Apresentação do texto: Reflexões sobre a sedução num processo psicoterápico institucional. Estou enviando um texto com discussões sobre um caso clínico realizado em uma instituição pública, quando participei de um Estágio em Psicoterapia Psicanalítica. Ele é um recorte de minha dissertação de mestrado (que faço na Pontifícia Universidade Católica de Campinas), cuja orientadora é Dra. Regina Maria Leme Lopes Carvalho,. Apesar das discussões sobre o problema da psicopatologia da histeria e, então, do paciente em si, como é colocado no texto, gostaria de ressaltar que talvez este trabalho possa promover um importante debate para especialistas em formação e alunos de psicologia clínica. Pois, levando em consideração o contexto em que ocorreu o atendimento – em um hospital público, no ambulatório de psiquiatria – e as condições daqueles que executavam o tratamento psicoterápico – profissionais de psicologia, dos quais muitos eram recém formados – discuto também, no presente trabalho, a importância do amparo dos profissionais e supervisores do estágio tanto nas questões técnicas e teóricas sobre o paciente como também, quanto às variáveis que permeiam o atendimento: a instituição, os serviços do ambulatório e suas particularidades. Agradeço antecipadamente pela leitura do texto, Marcela Casacio Ferreira AV: Princesa D'Oeste, 1847. Ap114 f: 0.19.32541518 Campinas – SP - Brasil Reflexões sobre a sedução num processo psicoterápico institucional. Pretendo neste trabalho expressar uma vivência clínica realizada durante dois anos numa instituição pública com um paciente que chamarei de Doj1. Esta experiência fez-me refletir sobre algumas questões da clínica psicanalítica as quais discutirei no presente trabalho, destacando: 1) a posição do sujeito ao se aproximar de uma terapeuta iniciante, intimidando-a intensamente, 2) a relação entre a troca de psicoterapeuta - ocorrida por três vezes com esse paciente - com os aspectos transferenciais e contratransferenciais e 3) o lugar que ocupava a sedução nesta relação. Estas e outras indagações me fizeram investigar questões sobre a estrutura psicopatológica, o problema dos mecanismos defensivos e suas representações e a questão do contexto institucional onde o tratamento psicanalítico ocorreu. Aproximação de Doj Doj era um homem que não suportava a situação de impotência frente a sua enfermidade. Separou-se duas vezes das esposas e tinha quatro filhos No dia da sua primeira consulta chegou uma hora antes da marcada. Ao recebê-lo, logo dirigiu uma piadinha: “Você sabia que tinha uma psicóloga numa firma que se ela fechasse a porta e pedisse pra você fechar, e você virasse pra fechar, já era reprovado?”. Junto, trazia uma marca em destaque: uma cicatriz no peito; uma camisa aberta, até a metade do tronco, que deixava exposta a sua história. Doj foi encaminhado pela cardiologia por ser muito nervoso. Dizia não poder passar por situações que o deixassem assim pois isso prejudicava seu coração, provocando uma dor muito forte no peito. Apesar de já ter se submetido a uma cirurgia no coração, contava que as dores fortes não passaram, permanecendo e ainda o controlando. Glorificava-se ao expor sua vivência pelas estradas da vida. Já conquistou muitas mulheres, já se intrometeu em confusões; “já vi de tudo”. Saía por aí “pra trabalhar, com gosto”. Porém isso acabou há 6 anos, “a vida acabou”. Doj trabalhava com carga pesada, o que exigia muita força e disposição. Gostava disso e fazia de tudo para manter essa vitalidade ao mesmo tempo que se gabava dela. Entretanto, após seu ‘infarto’ isso teve que mudar. Não podia levantar peso, mexer com suas cargas pesadas e ainda, “conquistar fêmeas”, aquelas mulheres que precisam de um macho ao lado, satisfazendo-as. Falava dos filhos com carinho porém muito incomodado como também fazia muitos comentários das psicoterapeutas anteriores. É importante ressaltar que nessa instituição havia troca anual de terapeutas, geralmente ocorrendo no final de ano, época em que era encerrado o estágio. Os pacientes, após o término do tratamento com sua psicoterapeuta, aguardavam serem chamados pela próxima estagiária, que reiniciava o trabalho psicoterápico. 1 O nome é uma alusão a Log um paciente de Charcot apresentado em meados de 1885. Era um jovem de 29 anos que trabalhava com uma carroça e certa vez, um pesado carro chocou-a, lançando o jovem para a calçada. O carro não o atingiu, mas, após dias sem consciência e com os membros inferiores paralisados, voltou para casa e logo apresentou um grande ataque precedido pela ‘bola histérica’ (Trillat, 1991 , p. 157). No decorrer do início do tratamento, raras vezes se dispunha a participar; dispunhase sim, a tentar me conquistar. Provocava-me tanto sedutora quanto agressivamente. Como de costume, eu deixava que o paciente passasse na minha frente, entrando primeiro na sala. Ele não admitia e houve algumas vezes que ainda insisti para que entrasse mas, em vão. Ele dizia que mulher alguma podia entrar depois dele, ele é que queria determinar. Também evitava falar e associar livremente, deixando claro que não estava conseguindo fazer seu papel de paciente. Além do mais, desviava o foco da cena para mim, como se ele não precisasse falar e então, eu que deveria fazer no seu lugar. Neste momento eu estava tentando compreender a raiva que ele me provocava. Ao mesmo tempo que agia como um menino desamparado, logo era o perverso que queria me derrubar. Muitas vezes, senti-me esgotada após seus atendimentos, realizados duas vezes por semana. Em muitos dos seus relatos, era o menino que aparecia, e o que emergia era uma certa sensação de um poder meu sobre ele no que se refere a segurança, como uma mãe que ampara seu bebê. Ao mesmo tempo que revelava suas diferenças, confundia-se nas suas semelhanças. Também se achava parecido com o pai; o admirava. Mas, aos vinte e poucos anos saiu de casa. Suspeitava de que sua mãe não gostasse muito dele “Ela fazia muita diferença entre nós irmãos... Sempre fui mulherengo. Meu pai... Tenho muito a ver com ele mas ele sempre foi fiel. Eu nunca e ele não concordava com essas coisas. Meus irmãos já não. Sou a ovelha negra, diferente de todos. Minha mãe nunca gostou de mim...por isso sempre achei ser adotado. Sempre fui carente. Sabe que já cheguei a pensar que ando tanto por aí conquistando mulheres pra compensar essa falta de carinho de casa? Cê sabe que já cheguei a apostar mulher por aí! Arrependo de ter feito isso e te falo porque nunca achei legal fazer isso, mas fazia. Ao mesmo tempo que queria todas não queria nenhuma; queria conquistá-las” e voltando-se a mim: “e aí, mocinha, o que mais quer saber? Fala, vai!” E insistindo: não vai falar não, nada?” Era este o momento súbito de mudança no movimento da sessão: ao me questionar, agressivamente, sobre o meu silêncio, deixava transbordar sua defesa frente à angustia na transferência, muitas vezes me paralisando, como se eu me encontrasse sem saída. A clínica psicanalítica e o diagnóstico O fato de Doj vir da cardiologia era carregado de um enigma pois, após algumas cirurgias, Doj ainda sofria com as mesmas dores de antes. Isso remetia ao sofrimento do histérico, enigmático, no corpo, mas que visto isolado não conseguia nos dizer nada: foi preciso analisar como Doj se colocava frente a isso. Na investigação psicanalítica, pela razão da própria estrutura do sujeito, a única técnica disponível é a escuta e, então, é na dimensão do dizer, ou seja, da posição do sujeito frente ao dito, que se delimita o campo de investigação clínica. Tal investigação, por sua vez, deve se prolongar aquém do sintoma, num espaço intersubjetivo, pela articulação da palavra ou seja, deve haver um desdobramento do dizer. É nele que se manifestam as referências diagnósticas estruturais (Dor, 1993). Já que estamos falando de diagnóstico estrutural, é preciso lembrar, como nos conta Leite (2001), que na teoria de Lacan concebe-se a existência de dois modelos clínicos, o que impõe dois modelos diagnósticos, sendo um o da clínica estrutural como uma primeira clínica de Lacan – o qual auxiliou na compreensão do caso clínico deste trabalho – e o outro, da clínica borromeana cuja característica é de não se referir às categorias nosológicas da psiquiatria clássica e de se fundar na relação dos registros do Imaginário, do Simbólico e do Real, segundo as propriedades de figura topológica do nó Borromeano. Apesar de uma referência diagnóstica próxima de nós, não me ative somente a isto. A estrutura psicopatológica estava mantendo importância para que eu situasse Doj dentro de um certo referencial, mas não queria me fechar para o diferente ou para o desconhecido que pudesse emergir. Além do mais, não queria depositar minha angústia na tentativa de uma encaixe psicopatológico. Comecei então, um novo questionamento. Quem é a terapeuta e quem é Doj? Mudando o ângulo de reflexão, farei uma breve exposição da situação da dupla. Como este trabalho ocorreu durante um estágio realizado logo após o término da graduação, é preciso questionar as condições dessa ocorrência. Em primeiro lugar há a insegurança daqueles quem saem de uma formação acadêmica para o mundo do trabalho, considerando as falhas e faltas que a graduação pode deixar como marcas no início do exercício profissional de um jovem estudante. Ao mesmo tempo, a disponibilidade a ser despendida por este mesmo iniciante, pela densidade da demanda de um ambulatório psiquiátrico público não nos parece pouca. Também, este momento não consolida nem conclui a identidade e o saber profissional, pelo contrário, caracteriza-se por representar mais uma transição para o exercício da profissão, incluindo a quebra de paradigmas, a abertura do sujeito para novos modelos de identificação e então, a entrada em um mundo de aprofundamento no campo da experiência clínica e do conhecimento. Por outro lado, há grande dependência desse estudante com aqueles mais experientes. Em muitos momentos, as sessões de atendimento clínico são conduzidas pelos alunos da forma como ele acredita que o seu professor conduziria, ou mesmo, esperam ansiosamente pelas supervisões, em busca de explicações para o ininteligível. Além disso, há a questão da avaliação. Esse mesmo aluno sabe que é alvo de observação; precisa apresentar relatórios das sessões e trabalhos sobre alguns temas e isso permeia todo o processo psicoterapêutico. Sabemos também que nesses serviços públicos, não se escolhe o paciente e casos dos mais brandos aos muitos graves aparecem, indiscriminadamente, contando apenas com o profissional e sua carga de aprendizado naquele momento único do atendimento. Por isto questiono, as dificuldades desse trabalho, lembrando que ele escapa aos padrões da psicanálise clássica – padrão este que permite ao estudante um tempo para reflexão e elaboração de muitas questões tanto relativas à técnica e teoria, quanto pessoais. Também, ressalto a importância do papel do supervisor clínico: alguém que se disponha a estar realmente próximo ao aprendiz, interpretando e detectando não só movimentos dos pacientes mas também do próprio estudante, naquele contexto institucional. Considerando a importância desses aspectos e até exemplificando a importância do papel dos professores no estágio, continuarei a discussão sobre Doj em cima de uma pergunta que meus supervisores me fizeram, algumas vezes, durante o tratamento: o que me prendia a Doj? Por que pesquisar este processo? Qual a relação entre eu-mulher e Dojhomem? O enigma colocado por Doj e sua virilidade me mobilizaram, sim. Refletindo hoje, penso que, primeiramente, talvez no que tange à feminilidade. Era alguém que despertava mistério, interesse mas que se colocava, ao mesmo tempo, de forma vitimizada frente ao seu discurso. Como dito, aparecia também como um garoto, por vezes perdido e solitário talvez me mobilizando a questão da maternidade. Feminilidade e maternidade: o que isto significa para um mulher, bem dizendo, para mim? Doj talvez tenha acertado o ponto. Se, assim como o histérico, Doj quis demonstrar seu dom em atingir e ser o objeto do desejo do outro, ele conseguiu. Realmente parecia estar havendo um eco de sua sedução em mim; ele pescou o que precisava para me manter como sujeito desejante, ao seu lado. Então, alguém que foi atingida e que ficou paralisada, que não pensa mas se satisfaz com a sedução daquele que provoca? Além: permeada por tal satisfação estaria a terapeuta, assim, se distanciando da própria investigação analítica, em conluio com a resistência de Doj? Lembrei de como Freud foi tocado pela sedução das suas histéricas e do próprio Homem dos Ratos e então, precisei me questionar. Mas não é apenas isso. Numa das últimas sessões do tratamento, ele me contou que sua melhor amiga ficara grávida e que sua mãe era uma inútil, que não a ajudava. Ele me explicou detalhadamente o que uma mãe deveria fazer nessas horas. Foi impressionante a meticulosidade do relato e a necessidade de provar que se ele estivesse neste lugar, ele seria a melhor mãe. Doj estava revelando seu desejo de ser mulher, de ser feminina e mais, de ser mãe. Entretanto, deixando exposta a falta que disso sentiu. Então, estaria Doj me provocando para que despertasse em mim o seu desejo – que acaba por me seduzir - abstendo-se de ser ou estar no lugar de alguém que deseja ? Seria uma formação de compromisso: ele seduz-me através de um desejo meu enquanto com isso, goza por um desejo seu? Se isto ocorre, é porque a sedução não se define apenas como um mecanismo defensivo a serviço da resistência e sim, repleta de significado e intenção, está atuando como forma de provocar no analista aquilo que o sujeito quer desvendar sobre si. O que investigo é se através da contratransferência é possível detectar o significado da sedução, partindo do princípio de que, assim como o sonho e o sintoma, ela possa ter sido construída por deslocamento e condensação; por não poder aparecer como um desejo, vem transformada, como uma alegoria. Se estamos falando de histeria, o que não pode emergir remete a um conflito psíquico: Doj precisa muito compreender uma mulher ou mãe pois possui um imenso interesse nelas, talvez até desejo em experimentar sê-las, idolatrando-as, talvez aludindo à imagem materna, mas ao mesmo tempo, confunde-se na visão em relação a esta entidade, considerando-a inferior, alguém que não porta o falo e então é submissa. Entretanto, para o acesso a essas questões sobre ser mulher, desejar sê-las ou precisar delas, há uma longa estrada a se percorrer. Enquanto isso, elas precisam permanecer veladas, sob uma forma viril, de um homem que “se preze”, mesmo que para isso, pague-se um preço muito alto. A incessante prova de virilidade Doj, como um histérico, mergulha no desafio de ser convocado pelo desejo do outro e para isso é preciso estar apto para administrar a prova de sua virilidade junto a uma mulher. Precisa a todo momento estar provando sua posição fálica já que não se sente legítimo dela, através, principalmente, da sua sedução. “Eu posso tudo, consigo todas ... e se você não fosse minha analista, até você! Sempre fui bom nisso”. Constrói um mecanismo imaginário que o faz confundir desejo com virilidade, e ao receber uma solicitação feminina, não a acolhe como algo dirigido a um homem que deseja, mas, acolhe como algo que estaria impondo a prova de sua virilidade. É como se devesse provar ter o que a mulher demanda, o falo (Dor, 1993). Lacan (1956-1957/1995) nos conta que percebe que o sujeito pode estabelecer através do objeto simbólico – o falo - um ciclo estrutural de ameaças imaginárias que limita a direção e o emprego do falo real. Para ele, é aí que se encontra o sentido do complexo de castração e como nos diz “é nisso que o homem fica preso” (p.155). Como sofria Doj, mesmo que distante disto! Sua busca incessante de se mostrar aquele que sustenta tal posição fálica estava o desgastando, dia a dia. Em relação à contratransferência despertada nesses momentos da sessão, o que se destacava era ‘algo’ falso, que pairava no ar. Era falsa a forma que se apresentava a mim: um homem varonil, potente, perverso. Essa era a representação de um personagem masculino mas que escondia algo de essencial. J-P. Winter (2001, p. 11) cita um ponto importantíssimo no contato com o histérico: sua capacidade de parecer perverso a ponto de ignorar totalmente seu verdadeiro sofrimento, como “máscaras com que se traveste o sujeito a fim de que, para além da gentileza que lhe impõem (...) viva esta verdade, monstruosa com certeza, já que o risco de sua emergência suscita uma paixão tão generalizada pela ignorância” Um sujeito se revelando Doj relatava ter passado muito tempo de sua juventude buscando formas de se distanciar dos pais, precisando ficar bem longe deles. Por que tanta necessidade desta distância dos pais? Estaria Doj esforçando-se para permanecer longe dos seus pais temendo algum tipo de retaliação? Quais seriam suas fantasias ? Ou estaria também tentando se distanciar de mim e da análise? Contou-me, certa vez, da sua experiência religiosa quando fez ‘regressão’. Ele era alguém muito mal, um gladiador que destruiu uma família. Questiona-me, então, sobre o horror disso, afirmando que jamais faria isso. Porém, na mesma sessão, quando mistura alguns fatos soltos e dentre eles cita sua ansiedade e compulsão à comida, revela o seu medo de não se controlar, inclusive de bater ou matar. Conversamos, então, sobre isso e Doj imediatamente concorda sobre essas associações relativas ao medo da dimensão da própria raiva. Que raiva seria essa que provoca tanta angústia e precisa ser contida? Se pensarmos que está direcionada, inconscientemente, a algum objeto de amor, lembraremos de Édipo, que dirige sua agressividade a ponto de exterminar o próprio pai. Também de O retorno do totemismo na infância, onde Freud usa a refeição totêmica como forma de explicação para a ambivalência entre admiração paterna e inveja pela sua posição: os irmãos se juntam para matar o pai que odeiam e invejam mas que ao mesmo tempo admiram (1913/1996). No que tange suas fantasias de ser filho adotivo, ou seja, de ter pais adotivos é necessário compreender o que isso pode significar. Como nos coloca Quinodoz (1999) em relação ao mito de Sófocles Édipo-Rei, as questões relacionadas ao abandono dos pais biológicos, Laio e Jocasta, e a adoção dos pais adotivos de Édipo, Polybus e Merope não são suficientemente levantadas e esclarecidas. Ela nos conta sobre o fato de no mito, Édipo não saber nada sobre sua real origem, ou seja, o quanto é ignorante à sua própria existência e a de seus pais biológicos e questiona os ganhos secundários disso e se isso não seria uma forma de recusar ou rejeitar a cena primitiva. Afinal, foi pela dicotomização da dupla parental que Édipo conseguiu realizar seus desejos inconscientes. A forma vitimizada de Doj se expressar, fazia com que se destacasse a rejeição dos seus pais supostamente adotivos em relação a ele, quando comparado com os irmãos. Mas não seria essa também a representação de estar num lugar do vazio, do olhar indiferente do outro? Como um menino abandonado, quase homossexual? Podemos pensar em outra faceta desta fantasia: sua relação com a própria instituição e sua equipe, a qual inclui a terapeuta. Se o paciente não consegue ter dentro de si a identificação boa do casal parental, ele pode se sentir como ‘de ninguém’, ou mesmo ‘ninguém’. É possível que tal ilegitimidade de pertencer ou ser estivesse em íntima ressonância com as trocas das terapeutas, contribuindo para sua revivência, ano a ano, desta angústia. Voltaremos a esta questão mais para o final e nos ateremos à sedução, tão significativa e persistente, que podia estar representando essas fantasias. Ao compreender a esse sujeito próximo à histeria, e então, sendo um neurótico, ele coloca na relação afetiva com o outro a lógica doentia de sua fantasia inconsciente, na qual desempenha um papel de vítima infeliz e insatisfeita e, mesmo com essa insatisfação tão presente, ele evita de toda maneira, qualquer experiência que evoque de perto ou de longe um estado de plena e absoluta satisfação. Por várias vezes cheguei a me questionar sobre a validade dos atendimentos que eu proporcionava a ele, se estavam contribuindo em algo. Era a contratransferência despertando minha insatisfação que também era dele. J. Dor (1993) fala que a insatisfação do histérico surge a partir da própria sedução, pois através do ‘dado a ver’ do histérico, o que se mostra é o “desejo de aparecer, de agradar (...) uma demanda de amor e de reconhecimento” (p. 87), algo que Doj apresentava constantemente, explicando a tendência à sedução, que acaba sendo a base de uma negociação de amor. O sujeito se certifica de ser amado através do oferecimento do seu próprio amor, sem se poupar, e, querer ser amado por todos é sobretudo não querer perder nenhum objeto de amor. Identifica-se aí a insatisfação. Esta é uma visão da sedução como algo do que o sujeito necessita como sobrevivência, representada pela insatisfação. A finitude da relação Doj nunca havia trazido um sonho para a sessão mas, próximo ao fim do tratamento, pela primeira vez consegue me contar o seguinte sonho: “eu estava no meu carro com a X (uma grande amiga cuja idade regulava com a minha) e ela é que estava dirigindo! Nunca imaginei que uma mulher ficasse na direção enquanto eu estivesse no banco do passageiro, mas sabe que távamos numa boa! Era só risada” O sonho prosseguia com uma parada solicitada pela polícia que pedia documentos que não estavam com eles, mas que de forma divertida, se safaram e conseguiram seguir. Penso e questiono as razões possibilitadoras disto. Mesmo tendo consciência do longo trabalho que resta a se fazer, penso que este nosso encontro proporcionou-lhe uma abertura inconsciente, mesmo que estreita. Meu próprio interesse neste caso contribui para isto. Mas, o que me parece essencial, foi meu desejo neste ensejo, de que a análise prosseguisse, questão transferencial fundamental para a continuidade do trabalho. Contudo, apesar da esperança neste tratamento, a sedução, particularmente, que se repetia, era ainda marcante. Como já dito anteriormente, um significado crucial pedia para ser compreendido. Procurando analisar a sedução profundamente, Mezan (1993) fala da sua dupla face: seu lado traumatizante (que deixa restos enigmáticos carregados de sexualidade e o outro, estruturante (categorização desses restos . Baseado na teoria da sedução generalizada de Laplanche, explica como isso acontece entre o psiquismo adulto sobre o infantil. No que se refere à análise em si, expõe o quão sedutora ela é pela promessa que contém – de afastar um sofrimento - e por suas condições (a escuta, por exemplo, o ato de convidar) que permitem o estabelecimento da transferência, que é a ilusão na qual reside a sedução, e que são fundamentais para a continuidade do trabalho. Mas a questão outra sobre esta sedução psicanalítica que coloco é: de que forma soa para um paciente de uma instituição e então para Doj, essa promessa enigmática (e então, tão carregada ) feita mas cuja interrupção é precoce? Como já dito, ocorria uma troca anual de psicoterapeuta naquele ambulatório. Apesar disso ser trabalhado com muito cuidado e grande atenção aos processos regressivos que o paciente podia apresentar pela separação e pela troca, alguns não suportavam e atuavam. Neste caso clínico, especificamente, a sedução estava se consolidando como uma defesa para sobrevivência, que é a necessidade de ser amado. Pois, se um paciente em análise, como fala Mezan (1993), tenta seduzir o analista, oferecendo-se como parceiro para a cena edipiana., é porque precisa revivê-la na análise com o analista para modificá-la; transformá-la, abolindo o sofrimento da frenética demanda de amor e para isso é preciso de tempo. Sobre as terapeutas anteriores havia muitas questões trazidas por Doj. Ele associou por várias vezes essa experiência de troca como de abandono, assim como foi com sua mãe na sua fantasia e com sua segunda esposa. Se eu somava a terceira psicoterapeuta daquela instituição a atende-lo e com a pretensão de deixá-lo, qual a ressonância disso para este paciente? Poderíamos pensar que esse paciente através de sua compulsão à repetição do ato de seduzir, necessitava demonstrar algo que não podia passar pela palavra. E sobre sua angústia infantil de ser adotivo: estaria tentando lidar em ato com seu conflito de quem ele é, a quem pertence já que suas fantasias são fomentadas e reeditadas pela própria repetição da troca de terapeutas a cada fim de ano? Questiono então, como os atendimentos públicos que não podem fornecer terapias de longo prazo com um único psicoterapeuta podem lidar com tal situação. Se este é justamente um grande conflito para o paciente, é preciso estar muito atento a essas questões diretamente ligadas à dinâmica institucional. O trabalho psicanalítico pode ser realizado nestes setting diferenciados, sim, desde que haja grande capacidade de elaboração e compreensão daqueles profissionais que o realizam; e se eles são novatos, precisam depender dos seus supervisores, que acredito serem os participantes fundamentais de todo o trabalho e tratamento psicoterápico nestes contextos. REFERÊNCIAS Dor, J. Estruturas e Clínica psicanalítica, trad. J. Bastos e A. Telles. Rio de Janeiro: Taurus, 1993. Freud, S. Totem e Tabu (1912-1913) in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, vol. XIII, Rio de Janeiro: Imago, 1996 . Lacan, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto. Texto estabelecido por Jacques AlainMiller (1956-1957). trad. Dulce D. Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. Leite, A.C.de C. Em busca do sofrimento histérico: a dimensão melancólica da histeria. Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental, v. II, n. 3, 1998. Leite, M. P. de S. Diagnóstico, psicopatologia e psicanálise de orientação lacaniana. Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental, vol. Iv, n. 2, 2001. Mayer, H. . Histeria, trad. Ricardo Costa Sanguinetti. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. Mezan, R. A sombra de Don Juan: a sedução como mentira e como iniciação, in A sombra de Don Juan e outros ensaios, São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. Nasio, J-D. A Histeria: teoria clínica e psicanalítica. trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. Quinodoz, D. O complexo de Édipo revisitado: Édipo abandonado, Édipo adotado, trad. Nilde J. Parada Franch. The International Journal of Psychoanalysis, 80, p.15-30, 1999. Trillat, E. . História da Histeria. trad. Patrícia Porchat. São Paulo: Escuta, 1991. Winter, J-P. Os errantes da carne: estudos sobre a histeria masculina. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.