Seção: Mídia e Homofobia Heterofobia: você tem medo de que? Nos últimos anos, em virtude de discursos emergentes no cenário político brasileiro, uma série de manifestações aconteceu na internet em páginas e comunidades digitais, além das campanhas em redes sociais online. O então chamado “orgulho hetero” chamou a atenção para um dado, no mínimo curioso, e até então desconhecido: a heterofobia. Para alguns, tratou-se de uma causa urgente, e para outros, uma situação de piada. Fato é que ocupou tendências de articulação e engajamento de falas pelo Brasil afora. As principais características desses movimentos se deram em sinal de protesto contra a garantia de direitos civis à camada da população LGBT (denominados como “privilégios”), e contra as iniciativas do governo de incluir as temáticas de gênero e diversidade sexual no currículo educacional (nomeadas de “doutrinação à pederastia”). Expunham também, entre outras situações, abordagens machistas que expuseram as mulheres como subordinadas aos homens, aspecto dos sistemas patriarcais de governo. Diante do exposto, o inevitável questionamento: se há um orgulho de ser hetero, qual a motivação para a vergonha? Se há uma suposta heterofobia, contra o quê essa discriminação vem sendo praticada? A reflexão de tais pontos envereda por caminhos que leva à exposição de fatos em bancadas legislativas, e a forma como tais propostas foram conduzidas para além das câmaras políticas. É pertinente sim analisar tais questões. Discussões e articulações no cenário político brasileiro Em 25 de maio de 2010, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB/RJ) apresentou à Comissão dos Direitos Humanos e Minorias (CMDH) o projeto de lei PL 7382/2010¹, que prevê a institucionalização de pena para a “discriminação contra heterossexuais”, com reclusão para condutas determinadas “heterofóbicas”, e ainda determina “políticas públicas antidiscriminatórias que atendem a essa possibilidade”. No ano seguinte, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou o projeto de lei 294/2005, de autoria do vereador Carlos Apolinário (DEM/SP), para instituir o “Dia do Orgulho Heterossexual”, como forma de "conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes", e por outro lado para “se manifestar contra "excessos e privilégios" destinados à comunidade gay”². O projeto foi vetado pelo prefeito Gilberto Kassab, por inconstitucionalidade. O neologismo “heterofobia”, no entanto, já apareceu em discussões anteriores no Brasil desde 2009. Num artigo assinado pelo médico Paulo Bento Bandarra³, o deboche ao reconhecimento da homofobia se dá para sustentar o direito a ter “opinião diferente sobre a homossexualidade”, no sentido de reforçar um estado patológico, sugere um atentado à liberdade de “opinião”. Para o autor, a “aversão ao sexo oposto quando para relacionamento sexual, reprodutivo e convívio íntimo” seria considerado “heterofobia”. Remetendo aos episódios que falam sobre os tais “excessos de privilégios”, em 25 de maio de 2011, membros da bancada religiosa no congresso suspenderam a distribuição do batizado “Kit AntiHomofobia”⁴ elaborado pelo Ministério da Educação para distribuição gratuita nas escolas. O material foi considerado por estes representantes como uma “tentativa de indução ao comportamento homossexual nas crianças”. Constituiu o “kit” um caderno livro com referências teóricas, conceitos e sugestões de atividades e oficinas para a atuação pedagógica sobre a temática da diversidade sexual nas escolas, além de um material audiovisual composto de três animações em vídeo. Tratava-se de um arsenal teórico e metodológico para construir políticas e culturas de respeito às orientações sexuais e identidades de gênero, afirmando o respeito à pluralidade e diversidade. No raciocínio de quem formula tais considerações sobre o “kit”, o simples contato visual com textos e vídeos sobre a homossexualidade transformaria por adesão ou modificação instantânea, como em mutantes, pessoas heterossexuais em gays, lésbicas, transexuais, enfim. Se assim fosse, não teríamos tantos episódios de improbidade, desvios e apropriações indevidas do dinheiro público em nome desses políticos, quando a todo o momento a mesma referência religiosa os diz para “não roubar”. Desobediência total. As pressões continuaram em 2015, quando os Planos Estaduais de Educação traçaram diretrizes para o ensino nos próximos dez anos e, entre as metas, o combate à discriminação racial, de orientação sexual ou à identidade de gênero. Os projetos se efetivam através do incentivo a programas de formação sobre gênero, diversidade e orientação sexual. De acordo com as bancadas religiosas, a adesão ao Plano expressa a imposição de “ideologias de gênero”, e poderia destruir os conceitos de homem e de mulher, além do modelo tradicional de família. O projeto também foi tratado como “doutrinação”, que é o mecanismo pelo qual agem as entidades religiosas ao persuadir fiéis à obediência de princípios, condutas e valores específicos. O que se pretende, na educação, é o oposto. Trata-se de estabelecer o contato histórico e social com as referências que permitem entender as relações de gênero e das orientações afetivas e sexuais. No fim das contas, nada de persuasão, mas de promoção de combate ao preconceito, às violências e à discriminação a partir do ensino. Em outro momento, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo⁵. A partir de 05 de maio de 2011, casais homoafetivos passaram a ter assegurados direitos patrimoniais que antes não lhes eram garantidos, tais como herança, pensão por morte ou separação de cônjuge e declaração compartilhada no Imposto de Renda. A mesma bancada conservadora não mediu esforços para tentar impedir a decisão, alegando que se tratava de uma agressão aos “princípios morais” e aos “bons costumes”, vulgo “ser heterossexual ‘monogâmico’ e cristão com o pagamento do dízimo em dia”. Tais ideias ainda foram apoiadas por declarações de pastores evangélicos como Silas Malafaia, Marco Feliciano e o militar da reserva Jair Bolsonaro. A heterofobia como extensão da discriminação contra a população LGBT Voltemos a pensar em “–FOBIA”. Numa definição genérica e redutiva, aplicar o sufixo a uma palavra atribui expressão com significado de “aversão” como, por exemplo, a claustrofobia (aversão a lugares fechados ou confinados). A perspectiva pela qual se desenvolve a discussão acadêmica ultrapassa tais muros, pois considera as relações de poder no meio em que as pessoas recebem educação para conviver socialmente. O professor de Direito ítlao-argentino Daniel Borrillo, no livro “Homofobia: história e crítica de um preconceito” (Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2010), analisa terminologias, origens e doutrinas que constroem essa ideia. De acordo com o autor, podemos reconhecer a conduta homofóbica, entre outros aspectos: — nas atitudes sistemáticas de hostilização contra pessoas homossexuais, quando sua orientação afetiva e sexual é isolada e posicionada como inferior, abominável ou anormal; — na manifestação arbitrária que consiste na rejeição da homossexualidade como possibilidade de existência ou de interação social, fora do universo comum dos humanos; — no medo de que a valorização da identidade homossexual seja reconhecida, e que isso represente o desaparecimento da hierarquia da ordem heterossexual. A homofobia não se encerra no preconceito declarado, assumido. Engloba também os pequenos atos e falas que, homeopaticamente, constroem esse comportamento em sociedade. Sendo assim, frases como “meu filho não será gay, pois terá educação”, “nada contra gays, mas eles não devem se beijar em público” ou ainda “você é gay porque ainda não teve relações com o sexo oposto” são pequenas falas que reforçam e reproduzem o pensamento homofóbico. A recusa à matriz heterossexual para estabelecer corpos e identidades como normais, saudáveis ou legais (dos pontos de vista religioso, médico e jurídico, especificamente) não pode ser confundida com uma rejeição à heterossexualidade em si. Sendo esta hegemônica, inscrita nas relações sociais e afirmada pelas instituições de poder, o que acontece de fato é a contraposição a único padrão para legitimar uma multiplicidade de desejos, identificações e expressões que vão além dessa existência. Do outro lado, a denominada “heterofobia” apropria-se de um problema histórico, político, social e cultural para legitimar o estabelecimento das hierarquias presentes na ordem heterossexual. “Orgulho”, que nos movimentos sociais organizados por lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans* surge como afirmação política numa matriz de repressão, no exemplo do “orgulho hetero” trata-se mais de um gesto de deboche e escárnio dos movimentos organizados LGBT, e de reforço dos motores que limitam a vivência afetiva e sexual humana numa única direção heterossexual. O então “orgulho hetero”, nesse contexto, é um engenho para segregar, recusar, injuriar, inferiorizar pessoas não heterossexuais, e fixar ainda mais a vigilância sobre corpos, desejos e identidades para que não escapem aos projetos heteronormativos. As tecnologias reprodutivas, as instituições de educação, as políticas públicas e os direitos civis, todos caminham para reconhecer a importância das diversidades na efetivação da cidadania. Retrocessos não são permitidos, quando a sociedade precisa avançar na igualdade dos direitos civis. Quando qualquer instituição de poder reconhece outra forma de procriar, de amar e constituir família, de se educar e formar cidadãos fora do viés heterocêntrico, incluem a “heterofobia” como acusação direcionada à todo discurso que nega ou recusa a heterossexualidade como norma. Podemos definir, então, “heterofobia” ou “orgulho hetero” nos contextos acima como invenções plantadas nas discussões de abertura política em torno das sexualidades brasileiras. Tratam-se de manifestações coletivas e sistemáticas, para a expressão de reações adversas ou para a promoção de discursos e práticas discriminatórias contra uma série de conquistas de direitos em políticas públicas alcançadas pelo movimento organizado LGBT. Utilizam a linguagem do sarcasmo para diminuir a expressividade dessa camada na população, e ainda mais banalizar as concepções sobre o problema da homofobia. Nunca se negou a existência de heterossexuais. Seus direitos e deveres nunca serão negados. Não existe uma perseguição pela cura ou reversão da heterossexualidade. Desde sempre, e de forma mais intensa pelos próximos anos, ela coexistirá com tantas outras formas de vivência de afetos, desejos e expressões, todas aquelas que nos fazem sentir humanos. Natureza? Lei da vida? Não, são os fatos, as pessoas e suas relações com o mundo. — Jo Fagner, professor universitário, mestre em Antropologia Social, bacharel em Comunicação Social. Página: http://facebook.com/jofagnerweb. Por mais repertórios de conhecimento: » Sugestões de filme: “Billy Elliot” (direção de Stephen Daldry, 2000), “Almost Normal” (direção de Marc Moody, 2005) e “Milk” (direção de Gus Van Sant, 2008). Notas: ¹ PL 7382/2010, em Câmara dos Deputados:http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=478462. ² “Câmara de SP aprova Dia do Orgulho Hétero”, por Roney Domingos para G1 SP: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/08/camara-de-sp-aprova-dia-do-orgulho-hetero.html, de 02 de agosto de 2011. ³ “Verdades absolutas”, por Paulo Bento Bandarra para Observatório da Imprensa: http://observatoriodaimprensa.com.br/entre-aspas/verdades-absolutas/, de 30 de julho de 2009. ⁴ Assista aos vídeos “Probabilidade” (https://youtu.be/FveoO6ZYRnQ), “Torpedo” (https://youtu.be/2qR7yDl0W0g) e “Encontrando Bianca” (https://youtu.be/SJsGN69NGug), que integram o Kit Anti-Homofobia elaborado pelo Ministério da Educação para promover uma Escola Sem Homofobia. ⁵ “Supremo reconhece união homoafetiva”, por STF:http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931, de 05 de maio de 2011.