PRINCÍPIOS DE QUÍMICA-FÍSICA BASES DE MECÂNICA QUÂNTICA M.N. Berberan e Santos Fevereiro de 2012 1. Cronologia da Mecânica Quântica Não é possível descrever com rigor a história da Mecânica Quântica em poucas linhas. Existem inúmeros livros sobre o assunto, quer de história da ciência, quer de divulgação (v. Bibliografia). Os livros de texto têm também, frequentemente, capítulos ou secções sobre os aspectos essenciais, embora nem sempre sejam muito rigorosos: por exemplo no que se refere à radiação do corpo negro, a lei de Rayleigh-Jeans - levando à chamada catástrofe do ultravioleta que muitas vezes se afirma ter influenciado decisivamente Planck, é de facto posterior ao seu trabalho! Apresentaremos aqui apenas alguns aspectos e os marcos mais importantes. O essencial da Teoria Quântica resultou do esforço desenvolvido para explicar vários resultados experimentais aos quais as teorias clássicas não davam resposta, nomeadamente: (i) Os espectros atómicos de absorção e emissão, descontínuos (espectros de riscas), já conhecidos desde meados do séc. XIX; (ii) A estabilidade atómica, depois de estabelecida a respectiva estrutura (Rutherford, 1911); (iii) O espectro (contínuo) da emissão do corpo negro; (iv) O efeito fotoeléctrico. A Mecânica Quântica (teoria e experiência) foi desenvolvida entre 1900 e 1927, como se resume no quadro da página seguinte. Mecânica Quântica, ou Mecânica dos Quanta, tem a sua origem em quantum, termo latino (cujo plural é quanta) que significa porção ou quantidade fixa (note-se que usamos mesmo em português expressões como: Quanto mede? Quanto custa?) e é usado no sentido de valor definido para uma dada grandeza: para as propriedades eléctricas, o quantum é a carga do electrão (sabe-se hoje que há partículas sub-atómicas, os quarks, com cargas que são fracções desta), para a radiação electromagnética o quantum de energia é a energia de um fotão (termo introduzido em 1926 pelo químico-físico americano Gilbert Newton Lewis), h, etc. Em geral, a energia de um sistema não pode ter quaisquer valores, mas apenas certos valores 1 discretos (mais raramente contínuos em certos intervalos), dizendo-se que está quantificada (ou quantizada). Tem-se assim uma granularidade, não só para a energia mas também para outras grandezas relacionadas, como os momentos linear e angular, etc. ano Cientista(s) 1900 Planck 1905 Einstein 1913 Bohr 1916 Einstein 1922 Compton 1922 Stern e Gerlach 1924 de Broglie 1925 Heisenberg 1925 Uhlenbeck e Goudsmit 1926 Schrödinger 1926 Born 1926 Dirac 1927 Davisson e Germer Quadro 2.1 Desenvolvimento da Mecânica Quântica contribuição comentário Teoria da radiação do corpo Introdução do quantum de energia h para negro (radiação térmica). os osciladores. Generalização do quantum de energia h: Teoria do efeito fotoeléctrico. comportamento corpuscular da radiação. Quantificação da energia. Números Teoria do átomo de hidrogénio. quânticos. Postulados ad hoc. Teoria da absorção e Conceito de emissão estimulada. emissão de radiação. Nova dedução da lei de Planck. Estudo experimental da difusão Comportamento corpuscular da radiação de raios-X por grafite. (efeito de Compton). Resultados devidos ao spin do electrão, Momento magnético atómico. mas não reconhecidos como tal. Teoria da dualidade Comportamento ondulatório da matéria. onda-partícula. Justificação dos postulados de Bohr. Teoria da Mecânica Quântica Abordagem equivalente mas mais (forma matricial). abstracta do que a de Schrödinger. Conceito de spin (momento Descoberta de uma nova propriedade angular do electrão). fundamental da matéria (spin). Dedução do espectro do hidrogénio. Teoria da Mecânica Ondulatória. Método geral para tratar problemas. Significado da Interpretação probabilística função de onda. da Mecânica Quântica. Incorporação do spin no tratamento dos Estatísticas Quânticas. átomos polielectrónicos. Demonstração experimental da Confirmação directa da hipótese de difracção de electrões. de Broglie. Depois destes anos de ouro (em que também foi desenvolvida a Teoria da Relatividade, com maior ressonância na sociedade mas muito menor impacto na compreensão das propriedades e estrutura da matéria, e portanto na tecnologia), houve mais contributos teóricos importantes no estrito âmbito não relativista, nomeadamente em Química Quântica, como veremos. O grande desenvolvimento recente da Química Quântica (que é a aplicação da Mecânica Quântica aos sistemas químicos) resultou não só de novos métodos de cálculo aproximados, mas principalmente 2 da existência de computadores poderosos. A base de tudo, ou quase, continua a ser a equação de Schrödinger, convenientemente modificada para incluir o spin electrónico. Mas convém ter presente que esta não é uma verdade absoluta, e que no presente estado do conhecimento científico existem várias teorias físicas incompletamente unificadas, como se representa no seguinte diagrama (que não inclui a Gravitação), adaptado de D. J. Griffiths, Introduction to Electrodynamics (2008), c velocidade Teoria Quântica do Campo Relatividade Restrita (Dirac, Pauli, Feynman,…) (Einstein) Mecânica Quântica Mecânica Clássica (Bohr, Heisenberg, Schrödinger,…) (Newton) Dimensão espacial A Mecânica Quântica é assim utilizável para sistemas microscópicos e desde que as velocidades sejam não relativísticas (v << c). Continua, nestas condições, a ser válida para maiores dimensões, mas os resultados coincidem com os da Mecânica Clássica, muito mais simples. 2. Mas donde vem afinal a equação de Schrödinger? A equação de Schrödinger (ou Schroedinger, forma de escrita que preserva a pronúncia e evita o trema, inexistente em inglês e há muito banido da nossa língua, onde tinha aliás uma função diferente, quebrar ditongos) é por vezes apresentada de forma dogmática, sem justificação, para além de se afirmar que permite efectuar cálculos em excelente concordância com a experiência. A equação não tem de facto uma dedução rigorosa, excepto como caso particular de uma teoria mais geral, a Teoria Quântica do Campo, no limite não relativista desta. Pode no entanto ser introduzida com uma argumentação bastante simples que corresponde muito aproximadamente ao raciocínio seguido pelo próprio Schrödinger. O ponto de partida é constituído pelas duas relações que, segundo Louis de Broglie (1924), se aplicariam tanto à radiação como às partículas materiais: 3 h , p (1) E h , (2) sendo p o momento linear. No caso das partículas, o comprimento de onda seria o de uma onda misteriosa associada às partículas, a que de Broglie chamava a onda-piloto. Note-se que para um fotão (cuja massa em repouso é nula) se tem p = E/c, e que para uma partícula material com velocidade v << c se tem p = mv. Para além das relações (1) e (2), considera-se uma onda plana clássica, cuja amplitude ( x, t ) é, a menos de uma constante, x ( x, t ) exp 2 i t . (3) Só a parte real tem de facto significado físico, mas por comodidade trabalha-se com a forma complexa. Usando as relações (1) e (2), a eq. (3) pode escrever-se i ( x, t ) exp px Et , em que (4) h . Para a amplitude da onda clássica, eq. (3), é fácil verificar que a equação de onda 2 2 1 2 , x 2 c 2 t 2 (5) é obedecida. No segundo caso, eq. (4), e dado que ip , x (6) 2 p2 2mE 2 2 , 2 x (7) em que se usou a relação não relativista entre energia cinética e momento linear E p2 (veja-se a 2m este propósito o Apêndice). Tem-se ainda E i , t 4 (8) e obtém-se uma equação muito diferente, 2 i . 2 2m x t 2 (9) A eq. (9) é já uma forma particular da equação de Schrödinger. Outra diferença importante é a de que a função ( x, t ) é agora intrinsecamente uma função complexa (de variável real). Note-se que a eq. (9) pode ser ainda simplificada, dividindo ambos os membros por , mas não se faz isso por razões que se verão a seguir. As eqs. (6) e (7) podem ser resolvidas em ordem a p e a E, respectivamente, obtendo-se as correspondências simbólicas p , i x E 2 . 2m x 2 (10) 2 (11) Estas correspondências são levadas muito a sério em Mecânica Quântica, e diz-se que no primeiro caso o momento linear p é representado pelo operador p̂ , que “actua” sobre a função de onda ( x, t ) . Como se refere à coordenada x, trata-se do momento segundo x, pˆ x , e assim: pˆ x . i x (12) No caso da eq. (11), a energia em questão é apenas energia cinética segundo a direcção x, Tx, que se representa pois pelo operador Tˆx 2 . 2m x 2 2 (13) A forma como os valores destas grandezas se calculam segundo a Mecânica Quântica será vista no próximo capítulo. A equação de Schrödinger para uma partícula num espaço tridimensional é uma generalização directa da eq. (9), 5 2 2 2 2 2 2 2m x 2 2m y 2 2m z 2 i t . (14) Como a energia cinética total é a soma das três componentes segundo os três eixos, a eq. (14) pode reescrever-se Tˆ i . t (15) Existindo também uma energia potencial V(x) para a partícula, a eq. (2) passa a ser E h V ( x), (16) e a eq. (11) fica E 2 V ( x ). 2m x 2 2 (17) O operador correspondente à energia total E=T+V é chamado hamiltoniano, Hˆ Tˆ V ( x), (18) e a equação de Schrödinger para a partícula é, mais geralmente Hˆ i . t (19) Esta é ainda a forma da equação para um número qualquer de partículas, sendo agora Ĥ o hamiltoniano do sistema, dado pela soma dos operadores energia cinética das diversas partículas e da energia potencial do sistema. Para n partículas, a função de onda depende de 3n coordenadas espaciais (e também do tempo), e o seu significado como amplitude torna-se ainda mais nebuloso. Veremos no próximo capítulo qual a interpretação correcta desta função complexa de 3n+1 variáveis reais, bem como a forma de a obter e manipular. 3. Mas se não são ondas nem partículas, então são o quê? A equação de Schrödinger permite em princípio obter todos os resultados necessários, sem que precisemos de nos interrogar sobre as suas hipóteses ou sobre o significado físico de certas 6 entidades e resultados. Por exemplo, não precisamos de tentar responder à pergunta: “mas afinal o que é um electrão?” Como escreveu Mermin, o procedimento extremo consistirá em apenas seguir as receitas: shut up and calculate (“cala-te e calcula”). É de facto o que muitos fazem. Por outro lado, numa fase de aprendizagem inicial, temos de concentrar a atenção nos métodos de cálculo, que são extremamente eficazes mas exigem algum estudo. A chamada interpretação de Copenhaga da Mecânica Quântica, devida a Bohr (professor na universidade dessa cidade), e que veremos no próximo capítulo, embora suscite dúvidas e perplexidades, continua a ser a base de trabalho mais simples, e em perfeita concordância com a experiência. No que se refere ao título desta secção, convém recordar que para a radiação, a sua concepção evoluiu historicamente de um conjunto de partículas (ideia dominante da Antiguidade até Newton) para um fenómeno ondulatório (Huygens, Fresnel, Young, Maxwell, Hertz), regressando-se ao carácter corpuscular - apenas em certos fenómenos - com Planck e Einstein. Para a matéria, o caminho foi inverso: começando por ser partículas puras, vieram a associar-se-lhes características ondulatórias só muito mais tarde (com de Broglie e Schrödinger). Radiação (luz) Matéria marcos Quadro 2.2 Evolução dos conceitos de matéria e radiação Antiguidade Séc. XVIII Séc. XIX Séc. XX Dualidade onda-corpúsculo partículas (imateriais) ondas (complementaridade); Campos de matéria e de radiação partículas luz como onda (Huygens) Campo electromagnético; Teoria atómica v. Quadro 1; conversão completa da matéria em radiação Há quem advogue o nome ondículas para todas estas entidades que não são nem ondas nem partículas, comportando-se em certos fenómenos como uma coisa, e noutros como outra (princípio de complementaridade de Bohr). Mas isso talvez não seja totalmente esclarecedor. Considera-se actualmente que a entidade física mais fundamental é o campo (entidade que ocupa todo o espaço), e que as partículas, que tendemos a considerar localizadas, e umas vezes permanentes como o 7 electrão, e outras vezes fugazes e fugidias como o fotão, são apenas manifestações locais do campo correspondente. Mas é aspecto ainda incompletamente estudado, e cuja discussão ultrapassa em qualquer caso o âmbito deste curso. Bibliografia A história da Mecânica Quântica é, como se disse, apresentada em livros de texto e livros de história da ciência, e também em livros de divulgação, embora com profundidade e objectivos distintos. Um livro de texto introdutório muito claro, é E. H. Wichmann, Quantum Physics (Berkeley Physics Course), McGraw-Hill (1971). Um pequeno livro escrito por um historiador e por um físico de renome, rigoroso do ponto de vista histórico e também de leitura agradável, é J.-C. Boudenot, G. Cohen-Tannoudji, Max Planck et les quanta, Ellipses (2001). Apêndice – Equação de Klein-Gordon Retomemos a eq. (7), mas usando agora a relação relativista, mais geral, entre energia total e momento linear, E mc p c 2 2 2 mc 2 p2 .... 2m (A1) em que o desenvolvimento em série truncado foi usado anteriormente para obter a equação de Schrödinger (nessa equação a energia é de facto E-mc2). Sem truncatura, a eq. (7) fica 2 p2 m 2c 4 E 2 , 2 x 2 c2 2 (A2) e portanto é necessário calcular também a segunda derivada em ordem ao tempo 2 E2 , 2 t 2 (A3) o que leva à equação 2 1 2 mc , x 2 c 2 t 2 2 (A4) dita de Klein-Gordon. Esta é a equação relativista para uma partícula livre (e sem spin), e que se reduz à equação de Schrödinger respectiva, eq. (9), no limite não relativista. Note-se também que se reduz à equação de onda usual, eq. (5), fazendo m = 0. Ao contrário da equação de Schrödinger, a equação de Klein-Gordon não é generalizável a várias partículas, nem permite incluir o efeito da energia potencial de interacção, mas permite por exemplo obter o campo devido à interacção forte (potencial de Yukawa, tal como descrito em Wichmann). 8