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J. Bras. Nefrol. 1996; 18(4): 375-378
E. Homsi et al - IRA por manitol
Insuficiência renal aguda induzida por manitol: relato de 1 caso
Eduardo Homsi, Eliana Pires de Oliveira Dias
É relatado um caso de paciente submetido a neurocirurgia para clipagem de aneurisma cerebral, que foi tratado no pós-operatório com dose elevada de manitol com o intuito de reduzir
a pressão intracraniana. No terceiro dia de tratamento, foi notada insuficiência renal sendo
suspenso o tratamento com rápida recuperação da função renal. São discutidos os possíveis
mecanismos de nefrotoxicidade pelo manitol e recomendações para a utilização segura deste
medicamento.
Disciplina de Nefrologia da Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP
Campinas, São Paulo
Endereço para correspondência: Eduardo Homsi
Rua Cubatão, 1043 - Vila Mariana, São Paulo, SP
CEP 04013-003
Fax: 549-9162, Tel: 575-5357
Apresentamos um caso de IRA causada por
manitol, com a finalidade de alertar para o risco de
seus efeitos tóxicos e discutir dados de literatura que
orientam a utilização segura deste medicamento.
Descrição do Caso
Insuficiência renal aguda, Nefrotoxicidade, Manitol
Acute renal failure, Nephrotoxicity, Mannitol
Introdução
O manitol é um açucar de 6 carbonos, metabolicamente inerte, que após infusão intravenosa permanece no espaço extracelular até ser completamente
excretado, inalterado, na urina. Devido à sua ação
osmótica é largamente utilizado no tratamento da hipertensão intracraniana e na redução da pressão
intraocular. Trata-se de um diurético osmótico, existindo evidências de que a sua infusão profilática reduz
a incidência de insuficiência renal aguda em diferentes situações de alto risco. 1,2,3
O acúmulo da droga no espaço extracelular, seja por
utilização de doses altas, seja por deficiente excreção
renal, pode resultar em um quadro clínico caracterizado
por confusão mental e letargia, hiponatremia,
hipercalemia, acidose metabólica e hiperosmolaridade
plasmática. Além disso, em níveis tóxicos, o manitol
causa insuficiência renal aguda (IRA). 4,5
Paciente de 71 anos, sexo masculino, branco. Há
25 dias da internação atual apresentou paresia esquerda
transitória, com recuperação completa. Nesta ocasião,
apresentava creatinina sérica de 1,7 mg/dl. Foi medicado com dipiridamol 150 mg/dia e captopril 25 mg/dia.
Há 7 dias da internação atual foi submetido a
arteriografia digital, sendo diagnosticado aneurisma da
artéria carótida direita e aneurisma da artéria
comunicante anterior direita. Foi internado para
neurocirurgia, sendo submetido a ligadura do
aneurisma da artéria comunicante anterior direita. No
pós-operatório (p.o.) imediato foram prescritos
cefoxitina 4 g/dia, difenilhidantoína 300 mg/dia e
ranitidina 100 mg/dia. No 1º p.o. o paciente apresentou
piora neurológica, respondendo pouco aos estímulos
externos, anisocoria, persistindo a necessidade de assistência ventilatória mecânica. Foram introduzidos
dexametasona 60 mg/dia e manitol. Neste dia, os exames laboratoriais mostravam creatinina sérica de 1,8
mg/dl, uréia sérica de 70 mg/dl, sódio sérico de 135
mEq/l, potássio sérico de 4,4 mEq/l, hemoglobina de
10,8 g/l, glicemia de 165 mg/dl, pH sanguíneo de 7,40
e bicarbonato de 18 mEq/l. A dose de manitol utilizada
no 1º p.o. foi de 220 g e no 2º p.o. de 240 g. No dia
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seguinte, foi observado abrupto incremento dos níveis
séricos de uréia e creatinina, atingindo pico de 172 mg/
dl e 5,7 mg/dl, respectivamente, no 3º p.o., sendo
suspenso o manitol e mantidas as demais drogas. A
oferta hídrica e a diurese dia a dia estão demonstrados
na figura 1. O balanço hídrico e a evolução da
creatinina sérica estão demonstrados na figura 2. O
aparecimento da IRA não foi precedido de instabilidade
Figura 1. Oferta hídrica e diurese durante episódio de insuficiência renal aguda induzida por manitol.
Figura 2. Balanço hídrico e evolução da creatinina sérica durante episódio de insuficiência renal aguda induzida por manitol.
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hemodinâmica ou desidratação. Os demais parâmetros
bioquímicos sofreram alterações discretas, com elevação do potásso sérico para 5,6 mEq/l e redução do
bicarbonato para 15 mEq/l. Não houve alteração da
natremia. Com a descontinuação do manitol houve
rápida recuperação da função renal, até nível uréia de
55 mg/dl e de creatinina de 2.2 mg/dl. O paciente
persistiu com grave comprometimento neurológico,
comprovando-se, mais tarde, hemorragias intracerebrais. Surgiram complicações após o 7° p.o.: infecção
pulmonar, instabilidade hemodinâmica, vindo a falecer 9 dias após a cirurgia.
Discussão
Em revisão de casos publicados na literatura, 4,5
observa-se, em indivíduos com função renal normal,
nefrotoxicidade após infusão diária de 315 g e total
de 760 g de manitol. Em pacientes com doença renal
subjacente foram descritos casos de intoxicação após
infusão cumulativa de apenas 295 g de manitol.
Nosso paciente recebeu durante dois dias consecutivos 220 e 240 g de manitol, perfazendo dose total
de 460 g. Apesar da alta dose empregada neste caso,
o efeito diurético observado não foi intenso, visto que
o volume urinário pouco se alterou nos dias de infusão da droga, permanecendo ao redor de 2 litros. Esta
discreta resposta diurética, assim como o acúmulo
plasmático em níveis tóxicos podem decorrer, em
parte, da dificuldade do paciente eliminar o manitol,
visto que ele apresentava discreto déficit de função
renal, com creatinina prévia de 1,8 mg/dl. Nota-se,
também, que a insuficiência renal não é secundária à
depleção volêmica induzida pela ação diurética, pois
o balanço hídrico antes da manifestação da IRA é
positivo, o estado hemodinâmico normal, e o paciente
jamais manifestou oligúria, excluindo a possibilidade
de IRA pré-renal.
Cabe ressaltar, neste caso, que outros agentes
nefrotóxicos, aparentemente, não
participaram da
patogênese
da
insuficiência
renal.
O
exame
arteriográfico com contraste precedeu em uma semana
o evento e não houve variação dos níveis de creatinina sérica depois do exame contrastado. O captopril
foi descontinuado no pré-operatório e o nível de
creatinina sérica não se alterou durante a sua
utilização. Transcorreram 72 horas entre a suspensão
do captopril e o início da IRA. Como em pacientes
com déficit moderado de função renal a meia-vida do
captopril é de 8 horas, no momento da IRA ele não
apresentava ação farmacológica e seu efeito
vasodilatador sobre a arteríola eferente não deve ter
participado da patogênese da IRA neste caso. Os demais medicamentos nefrotóxicos utilizados, como a
cefoxitina e a difenilhidantoína, foram mantidos
durante e após a recuperação da insuficiência renal
e não exerceram qualquer influência na evolução da
mesma. Uma possível interferência da cefoxitina na
dosagem de creatinina é improvável, já que houve
reversão do aumento na creatinina sérica, sem ter
havido redução na dose de cefoxitina durante toda a
evolução do caso. Além disso, houve incremento semelhante e proporcional na uréia sérica que não é
afetada pela infusão de cefalosporinas.
Assim como nos demais casos descritos na literatura, 4,5 neste paciente, após a suspensão do manitol,
houve rápida recuperação da função renal, sem haver
necessidade de tratamento dialítico, retornando para
valores próximos ao basais de uréia e creatinina
séricas no 6º p.o. No dia que precedeu a queda da
creatinina, o paciente apresentou grande aumento da
diurese, corrigindo o balanço hídrico que vinha se
positivando nos dias anteriores.
As demais manifestações de intoxicação por
manitol são frustras, ou difíceis de avaliar em nosso
paciente. Não podemos avaliar o papel do manitol no
quadro neurológico, visto que haviam hemorragias
cerebrais responsáveis pela gravidade do quadro
neurológico. Não houve hiponatremia e os níveis de
hipercalemia e acidose metabólica foram moderados.
Não dosamos a osmolalidade plasmática e, portanto,
não pôde ser comparada com a osmolalidade calculada a partir do Na, glicose e uréia séricos (Osmolalidade calculada = 2 X Na mEq/l + glicose mg/dl/
18 + uréia mg/dl/6). A diferença encontrada entre a
osmolalidade dosada e a calculada denomina-se “gap”
osmolal. O aumento no “gap” osmolal decorre do
acúmulo plasmático de substâncias osmóticas não
dosáveis, por exemplo, manitol. No caso da intoxicação por manitol, quanto maior o “gap” osmolal, maior
a gravidade da IRA. 4
A patogênese da insuficiência renal aguda
induzida por manitol é incerta. O efeito hemodinâmico renal do manitol em dose moderada (abaixo
de 1 g/kg) é caracterizado por aumento do fluxo
plasmático, queda da resistência vascular e aumento
do fluxo intratubular. 6 Quando o manitol atinge concentrações plasmáticas acima de 1000 mg/dl (dose
superior a 2 g/kg), seu efeito sobre a hemodinâmica
renal se inverte, surgindo vasoconstrição e queda da
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filtração glomerular. 7 O mecanismo responsável pela
vasoconstrição é duvidoso, podendo intervir neste
processo o “feedback” túbulo-glomerular, secundário
ao aumento da carga de solutos para o túbulo distal
devido à ação natriurética do manitol. 8 São especulados outros mecanismos patogênicos, como o aumento
da pressão oncótica do plasma no capilar glomerular,
força que se opõe à filtração glomerular. Este mecanismo é imputado como causa da insuficiência renal
induzida por dextran. 9 Ao contrário do dextran, de
alto peso molecular, o manitol é filtrado livremente
pela membrana capilar glomerular e este mecanismo
só poderia ser considerado se em altos níveis
plasmáticos houvesse algum impedimento à filtração
do manitol. Não há qualquer evidência científica, até
o momento, de que isso realmente possa ocorrer. A
infusão rápida de altas doses de manitol em cães (6
g/kg) é associada à extensa vacuolização e edema do
epitélio tubular sem, no entanto, haver alteração
significante da função renal. 10 Portanto, o mecanismo
vasoespástico da arteríola aferente, frente a altos níveis plasmáticos de manitol, tem mais suporte experimental e é compatível com o quadro clínico da
nefrotoxicidade por manitol, visto que a suspensão da
infusão e redução no seu nível sérico é seguida de
pronta recuperação da função renal.
O emprego do manitol em pacientes com indicação de reduzir a pressão intracraniana deve respeitar
o potencial tóxico de concentrações séricas acima de
1000 mg/dl. Existe evidência na literatura que dose de
0,25 g/kg é tão efetiva como 0,5 ou 1 g/kg no controle da hipertensão intracraniana. 11 A dose diária recomendada para se evitar a nefrotoxicidade é, portanto, de 0,25 g/kg a cada 4 horas. Particular cuidado
deve ser dispensado aos pacientes com déficit de
função renal, quando tratados com manitol. Deve ser
monitorizada a osmolalidade plasmática e verificar-se
a diferença em relação à osmolalidade calculada. A
diferença entre ambas deve ser mantida abaixo de 55
mOsm/kg de água.
Em conclusão, visamos alertar para mais uma droga
potencialmente nefrotóxica, dentre as inúmeras a que
estão expostos os pacientes gravemente enfermos.
Neste caso, a ação nefrotóxica depende de alto nível
sérico e é paradoxal, já que o manitol tem sido utilizado, algumas vezes com sucesso, na prevenção de
insuficiência renal em situações de alto risco.
Summary
We report a case of acute renal failure during
therapy with high dose of mannitol in a neurosurgical
patient. The pathogenesis of mannitol nephrotoxicity
and the current recommended dose of mannitol are
discussed.
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Artigo recebido em 16 de janeiro de l.996 e aceito para publicação
em 10 de setembro de l.996.
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