente é que esta aproximação depende também de mudanças organizacionais nas cadeias de abastecimento e da constituição de sistemas de apoio institucional e político. Finalmente, vale ressaltar que as feiras de rua, a produção de alimentos artesanais, a venda direta do agricultor para o consumidor e a própria produção de alimentos sem o uso de produtos químicos nunca deixaram de existir. Em outras palavras, mesmo que façam parte dos chamados movimentos contemporâneos que buscam alimentação alternativa não devem ser confundidos com ‘modismos’ ou simples nichos de mercado. Talvez seja justamente este o desafio que temos a nos colocar. 1: Doutora em Desenvolvimento Rural, Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS. [email protected] 2: The State Food Insecurity in the World 2014: Strengthening the enabling environment for food securitynutrition. Roma: FAO/IFAD/WFP, 2014. Referências Marques et al. Redes de cooperação e agricultura ecológica no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. 2014.Acesso em: http://aspta.org.br/wp-content/uploads/2014/09/Artigo5_V11N28.pdf Perez-Cassarino et al. Compras coletivas de alimentos ecológicos: caminho para o acesso à alimentação saudável. 2014. Acesso em: http://aspta.org.br/wpcontent/uploads/2015/03/Agriculturas_v11-n-4_artigo2_ComprasColetivas.pdf Fonini. 2014. Agrofloresta: mudanças nas práticas produtivas e hábitos alimentares. Acesso em: http://aspta.org.br/wp-content/uploads/2015/03/Agriculturas_v11-n4_artigo3_Agrofloresta.pdf Vários artigos sobre re-localização de sistemas agroalimentares. 2011. Acesso em: http://aspta.org.br/wp-content/uploads/2011/11/Agriculturas_Setembro2011_site.pdf