III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA A ESCOLA E A HETEROSSEXUALIZAÇÃO DOS CORPOS: O AUTOCONTROLE DOS SUJEITOS NÃO HETEROSSEXUAIS COM BASE NA TEORIA DO PROCESSO CIVILIZADOR DE NORBERT ELIAS. Achiles Silveira Neto1 A intencionalidade do comportamento sexual modelada no interior de contextos específicos de interação social e culturalmente estruturada implica na importância da compreensão destes contextos de socialização como forma de minorar a pesquisa em torno do comportamento individual. Compreendendo o sexo como um ideal regulatório, a sua materialização é percebida como uma consequência da dinâmica do poder inerente ao processo civilizador, que dita o desenvolvimento do autocontrole dos indivíduos através da heterossexualização compulsória. Para a compreensão desta dinâmica a partir da teoria do processo civilizador, a fim de perceber a construção do comportamento heterossexual e a consequente vigilância do corpo, pretende-se discorrer uma análise teórica sobre esta teoria e estendê-la ao campo das instituições – e neste caso, a escola – que, historicamente, são estruturadas por um conjunto de valores, normas e crenças que coadunam com a perspectiva sanitária dos corpos e com a perpetuação e hierarquização das sexualidades (PRADO e JUNQUEIRA, 2011). Norbert Elias (2008), eminente sociólogo alemão, desenvolveu a sua Teoria do Processo Civilizador com base na análise psico-histórica da formação dos monopólios de força física e de tributação no território anglo-francês, que desembocaram no desenvolvimento do padrão de conduta da sociedade ocidental. Para o autor, o estabelecimento de monopólios e a consequente formação dos estados absolutistas resultaram em uma competição intersocial que diversificou as funções sociais e as tornou mais diferenciadas. Quanto mais diferenciadas as funções sociais, maior o número destas mesmas, bem como maior também o número de pessoas das quais o indivíduo dependia as suas ações. A complexidade das relações implicou numa maior capacidade de articulação do indivíduo, que atua como mediador, nesse processo, em seu trato com as funções e consigo mesmo, 1 Graduando pela Universidade [email protected]. Estadual do Sudoeste da Bahia. Email para contato: 1 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA modelando o seu comportamento de forma com que ele corresponda a esta diversidade de tendências pessoais e desempenhe a sua função social estabelecida pela teia de ações. “O indivíduo era impelido a regular a conduta de maneira mais diferenciada, uniforme e estável” (ELIAS, 2008, p. 195). A teia de ações tornou-se tão complexa, assim como o esforço dos indivíduos em se comportar de forma coerente ao necessário para a “boa convivência”, que duas formas de autocontrole foram desenvolvidas: uma consciente e uma outra automática, consequência direta das imposições da teia de ações aos sujeitos e que são responsáveis pelo desenvolvimento de um “ser social”, de um “ser civilizado”. A estabilidade peculiar do aparato de autocontrole mental que emerge como traço decisivo, embutido nos hábitos de todo ser humano “civilizado”, mantém a relação mais estreita possível com a monopolização da força física e a crescente estabilidade dos órgãos centrais da sociedade. Só com a formação desse tipo relativamente estável de monopólios é que as sociedades adquirem realmente essas características, em decorrência das quais os indivíduos que as compõem sintonizam-se, desde a infância, com um padrão altamente regulado e diferenciado de autocontrole; só em combinação com tais monopólios é que esse tipo de autolimitação requer um grau mais elevado de automatismo, e se torna, por assim dizer, uma “segunda natureza”. (ELIAS, 2008). “Civilizado” seria, portanto, o resultado da estabilidade emocional promovida pelo autocontrole, formando uma “segunda natureza” que serviria como vestimenta para a vida social e que está diretamente ligado à estrutura estável de monopólios na sociedade. É o mecanismo social, caracterizado pela teia de ações e todas as imposições que lhe são próprias, que garante e fornece condições para o desenvolvimento altamente regulado e diversificado de autocontroles. A estabilidade das emoções é almejada através deste processo de compulsão, que é exercido pelo próprio indivíduo sobre si mesmo e provocado por meio de pressões externas, previsíveis, que atuam em contribuição ao autocontrole. Este mecanismo de compulsão real utilizado pelo indivíduo perpassa tanto pela previsão das possíveis consequências de seus atos quanto pela modelação do comportamento através da observação/obediência de gestos de adultos (ELIAS, 2008). Contextualizando a relação entre o “civilizado” e a sexualidade, o resultado de um desenvolvimento do autocontrole por meio de pressões externas provenientes da teia de ações numa sociedade, caracterizador daquilo que seria, portanto, adequado para a boa convivência, atinge diretamente a perspectiva do comportamento heterossexual como um dos fatores que compõem a 2 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA identidade civilizada. A teia de ações, o jogo de interdependência social que Elias (2008) aduz como leis regulatórias que induzem o desenvolvimento do autocontrole dos indivíduos estão presentes na materialização do sexo e na performatividade dos corpos. Estas leis regulatórias, legitimadas por uma reiteração constante das normas sexuais, exercem o papel de vigilantes de uma identidade heterossexual que se quer natural e espontânea. As normas regulatórias do "sexo" trabalham de uma forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual2. O sexo, portanto, deve ser visto como fruto de um processo discursivo, liderado por um dispositivo histórico (FOUCALT, 2003), e como um ideal regulatório (BUTLER, 2000), assumindo o papel de norma na produção dos corpos que governa. Norma esta que hierarquiza as sexualidades a partir da negação da identidade homossexual através do discurso e do consequente silenciamento daquilo que a difere. Os sujeitos não heterossexuais3, dentro do ambiente escolar, não ocupam no discurso o mesmo lugar dos sujeitos heterossexuais, que são reiterados a todo o instante por meio do aparato discursivo, ao contrário daqueles, que são preteridos desta reiteração e passíveis de um apagamento social: Ao não se falar a respeito deles e delas, talvez se pretenda “eliminá-los/as”, ou, pelo menos, se pretenda evitar que os alunos e as alunas “normais” os/as conheçam e possam desejá-los/as. Aqui o silenciamento – a ausência da fala – aparece como uma espécie de garantia da “norma”. A ignorância (chamada, por alguns, de inocência) é vista como mantenedora dos valores ou dos comportamentos “bons” e confiáveis4. Um dos elementos para a marginalização e silenciamento da homossexualidade diz respeito à compreensão dicotômica e sacralizada das identidades sexuais, que é difundida pela instituição BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: Louro, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2ª edição. Belo Horizonte, Autêntica, 2000, p. 111. 2 Aqui, o termo “não heterossexual” busca a identificação dos sujeitos que escapam das disposições heteronormativas, sendo estes da categoria LGBT ou não. O que está em evidência neste processo é o comportamento adequado ou não aos padrões heteronormativos. Como o foco da análise teórica perpassa por uma compreensão do fenômeno da heterossexualização, que atua mais fortemente em crianças e adolescentes, a estigmatização por parte da sociedade, que os identifica como homossexuais, independe da identidade sexual destes indivíduos, que muitas vezes ainda não foi significada por eles como tal. Essa atribuição da homossexualidade a indivíduos ainda na fase da infância faz parte de “uma tendência em se utilizar práticas e comportamentos adultos como parâmetros para compreensão das relações entre as crianças” (LOURO, 2001, p. 78). 3 4 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 4ª edição, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 68. 3 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA escolar, “um dos lócus privilegiados de (re)produção e disseminação e, ao mesmo tempo, de enfrentamento e desestabilização da homofobia” (PRADO e JUNQUEIRA, 2011, p. 59). Guacira Lopes Louro (2000) aduz a não aceitação da transitoriedade das identidades sexual e de gênero por parte da sociedade, que percebe este trânsito como um erro, como um engano que atinge diretamente a essência do sujeito. E aqui há de atentar-se para a compreensão disseminada que entende o corpo como referência da identidade sexual. Aparentemente, o corpo seria inequívoco, evidente, e há uma expectativa em torno dele para que ele afirme a identidade, sem ambiguidades nem inconstância (LOURO, 2000). No sentido da construção do corpo e da vigilância provocada pela defesa do padrão heterossexista, no entanto, a aceitação da transitoriedade do comportamento sexual é, paradoxalmente, defendida e vigiada dentro do contexto escolar. Em direção ao comportamento sexual heterogemônico, o indivíduo que desenvolve o seu autocontrole, eliminando as evidências que no corpo expressam, a título de julgamentos, uma suposta identidade homossexual, compondo uma política externa coerente e próxima ao padrão heterossexual, segundo a perspectiva do civilizado, tende a ser mais aceito na escola do que aquele que não o desenvolveu. Isso porque a partir deste desenvolvimento o autocontrole surge como uma mola propulsora para o silenciamento da identidade homossexual e até mesmo como forma de presunção primeira de uma identidade heterossexual, que emerge vitoriosa como fruto da dicotomia entre civilizado/primitivo, pela qual os heterossexuais representariam os primeiros e os homossexuais os segundos. Citando Jeffrey Weeks (1995, p. 89), a autora afirma que podemos reconhecer, teoricamente, que nossos desejos e interesses individuais e nossos múltiplos pertencimentos sociais possam nos "empurrar" em várias direções; no entanto, nós "tememos a incerteza, o desconhecido, a ameaça de dissolução que implica não ter uma identidade fixa"; por isso, tentamos fixar uma identidade, afirmando que o que somos agora é o que, na verdade, sempre fomos5. Este processo de promoção e imposição da transitoriedade do comportamento sexual dos sujeitos não heterossexuais em direção ao padrão heteronormativo, que visa à correção do corpo destes indivíduos, que supostamente teriam uma identidade sexual contrária às expectativas sociais, pode ser caracterizado como heterossexualização, que nada mais é do que a civilização sexual do corpo através do desenvolvimento do autocontrole. 5 LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2ª edição. Belo Horizonte, Autêntica, 2000, p. 7. 4 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA A heterossexualização parte do princípio ativo correspondente à heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2000), promovendo, desta forma, um desencontro entre o comportamento sexual evidente e a identidade sexual latente. Este desencontro é responsável pelas incongruências que são construídas de forma desproporcional pelo próprio desenvolvimento do autocontrole, que pode deslocar a satisfação destas expressões, do lugar do relaxamento da conduta modelada, do desfrute das afeições, para o campo da fantasia, dos sonhos, das artes; como também pode desenvolver uma repulsa aos ímpetos do autocontrole pela insuficiência da satisfação sublimada destes desejos (ELIAS, 2008). Neste aspecto, o corpo, segundo Weeks (1995), é significado e alterado pela cultura. Ele é, na verdade, inconstante e nem sempre as identidades são coerentes com aquilo que o corpo evidencia. Por esta razão, a sua aparência, por vezes, pode estar em discordância com os desejos e necessidades dos indivíduos. Como parte de uma investida em busca da “boa convivência”, o corpo é construído em correspondência às imposições culturais, estéticas, higiênicas e morais. Estas imposições funcionam como pressões externas em direção à formação do autocontrole do indivíduo, tão mais desenvolvido quanto maior for a sua capacidade de corresponder a estas expectativas sociais. Aqui, a escola surge como um dos lugares para a disseminação desta cobrança e um dos agentes promotores da heterossexualização. Philip R. D. Corrigan (1991), em seu estudo sobre a escolarização dos corpos em direção a uma determinada forma de masculinidade, aponta para os investimentos que são feitos no corpo e sobre o corpo. A escola assume o papel de vigilante do desenvolvimento do autocontrole dos indivíduos por meio da disciplina, da categorização, das mágoas, do silêncio, da coação, do consentimento (CORRIGAN, 1991). As suas tecnologias alcançam o resultado do autodisciplinamento, do investimento continuado e autônomo do sujeito sobre si mesmo (LOURO, 2000). Além disso, a atuação da escola em prol do disciplinamento e da vigilância do sexo perpassa por uma visão sexista civilizatória. Os métodos de imposição do desenvolvimento do autocontrole dos indivíduos do sexo masculino objetivam a diferenciação dicotômica entre meninos e meninas a partir da contenção ou não das expressões de afeto. Esta dicotomia, que compreende o comportamento masculino como altamente controlado e contido e o feminino como mais afetuoso e emotivo, dissemina a concepção da heterossexualidade presumida dentro do ambiente escolar e 5 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA fortalece a legitimidade das leis regulatórias, que ditam a hegemonia do padrão comportamental heterossexual e a marginalização dos sujeitos não heterossexuais: A negação dos/as homossexuais no espaço legitimado da sala de aula acaba por confiná-los às “gozações” e aos “insultos” dos recreios e dos jogos, fazendo com que, deste modo, jovens gays e lésbicas só possam se reconhecer como desviantes, indesejados ou ridículos6. Este reconhecimento de si mesmo a partir da perspectiva da diferença, responsável pela estigmatização e pelo descrédito público destes indivíduos, segundo Weeks (2000), é parte de uma fase de sensibilização do sujeito-vítima, a partir da qual ele poderá desenvolver o seu autocontrole em correspondência a estas pressões externas. Como objeto de articulação destas pressões, a injúria se apresenta como um forte componente do discurso, marcado pelos xingamentos e pela fixação de estereótipos. Para Borillo, a injúria é fruto da conjunção entre a homofobia afetiva (psicológica) – caracterizada pela condenação da homossexualidade – e a homofobia cognitiva (social) – que pretende perpetuar a diferença homo/hétero. Citando D. Éribon (1999), ele preconiza que [...] as expressões “veado nojento” (“sapatão sem vergonha”) estão longe de ser simples palavras lançadas ao vento, mas agressões verbais que deixam marcas na consciência, traumas que inscrevem na memória e no corpo (de fato, a timidez, o constrangimento e a vergonha são atitudes corporais resultantes da hostilidade do mundo exterior). E uma das consequências da injúria consiste em modelar a relação com os outros e com o mundo; portanto, em modelar a personalidade, a subjetividade e o próprio ser de um indivíduo7. A injúria, portanto, faz parte deste grupo de leis regulatórias que vigiam, ditam e reproduzem o comportamento heterossexual enquanto norma e apresenta-se como um dos recursos utilizados no processo de heterossexualização. Ela surge aqui não como uma denúncia direta da orientação sexual do indivíduo apontado, mas como uma sanção pela transgressão da maneira de comportar-se – caracterizada pela não correspondência entre o gênero externado e o sexo biológico –, bem como um vetor pressionador para o desenvolvimento do autocontrole do indivíduo na direção de sua consequente contenção da característica que o identifica como homossexual. 6 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 4ª edição, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 68. 7 BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 25. 6 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Esta contenção, segundo Elias (2008), é condizente ao fato do indivíduo passar a ver esta determinada característica como um conflito diante das pessoas que presenciam a sua revelação. Ela seria a própria vergonha, que é fruto do comportamento do sujeito e que evidenciou a parte de si mesmo que representa o que o discurso preconiza e abomina. O caráter de vergonha será mais aguçado “quanto mais perfeitamente as restrições externas forem transformadas, pela estrutura da sociedade, em autorestrições e quanto mais abrangente e diferenciado se tornou o cálculo de autorestrições onde se manifesta a conduta da pessoa8. Desta forma, os insultos podem acarretar um avanço dos patamares de vergonha, que expressam uma consolidação das ansiedades interiores, automatizadas, das compulsões que o indivíduo passa a exercer sobre si mesmo. A vergonha pode contribuir, portanto, para a interiorização das características que são próprias da identidade homossexual por meio do processo de desenvolvimento do autocontrole, impulsionado pelas pressões externas, compostas pelas leis regulatórias ditadas pela dinâmica do poder, que é homofóbico e heterossexista (BORILLO, 2010; BUTLER, 2000; ELIAS, 2008). Toda esta análise quanto à implicação do desenvolvimento do autocontrole em direção ao padrão ocidental de ser “civilizado” não deve deixar de considerar, especificamente, o silenciamento dos sujeitos não heterossexuais a partir desta vigilância em torno da apresentação dos corpos proposta pela heterossexualização e posta em prática dentro do ambiente escolar. A tarefa da escola está em manter a identidade sexual correlacionada às identidades de gênero, corroborando assim para a perpetuação da correspondência sexo-gênero-sexualidade. A heterossexualidade é percebida como o lugar para o qual devem ser destinadas as crianças e os adolescentes, e a instituição escolar age em prol desta garantia. No entanto, ela vive um paradoxo de ter que garantir a heterossexualidade dos alunos e de ter que manter o purismo no que diz respeito à relação deles com o sexo. A escola, historicamente, tem evitado o pedagogismo da educação sexual (HOOKS, 2000). As crianças e os adolescentes que demonstrarem um comportamento contrário às “marcas” pré-estabelecidas para os gêneros correspondentes são diretamente percebidos/as como 8 ELIAS, Norbert. O processo civilizador 2: formação do estado e civilização. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro, Zahar, 2008, p. 242. 7 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA homossexuais em potencial9. A escola passa a presumir que aquele indivíduo em específico não concluirá o processo educativo em direção à heterossexualidade, caso suas expressões comportamentais “às avessas” não sejam reprimidas. Além disso, este corpo “impuro” e fora dos padrões ameaça a ordem purista e higiênica aguardada e defendida pela instituição, já que a expressão da homossexualidade em potencial pode despertar o imaginário sexual das crianças e dos adolescentes, colocando-os em contato, mesmo que indireto, com os comportamentos “subversivos” e “pederastas”. E é justamente por evidenciar uma característica – através da visão de que o corpo é evidente e coerente com a identidade sexual – de sua sexualidade – que é, além do mais, uma sexualidade tida como marginal – que os sujeitos não heterossexuais são direcionados ao silenciamento, juntamente com todo o conjunto de suas expressões. O homossexual em potencial é forçado a interiorizar aquilo que o identifica como diferente, aproximando suas expressões ao comportamento destinado ao seu sexo biológico, restringindo sua perversão para dentro de si mesmo (LOURO, 2000). A escola, como um dos agentes que ditam as leis regulatórias, incita o desenvolvimento do autocontrole destes homossexuais em potencial, direcionando a identidade sexual percebida no comportamento e no corpo destes indivíduos para o campo da intimidade como significado de sua extinção. No caso das travestis e dos transexuais, a situação torna-se um pouco mais complexa. A probabilidade do não sucesso das investidas em busca do desenvolvimento do autocontrole destes indivíduos em direção ao padrão heterossexual de comportamento e o consequente não silenciamento das características que os definem como “diferentes” são responsáveis pela maior incidência de insultos e humilhações direcionadas a estas pessoas na escola. Isso não quer dizer que Aqui, a expressão “homossexual em potencial” representa a identidade destinada às crianças e aos adolescentes que não estão de acordo com o comportamento heterossexual padrão e que não podem ser, desde já, considerados como homossexuais, já que o simples comportamento fora dos padrões da heteronormatividade não representa uma garantia desta identidade sexual dos sujeitos. Para as instituições que articulam as leis regulatórias em direção à vigilância da heterossexualidade, estes indivíduos possuem um potencial de homossexualidade, evidente no comportamento desviado destes sujeitos. Para o entendimento do corpo como lugar evidente da identidade sexual, que a escola majoritariamente comunga, estes indivíduos estariam expressando através do comportamento o lugar para o qual a sua identidade sexual tende a se deslocar futuramente. Como a heterossexualidade é percebida como o lugar para onde as crianças e os adolescentes devem ser destinados, os homossexuais em potencial necessitam de uma vigilância mais rigorosa, que seja capaz de corrigir, anular ou silenciar esta potencialidade. Por vezes, o termo aqui é sinônimo de sujeito não heterossexual porque o homossexual em potencial também não corresponde à identidade heterossexual. 9 8 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA a escola não atue em busca da adequação das travestis e dos transexuais aos ditames das leis regulatórias. Prova maior desta atuação, além dos insultos frequentes, é a persistência de alguns professores em não chamá-los pelo nome social. A chamada pelo nome do registro de nascimento é uma coação do processo heterossexualizador que, mesmo frustrado em sua empreitada em busca da heterossexualização das travestis e dos transexuais, consegue impor o silenciamento das características não heterossexuais no ambiente escolar através da evasão destes indivíduos. Na escola, quando um docente se recusa a chamar uma estudante travesti pelo seu nome social, está ensinando e estimulando os demais a adotarem atitudes hostis em relação a ela e à diversidade sexual. Trata-se de um dos meios mais eficazes de se traduzir a pedagogia do insulto em processos de desumanização e exclusão no seio das instituições sociais10. Esta é uma evidência do modo como a homofobia está presente no ambiente escolar, e também fora dele. O lugar destinado aos homossexuais é o da vida privada, já que o espaço público pertence aos heterossexuais e toda a gama de expressões de afeto que lhes são permitidas. Até mesmo as instituições escolares mais liberais comungam deste entendimento. A homossexualidade, mesmo que descriminalizada por algumas instituições, possuem o seu lugar próprio, que é o do silenciamento, para onde devem ser compartilhados o afeto e o comportamento “imoderado”, numa perseguição ao pudor e à discrição. Em compensação, ao assumirem a forma heterossexual, as mesmas condutas tornam-se expressão do amor e se desenvolvem livremente no espaço público: os heterossexuais beijam-se e dançam juntos na rua, mostram publicamente as fotos dos/as parceiros/as, declaram em público amor eterno e nunca fazem o coming out heterossexual, já que o espaço público lhes pertence. Mas, quando um gay ou uma lésbica têm a ousadia de empreender uma dessas manifestações, eles/as são imediatamente considerados/as militantes ou provocadores/as11. Apesar das pressões externas, formadas pelos discursos e pelo descrédito proporcionado pelos estigmas, o autocontrole em direção ao perfil heterossexual é resultado de uma escolha forçada feita pelos sujeitos que desenvolvem esta perspectiva. Como a construção da identidade estigmatizada não implica em uma aceitação necessária de um destino final, de uma identidade sócio-sexual explícita, como gay e lésbica, por exemplo, que pode ser inclusive rejeitada em qualquer das fases de desenvolvimento deste processo, interrompendo a transição de um estágio 10 PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. Termo In: VENTURI, Gustavo e BOKANY, Vilma (orgs.). Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 62. 11 BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 77. 9 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA para o outro, um aprisionamento pode ser desenvolvido, tendo como lócus de ação o próprio corpo do indivíduo (WEEKS, 2000). Este aprisionamento, também caracterizado como “armário” gay, seria, portanto, resultado do desenvolvimento do autocontrole. Uma de suas considerações é que ele se apresenta como um efeito do processo de heterossexualização, considerando que o “armário” gay pode camuflar uma identidade homossexual definida, mas vítima do conjunto de ansiedades interiores automatizadas e de todas as compulsões que o indivíduo exerce sobre si mesmo, seja pelo alto patamar de vergonha que desenvolvera ou até mesmo como forma de evitar inferiorizações na vida social através dos insultos e das humilhações (PRADO e JUNQUEIRA, 2011). Além disso, o “armário” pode também representar um processo de internalização da homofobia, negação, autoculpabilização e auto-aversão, que têm uma participação da proximidade ou não da família, da comunidade escolar, do Estado e da sociedade como um todo (JUNQUEIRA, 2009). A homofobia internalizada pode ser considerada como uma das desproporções causadas pelo desenvolvimento do autocontrole, já que compreende as discrepâncias entre o desejo reprimido e a “civilização” da conduta exteriorizada. Diretamente vinculada ao “armário”, a assunção da homossexualidade tende a diminuí-la, “promovendo um ‘ajustamento’ saudável do sujeito” (PRADO e JUNQUEIRA, 2011, p. 63). O “armário”, que pode ser considerado como um efeito desta incidência das leis regulatórias em perseguição ao silenciamento dos caracteres homossexuais e de sua negação através do discurso heterossexual hegemônico está presente na vida de pessoas gays não assumidas, bem como também na vida de pessoas não gays. Até mesmo as pessoas assumidamente gays, há pouquíssimas que não estão no “armário” com alguém que tenha para com ela uma importância econômica, social ou institucional. A presunção da heterossexualidade é responsável pela insistência do “armário” da vida dos sujeitos não heterossexuais, assumidos ou não, e cria novas barreiras e muros diariamente, fazendo com que as pessoas gays fiquem ou voltem para ele incessantemente (SEDGWICK, 1993). O corpo heterossexualizado aparece como resultado deste processo e serve como escudo para os ataques externos sofridos no ambiente escolar. Ele é fruto da estigmatização da identidade homossexual, que passa a ser rejeitada pelo próprio indivíduo por não querer ser enquadrado neste lugar da diferença, do descrédito público. Além disso, o corpo heterossexualizado de sujeitos não heterossexuais assumidos, contribui para a hierarquização das homossexualidades, que identifica 10 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA estes homossexuais como mais aceitos, em detrimento de outros, não heterossexualizados. A heterossexualização é, portanto, a fuga dos rótulos. Esta identidade seria fruto de uma escolha. Utilizando os termos de Norbert Elias (2008), ela pode ser identificada como uma “segunda natureza”, evidenciada na exteriorização de uma identidade de gênero construída para a vida na escola, na família e na sociedade, e de uma identidade sexual camuflada pelos ditames das leis regulatórias. Jeffrey Weeks (2000) considera esta escolha como uma fuga dos riscos da vida diária. Aqui a heterossexualização é significada para além das escolhas. Ela é fruto de uma pressão externa que dita leis regulatórias que desencadeiam no desenvolvimento do autocontrole dos indivíduos, formando o corpo civilizado, que é heterossexual no comportamento, na vestimenta e no controle de suas emoções. Esta automatização do autocontrole acontece de maneira forçada, implicando numa escolha provocada e viciada (WEEKS, 2000). Se o comportamento heterossexual é considerado como um padrão de conduta de excelência em defesa de uma boa convivência em sociedade, as inclinações pessoais dos indivíduos heterossexualizados, o conjunto de suas ansiedades, o controle de seus impulsos, das suas emoções, a contenção de seus afetos em espaços públicos, devem ser vistos não como parte daquilo que possa ser compreendido como civilizado, mas como evidência da falibilidade e das desproporções criadas pelo processo civilizador, que reproduz, a todo o instante, deficiências e contradições. Por esta razão, a discussão em torno dos padrões de conduta e a necessidade de sua compreensão como algo transitório possuem grande importância para a correção das desproporções consequentes deste processo civilizatório. O padrão de conduta heterossexual, a estrutura social, as limitações, proibições e ansiedades não devem ser vistos como imposições definitivas, e ainda menos como uma culminância, como um fim em si mesmo, para o qual toda a sociedade deve caminhar e evoluir. Inclusive, eles podem significar resquícios de aspirações ao poder de grupos tradicionais e não têm outra função que a de reforçar suas chances de obter poder e manter a superioridade de sua posição social. O que Elias (2008) chama de civilizado partiria do princípio de um equilíbrio mais durável, uma sintonia mais fina entre as exigências gerais da existência social do homem, por um lado, e suas necessidades e inclinações pessoais, por outro. A partir desta perspectiva, é legítimo considerar a heteronormatividade como uma violação aos direitos humanos, bem como um empecilho para esta sintonia fina e durável que Elias (2008) aduz quanto ao ser civilizado. A escola, como uma das instituições que (re)produzem os ditames das 11 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA leis regulatórias heterossexistas, ao invés de humanizar os indivíduos a partir de práticas que coadunem com a diversidade e com a inclusão social, vigiam e promovem a reprodução constante do tripé heteronormativo, qual seja, a mútua correspondência entre sexo-gênero-sexualidade. O ambiente escolar cultiva e reproduz a homofobia através de práticas “heterossexualizantes”, incitando o autocontrole dos sujeitos não heterossexuais a fim de silenciar e extinguir os caracteres que os identificam como tais e assim realocar estes indivíduos no meio social, “naturalmente” heterossexual. Referências BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. BUTLER, Judith. 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