História, Memória, Ciência e Ensino

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História, Memória, Ciência
e Ensino
A Propósito de Jornais, Televisão, Sites e Outros
Meios de Informação
Luís Reis Torgal
História, Memória, Ciência e Ensino
A propósito de jornais, televisão, sites
e outros meios de informação
Luís Reis Torgal – Professor Catedrático Aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
No Diário de Coimbra de 12 de Julho de 2007, numa
considerada património municipal ou mesmo nacional.
“caixa”, aludia-se à “Terra de António José de Almeida”.
Era este, precisamente, o título do artigo.
O pequeno artigo, de 10 linhas, sobre tão importante
personalidade tinha, todavia, nada menos do que
António José de Almeida, como se sabe, foi um dos mais
quatro erros ou imprecisões: a data do nascimento (27
importantes e respeitados combatentes republicanos
de Julho e não, como devia ser, 17 do mesmo mês, a
durante a Monarquia, como jornalista, deputado e
data do feriado municipal de Penacova); o dia da morte
revolucionário. Depois da implantação do novo regime,
(31 de Agosto de 1929 — o Presidente faleceu em 31
em 5 de Outubro de 1910, foi ministro do Interior
de Outubro de 1929); a sua presença como médico em
do Governo Provisório de Teófilo Braga, fundador do
Moçambique, onde nunca estivera (fora clínico em S.
Partido Evolucionista e do seu órgão de imprensa, o
Tomé durante sete anos, depois de passar por Angola);
jornal República, presidente do ministério do governo
e a sua prisão dois anos antes da morte de D. Carlos,
da “Aliança Sagrada” (com o Partido Democrático de
quando António José estivera preso, mas alguns dias
Afonso Costa), durante a Primeira Guerra Mundial, e
antes do Regicídio.
Presidente da República de 1919 a 1923. Na verdade,
foi o único a cumprir o mandato completo durante o
Eu, que publicara com Alexandre Ramires, um algarvio
regime que terminou de facto com a Ditadura Militar,
de Olhão e um dos melhores especialistas em História da
instaurada pela autodenominada “Revolução Nacional”,
Fotografia, dois livros sobre António José de Almeida1,
de 28 de Maio de 1926, e pelo Estado Novo de Salazar,
apressei-me a corrigir o jornalista, que se tratava de um
que institucionalmente começou a ser erigido em
simpático filho das terras de Penacova, uma das mais
1930.
belas vilas portuguesas pela sua localização geográfica,
no início do Alto Mondego, que atraiu as atenções do
A “Terra de António José de Almeida” é S. Pedro de
viajante das terras do Buçaco, Augusto Simões de
Alva (no tempo em que nasceu, em 1866, chamada
Castro, bem como de Manuel Emídio da Silva e de Raul
Farinha Podre, nome que provavelmente lhe adveio da
Lino, o qual aí deixou, com a Sociedade de Propaganda
passagem de viajantes e almocreves que deixavam os
de Portugal, em 1918, uma encantadora ramada, num
seus alimentos pendurados nas árvores, feitos sobre-
dos mais belos miradouros da região. A resposta do
tudo à base de farinha, que muitas vezes apodreciam).
jornalista, que reconheceu os seus erros com pedidos de
Mais precisamente, é Vale da Vinha, pequeno povoado
desculpa, é que, com “a falta de tempo”, não consultara
da freguesia, pertencente ao concelho de Penacova,
o meu livro, o qual de resto possuía, mas um site, onde
no distrito de Coimbra, onde Almeida nasceu, numa
se encontram, na verdade, como pude verificar, alguns
casa que se encontra ainda de pé e que deveria ser
desses erros.
António José de Almeida e a República. Discurso de uma vida ou vida de um discurso. Selecção de imagens de Alexandre Ramires. Lisboa, Círculo de
Leitores, 2004 (nova edição: Lisboa, Temas e Debates, 2005), e, com Alexandre Ramires, António José de Almeida. Fotobiografia. Lisboa, Museu da
Presidência da República, 2006.
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Luís Reis Torgal
Lembrei-me então dos conselhos que por norma dou
director, Eduardo Schwalbach era seu amigo pessoal.
aos meus alunos, advertências, no entanto, diferentes,
E foi na sede desse periódico que logo se reuniu a
pela sua menor severidade, dos meus colegas fran-
comissão organizada para homenagear o Presidente
cesas, de acordo com as informações que me dão os
com uma estátua.
estudantes do programa Sócrates/Erasmus que chegam a Coimbra. Esses meus colegas “proíbem” os seus
Pois o referido suplemento do Diário de Notícias tinha
alunos de consultar os sites. Eu digo aos estudantes
também quatro erros. Dizia (na p. 183) que a primeira
que a consulta deve ser considerada, quando muito,
pedra do monumento tinha sido lançada em 31 de
como ponto de partida — ponto de partida para consulta
Dezembro de 1932 — foi-o nesse ano, mas no dia do
de outros documentos — e como ponto de chegada,
aniversário da morte de António José de Almeida, 31
para verificar, inclusive, os erros que por ali livremente
de Outubro; afirmava que a inauguração da estátua se
correm.
dera em 31 de Dezembro de 1937 — fora inaugurada,
sim, nesse ano de 1937, mas também em 31 de Outu-
Mas, esta simples “estória” leva-me mais longe: à
bro. Além disso, lia-se no referido texto que António
dificuldade que temos, nós que somos cientistas da
José de Almeida “estudava Medicina em Lisboa, quando
História — e que também damos erros, naturalmente
publicou no jornal da faculdade o Ultimatum, um artigo
—, em influenciar a opinião pública e em induzir a
de opinião versando a monarquia, sugestivamente
formação da memória histórica. Ou seja, por mais
intitulado Bragança, o último”. Com efeito, António José
anos que gastemos na investigação e mesmo que
de Almeida formou-se em Medicina na Universidade
dêmos aos nossos textos, como sucede com os
de Coimbra, em 1895, tendo publicado no Ultimatum,
que publicámos sobre António José de Almeida, um
jornal dos estudantes republicanos (e não, obviamente,
sentido de divulgação, de acesso mais fácil, somos
da Faculdade de Medicina), no “número programa” de
logo ultrapassados por um sistema de mais aliciante,
23 de Março de 1890, o citado artigo. E tal publicação
económica e rápida consulta, como é um site na
levou-o ao tribunal com o então estudante de Direito
Internet, num tempo em que a informática aparece,
Afonso Costa, que assinou também um outro artigo,
mesmo em termos oficiais, apresentada não como um
e o tipógrafo Pedro Cardoso. Costa foi absolvido, o
meio (e excelente, sem dúvida), mas como um fim em
responsável gráfico multado e foi atribuída a António
si mesma.
José uma pena de prisão de três meses, facto que iniciou
a sua onda de popularidade entre os republicanos.
Não se pense, todavia, que este tipo de erros surge
apenas em órgãos da imprensa regional, como é o
Como se vê, um texto sobre uma figura significativa
respeitado Diário de Coimbra. Ainda a propósito de
para o Diário de Notícias, que publicou nas suas pági-
António José de Almeida, recordo um suplemento
nas, ao longo do tempo, várias artigos sobre António
publicado há uns anos, em fascículos, no lisboeta e
José de Almeida, apresentou também erros diversos,
consagrado Diário de Notícias que se intitulava Olhares
originados não sei por que fonte, ou por qual obra ou
de Pedra (vende-se agora sob a forma de livro).
mesmo por qualquer site.
Apresentavam-se fotografias de estátuas existentes
na cidade com um texto breve alusivo a cada uma
Mas, desde que não sejam supervisionados, os fóruns
delas. A estátua de António José de Almeida ergue-se
são ainda espaços mais perigosos ao nível da informa-
precisamente nas “avenidas novas” da capital, na que
ção. Vou dar um exemplo pessoal que me parece muito
tem hoje o seu nome. Falecido ali perto, na sua casa da
significativo. O bizarro e perigoso programa “Grandes
avenida António Augusto de Aguiar, como se disse em
Portugueses” — que critiquei desde a primeira hora e
31 de Outubro de 1929, às duas e meia da madrugada,
em cuja sessão de apresentação tive oportunidade de
o seu falecimento foi logo noticiado nesse dia pelos
estar presente a convite da jornalista Maria Elisa, que
jornais, em especial pelo Diário de Notícias, cujo
sabia, de resto, da minha opinião sobre ele — teve a
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acompanhá-lo um espaço de debate no site da Rádio
que aliás fiz também junto do Provedor da RTP. Claro
e Televisão de Portugal (RTP). A certa altura, fui infor-
que me deu razão, mas o crime ficara sem pena, a
mado de que um tal “Reis Torgal” estava a apresentar
influência nefasta na opinião ter-se-á verificado e a
opiniões contra Aristides de Sousa Mendes.
estação de televisão não assumiu publicamente a sua
responsabilidade. Conforme dizia Eduardo Lourenço,
Tendo concluído que não se tratava de um juízo de um
invocando Ruben A, não evidentemente a propósito
parente meu, pois esse tal interveniente no debate se
deste triste mas insignificante episódio, mas sim de
apresentava precisamente como “Professor da Facul-
outro mais importante para a opinião pública, ou seja, a
dade de Letras de Coimbra”, pude concluir que era
vitória (“fabricada”, como a apelidei2) de Salazar nesse
apenas alguém que, usando o meu nome, procurava
concurso, as coisas em Portugal não acontecem, mas
iludir a opinião dos “defensores” do “cônsul de Bordéus”,
“acontecem-se”. Para depois concluir, preocupado: “A
que — como é sabido — se tornou famoso devido aos
gente dá conta, regista e passa à frente. O país deglute
“vistos” que passou a homens, mulheres e crianças que
tudo” (Público, 23.3.2007).
fugiam da repressão nazi e que, assim, se tem tornado
“herói” perante a opinião pública. Não deixa, em todo o
A este propósito, será que a “vitória” de Salazar nesse
caso, de ser curioso que, para além destas hostilidades,
concurso “Grandes Portugueses” teve algum significado
que a televisão do Estado permitiu que corressem,
ou alguma importância em termos de opinião pública
anónimas ou usando nomes verdadeiros que não per-
ou de memória da história? O tempo o dirá. O certo,
tenciam ao seu autor, não faltaram também, mais em
porém, é que, essa “vitória” não foi seguramente o
“à partes” do que em discurso corrido, algumas vozes
resultado de uma sondagem objectiva à memória his-
mais autorizadas que, sem propriamente citar fontes,
tórica dos portugueses, mas resultou sim da pressão
procuraram contestar Aristides e a sua “heroicidade”,
de “defensores” de Salazar, os quais, servindo-se das
conceito que, todavia, só faz parte do vocabulário do
modernas tecnologias, angariaram verdadeiras equipas
historiador para cientificamente o desconstruir, dado
de votantes, como outros se organizaram para votar
que o seu papel será sempre interpretar as persona-
em Álvaro Cunhal ou em Aristides de Sousa Mendes
gens de forma objectiva, usando todas as fontes a
(sobre outras figuras da história, os seus “defensores”,
que pode recorrer. Tratava-se afinal de uma guerra de
pessoas e instituições, como Câmaras Municipais,
opinião que procurava opor a “honestidade” de Salazar
só tardiamente despertaram perante o anúncio do
e a “duvidosa moral” do diplomata, no domínio privado
“desastre” que seria Salazar vir a ser considerado no
e no domínio público, tendo em conta, neste caso, que
concurso “o melhor português de sempre”). Mas, além
Aristides de Sousa Mendes desobedecera às directrizes
disso, o resultado acabou, também, por reflectir um
do Ministério dos Negócios Estrangeiros e, assim,
certo ambiente de questionamento da democracia, tal
do próprio Salazar, que afinal também defendera os
como ela se pratica, e de sobrevivência de um certo
refugiados.
messianismo autoritário, que por vezes reaparece na
sociedade portuguesa3.
Felizmente alguns dos participantes desse debate notaram a utilização abusiva do meu nome, declararam isso
Esses sintomas podem também entrever-se na atracção
de forma expressa no referido espaço de discussão
que provocam os livros sobre Salazar, num mercado
e um alertou-me para a situação. Tive de intervir, e
livreiro pouco exigente em matéria científica, em que o
fi-lo pela primeira vez num fórum, para desfazer
estímulo do interesse é o “fácil”, o “sensacional”, o que se
equívocos e denunciar um procedimento criminoso, o
“deglute em poucas horas”. Assim, obras respeitáveis,
“Salazar, ‘Grande Português, ou a memória fabricada”, in Diário de Coimbra, 23.03.2007.
Ver José António Saraiva, “O ‘lado bom’ de Salazar”, in Sol, 31.3.2007.
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mas que atraem a curiosidade não pelo essencial e
por professores e investigadores, por vezes em teses
sim pelo acidental e pitoresco, como Máscaras de
de mestrado e de doutoramento, não é geralmente
Salazar e Os Amores de Salazar, respectivamente,
lida e assimilada pelo leitor comum, nem mesmo por
dos jornalistas Fernando Dacosta e Felícia Cabrita, que
muitos professores de História. À maneira do jornalista
são, afinal, segundas edições de obras publicadas há
do Diário de Coimbra, estes, por “falta de tempo”
alguns anos , tornaram-se best-sellers, assim como,
ou de interesse, limitam-se à consulta de manuais
noutro registo bem diferente, por certo será muito
repletos de ilustrações mas não de informação, obras
vendida e consumida a obra de historiografia ideológica
de autores nem sempre competentes cientificamente
ou de ideologia historiográfica António de Oliveira
e de sites de valor duvidoso. Num ensino cada vez
Salazar. O outro retrato, do “defensor” de Salazar no
menos preocupado com a ciência dos alunos e dos
concurso referido, o ideólogo de direita Jaime Nogueira
seus docentes, sobretudo em matéria de humanidades
Pinto . “Salazar é que está a dar”, como intitulava a
e ciências sociais, como de resto se vê pela menor
comentarista Clara Ferreira Alves num seu artigo
importância concedida à História (ou à Filosofia) que,
(Única, Expresso, 21.3.2007). Assim, a “estória” torna-
enquanto disciplina autónoma, parece estar, de resto,
-se história e a ideologia, perigosamente, aproxima-se
em vias de extinção nos ensinos básico e secundário,
do discurso historiográfico e, para leitores incautos,
os professores encontram-se cada vez mais envolvidos
até se confunde com ele.
na burocracia escolar, no acompanhamento pedagógico
4
5
e didáctico de alunos (numa lógica de pseudopedaPor outro lado, Salazar tornou-se estrela de teatro e
gogia ou de panpedagogismo), não tendo possibilidade
mesmo que peças como Férias grandes com Salazar,
ou sensibilidade para constituírem bibliotecas pessoais
encenada pelo Teatro Nacional D. Maria II no pequeno
ou escolares, para frequentarem bibliotecas públicas
Teatro da Politécnica , ou Salazar, The Musical, apre-
de referência, para assistirem a cursos e a congressos
sentada no Teatro Villaret7, sejam intencionalmente
de actualização de conhecimentos e até para pros-
obras críticas de Salazar, a verdade é que são mais
seguirem os seus estudos tendentes a desenvolver a
uma prova de que o estadista ditador se tornou um
ciência em que se formaram.
6
“produto de consumo”, pelo menos, neste caso, nos
meios urbanos.
O próprio decreto-lei n.º 200/2007, de 22 de Maio,
parece revelar, ainda que de modo indirecto e velado,
Esta situação confusa e promíscua terá consequências
essa intenção oficial de se pensar o ensino como
ao nível da opinião pública formulada em relação à
uma prática em que a “ciência fundamental” é pelo
história ou ao nível da memória? Essa parece-me a
menos desvalorizada. Trata-se da legislação relativa
grande questão. E ela é afinal uma questão ainda mais
ao concurso para “professores titulares”, em que são
grave se se tiver em conta que, no caso pendente, a
pontuados os professores candidatos pelas várias
extensa bibliografia sobre o Estado Novo e o Salaza-
categorias das suas actividades.
rismo, grande parte dela elaborada na Universidade
Fernando Dacosta, Máscaras de Salazar. Narrativa, Lisboa, Editorial Notícias, 1997. O livro teve várias edições e neste ano de 2007 surgiu a 20.ª
edição, graficamente mais cuidada, considerada como “Versão revista e aumentada” e tendo, na própria capa, a afirmação de propaganda, extraída de
um texto de Javier Garcia publicado no diário espanhol El Pais, “Uma obra decisiva para a compreensão do século XX português”: Máscaras de Salazar,
Cruz Quebrada, Casa das Letras, 2007. Felícia Cabrita, Mulheres de Salazar, Lisboa, Editorial Notícias, 1999, com prefácio de Fernando Rosas. A autora
publicou depois uma outra edição apresentada como um novo livro, em “1.ª edição”, com outro título e outro prefaciador: Os Amores de Salazar, Lisboa,
A Esfera dos Livros, 2006, com prefácio de Diogo Freitas do Amaral.
4
António de Oliveira Salazar. O outro retrato, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2007. Entre várias obras de natureza essencialmente ideológica, note-se a
sua participação no livro de co-autoria (com José Dias de Almeida da Fonseca e Analide Guerreiro), intitulado sintomaticamente Reacção, s. l., s. ed.
[1984]. Nogueira Pinto assina ali a parte intitulada “Comunismo — Fascismo. Em Portugal houve Fascismo?”.
5
A obra original é do espanhol Manuel Martínez Mediero e teve como título em português As longas férias de Oliveira Salazar (tradução portuguesa:
Fundão, Cena Actual, 1996).
6
A peça foi encenada pelo inglês John Mowat.
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Repare-se (Anexo II, 1.2. e 1.3.) que são valorizados
Porém, mais do que esta questão pontual de que
os mestrados e os doutoramentos (que cada vez se
Salazar foi, ou pode ser, “um caso”, temos de ter
tornam mais difíceis de frequentar pelos professores),
consciência que estamos num tempo de crise de um
mas não deixa de se fixar uma ordenação arbitrária e
saber sistematizado, rigoroso e crítico, em relação às
formal (mas não casual e bem significativa), em que
várias ciências, e insistimos numa lógica de separar
se referem primeiro os graus obtidos em Ciências da
perigosamente os “cientistas” e os “pedagogos”. Inclusi-
Educação e só depois os graus alcançados “em domínio
vamente os novos cursos erguidos segundo uma lógica
directamente relacionado com o respectivo grupo de
falsamente “bolonhesa”, em que o tempo escasseia
docência”. E quando dissemos que essa ordenação não
para uma formação condigna, armazenada afinal em
era “casual”, afirmámo-lo baseados em argumentos
séries de disciplinas acumuladas em semestres, que
suplementares. Com efeito, os professores do ensino
são verdadeiramente trimestres, torna a formação
básico e secundário doutorados só puderam ser consi-
cada vez mais ligeira e superficial, em que o sucesso
derados como “investigadores integrados” nos Centros
se mede mais por factores formais do que essenciais.
financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Assim, Salazar é apenas um exemplo, por certo mais
devido ao facto de haver doutores nessas condições
significativo e perigoso, pois, numa sociedade de
na área das Ciências da Educação! Por outro lado,
espectáculo e do rapidamente consumível, todo o
verificar-se-á que, no mesmo decreto-lei, nenhuma
conhecimento da História ou de outra qualquer ciência
pontuação é atribuída pela autoria de livros e artigos de
tende a tornar-se menos profundo e menos crítico.
História ou de outra ciência considerada fundamental,
E é preciso alertar esta sociedade em que vivemos,
mas apenas ao facto de se ter sido autor de programas
neoliberal e tecnocrática, que o ensino nos estados
e manuais escolares (idem, 3.1.), como se a Educação
autoritários/totalitários era também dominado pela
fosse apenas uma “forma” ou uma metodologia de
técnica, pelas ciências aplicadas ou pelas ciências
ensino e não uma “matéria” ou conteúdo científico, e
sociais ou “políticas” inseridas numa ideologia à sua
não devesse ter por missão fundamental desenvolver
medida… Jogar em idêntico tabuleiro é, pois, sempre
o espírito crítico.
um jogo altamente perigoso, mesmo que saibamos
que, felizmente, a História nunca se repete.
Considerados todos estes pressupostos e o facto de,
em Portugal, não se ter consciência da importância da
Sem alarmismos e com o optimismo de quem luta
formação da memória histórica, não se rebatendo no
sempre, julgo que de novo se deve criar entre docentes
plano científico obras oportunistas de tipo salazarista
e investigadores da História uma lógica de “combate”.
e procurando esquecer a memória do passado, que
Lucien Fèbvre escreveu um livro célebre no seu
deveria ser avivada, o movimento tendente a apresentar
tempo, Combats pour l’Histoire8. É preciso outra vez
Salazar como um “exemplo” pode tornar-se cada vez
— neste tempo de passo de caranguejo, parafraseando
mais perigoso. Veja-se como a Alemanha está agora a
Umberto Eco9 — fazer ressurgir no espaço cultural essa
lidar com o problema da memória do seu passado nazi,
luta dos nossos antepassados, nunca em prol de um
não só mostrando, de forma exemplar, os seus campos
historicismo e de um novo dogmatismo, mas de um
de concentração, como o de Dachau, mas também
espaço de conhecimento solidamente interpretativo
criando recentemente, e de modo pedagógico, o Centro
e interrogativo. A consciência histórica e a memória
de Documentação de Nuremberga, exactamente onde
não devem constituir um património que apenas se
o Partido Nacional-Socialista organizou oito apoteóticos
conserva e se respeita, mas um património que se
congressos.
interroga.
Lucien Fèbvre, Combats pour l’Histoire, Paris, Armand Colin, 1953. Tradução portuguesa: Combates pela História, Lisboa, Presença, 1977.
8
Umberto Eco, A passo di gambero, Milão, Bompiani, 2006. Tradução portuguesa: A passo de caranguejo, Lisboa, Difel, 2007.
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A História não é um verniz para enfeitar discursos
ideológicos ou literários, mas é uma ciência objectiva.
Não pensar assim é dar passos para trás, ou seja, é
voltar a uma disciplina ou uma “arte” do tipo da que
encontramos no século XIX e que foi ultrapassada por
uma filosofia e por uma metodologia de rigor, que
cada vez se vai tornando, infelizmente, mais ultrapassada. Jornalismo que não seja de investigação
(lamentavelmente secundarizado), sites e fóruns sem
controlo científico, livros e discursos de “estórias” e de
pseudo-história, por mais aliciantes que sejam, não
podem ser tidos como referência. Tudo é necessário,
desde o artigo de jornal, aos sites e fóruns e aos
livros e programas de “divulgação”, mas não podem
ser escritos ou ditos apressadamente com descuidos
lamentáveis ou, o que é pior, por vezes com desígnios
inconfessáveis.
Não há ciência sem rigor e a falta de tempo para pensar
e o pragmatismo do “negócio” (também no sentido
etimológico de nec-otium) podem ser inimigos do rigor.
Deve ser esta a grande batalha dos cientistas do século
XXI, numa época de urgente pós pós-modernidade,
em que se não se pretende o regresso a uma filosofia
racionalista e “cientista”, também não se deseja a
manutenção da ideia do relativismo e do pragmatismo
como categorias essenciais do conhecimento e do ensino, que tem invadido o discurso “oficial”. A luta pelo
rigor e pela conquista do conhecimento “sem condição”
(parafraseando o filósofo Jacques Derrida, no seu
discurso sobre a Universidade10), deverá preocupar todo
o cientista. Também deverá ser a batalha do historiador
em outros “combates pela História”.
L’Université sans condition, Paris, Éditions Galilée, 2001. Tradução portuguesa: A Universidade sem condição, Coimbra, Angelus Novus, 2003. Com um
Posfácio de Fernanda Bernardo.
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