Cadernos de Letras da UFF- GLC, n. 27, p. 181-185, 2003 181 Semântica e Gramática Monika Benttenmuller Amorim Maira Primo de Medeiros Lacerda RESUMO Esta resenha tem por objetivo apresentar as propostas do lingüista romeno Eugenio Coseriu ao problema das relações estabelecidas entre gramática e semântica. Tal tarefa encontra sua justificativa nas controvérsias ainda hoje suscitadas pelo tema e nas importantes e percucientes contribuições teóricas oferecidas pelo referido lingüista. lingüista romeno Eugenio Coseriu, recentemente falecido, legou-nos uma obra sólida, na qual, além de apresentar importantes contribuições em todas as diferentes áreas da Lingüística, propõe soluções para problemas teóricos da maior relevância para o avanço das ciências da linguagem, como aquele concernente às relações entre gramática e semântica. Esta resenha de seu texto Gramática y semántica1, resultado da pesquisa desenvolvida sob a orientação da Professora T erezinha Bittencourt, faz parte das atividades da Monitoria de Lingüística e tem o propósito de divulgar alguns aspectos fundamentais do pensamento coseriano. As relações entre a gramática e a semântica têm sido objeto de muita controvérsia entre os lingüistas, em virtude, entre outras razões, das diferentes concepções de linguagem adoradas pelas distintas orientações da lingüística contemporânea. Eugenio Coseriu, com o fito de investigar tais relações, fundamentais para a determinação do objeto de investigação das disciplinas lingüísticas, procura responder, ao longo de sua exposição, às seguintes perguntas: "Em que relação mútua se encontram a gramática e a semântica ou a gramática e o léxico?", "Em que medida deve ser semantica a gramática?". Para tanto, discute as diferentes acepções que podem ser depreendidas no emprego comumente feito do termo "gramática" e as relações entre esta e a semântica e, ainda, 18 2 AMoRIM, Monika Bentenmuller; LAcERDA, Maira P. de M .. Semântica e gramática. fundamentando-se nos três planos em que a linguagem se manifesta, estabelece os conteúdos concernentes a cada um deles e a respectiva terminologia empregada na tradição européia e norte-americana para a denominação das unidades significativas. . . Assim, investigando o termo "gramática", Coseriu afirma que, com base no uso feiro tradicionalmente pelos estudiosos, pode-se entendê-lo como: a) a técnica correspondente a uma língua determinada, que se manifesta ao falar-se acerca de uma realidade já organizada mediante as palavras da mesma língua; b) a descrição e investigação da referida técnica. A primeira acepção diz respeito à gramáticaobjeto ou gramátícaO e a segunda, por seu turno, à metalinguagem ou gramáticaO. Disto decorre que a gramátícaO, se define como um saber fàzer, não devendo identificar-se, como querem alguns estudiosos de orientação gerativista, com um "mecanismo para unir certos meaningsa certas representações fônicas", uma vez que, no signo lingüístico, significado e significante estão necessariamente unidos, não devendo tal vínculo ser atribuição de um suposto mecanismo. Ademais, a gramática 0 não corresponde, também, à faculdade de formar orações (competência expressiva), pois o saber falar é, ao mesmo tempo, competência lexical, competência expressiva em geral (saber elocucional), conhecimento intuitivo, conhecimento de textos, etc. Por tais razões, equiparar a faculdade de formar oraçõe~ em uma língua à gramática constitui um grave equívoco que tem de ser necessariamente eliminado. A gramáticaQ por seu turno, não se divide em morfologia (descrição de formas) e sintaxe (descrição de combinações materiais ou de funções gramaticais), já que se refere sempre a combinações de formas ou estruturas materiais e às funções de tais estruturas em todos os níveis (palavra, grupo de palavras, oração etc). Assim, ou a gramática é ao mesmo tempo morfologia e sintaxe, ou não pode haver nem morfologia nem sintaxe. A rigor, como ressalta Coseriu, deverse-ia distinguir entre uma gramática constitucional, uma gramática funcional e uma gramática relacional. À primeira caberia a tarefa de descrever a configuração material da expressão gramatical, ou seja, a forma gramatical em rodas as suas diversas expressões. A segunda ocupar-se-ia da investigação das funções dos diferentes estratos de estruturação gramatical, comprovando os paradigmas que funcionam efetivamente em cada um dos referidos estratos. A gramática relacional , por fim, teria por escopo o exame das relações entre os diferentes paradigmas nos quais se expressam funções designativas análogas. ., Càdernos de Letras da UFF- GLC, n. 27, p. 181-185, 2003 183 No que concerne ao léxico, deve-se entender por este termo a totalidade das palavras de uma língua que representem, ou melhor, organizem a realidade extralingüística, cabendo, pois, distinguir três classes de palavras: lexemáticas, categoremáricas e morfemáticas. As palavras lexemáticas estruturam a realidade extralingüística, as palavras categoremáticas (pronomes) apresentam a forma de estruturação do extralingüístico e as palavras morfemáricas representam as relações com outras palavras. Somente a primeira classe de palavras pertence efetivamente ao léxico e configura enquanto tal o objeto próprio da lexicologia. A semântica, tomada num sentido amplo, pode ser considerada como a investigação dos conteúdos lingüísticos, ou seja, da parte significativa da linguagem. Todavia, uma vez que toda linguagem é, por definição, semântica, enquanto campo de investigação a semântica tem por objeto toda a linguagem. Destarte, não cabe sequer perguntar se haveria ou não relações entre a semântica e a gramática, uma vez que a gramática é necessariamente semântica. Na verdade, o que se deve indagar é acerca da parte da semântica que compete à gramática estudar. Para responder a tal questão, é mister distinguir os três tipos de conteúdos relacionados com a tríplice dimensão em que a linguagem pode ser considerada. De fato, como ensina o mestre romeno, o fenômeno lingüístico pode ser visto consoante três diferentes perspectivas: universal, histórica e individual. Na primeira, revela-se como linguagem, na segunda, como língua e, na terceira, como fala. A cada uma das dimensões consideradas corresponde um tipo de conteúdo distinto: à linguagem corresponde o designado, à língua, o significado e à fala, o sentido. O designado corresponde à referência ao mundo extralingüístico, quer como estado de coisas quer como conteúdo de pensamento. O significado diz respeito ao conteúdo expresso por uma língua determinada. Por isso, expressões como "A porta está fechada." e "A porta não está aberta." designam o mesmo, já que apontam para um mesmo estado de coisas, por meio de significados diferentes. O sentido corresponde ao conteúdo manifestado num texto determinado através do significado e do designado, indo além do significado e do designado. Assim, um mesmo enunciado como Está /àzendo /Tio. pode determinar, em circunstâncias diversas, diferentes sentidos (o enunciador pode estar apenas querendo entabular conversação ou pode indicar o desejo de que alguém feche a janela ou pode apenas ter o intuito de fazer uma declaração). Vale lembrar que o conceito e a terminologia utilizados por lingüistas europeus e norte-americanos para as unidades do conteúdo não são, todavia, 184 fuvlORlM, Monika Bentenmuller; LAcERDA, Maira P. de M .. Scmânrica e gramática. uniformes, não coincidindo ou coincidindo apenas parcialmente, fato que, por si só, já contribui para a complexidade da questão. Assim é que, na tradição européia, distinguem-se normalmente "significado" e "designado", ainda que por intermédio de diferentes termos. Já na lingüística norte-americana, o meaningse refere (na maioria das vezes) ora ao conteúdo apreendido extralingüísticamente ora a um conceito mais geral que abarca tanto o significado quanto o designado. No que concerne ao significado especificamente, tal como ficou estabelecido, ainda é necessário fazer-se a distinção entre os seguintes tipos: significado lexical, categorial, instrumental, estrutural e ôntico. O significado lexical corresponde ao que é apreendido do mundo extralingüístico, o categorial, à maneira pela qual o significado apreende o mundo extralingüístico, o instrumental, ao significado dos morfemas, o estrutural, ao significado próprio das combinações de unidades lexemáticas ou categoremáticas com morfemas dentro da oração e, por fim, o ôntico, ao valor existencial estabelecido para um estado de coisas numa oração. Todas essas distinções feitas acima são de fundamental importância para a solução do problema concernente às relações entre gramática e semântica. A gramáticiJ tem de ser semântica, uma vez que seu objeto é precisamente estudar e descrever a parte semântica da gramáticaO, concernente aos significados especificamente gramaticais. Dito de outro modo, caberia à gramáticaOestudar os significados instrumental, estrutural e ôntico e à lexicologia examinar o significado lexical. O significado categorial, por sua vez, pertenceria tanto ao estudo da lexicologia quanto ao da gramática. Fica, pois, assentado que o estudo da gramáticaOé, necessariamente, um estudo semântico, não se podendo empreender qualquer investigação de natureza gramatical que prescinda do estudo dos significados gramaticais. É necessário ressaltar, por fim, que o objeto de estudo da gramáticaO compreende apenas o significado, ficando, portanto, fora de seu campo de investigação o designado e o sentido, pois que esses conteúdos não dizem respeito à estruturação idiomática das funções lingüísticas, isto é, aos conteúdos relativos à língua, mas aos conteúdos relativos à linguagem e ao texto, respectivamente. Ademais, levando-se em conta a perspectiva estritamente lingüística, como ensina Coseriu, o que se pode considerar primário é o significado e não a designação, pois as estruturas idiomáticas significam primariamente algo e só através do significado podem ser utilizadas para a designação. Cadernos de Lerras da UFF- GLC, n. 27, p. 181-185, 2003 185 NoTA 1 CosERJU, Eugenio. Semántica y gramática. ln Gramática, semánrica, universales: estudios de lingüística funcional. Madrid: Gredos, 1978. p. 128-147. REFER~NC1AS BIBLIOGRÁFICAS COSERIU, Eugenio. Gramática, semântica, universales: estudios de lingüística funcional. Madrid: Gredos, 1978. _ _ _ . Lições de lingüfstica geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980. _ _ _ . Competência lingüfstica: elementos de la teoría del hablar. Madrid: Gredos, 1992.