Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a

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REVISTA DA
DEFENSORIA PÚBLICA
Edição Especial Temática sobre
PRINCÍPIOS E ATRIBUIÇÕES INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA
Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo - EDEPE
Rua Boa Vista, 103 - 13º andar
CEP 01014-001 - São Paulo-SP
Tel.: 11-3101-8455
e-mail: [email protected]
Revista da Defensoria Pública
Ano 4 - n. 2 - jul./dez. 2011
Diretora da EDEPE:
Tiragem:
Elaine Moraes Ruas Souza
1.500 exemplares
Coordenação da Revista da Edepe
Produção Gráfica:
Carlos Eduardo Afonso Rodrigues,
Gráfica e Editora Viena
Daniel Guimaraes Zveibil, Luciana Jordão
Da Motta Armiliato De Carvalho,
Lucio Mota Do Nascimento,
Marco Antonio Corrêa Monteiro,
Marcus Vinicius Ribeiro,
Tiago Fensterseifer,
Bruno Shimizu
Conselho Editorial Da Revista Da Edepe:
Alvino Augusto De Sá, Ana Elisa Liberatore
Silva Bechara, Ana Lúcia Pastore
Schritzmeyer, Flávia Piovesan,
Gustavo Octaviano Diniz Junqueira,
Ingo Wolfgang Sarlet, Juliana Garcia
Belloque, Lilia Moritz Schwarcz
A EDEPE, em suas revistas, respeita a liberdade intelectual dos autores e publica integralmente
os originais que lhe são entregues, sem, com isso, concordar, necessariamente, com as opiniões
expressas.
Sumário
Apresentação.......................................................................................................7
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes: modelos de
organização e de prestação do serviço
Roger Smith..........................................................................................................9
A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo
Aluísio Lunes Monti Ruggeri Ré..........................................................................37
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir
da justiça ambiental
Élida Lauris..........................................................................................................55
A defensoria pública paulista: caminhando na contramão
Eneida Gonçalves de Macedo Haddad...............................................................75
Educação republicana para os direitos humanos sua importância num
estado democrático de direito
Paulo Ferreira da Cunha.....................................................................................89
Educação em direitos e defensoria pública: reflexões a partir da lei
complementar n.º 132/09
Gustavo Augusto Soares dos Reis.................................................................... 111
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o
ajuizamento de ação civil pública
Ada Pellegrini Grinover.....................................................................................143
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado
e a OAB/SP na prestação de assistência judiciária
Virgílio Afonso Da Silva.....................................................................................167
Apresentação
Recomenda a prudência que, do ponto de vista institucional, nos
períodos de maior crescimento e em meio à celebração de conquistas,
não se percam de vista os fundamentos e princípios que nortearam a
criação da Defensoria Paulista. É com base nesse pensamento que a
EDEPE traz à luz, com muito orgulho, o terceiro volume da nossa revista.
Este volume temático centra-se nos princípios e atribuições
institucionais da Defensoria Pública, contendo trabalhos que trazem
reflexões profundas sobre os tópicos centrais que informam a atuação do
Defensor e sobre o espaço ocupado pela instituição na sociedade.
O artigo que abre essa edição da revista, escrito por Roger Smith
e traduzido pelo Defensor Público Cléber Francisco Alves, sistematiza
e analisa os modelos de assistência jurídica no direito comparado,
abordagem necessária para que nós pensemos o nosso próprio modelo,
construindo uma argumentação coerente a favor da demanda pelo modelo
público.
O Defensor Aluísio Iunes Monti Ruggeri Ré, a seguir, analisa
a atuação da Defensoria sob a óptica do neoconstitucionalismo,
concentrando-se o texto sobre o papel central da instituição na efetivação
dos direitos fundamentais, que deve sempre se recusar a enxergar na
Constituição uma mera “carta de princípios”.
Os textos da pesquisadora portuguesa Élida Lauris e da professora
Eneida Gonçalves de Macedo Haddad versam cobre a interface necessária
e sempre profícua com os movimentos sociais, reconhecendo-se que o
operador do direito que restringe-se ao seu gabinete faz pouco mais que
manter o “status quo”.
8
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Os textos do professor Paulo Ferreira da Cunha, catedrático da
Universidade do Porto, e do Defensor Público Gustavo Augusto Soares
dos Reis tratam da educação em direitos, dever da instituição e de cada
Defensor Público.
Por fim, a revista traz o parecer consultivo da lavra da professora
Ada Pellegrini Grinover, sobre a atuação coletiva da Defensoria Pública, e
o parecer do professor Virgílio Afonso da Silva, sobre o convênio firmado
entre a Defensoria e a OAB/SP na prestação de assistência judiciária.
Enfim, esses são apenas alguns temas que consideramos centrais
no necessário debate sobre nossa atuação e sobre o lugar que ocupamos
e desejamos ocupar na transformação da sociedade atual em uma
sociedade mais livre, justa e solidária.
Desejamos a todos e a todas boas leituras e reflexões!
A Diretoria da EDEPE
ASSISTÊNCIA JURÍDICA
GRATUITA AOS
HIPOSSUFICIENTES:
MODELOS DE
ORGANIZAÇÃO E DE
PRESTAÇÃO DO SERVIÇO
Roger Smith*
Diretor da ONG “JUSTICE”, entidade sediada na Inglaterra
(Reino Unido) que se dedica ao estudo de reformas do Direito.
Tradução: Cleber Francisco Alves*
Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, Professor Adjunto
da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Católica
de Petrópolis. Mestre e Doutor em Direito.
1.PRÓLOGO
Este estudo1 analisa vários aspectos relativos aos modos de
organização dos serviços de legal aid2 (assistência jurídica gratuita
* Para contato com o autor: [email protected].
**O trabalho de tradução contou com a colaboração de Marilyn Filpo, graduanda em Direito pela
UCP. Para contato com o tradutor: [email protected].
N. de T.: Este artigo foi escrito em 2002, para uma conferência sobre Assistência Jurídica Gratuita
na Europa Central e Oriental, realizada em Budapeste de 05 a 07 de dezembro de 2002. Por conseguinte, não estão considerados as mudanças ocorridas nos respectivos cenários desde então, sendo
certo que inevitavelmente está focado numa perspectiva europeia em que a Convenção Europeia dos
Direitos Humanos desempenha um importante papel na garantia da prestação desses serviços.
1
2
N de T.: a expressão legal aid, que em Portugal costuma ser traduzida como “suporte legal”; na verdade não possui um tradução adequada no vernáculo; considerando o contexto jurídico do Brasil,
preferimos traduzir tal expressão por “assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes custeada
com recursos públicos”; todavia, para melhor fluidez do texto, em muitas passagens, optaremos por
manter a expressão original em inglês: legal aid.
10
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
aos hipossuficientes custeada com recursos públicos), tomando como
referência a experiência verificada em diversos países.
As premissas subjacentes ao desenvolvimento deste estudo
são as de que os tópicos abaixo configuram perguntas-chave a serem
respondidas por gestores públicos, na tarefa de avaliar os variados
modelos de organização da assistência jurídica gratuita nas suas
respectivas jurisdições. Eis, então, os tópicos a serem considerados:
(a) Que tipos de serviços (e qual a respectiva abrangência) são
reconhecidos como sendo de natureza obrigatória a serem prestados
pelo poder público, em caráter gratuito, em seu país, tendo como base
normativa:
(i) A Convenção Europeia de Direitos Humanos.
(ii) Provisões sobre questões de “assistência mútua” – no âmbito
dos países membros – emanadas da União Europeia.
(iii) As respectivas normas do direito público interno?
(b) Que outros serviços, de caráter discricionário se desejam prestar?
(c) Que serviços no âmbito de defesa criminal se desejam prestar?
Particularmente, que serviços se pretendem prestar, em caráter preliminar,
a um suspeito sendo formalmente indiciado/acusado ou quando de seu
interrogatório pela polícia?
(d) Em relação aos casos cíveis, que tipo de cobertura (abrangência)
se deseja alcançar para questões no âmbito do direito de família, do direito
privado, do direito público e do “direito da pobreza”3?
(e) Como os serviços de assistência jurídica mantidos pelo poder
público se inter-relacionam com outras formas de serviços mantidos por
instituições privadas ou com outros sistemas alternativos de solução de
conflitos?
(f) Pretende-se que os serviços jurídicos sejam ampliados para
além do patrocínio/representação de causas em Juízo e incluam também
orientação e aconselhamento jurídico?
(g) É reconhecida a necessidade de proporcionar informação e
educação jurídica à comunidade?
3
N. de T.: no original consta a expressão poverty law que não encontra tradução precisa no vernáculo; trata-se do conjunto de normas jurídicas destinadas à proteção social das pessoas que
se encontram em estado de pobreza, notadamente benefícios assistenciais e garantia de direitos
sociais que integram o “mínimo existencial”.
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
11
(h) Pretende-se destinar recursos para ações coletivas de interesse
público e para serviços de assistência social? Em caso afirmativo, como?
(i) Que tipos de critérios para definição de carência econômica são
previstos para elegibilidade nos casos criminais?
(j) Que tipos de critérios para definição de carência econômica são
previstos para elegibilidade nos casos cíveis?
(k) Quem controlará a observância dos critérios de carência
econômica e a avaliação do mérito da questão jurídica para cuja solução/
esclarecimento se busca assistência jurídica gratuita? Os próprios
prestadores dos serviços serão confiáveis para realizar tais controles ou
tal certificação ficará sob o encargo de terceiros?
(l) Como é prevista a prestação dos serviços na esfera criminal?
A opção é por advogados privados, profissionais assalariados, alguma
modalidade de organização de “defensoria pública” ou algum modelo
misto/combinado de prestação dos serviços? Quais são as vantagens e
desvantagens de cada sistema?
(m) Quaisquer que sejam os métodos de prestação de serviços para
casos criminais, eles reúnem os determinantes caracterizadores de bons
serviços propostos no presente estudo?
(n) Como é prevista a prestação dos serviços na esfera cível? A
opção é por advogados privados, organismos jurídicos comunitários,
alguma modalidade de agência ou instituição pública estatal4 ou algum
outro modelo?
(o) Que órgão estatal gerenciará/administrará os serviços jurídicos
gratuitos financiados com dinheiro público?
(p) Como serão definidas as responsabilidades por gerenciamento
e fixação das linhas e diretrizes políticas?
(q) Qual departamento/órgão governamental será responsável pela
fixação das diretrizes políticas dos serviços de assistência jurídica e como
se garantirá que tal organismo disporá de informações sobre a eficácia
da implementação dessas diretrizes na efetiva prestação dos serviços ao
público destinatário?
4
N. de T.: nesta categoria estaria inserida a instituição da Defensoria Pública (tal como concebida
no Brasil), que certamente não foi mencionada expressamente pelo autor visto que, no ambiente
cultural anglo-saxão, a concepção de Defensoria Pública normalmente está associada à defesa na
esfera criminal.
12
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
(r) Quais serão os mecanismos do órgão gestor para prestar contas
à sociedade a respeito de sua atuação?
(s) É considerada importante a cooperação dos integrantes das
profissões jurídicas já existentes e, em caso afirmativo, como se obterá
isso?
(t) Que medidas são previstas para garantir a qualidade na prestação
dos serviços de assistência jurídica?
(u) Como se assegurará que as diretrizes políticas dos serviços de
assistência jurídica estejam integradas em uma mais ampla política de
acesso à justiça?
(v) Qual o tamanho do orçamento disponível? E como se demonstrará
que o custo-benefício do serviço está sendo adequado?
2.INTRODUÇÃO
A organização dos serviços de assistência jurídica gratuita aos
hipossuficientes, custeados com recursos públicos, em diferentes países
é influenciada pela cultura e pela história local. São bastante diversificados
os modelos adotados em cada parte do mundo. Por exemplo, os Estados
Unidos e o Reino Unido têm diferentes experiências apesar de ambos
serem países integrantes do sistema denominado de commom law. Os
Estados Unidos têm utilizado majoritariamente o modelo de advogados
assalariados, com vínculo empregatício junto a organizações não estatais
de assistência jurídica e organizações estatais de defensoria pública.
No Reino Unido os serviços são prestados, predominantemente, por
advogados privados. Nos Estados Unidos, os serviços de assistência
jurídica na área cível têm sido vistos, pelo menos em parte, dentro de
um contexto altamente politizado que, em contrapartida, é largamente
ausente no Reino Unido. Tenho consciência de que, na Europa Central
e Oriental, haverá diferentes tradições que ditam diferentes níveis de
recursos disponíveis, diferentes prioridades na prestação dos serviços e
diferentes preferências no tipo de serviços a serem prestados.
Diferentes experiências geram diferentes preconceitos e, de certa
forma, uma base de sustentação muito “paroquial” para o modelo local.
Muitos países com sistemas bem desenvolvidos de serviços de assistência
jurídica gratuita custeados com recursos públicos tendem a acreditar que
eles têm o melhor modelo. Um certo número deles talvez até possa ter
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
13
essa percepção com algum grau de razoabilidade – especialmente se
eles dispõem de alguma folga de recursos destinados para tais despesas.
Entre eles estariam a Holanda, os EUA, o Estado canadense de Ontário,
a Escócia, a Inglaterra e o País de Gales, a Suécia e outros. Todavia, a
prática é muito diferente nessas jurisdições. A lição que se pode extrair é
que não há uma “resposta certa”, mas sim a possibilidade de maximização
da relação de custo-benefício, dadas as circunstâncias peculiares à
realidade de cada país.
Pode-se dizer, porém, que há apenas uma constante: bons serviços
de assistência jurídica gratuita públicos correspondem sempre a níveis altos
de disponibilização de recursos financeiros. Isso é, infelizmente, impossível
de se escapar. Nos anos de 1970, o Estado canadense de Quebec
provavelmente tinha o melhor sistema de assistência jurídica gratuita do
mundo.5 Por volta dos anos de 1990, os critérios de elegibilidade para o
cidadão se valer de tais serviços e os recursos estatais disponíveis para
seu custeio tinham caído tanto que a cobertura era relativamente mínima.
Do mesmo modo, recursos têm sido radicalmente cortados na Austrália,
reduzindo a prestação do serviço mesmo em estados que, outrora, eram
considerados bem aquinhoados nesse aspecto, como era o caso de New
South Wales e Victoria. Muitos, mesmo dentre os países que mantinham
um bom nível de dotação de recursos para a assistência jurídica, tiveram
de enfrentar a revolta de profissionais jurídicos prestadores dos serviços
que reclamavam por considerarem que os níveis de sua remuneração
tinham caído para níveis inaceitavelmente baixos. Advogados holandeses
chegaram a entrar em greve; os advogados que atuam na assistência
jurídica no Estado de Ontário (Canadá) têm estado recentemente em
litígio com o governo por causa do problema da remuneração; advogados
ingleses têm feito ameaças de não mais autuar nos serviços de legal aid,
o que vem suscitando preocupação da entidade estatal responsável pelo
gerenciamento do serviço – a LSC, ou seja, Legal Services Comission
– circunstância que foi objeto de expressa referência em um de seus
relatórios anuais, nos seguintes termos:
Estamos colhendo informações (...) no sentido de que de cinquenta por
cento dos escritórios de advocacia estão seriamente considerando a
possibilidade de cessar ou de reduzir significativamente os serviços
prestados para clientes beneficiários do legal aid (em que a remuneração
5
Ver: LEGAL ACTION GROUP, A strategy for Justice, 1992.
14
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
devida a tais escritórios é feita com recursos públicos custeados pela
LSC).6
O preço de manter bons serviços nesse campo é a eterna vigilância
contra compreensíveis pressões do governo para reduzir ou manter
custos.
3. ACESSO À JUSTIÇA
Há ainda outro ponto preliminar a ser considerado. Esse evento7
tem como temática de fundo a ideia de “acesso à justiça”. É importante
destacar que, originariamente, “acesso à justiça” foi desenvolvido como um
conceito-chave no final dos anos de 1970 por aqueles que argumentaram
que apenas destinar mais dinheiro para serviços de assistência jurídica
seria uma resposta muito reducionista (estreita) para superação da
injustiça. Dois deles escreveram o prefácio de um importante livro
contendo um estudo de âmbito mundial a respeito da garantia do acesso
à justiça explicando: “O enfoque do acesso à justiça busca enfrentar (...)
barreiras de modo bastante amplo, suscitando questionamentos que
atingem a completa gama de instituições, procedimentos e pessoas que
caracterizam nosso sistemas judiciais”.8
A ideia de uma abordagem de acesso à justiça tem uma lição concreta
em termos da missão própria conferida ao órgão estatal responsável pelos
serviços de legal aid. Deve ter uma perspectiva suficientemente ampla
para encorajar uma visão o mais abrangente possível dos serviços que
deve prover. O não atendimento desse requisito foi, por muitos anos, uma
deficiência no gerenciamento de serviço de legal aid que estava sob a
responsabilidade da Law Society9 na Inglaterra e no País de Gales. Uma
6
Cf. LEGALSERVICES COMMISSION. Annual Report 2001/2002. House of Commons 949, parágrafo 2.7.
7
N. de T.: o autor está se referindo ao evento no âmbito do qual foi apresentada a palestra cujo teor
corresponde ao presente texto.
8
CAPPELLETTI & GARTH. Access to Justice: Volume 1. Sijthoff and Noordhof, 1978, p. 124.
9
N. de T.: Durante muitos anos, não existia uma instituição estatal específica para gerenciar o sistema de legal aid na Inglaterra, ficando tal responsabilidade sob o encargo da Law Society, que é a
entidade de classe dos advogados, mais ou menos correspondente à OAB no Brasil.
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
15
importante fonte de referências comparativas quanto à prestação de outros
serviços governamentais pode ser obtida com monitoramento desse tipo
de assunto relativamente a casos de financiamento (dos serviços de legal
aid) custeado pelos cofres públicos.
A ênfase na perspectiva de garantia de efetivo acesso à justiça
relativamente aos serviços de legal aid é um modo de se ter presente
que estes devem ser considerados sempre em conjunto com a questão
processual e, efetivamente, com o direito material. Por exemplo, uma das
leis mais importantes do direito britânico em relação à justiça criminal foi
a Lei de Provas Criminais e Policiais, do ano de 1984. Essa legislação
regulamentou e delimitou os poderes da Polícia de manter preso um
suspeito antes da instauração formal do processo penal; disciplinou ainda
a realização de interrogatórios e o tratamento a ser dado aos suspeitos
na fase pré-processual, por meio do estabelecimento de um “código
de conduta” a ser observado pelos policiais; mudou as disposições
administrativas dentro da delegacia de polícia; introduziu a obrigatoriedade
de gravação das entrevistas para oitiva de pessoas (o que inicialmente
sofreu oposição da polícia, mas posteriormente passou a ser positivamente
apreciada); e também introduziu a obrigatoriedade de custeio de despesas
com pagamento de advogados para prestar assistência jurídica aos
indiciados nas delegacias de polícia na fase em que ainda não estivessem
formalmente submetidos a processo judicial. Isto foi, na verdade, quase que
um “manual” de legislação, que seguiu, de modo exemplar, a abordagem
holística de “acesso à justiça” – embora, no momento em que foi editada,
tenha suscitado ampla e intensa controvérsia (na opinião pública).
4. GERENCIANDO O SERVIÇO DE LEGAL AID: A IMPORTÂNCIADA
EXISTÊNCIA DE UMA COMISSÃO/CONSELHO/INSTITUIÇÃO
Muitos governos têm considerado útil estabelecer um órgão
intermediário, estreitamente relacionado, mas formalmente independente
do governo, para administrar os serviços de assistência jurídica gratuita
aos hipossuficientes custeados com recursos públicos. A vantagem de
tal formato é que isso ajuda a preservar a independência da tomada de
decisões nos casos individuais e assegura distanciamento do governo
de ataques políticos em casos que são controversos, por exemplo, a
concessão de assistência jurídica a uma pessoa acusada de uma série de
assassinatos/crimes hediondos. A Holanda foi uma das últimas grandes
16
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
jurisdições a criar Conselhos Regionais autônomos (para gerenciamento
dos serviços) de legal aid, no ano de 1994. No Reino Unido, as três
jurisdições nacionais internas (Inglaterra/País de Gales, Escócia e
Irlanda do Norte) estavam entre as primeiras a estabelecerem esquemas
nacionais de legal aid logo depois da Segunda Guerra Mundial: eles
eram inicialmente administrados pelas Law Societies (as corporações
profissionais que congregam os profissionais da advocacia) que tinham
concebido a ideia. Contudo, na Inglaterra, a Law Society foi substituída
por um Conselho de Assistência Jurídica (Legal Aid Board) pela Lei de
Assistência Jurídica do ano de 1988 pela qual se pretendia “alcançar um
papel estratégico central para os serviços de legal aid”.10 Na composição
do Conselho (Legal Aid Board) se incluíam assentos vinculados a várias
categoriais diretamente envolvidas na atividade de assistência jurídica,
particularmente, os órgãos de representação profissional (das carreiras
jurídicas). Sucessivamente, o Conselho (Board) foi substituído pela
Comissão de Serviços Jurídicos (Legal Services Commission) criada pela
Lei de Acesso à Justiça do Ano de 1999.
Uma comissão (Comission) ou conselho (Board) é um mecanismo
largamente difundido para o gerenciamento dos serviços de legal aid. A
Província canadense do Quebec tem sua “Comissão de Serviços Jurídicos”
(Commission des Services Juridiques) que segue o modelo da Corporação
de Serviços Jurídicos norte-americana – a Legal Services Corporation
(embora esse organismo somente atue no custeio de assistência jurídica
gratuita em matérias cíveis, ou melhor, não criminais). O Estado canadense
de Ontário, onde o serviço de legal aid era gerenciado pela corporação
profissional dos advogados até ser transferido para a entidade pública
Legal Aid Ontário, por meio da Lei de Serviços de Assistência Jurídica do
ano de 1998, pode ter sido o último a mudar. Muitas províncias no Canadá
possuem dispositivos legais similares. O mesmo se dá na Austrália.
A África do Sul possui um Conselho de Assistência Jurídica (Legal Aid
Board).
O “modelo de comissão” supõe a existência de: um departamento
governamental (da administração direta) responsável pela destinação de
10
Ver Hansards, HL (House of Lords) Debates 15, December 1987, colection 607. (N. de T.: a referência do autor diz respeito aos debates ocorridos na “Casa dos Lordes”, do Parlamento Britânico,
por ocasião da discussão do projeto de lei que criava o Legal Aid Board; o acesso ao conteúdo dos
debates está disponível on-line, no seguinte endereço [consultado em 11 de janeiro de 2011]: http://
hansard.millbanksystems.com/lords/1987/dec/15/legal-aid-bill-hl.)
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
17
recursos e definição das diretrizes políticas a serem seguidas; de uma
comissão independente, embora nomeada pelo ente governamental,
que fica responsável pela implementação dessa política em um âmbito
de extensão maior ou menor conforme as circunstâncias locais; de
profissionais (encarregados da prestação dos serviços propriamente
ditos) os quais serão pagos, direta ou indiretamente, pela referida
comissão. Os países que adotam esse modelo possuem diferentes
visões sobre o modo a ser observado para nomeação dos membros
da comissão ou do conselho respectivo. Alguns estabelecem assentos
reservados para grupos vinculados às profissões jurídicas ou à clientela
específica envolvidas na prestação do serviço, como foi o caso da
Inglaterra, durante o período de existência do Legal Aid Board. Outros
países adotam critérios mais discricionários. As regras estabelecidas na
Lei inglesa de Acesso à Justiça, do ano de 1999 são bons exemplos
de amplos poderes dados ao Ministro de Estado a quem compete a
respectiva nomeação:
A comissão deve ser composta de:
(a) não menos que sete membros, e
(b) não mais que doze membros;
Mas o Lorde Chanceler [Ministro de Justiça] pode por ordem [mudar
quaisquer desses números].
Os membros da Comissão serão nomeados pelo Lorde Chanceler;
e o Lorde Chanceler nomeará um dos membros para presidir a Comissão.
Ao nomear pessoas para serem membros da Comissão, o Lorde
Chanceler deve ter em conta que é desejável que se assegure que a
Comissão inclua membros que (dentre eles) tenham experiência em ou
conhecimento a respeito de:
(a) prestação dos serviços os quais cabe à Comissão custear
como parte do Serviço Comunitário Jurídico [expressão que se refere
especificamente à assistência jurídica em questões cíveis, ou seja, civil
legal aid] e do Serviço de Defesa Criminal [que corresponde à assistência
jurídica em questões criminais, ou seja, criminal legal aid];
(b) a atividade jurisdicional, prestada pelos tribunais;
(c) questões e problemáticas relativas ao consumidor;
(d) realidade das condições sociais; e
(e) gerenciamento.
18
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
O ponto de maior destaque quanto à representação direta de
categorias diretamente envolvidas nos serviços de assistência jurídica
provavelmente se deu nas Comissões de Legal Aid dos Estados
australianos de New South Wales e Victória, em meados dos anos de
1990. Suas respectivas Constituições estabeleciam lugares para as
corporações profissionais jurídicas, para organizações de defesa de
consumidores, para centros comunitários de serviços jurídicos, etc.
Ambas foram, contudo, suprimidas e foram substituídas por organismos
menores, com membros nomeados pelo governo com menores restrições
(quanto à vinculação a determinadas categorias). Uma abordagem mais
estrita é evidente no Conselho Israelense da Defensoria Pública o qual tem
cinco membros: o Ministro de Justiça, um Juiz aposentado da Suprema
Corte, um advogado criminal selecionado pela Associação Nacional de
Advogados; um advogado criminal nomeado pelo Ministro de Justiça
com o consentimento do Presidente da Associação de Advogados e um
professor universitário de direito criminal.
Um modelo intermediário que conjuga a prerrogativa do poder
executivo de nomeação (dos membros do conselho/comissão) com um
certo grau de interveniência da entidade representativa dos profissionais
jurídicos pode ser observado no caso do Conselho de Assistência Jurídica
de Ontário, ou seja, o Legal Aid Ontario (a Law Society da região do Alto
Canadá é a entidade representativa dos advogados da província de
Ontario):
O Conselho de diretores da entidade responsável pela Assistência
Jurídica (na Província de Ontário) será composto de pessoas nomeadas
pelo Vice-Governador em regime de compartilhamento, conforme segue:
1. Um dos membros, que será o presidente do conselho, será
selecionado pelo Procurador Geral de Justiça (Attorney General) dentre
uma lista de pessoas indicadas por um comitê instituído pelo Procurador
Geral ou uma pessoa por ele(a) (livremente) designada; o Tesoureiro da
Law Society ou uma pessoa por ele(a) (livremente) designada e mais uma
terceira pessoa cujo nome será definido em consenso pelo Procurador
Geral e pelo Tesoureiro da Law Society ou por pessoas por eles designadas
para tal mister.
2. Cinco pessoas selecionadas pelo Procurador Geral de uma lista
de pessoas indicadas pela Law Society.
3. Cinco pessoas indicadas (livremente) pelo Procurador Geral.
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
19
5. MEMBRO (DO CONSELHO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA)
SEM DIREITO A VOTO:
O presidente do respectivo colegiado (Comissão ou Conselho de
Assistência Jurídica) normalmente não terá direito a voto.
O “modelo de (gerenciamento da assistência jurídica por meio de)
comissão” funciona relativamente bem. Há duas áreas potenciais de
atrito. Primeiramente, pode haver circunstâncias quando os membros da
comissão não tenham sido nomeados pela legislatura ou pelo governo
vigente e isso pode gerar divergências. Houve um momento difícil nos
Estados Unidos quando os membros da Legal Services Corporation (que
é responsável, em nível nacional pelos serviços de assistência jurídica
na área cível) tinham sido nomeados pela administração do Presidente
Clinton, mas tiveram que enfrentar o antagonismo do legislativo (que
não comungava das diretrizes políticas do Presidente). Em segundo
lugar, qualquer que seja o arranjo institucional de divisão de poderes
entre o departamento governamental a que esteja vinculada a comissão/
conselho (e que seja responsável pelo repasse das verbas orçamentárias
respectivas), pode haver um grau de rivalidade entre eles. A comissão
sempre tem a vantagem de estar perto dos avanços e demandas da
área específica da assistência jurídica gratuita porque é um sistema de
microgerenciamento. O departamento governamental (Ministério ou
Secretaria de Estado) tem uma visão ampla dos objetivos do governo,
mas menos conhecimento das especificidades da área. Tem havido, ao
longo do tempo, uma certa “rivalidade” na Inglaterra entre a Comissão/
Conselho de Assistência Jurídica (ou seja, a Legal Services Comission/
Legal Aid Board) a qual realmente tem atuado como verdadeiro motor
para o desenvolvimento/aprimoramento da política de assistência jurídica
ao invés do Ministério da Justiça. Tal “rivalidade”, porém, nunca chegou
a atingir um nível tal em que não se pudesse legitimamente considerar
como uma (saudável) tensão, genuinamente criativa.
Pode haver países onde seja considerado útil manter o envolvimento
da entidade representativa dos profissionais jurídicos (especificamente a
corporação dos advogados) no gerenciamento dos serviços de assistência
jurídica, apesar da recente tendência que se verifica nos países que contam
com sistemas considerados mais bem desenvolvidos de serviços legal
aid no sentido de superação/rejeição desse modelo. O engajamento da
entidade representativa dos advogados tem, por exemplo, ajudado muito na
implantação, pelo menos, de uma forma elementar de serviço de assistência
20
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
jurídica num país em desenvolvimento como é o caso de Bangladesh. Tal
entidade tem encorajado os advogados a prestarem serviços (de assistência
jurídica aos hipossuficientes) a um preço bastante baixo, concebendo-os
como uma espécie de dever moral dos advogados; não fosse assim, eles
talvez não estivessem preparados para fazê-lo.
6. ASSISTÊNCIA JURÍDICA: A QUE MINISTÉRIO/DEPARTAMENTO GOVERNAMENTAL VINCULÁ-LA?
Esse é um dos pontos que suscita preocupação nos governos,
sendo certo que há uma variedade de arranjos institucionais relativamente
à definição quanto a qual departamento governamental deve ter a seu
encargo a responsabilidade de definição das diretrizes políticas para os
serviços de assistência jurídica (legal aid). Na Inglaterra e no País de Gales,
é a Chancelaria da Justiça (Lord Chancellor´s Department); na província
de Ontário e no governo federal canadense, a Procuradoria-Geral de
Justiça (Ministry of the Attorney-General), ambos são aproximadamente
equivalentes ao Ministério de Justiça. Nos Estados Unidos, o quadro é
diferente. Por exemplo, responsabilidade para serviços de assistência
jurídica na área criminal não se encaixa facilmente na doutrina de
separação de poderes dentro do Legislativo, Executivo e Judiciário
e há alguma variação de prática. Por exemplo, no Estado de Oregon, a
questão fica na esfera do Judiciário. Em outros Estados, como aquela que
vigora em Seattle, no Estado de Washington, tal encargo (inclusive com
autonomia financeira) fica sob a responsabilidade da Defensoria Pública
(Office of the Public Defense) vinculado ao Poder Executivo. Países que
adotam o regime federativo, como Canadá e Austrália, enfrentam mais
problemas relativamente a tais arranjos institucionais em virtude da divisão
entre a esfera de responsabilidade pelo custeio orçamentário-financeiro e
a esfera de responsabilidade pela definição das diretrizes políticas.
7. RESPONSABILIDADES GOVERNAMENTAIS (QUANTO À ASSISTÊNCIA JURÍDICA) DETERMINADAS PELA CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS
A prestação de serviços de assistência jurídica em matérias criminais
e em matérias cíveis costuma suscitar diferenciadas questões de ordem
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
21
política. Nos Estados Unidos, tais serviços geralmente são prestados de
maneira completamente distinta e separada.11 No Reino Unido, a diferença
é indicada pela, ainda que imaginária, criação de um Serviço de Defensoria
Criminal separado e um Serviço Legal Comunitário (Community Legal
Service). Todos os países europeus que são signatários da Convenção
Europeia de Direitos Humanos terão de respeitar e fazer cumprir, pelo
menos em teoria, as exigências do seu Artigo 6(3) e, particularmente, do
item 6(3)(c), que assim dispõem:
Todos os (que forem formalmente) acusados pela prática de crimes têm
os seguintes direitos mínimos: defender-se pessoalmente ou através de
assistência de advogado de sua própria escolha ou, se a pessoa não
tiver meios suficientes de pagar por tal assistência, a que lhe seja dada
gratuitamente quando os interesses de justiça assim o indicarem.
Destarte, todos os países europeus devem ter sistemas de assistência
jurídica gratuita para casos criminais. Não há dispositivo equivalente,
na Convenção, para casos cíveis, embora isso tenha sido reconhecido
como implícito pela Corte Europeia de Direitos Humanos, que já decidiu
nesse sentido: nos casos em que a assistência de um advogado seja
“indispensável para o efetivo acesso à prestação jurisdicional”, quer por
se tratar de caso em que a representação por advogado seja considerada
compulsória (em que não se atribua à parte leiga capacidade postulatória)
ou em razão da “complexidade do procedimento ou do caso”12.
Pode ser oportuno esclarecer as implicações dessa análise da
Convenção Europeia:
(a) Assistência Jurídica Gratuita Criminal deve estar disponível para a
defesa de todas as infrações penais qualificadas efetivamente como crimes.
(b) Admite-se que haja uma verificação de efetiva situação de
carência de recursos para dispor de assistência jurídica gratuita criminal,
11
N. de T.: para melhor compreensão dessa dicotomia do modelo americano, o leitor poderá consultar
a obra “Justiça para todos! - A assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no
Brasil”, de autoria de Cleber Francisco Alves, publicada pela Editora Lumen Juris.
12
STARMER, Keir. European Human Rights Law. Legal Action Group, 1999, p. 365; AIREY v.
IRELAND (1979-1980) 2 EHRR 305 (N. de T.: sobre o célebre caso Airey, indica-se ao leitor o artigo
“Estudo de Caso: a decisão ‘Airey v. Ireland’ e sua importância na afirmação do Direito de Acesso
à Justiça no continente europeu”, de autoria de Cleber Francisco Alves, publicado na Revista de
Direito da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (Ano 19, Número 20, 2006)).
22
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
de modo que é possível a recusa se um réu possuir meios econômicos
suficientes.
(c) Um réu que não possuir meios suficientes receberá assistência
jurídica criminal gratuitamente e sem pagamento de quaisquer espécies
de contribuições (havia uma prática inglesa que foi, até recentemente,
uma violação a esse preceito).
(d) Deve haver assistência jurídica gratuita em casos cíveis nos
casos em que seja efetivamente indispensável, admitindo-se uma
avaliação tanto de carência de recursos quanto a respeito do mérito
(análise da viabilidade da pretensão jurídica do interessado em obter a
assistência jurídica).
8. ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA CRIMINAL: COMO
PRESTAR ESSE SERVIÇO
Serviços de assistência jurídica gratuita custeados com recursos
públicos, em questões criminais, podem ser prestados de diferentes
formas, de acordo com as realidades e especificidades culturais de cada
país e disponibilidade de recursos. As principais alternativas são:
(a) advogados privados – empregados na modalidade “caso a caso”
e frequentemente conhecidos pela expressão norte-americana “judicare”;
(b) advogados assalariados empregados pela autoridade/comissão/
entidade encarregada de prestar os serviços de legal aid, frequentemente
referido como “advogado interno” (ou in-house duty counsel);
(c) profissionais empregados por uma organização independente
de prestação de serviços de assistência jurídica gratuita, chamada de
Defensoria Pública que pode, ou não, ser ela mesma a responsável pelo
custeio do serviço (com recursos provenientes diretamente dos cofres
públicos), modelo que é conhecido como staff model.
Há, entretanto, inúmeras variações e combinações nesses três
modelos.
Historicamente, os que estudam esse tema têm dividido os modos
de prestação dos serviços nessas três tradicionais modalidades: staff
model, advogados assalariados e judicare. Todavia, crescentemente,
isto vem se tornando mais complicado por duas razões específicas.
Primeiro, países com avançados sistemas de legal aid, como Canadá e
Inglaterra/Gales, têm sido atraídos para um “modelo misto” de prestação
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
23
dos serviços incorporando elementos de mais de um ou de todos os três
(modelos tradicionais). Segundo, tem havido um crescente interesse
em um modelo de contratação de serviços com uma variedade de
diferentes entes prestadores. Isso começou nos Estados Unidos que
eram frequentemente (embora não sempre) criticados pelo fornecimento
de serviços em um esquema de “baixo custo/baixa qualidade”. Contudo, o
modelo de contratação tem sido desenvolvido pela Comissão de serviços
de assistência jurídica – Legal Services Commission – na Inglaterra e no
País de Gales, mais precisamente como forma de aumentar a qualidade
por incorporar critérios de garantia de qualidade nos respectivos contrato.
O fato é que não há uma, digamos, “resposta certa” para a questão
relativa ao modo de prestação desses serviços. Efetivamente, a Comissão
Inglesa de serviços de assistência jurídica gratuita custeados com
recursos públicos se vale de uma variedade de mecanismos de prestação
de serviços na área de casos cíveis (não criminais).
9. DIFERENTES MODELOS DE PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS:
PRÓS E CONTRAS
Cada modelo de prestação dos serviços de legal aid tem suas
vantagens e, adicionalmente, há desvantagens em um modelo misto.
Isso dá aos governantes (especialmente legisladores) uma oportunidade
de fazer uma checagem, contrapondo custos e benefícios (quanto
à efetividade). Isso também propicia elemento de competição entre
prestadores do serviço. Nos locais onde o judicare (serviço prestado
por advogados particulares) é bem estabelecido/consolidado a tentativa
de implementação de outras formas de provimento do serviço pode
ser politicamente conflituosa. (Apesar disso) tanto a Escócia quanto a
Inglaterra, recentemente, implementaram um projeto piloto de organização
de Defensoria Pública. Estas se estruturam em pequenos grupos de
advogados assalariados, de dedicação integral, empregados diretamente
pela Legal Services Commission (no caso da Inglaterra) ou pelo Legal
Aid Board (no caso da Escócia). Em ambas as jurisdições, os escritórios
de defensores públicos receberam apenas uma pequena porção dos
casos (por se tratar de projeto experimental). Nessas duas jurisdições, tal
iniciativa foi recebida com algum desdém e muita suspeita por parte dos
advogados privados (que antes prestavam com exclusividade o serviço)
relativamente a prestação dos serviços por defensores públicos.
24
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
As vantagens e desvantagens de diferentes tipos de provimento do
serviço incluem:
(a) JUDICARE
Definição – o serviço é prestado por advogados privados
(remunerados), na base em caso a caso, sendo que frequentemente
se emite (pelo órgão gestor dos serviços) uma espécie de certificado
(atestando que o cliente faz jus à assistência jurídica gratuita)
e mediante o qual se assegura ao advogado o direito de receber
sua remuneração (junto ao órgão gestor respectivo) pelo serviço
prestado.
Vantagens – a outorga do “benefício” (com a assunção da
respectiva responsabilidade pelo custeio das despesas por parte
do órgão gestor) é feita na base do caso a caso, o que permite
um controle mais estrito (desses gastos); tende a demandar uma
grande burocracia para os procedimentos de aprovação e emissão
dos certificados;13 efetivamente suscita maior envolvimento dos
advogados privados no sistema de justiça criminal; desse modo,
reforça sua preocupação com as liberdades civis básicas e direitos
humanos; pode viabilizar o direito de os réus escolherem seus
próprios advogados e gerir a disponibilidade de representação.
Desvantagens – pode haver problemas de controle de qualidade
se isso for deixado ao critério exclusivo dos advogados privados
prestadores dos serviços; é geralmente a forma mais cara de
prestação do serviço; pode ser difícil de controlar os custos.
(b) ADVOGADO INTERNO (In-house duty counsel)
Definição – advogados integrantes de um staff, diretamente
empregados pelo órgão gestor dos serviços de legal aid, os quais
assumem o encargo de representação.
Vantagens – pode ser de bom “custo-benefício” nos casos em que
um advogado possa ser designado para responder por um número
significativo de casos de uma vez (em conjunto), por exemplo,
encarregando-o de responder por um plantão junto a determinado
13
N. de T.: parece que tal característica representa, na realidade, uma desvantagem.
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
25
órgão jurisdicional onde haja uma sobrecarga (de casos patrocinados
em regime de assistência jurídica gratuita).
Desvantagens – pode suscitar problemas de qualidade por causa
do “baixo status” e pouco interesse por esse tipo de trabalho (ou
seja, contratação para atuar em regime de “plantão”); pode suscitar
dificuldades para os clientes em virtude de acarretar segmentação
da representação entre diferentes advogados.
(c) DEFENSORES PÚBLICOS
Definição – a prestação de serviços é feita por advogados
assalariados, empregados pelo órgão gestor dos serviços de
legal aid ou por outras agências/instituições (governamentais) os
quais ficam incumbidos da representação completa/integral dos
acusados.14
Vantagens – pode ser vantajoso, em termos de “custo-benefício”,
relativamente ao judicare; é capaz de desenvolver um elevado
“estado de espírito” (N. de T.: uma espécie de “idealismo institucional”)
e assegurar a prestação de excelentes serviços que vão além da
dimensão estritamente judicial.
Desvantagens – pode suscitar sentimento de baixa autoestima na
atividade profissional; pode ficar sujeito a destinação muito baixa
de recursos financeiros; pode levar à representação “rotineira” (ou
seja, a uma postura burocrática, de modo repetitivo e acomodado)
em lugar de uma representação de “alta qualidade” (ou seja, a
uma postura combativa e criativa); raramente atrai as verdadeiras
“estrelas” (ou seja, os profissionais de maior brilho/projeção) que
atuam na área da defesa criminal os quais preferem trabalhar fora
do ambiente burocrático (estatal); talvez não seja tão mais barato
que o modelo do judicare se for devidamente financiado; é difícil a
atribuição de incentivos para rapidez e eficiência.
(d) SERVIÇOS CONTRATADOS
Definição – serviços prestados por profissionais advogados ou por
organizações empregando advogados sob regime de contrato com
14
N. de T.: conforme esclarecido na N. de T. 4 supra, no contexto jurídico anglo-saxão a ideia de
Defensoria Pública costuma sempre estar associada estritamente á defesa criminal.
26
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
a entidade oficial/governamental responsável pelos serviços de
assistência jurídica, isto é, qualquer dos três modelos acima.
Vantagens – tem sido usado para aumentar a qualidade, mas
precisa explicitar critérios de garantia de qualidade; torna o controle
de custo mais fácil; dá ao prestador de serviço alguma certeza de
remuneração; pode ser usado para fomentar serviços que, de outro
modo, estariam indisponíveis.
Desvantagens – pode ser usado para abaixar os custos; pode levar
a baixa qualidade; pode encorajar representação “rotineira” (ou seja,
a uma postura acomodada/repetitiva).
O importante critério determinante de como prestar os serviços
(de legal AID) é o contexto cultural local. Alguns modelos de prestação
dos serviços são mais aceitos em um país do que em outro. Serviços de
defesa criminal na Inglaterra e no País de Gales são agora15 prestados
pela forma de contrato com escritórios de advocacia e outros prestadores
de serviços de qualidade aprovada, mas baseado em um orçamento
aberto e sem restrição quanto aos números. Esse modelo faz sentido para
Inglaterra, que tem uma longa história de compromisso com assistência
jurídica gratuita aos hipossuficientes prestada por um grande número de
advogados privados. Isso provavelmente parece muito complicado para
um país que esteja começando a desenvolver esse tipo de prestação de
serviços. Contudo, pode ser interessante atentar para as áreas nas quais
a comissão inglesa de serviços de assistência jurídica (a Legal Services
Comission) tem desenvolvido critérios de controle de qualidade.
Aqueles países que estão estabelecendo um novo sistema interno
de assistência jurídica na área criminal, ou revivendo um antigo, podem
cogitar empregar advogados privados ou advogados assalariados. Estes
últimos são geralmente mais baratos, se computado o custo por caso,
exceto talvez em áreas rurais onde o número de casos seja relativamente
baixo. Advogados assalariados, em geral, são mais convenientes para
executar relativamente casos rotineiros/repetitivos ou previsíveis porque
podem lidar melhor dentro da burocracia. O grande número de casos de
transação penal (plea bargains) nos Estados Unidos em comparação
15
N. de T.: atente-se para o fato de que este texto foi originariamente escrito em 2002; desde então,
o sistema inglês vem sofrendo ajustes e modificações.
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
27
com o Reino Unido parece ser uma razão pela qual as organizações
de defensoria pública têm prosperado nos Estados Unidos, mas só
recentemente têm sido experimentadas no Reino Unido (embora uma
outra razão seja a relativa predominância da atuação dos advogados
privados no serviço de legal aid inglês). Pode haver, contudo, alguma
vantagem na utilização do trabalho prestado por advogados privados com
o propósito de obter deles cooperação e apoio para esse serviço.
Uma certa cautela é necessária para o sentido da expressão
“defensor público”. Pode significar coisas diferentes. Em Israel, a
instituição denominada Defensoria Pública contrata os serviços
de advogados privados. Na Inglaterra e na Escócia, escritórios de
defensoria pública são pequenos grupos experimentais de advogados
assalariados empregados pelo Legal Aid Board (Escócia) e pela Legal
Services Commission (Inglaterra). Eles têm sido concebidos para ser
um método de prestação dos serviços totalmente diferente do que era
feito pelos advogados privados (no regime judicare). Em São Francisco
(EUA), o defensor público é eleito pelo povo. Em New South Wales
(Austrália), tal cargo é bastante prestigiado correspondendo apenas com
a advocacia de mais alto nível. Em muitos Estados norte-americanos e
no âmbito federal nos Estados Unidos, a agência denominada Defensoria
Pública geralmente significa uma organização dotada de autonomia/
independência que emprega advogados criminalistas em regime
assalariado (e de dedicação integral).
10. SERVIÇOS DE DEFESA CRIMINAL: INDICADORES DE
QUALIDADE, QUALQUER QUE SEJA O SISTEMA DE
PRESTAÇÃO ADOTADO
Qualquer que seja o sistema de prestação de serviços utilizado,
os seguintes critérios determinantes para configuração do que possa ser
considerado bons serviços de defesa criminal podem ser deduzidos de
uma observação dos diversos modelos adotados:
(a) alta qualidade de serviços tem como pressuposto um alto nível
de disponibilidade de recursos (ver acima);
(b) a opção pelo regime de contrato de prestação de serviços é mais
conveniente para dar conta de casos rotineiros/repetitivos e apresenta a
tendência de que os serviços sejam prestados quase que “mecanicamente”;
28
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
(c) os melhores sistemas incorporam “mecanismos de escape” para
viabilizar o atendimento (com qualidade adequada) nos momentos em
que se enfrente sobrecarga de trabalho;
(d) desembolsos relativos a outras despesas e honorários de
especialistas/peritos devem ser custeados por um fundo de financiamento
distinto/separado daquele utilizado para custeio das despesas de com
remuneração dos advogados;
(e) os melhores resultados requerem um ambiente cooperativo entre
a agência estatal responsável pelo custeio dos serviços e os respectivos
profissionais com o encargo de prestá-lo;
(f) deve haver padrões objetivos de controle de qualidade e,
talvez, delimitação de volume máximo de casos (sob o encargo de um
determinado prestador de serviço, compatível com suas possibilidades de
responder pelo trabalho respectivo);
(g) deve-se tomar cuidado para evitar/resolver situações relativas a
possíveis conflitos/colidências de interesse (entre os acusados defendidos
pelo mesmo prestador de serviços);
(h) igualmente, deve-se tomar cuidado para proteger os profissionais
prestadores dos serviços de indevida interferência política ou exposição
perante a mídia;
(i) existem diferentes visões/perspectivas sobre os direitos dos
clientes de escolher seu advogado;
(j) um forte apoio dos operadores jurídicos é indispensável para
defender serviços de assistência jurídica gratuita contra cortes em
recursos orçamentários/financeiros e contra indevida ingerência política.
Essas são lições tiradas especialmente de um estudo de alguns
sistemas de assistência jurídica na área criminal na América do Norte no
final dos anos de 1990.16
11.CIVIL
Os sistemas de assistência jurídica na área cível tendem a oferecer
cobertura, em particular, para atendimentos nas seguintes áreas:
16
SMITH, Roger. Legal Aid Contracting:lessons from North America. Legal Aid Group, 1998.
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
29
(a) família, incluindo divórcio e violência doméstica;
(b) questões/reclamações em matérias de direito público, por
exemplo, a garantia de observância dos direitos assegurados pela
Convenção Europeia de Direitos Humanos;
(c) questões/reclamações em matérias de direito privado, por
exemplo, para reparação de danos pessoais;
(d) questões em matérias do chamado “direito da pobreza”
(literalmente poverty law), de “direito administrativo” e de “direito do bem
estar social”.17
Uma questão peculiar emerge relativamente aos processos judiciais
de “interesse público” (‘public interest’ litigation), isto é, certas situações pelas
quais se toma um determinado caso individual (leading case) para criar um
precedente de interpretação de determinadas normas jurídicas, ou até para
sua mudança, com intuito de trazer benefícios especificamente para os mais
pobres. Nos Estados Unidos, por causa da história de serviços de legal
aid nos anos 1960, essa estratégia tem sido considerada, pelo menos até
recentemente, como a função mais importante dos serviços de assistência
jurídica na área cível (apesar de que tal postura tenha causado intenso
e feroz debate político sobre o papel do Estado no financiamento desse
tipo de causas). No Reino Unido, historicamente não havia financiamento
público para custeio de assistência jurídica para esse tipo de processos
de “interesse público” – embora houvesse a possibilidade de um litigante
individual ter um caso particular de significativo interesse público (com forte
impacto/repercussão de ordem coletiva). A Inglaterra agora possui regras
que permitem a concessão de assistência jurídica especificamente voltada
para casos de alto interesse público (questões de direito coletivo); há um
comitê especial da Legal Services Commission, encarregado de deliberar
sobre pedidos de assistência jurídica especificamente para esse tipo de
processos, cujas decisões são publicadas no site da comissão.
17
N. de T.: não temos, no Brasil, expressões equivalentes para designar tais “áreas” do direito,
especialmente o chamado “direito da pobreza”; uma definição do que seria o chamado “poverty
law” pode ser encontrada no site da Faculdade de Direito da Universidade Georgetown (www.
ll.georgetown.edu/guides/poverty.cfm) nos seguintes termos: “the legal statutes, regulations and
cases that apply particularly to the financially poor in this or her day-to-day life” (ou seja, o conjunto
de leis, regulamentos e casos judiciais que se aplicam particularmente aos financeiramente pobres,
na sua vida cotidiana). Nesse “ramo” estariam abrangidas questões jurídicas relativas a benefícios
assistenciais e sociais na área da saúde, habitação, educação, direito do idoso, da infância e da
juventude, questões trabalhistas, seguridade social, etc.
30
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Uma forma muito eficiente de propiciar recursos financeiros para
custear ações judiciais de interesse público (tutela coletiva) nos locais
onde seja escassa a disponibilidade de fundos seria a destinação de tais
recursos para determinada agência/entidade de significativa importância
(key agency) que ficaria encarregada de desincumbir-se dessa função.
Isto é o que ocorre, por exemplo, no Conselho de Assistência Jurídica
da África do Sul (South African Legal Aid Board) que repassa recursos
financeiros para a ONG “Centro de Recursos Legais” (Legal Resources
Centre), uma das mais impressionantes organizações não governamentais
especializadas nesse tipo de advocacia do mundo.
A necessidade por assistência jurídica relativamente a tais categorias
será bem diversificada conforme as realidades locais e as circunstâncias
do momento histórico. Tradicionalmente, os serviços de assistência jurídica
na Inglaterra eram focados em questões de direito privado e de família.
Contudo, nos últimos tempos, estão se reorientando em direção aos casos
relativos a questões de benefícios sociais e direito público. Outros sistemas,
particularmente aqueles em que o serviço é prestado prioritariamente em
centros jurídicos comunitários (community legal centres) de uma forma ou
outra, costuma-se dar mais atenção ao casos ligados aos direitos do bemestar social (social welfare law). Assim, esse tem sido o caso na Holanda,
Austrália e na província canadense de Ontário.
Os tipos de casos judiciais de direito de família em que é exigida
a representação das partes por advogado variam de acordo com a lei
e com procedimentos locais18 Assim, na Inglaterra e no País de Gales
foi suprimida a assistência jurídica gratuita para os casos de divórcio
no final dos anos de 1970, apesar de continuar sendo concedida para
partes que estejam litigando sobre questões como guarda de menores
e pensão alimentícia. Alguns países podem exigir a representação por
advogado para um processo judicial de divórcio: outros não. Em quase
todos os países, será difícil denegar representação legal, prestada por
advogado, para casos de violência doméstica, embora alguns tenham
tentado transferir tais litígios (da jurisdição cível) para a jurisdição criminal,
convertendo esse tipo de casos em hipóteses de ação penal pública
(mandatory prosecution).
18
N. de T.: o que o autor parece querer indicar aqui é que, nos casos em que for dispensável a assistência por advogado, poderá ser também dispensável a garantia de assistência jurídica gratuita,
custeada pelo poder público.
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
31
Em alguns países se permite que os advogados particulares
adotem o regime de contingency fee (espécie de “cláusula de quota litis”
ou variações delas), pela qual se ajusta que os honorários somente serão
pagos em caso de êxito na causa. Isso permite que – nas causas em
que haja expectativa de retorno financeiro – as pessoas pobres, sem
recursos para contratar um advogado, tenham acesso ao Judiciário por
meio de advogados particulares que se disponham a atuar sob esse
regime. Isso é muito comum nos Estados Unidos para causas judiciais
em que haja perspectiva de condenação em dinheiro. Na Inglaterra, esse
tipo de cláusula de fixação de honorários era, até recentemente, proibido.
Além disso, (diferentemente dos Estados Unidos) na Inglaterra se adota
o sistema de imposição ao perdedor dos ônus sucumbenciais (ou seja, a
parte que perde a causa tem que pagar ao vencedor todas as despesas
gastas com o processo), circunstância que desestimula/inviabiliza a
utilização do sistema de contingency fee.19 De qualquer modo, é permitido
na Inglaterra o regime de “cláusula de sucesso” (em que o advogado
estabelece com o cliente que, em caso de êxito, terá direito a um
percentual mais elevado do valor da causa a título de honorários). Como
resultado, tem-se uma combinação dessa sistemática de “cláusula de
sucesso” com a possibilidade de contratação de uma espécie de “seguro
jurídico” pelo qual um litigante pode contratar a cobertura de potenciais
despesas que venha a ter que arcar em decorrência de sucumbência em
processo judicial (e em alguns casos abrange também a cobertura de
despesas processuais e advocatícias custeadas pelo próprio contratante
do seguro). Essa nova conjuntura tem se tornado mais frequente e são
agora uma importante fonte de renda para advogados particulares, por
exemplo, em casos que envolvam danos pessoais.
Um aspecto em que os casos cíveis se diferem bastante dos
casos criminais é a circunstância de que um cidadão enfrentará maiores
dificuldades para identificar/se dar conta de que tem direitos a serem
efetivados/garantidos. Por isso, há necessidade de se assegurar a
prestação de serviços de informação e aconselhamento jurídicos
além de representação/patrocínio em Juízo. Os diversos países
possuem diferentes formas de lidar com essa questão. Alguns têm
19
N. de T.: nos Estados Unidos, em geral, não se impõe ao perdedor a obrigação de pagar ao vencedor as despesas que tenham sido gastas no processo; assim, os “riscos” de litigar são menores,
visto que a parte que tiver ajustado com seu advogado a cláusula de contingency fee, se não obtiver o êxito esperado, não terá que fazer qualquer desembolso financeiro.
32
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
investido considerável volume de recursos em programas de educação
jurídica para o público em geral. Um destaque nessa área tem sido a
província canadense de British Columbia onde existe uma entidade –
denominada Law Courts Education Society – que tem como missão
divulgar a atividade dos tribunais; outra entidade – denominada People
Law´s School (uma espécie de escola jurídica popular) – que é uma
organização educacional independente; além da Legal Services Society
(que é a agência estatal responsável pelos serviços de assistência
jurídica gratuita aos necessitados) que investe recursos financeiros em
programas próprios de educação em direitos (public legal education)
apesar de, recentemente, ter enfrentado cortes orçamentários para
custeio desses programas.20 Inglaterra e País de Gales apenas
tardiamente se deram conta da necessidade desse tipo de atividade.
Uma tendência interessante, de grande potencial para o futuro, é a
utilização da internet para que o público possa se informar sobre onde
encontrar os prestadores de serviços de assistência jurídica gratuita e
bem assim para obtenção de informações jurídicas preliminares básicas
(para esclarecimento de dúvidas). A missão legalmente estabelecida
para a agência pública inglesa que é responsável pelos serviços de
assistência jurídica (a Legal Services Commission) vai muito além da
mera garantia de assistência judiciária (patrocínio e representação dos
necessitados em Juízo) e deixa patente a amplitude das tarefas cujo
cumprimento é desejável. A referida “comissão” deve propiciar:
(a) o provimento de informações gerais sobre os direitos e sobre o
sistema jurídico e a disponibilidade de serviços de assistência judiciária
gratuita;
(b) o provimento de auxílio/assistência fornecendo serviços de
aconselhamento e orientação jurídica em certas circunstâncias;
(c) o provimento de auxílio/assistência para prevenção, composição
ou qualquer outro mecanismo de resolução de litígios e conflitos sobre
direitos e obrigações;
(d) o provimento de auxílio/assistência no efetivo cumprimento de
decisões pelas quais tais conflitos tenham sido resolvidos; e
20
Ver, sobre esse assunto, o artigo “Pioneers in public legal education”, escrito por Gordon Hardy,
publicado no livro “Shaping the Future: new directions in legal services”, de autoria de Roger Smith,
publicado pelo Legal Action Group, no ano de 1995.
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
33
(e) o provimento de auxílio/assistência inclusive em relação aos
procedimentos jurídicos não litigiosos (assistência jurídica extrajudicial).21
Além disso, a entidade tem poder de planejar ou coordenar serviços
sob seu encargo e estabelecer padrões (a serem observados pelos
prestadores dos respectivos serviços).
Um sistema de serviços de legal aid na área cível, diferentemente
da assistência jurídica na área criminal, precisa se ocupar de aferir
a presença de dois pressupostos: carência de recursos e mérito22 da
causa. Em muitos países há concordância de que um serviço básico
de aconselhamento jurídico deve ser gratuito para que se possa aferir o
atendimento de ambos os pressupostos acima – é o caso, por exemplo,
da Holanda, onde é assegurado a qualquer pessoa o direito de uma
consulta jurídica gratuita de até meia hora. Além disso, o pressuposto
de carência de recursos econômicos varia em cada local, de acordo com
a realidade específica de disponibilidade de recursos e necessidades a
serem atendidas. O pressuposto relativo ao mérito da causa tem sido
apurado com certa “sofisticação” na Inglaterra, medindo-se a porcentagem
da probabilidade de sucesso em comparação com a estimativa de custo.
Contudo, esse tipo de aferição seria provavelmente bastante complicado
para muitos países da Europa Central e Oriental. O critério utilizado no
passado era o “private paying client test” – ou seja, fazia-se uma avaliação
em que se considerava se naquele tipo de causa a questão seria proposta
por um cliente não carente de recursos o qual tivesse que arcar, com seu
patrimônio pessoal, com o custeio de todas as despesas. Nos casos em
que há um exame de carência de recursos em casos criminais, então o
tribunal pode apresentar um bom órgão para assumir a responsabilidade
na medida em que tem um interesse em minimizar a demora. Em relação
aos casos cíveis, o órgão responsável pela gestão dos serviços de legal
aid tem o encargo de prover o mecanismo apropriado para aferição
dos pressupostos de carência de recursos e de mérito da causa. Se há
um grau de confiança nos próprios prestadores de serviços, então essa
aferição poderá ficar sob o encargo deles.
Muitos países consideram que as pessoas que estejam recebendo
algum tipo de benefício assistencial público devem ser dispensadas de
21
Tais encargos estão definidos na “Lei do Acesso a Justiça” (Access to Justice Act), do ano de 1999.
22
N. de T.: ou seja, a plausibilidade da pretensão a ser submetida ao Judiciário.
34
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
comprovação de carência de recursos quando pleiteiam assistência jurídica
gratuita, particularmente nos locais em que tais serviços são prestados
em núcleos de atendimento jurídico comunitário ou em “clínicas” jurídicas
(law clinics), como ocorre na África do Sul, Austrália ou em Ontário. O
pagamento pelos serviços prestados não é compatível com a filosofia que
rege esse tipo de clínicas ou centros comunitários.
Um número de países/estados tem considerado que núcleos jurídicos
comunitários (como no Reino Unido), clínicas jurídicas (Ontário) ou centros
de serviços jurídicos (Austrália) prestam um bom modelo de assistência
jurídica para causas cíveis. Suas grandes vantagens na perspectiva das
entidades responsáveis pelo financiamento desses serviços é que eles
são custeados por subsídios previamente fixados e limitados (e assim as
despesas são previsíveis e ficam dentro dos limites orçamentários). Com
a participação de representantes da própria comunidade na direção ou
gerenciamento dos serviços, estes são compatibilizados com as (efetivas)
necessidades de suas comunidades e maximizando-se o uso de seus
recursos. Adicionalmente, eles podem operar como uma espécie de ímã
para atrair recursos provenientes de outras fontes ou até mesmo para
trabalho voluntário que possa ser prestado por advogados privados (que
se disponham a atuar em regime caritativo ou pro bono).
12.CONCLUSÃO
De tudo o que foi exposto acima, emerge um número de questões a
serem respondidas por qualquer pessoa que pretenda criar/implantar um
sistema de legal aid em um determinado país/região o que pode ser útil
para explicitar (uma visão de conjunto) porque esse processo fomentará
um debate. Esses foram os pontos inicialmente delineados no prólogo
que se encontra no início deste estudo.
As pressões contraditórias da realidade contemporânea na Europa,
suscitam reflexão sobre o sentido dos serviços de legal aid, como em
qualquer outro lugar. A União Europeia vem estabelecendo exigências
cada vez maiores para assistência jurídica estatal para representação
e defesa em casos envolvendo situações transnacionais (cross-boarder
cases) ou casos criminais em que a implementação de um Mandado
de Prisão Europeia supõe o reconhecimento mútuo de procedimentos
e, assim, concordância quanto à observância de padrões mínimos (de
Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes
35
garantias de direitos). Por outro lado, todos os países são atingidos pela
pressão (escassez) em seus recursos.
Todos os países europeus precisam de sistemas efetivos de
legal aid. A forma pela qual podem atender essa exigência variará
consideravelmente. A má notícia é que a história mostra que estados,
como Quebec (no Canadá), que estavam em certo momento bem à frente
no que se refere à estrutura de efetiva prestação de serviços de assistência
jurídica podem sofrer deterioração de seus serviços de tal forma que eles
caiam significantemente, sendo passados para trás, em comparação com
aqueles outros relativamente aos quais estavam na dianteira. A boa notícia
é que o contrário (também) pode acontecer. Como disse Bob Dylan: those
that are last will later be first, for the times they are a ‘changing’ (os últimos
serão os primeiros, porque os tempos são de “mudanças”).
A ATUAÇÃO DA
DEFENSORIA PÚBLICA
SOB O PRISMA DO
NEOCONSTITUCIONALISMO
Aluísio Lunes Monti Ruggeri Ré,
Defensor Público do Estado de São Paulo, mestrando em Direito pela
UNAERP.
1. INTRODUÇÃO E O NEOCONSTITUCIONALISMO
A Defensoria Pública é a Instituição Democrática mais próxima da
população, principalmente dos setores mais vulneráveis da sociedade,
as chamadas “minorias”, que estão inseridas em contextos sociais,
econômicos e jurídicos de contradições e demagogia.
Realmente, temos uma Constituição Federal “modelo”, que prevê
um Estado Democrático e Social de Direito, mas que ainda carece
de concretização e a devida força normativa. De fato, são objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, CF): “erradicar a
pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais
(III); promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (IV)”.
Ocorre que, por outro lado, há uma sociedade carente de políticas
públicas adequadas e efetivas, de planejamento social, de justiça,
enfim, de uma estrutura socioeconômica viável para seu progresso e
desenvolvimento. Se atualmente observamos um momento de êxito
econômico brasileiro, ainda que o mundo atravesse momento de
crise econômica, o mesmo não tem ocorrido no âmbito social. Nossos
38
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
governantes não têm conseguido converter o progresso tecnológico
em qualidade de vida, gerando ainda mais concentração de riquezas e
desigualdades sociais.
A Defensoria Pública, por sua vez, com sua missão constitucional
de prestar assistência jurídica aos necessitados1, assiste a essa triste
realidade de total exclusão social, mas não se rende ao sistema posto/
imposto e tem promovido, na medida de suas possibilidades, a inclusão
jurídica2 daqueles marginalizados pelo sistema, no sentido de concretizar
os direitos fundamentais e fazer da nossa Constituição Federal (CF) um
modelo não tão utópico como a realidade tem indicado.
Nesse diapasão, o Neoconstitucionalismo3, tido como fenômeno
mundial de valorização das Constituições Estatais, com a atribuição de
efetiva força normativa aos seus dispositivos e colocação dos direitos
fundamentais no topo do sistema jurídico, é um importante instrumento
e fundamento indispensável à atuação da Defensoria Pública no
cumprimento de sua nobre missão, mormente quando se leva em
consideração o dilema socioeconômico acima exposto.
De fato, a doutrina neoconstitucional prega, além de outros
aspectos, a potencialização e efetivação dos direitos fundamentais,
partindo do destaque destes direitos nas Constituições dos Estados
Ocidentais. Aliás, não é por acaso que a previsão de direitos e garantias
fundamentais passa a integrar a parte inaugural da Constituição Federal
de 1988 e não mais os dispositivos finais como ocorria nas Constituições
anteriores.
1
Art. 134 da Constituição Federal.
2
Não podemos olvidar que a inclusão jurídica acarreta a inclusão social/psicossocial e econômica. De fato, a solução de um problema jurídico daquela pessoa que procura pelos serviços da
Defensoria Pública acaba repercutindo na sua vida como um todo, seja no aspecto social, psicológico e econômico. Por exemplo, um cidadão que tem seu nome negativado, em razão de cobrança
indevida, não consegue se empregar com facilidade, em razão da recorrente consulta aos cadastros de inadimplentes feita pelos potenciais empregadores. Nesse caso, a declaração judicial de
inexistência daquele débito, terá como efeito imediato a retirado de seu nome dos cadastros de
proteção ao crédito, mas também o efeito mediato de viabilizar a obtenção do tão almejado vínculo
empregatício.
3
Segundo o Professor Luís Roberto Barroso, “o marco filosófico do fenômeno em questão é ’o pós-positivismo’, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética”
(Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional
no Brasil. São Paulo, 2005. P 04).
A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo
39
Em termos históricos, podemos estabelecer como marco
internacional o período pós-guerra, cujo ideal humanitário renascia após
tamanhas atrocidades e da grave banalização dos direitos humanos.
Aliás, tal momento coincide com o fenômeno da internacionalização dos
direitos humanos, bem como da consagração de novos paradigmas de
análise desses direitos, quais sejam, a universalidade, a indivisibilidade, a
interdependência e a transnacionalidade, mormente com a proclamação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. No âmbito nacional,
podemos estabelecer, como divisor de águas do Neoconstitucionalismo,
a promulgação da Constituição Federal de 1988, com o estabelecimento
da dignidade da pessoa humana como valor base de todo ordenamento
jurídico, após um período político de ditadura, não democrático, com
graves limitações aos direitos do homem.
Teoricamente, o Neoconstitucionalismo tem como pressuposto a
superação do Positivismo, da concepção puramente científica do Direito,
colocado em posição de indiferença aos valores e à ética. Assim, o PósPositivismo apresenta-se como pressuposto para a efetivação dos direitos
fundamentais, ditando uma análise mais axiológica e menos matemática
do fenômeno jurídico.4
O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores,
uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem compartilhar
beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para
o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade,
em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam
a estar abrigados na Constituição, explicita ou implicitamente. Alguns
nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade, sem
embargo da evolução de seus significados. Outros, conquanto clássicos,
sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a separação dos
Poderes e o Estado democrático de direito. Houve, ainda, princípios que se
incorporaram mais recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova
dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da
solidariedade e da reserva da justiça.5
4
Neste contexto, o pós-positivismo representa a reaproximação entre Direito e o valor Justiça, sendo
que os valores são resgatados como fatores de interpretação e aplicação da norma, cuja análise se
faz por juízos de ponderação e razoabilidade, e não com simples subsunção do caso à lei estrita e
fechada.
5
BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasilei-
40
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Aliás, em termos gerais, a própria Defensoria Pública é um fato
neoconstitucional, na medida em que viabiliza a defesa jurídica daquela
parcela da população menos favorecida, assegurando a aplicação e
concretização dos direitos fundamentais.
2. A DEFENSORIA PÚBLICA
A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus,
dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV.6 Ela representa a forma
pela qual o Estado Democrático de Direito promove a ação afirmativa, ou
discriminação positiva, visando à inclusão jurídica daqueles econômica
e culturalmente hipossuficientes, em observância ao disposto no artigo
5º, LXXIV, da Constituição Federal, que prevê o direito fundamental
à assistência jurídica, cujos titulares são aqueles que comprovarem
insuficiência de recursos, na forma prevista na Lei n.º 1060/50, que
estabelece o conceito jurídico de “necessitado”.
Portanto, não se pode olvidar que a Defensoria Pública, como
instrumento de ação afirmativa, visa à concretização do princípio
da isonomia ou igualdade, na medida em que o Estado, por meio
dela, trata desigualmente os desiguais (necessitados), almejando à
igualdade de condições. Nas palavras da professora Carmen Lúcia
Antunes Rocha,
a definição jurídica objetiva e racional de desigualdade dos desiguais,
histórica e culturalmente discriminados, é concebida como forma de
promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por
preconceitos encravados na cultura dominante da sociedade. Por esta
desigualação positiva promove a igualação jurídica efetiva; por ela afirmase uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social,
política e econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal
e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa
ro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: A nova interpretação constitucional. São
Paulo: Renovar, 2008.
6
CF, artigo 134. O artigo 1º da Lei Complementar n.º 80/94 assim dispõe: “A Defensoria Pública é
instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe prestar assistência jurídica,
judicial e extrajudicial, integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma da lei.”
A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo
41
é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição
social a que se acham sujeitas as minorias.7
Em outras palavras, a Defensoria Pública é o instrumento pelo qual
se garante o acesso à Justiça aos necessitados, desprovidos de recursos
financeiros, para custear os serviços prestados por um Advogado
particular. De fato,
não se adentram as portas do Judiciário sem o cumprimento de ritos e a
obediência a procedimentos. Entre estes está a necessidade de defesa por
profissionais especializados – os Advogados. Ora, o acesso aos advogados,
por sua vez, depende de recursos que na maior parte das vezes os mais
carentes não possuem. Assim, para que a desigualdade social não produza
efeitos desastrosos sobre a titularidade de diretos, foi concebido um serviço
de assistência jurídica gratuita – a Defensoria Pública.8
Entretanto, a Defensoria Pública não é apenas um órgão patrocinador
de causas judiciais. É muito mais. É a Instituição Democrática que
promove a inclusão social, cultural e jurídica das classes historicamente
marginalizadas, visando à concretização e a efetivação dos direitos
humanos, no âmbito nacional e internacional, à prevenção dos conflitos,
em busca de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade, com a erradicação da pobreza e da
marginalização, em atendimento aos objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, previstos no artigo 3º da Constituição Federal.9
Realmente, nas palavras de Marcio Thomaz Bastos10,
as instituições sólidas são os instrumentos que as democracias têm
para se realizar enquanto tais. E as democracias, para abandonarem o
7
ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Ação afirmativa – O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Direito Público, n º 15/85.
8
SADEK, Maria Tereza. Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.
9
Aliás, o artigo 3º da Lei Complementar Estadual n.º 988/06 dispõe que “A Defensoria Pública do
Estado, no desempenho de suas funções, terá como fundamentos de atuação a prevenção de
conflitos e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da
marginalidade, e a redução das desigualdades sociais e regionais.”
10
II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil promovido pelo Ministério da Justiça e pelo Programa
das Nações Unidas pelo Desenvolvimento, em 2006.
42
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
rótulo de democracias formais, se tornando verdadeiras democracias de
massas, devem construir instituições que consigam garantir a todos, sem
discriminações, os direitos previstos nas constituições democraticamente
escritas. (...) Não mais podemos nos preocupar só com o Estado Julgador
e com o Estado Acusador, em detrimento do Estado Defensor.
Outrossim, a atuação da Defensoria Pública se torna ainda mais
relevante em um Estado como o Brasil, que possui uma Carta Magna de
caráter social, mas que carece de efetividade e concretude, em razão das
forças neoliberais, que fazem dos princípios constitucionais dispositivos
meramente programáticos, despidos de normatividade. De fato,
a herança do neoliberalismo é uma sociedade profundamente desagregada
e distorcida, com gravíssimas dificuldades em se construir, do ponto de
vista da integração social, e com uma agressão permanente ao conceito
e prática da cidadania. Talvez, a Defensoria Pública tenha vindo para
”organizar esta cidadania”.11
Segundo pondera o Ministro Celso de Mello,
vê-se, portanto, de um lado, a enorme relevância da Defensoria Pública,
enquanto Instituição permanente da República e organismo essencial
à função jurisdicional do Estado, e, de outro, o papel de grande
responsabilidade do Defensor Público, em sua condição de agente
incumbido de viabilizar o acesso dos necessitados à ordem jurídica justa,
capaz de propiciar-lhes, mediante adequado patrocínio técnico, o gozo –
pleno e efetivo – de seus direitos, superando-se, desse modo, a situação de
injusta desigualdade sócio-econômica a que se acham lamentavelmente
expostos largos segmentos de nossa sociedade.12
3. A MISSÃO E OS OBSTÁCULOS
No entanto, por mais bela que pareça a atuação da Defensoria
Pública, segundo a arquitetura teórica acima exposta, sua atuação
11
BORÓN, Atílio. In: GALLIEZ, Paulo. A Defensoria Pública. O estado e a cidadania. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lúmem Júris, 2006.
12
STF, ADI nº 2903.
A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo
43
prática é sobremodo complexa e exige elevado grau de compreensão e
criatividade. De fato, o atendimento diário submete o Defensor Público
aos mais variados problemas jurídicos, cujas soluções, muitas vezes, não
decorrem de simples aplicação de subsunção da lei ao caso concreto,
mas exige certo trabalho hermenêutico.
Aliás, o grau de complexidade das demandas deve-se a variados
fatores, de naturezas diversas, que fazem com que o sujeito se submeta
a caminhos jurídicos simples, moderados, complexos ou impossíveis. Em
geral, a população mais carente torna-se mais vulnerável às agressões
aos seus direitos, cujas soluções administrativas mostram-se cada vez
mais distantes. A burocracia, a desinformação e a inexperiência são
fatores que submetem o indivíduo a situações juridicamente delicadas e
até de impossível solução.
Como se não bastasse, diferentemente do que ocorre nos países
europeus, no Brasil a Instância Administrativa é quase nula, fazendo da
via judicial a via única a ser obrigatoriamente percorrida, sob pena de
perecimento do direito subjetivo violado.
Além disso, o Brasil ainda sofre do que a doutrina chama de
síndrome da ineficácia das normas constitucionais. Em muitos casos,
utilizando de interpretações distorcidas e pretensiosas de princípios como
o da separação dos poderes, da reserva do possível, da discricionariedade
administrativa, o Poder Público acaba se omitindo e negligenciando na
execução dos direitos fundamentais como o direito à saúde, à educação
de qualidade, à moradia digna, dentre outros.
Outro grave equívoco cometido por parcela da doutrina que trata
do tema é taxar de meramente programáticas as normas constitucionais
de direitos sociais. Ora, negar eficácia às regras que consagram direitos
humanos é negar a própria essência da Constituição Federal de 1988, cujo
âmago nucelar13 é composto pelo valor da dignidade da pessoa humana.
Não se pode olvidar da concreta força normativa da Constituição, sob
pena de corrompermos todo um sistema desenhado e lapidado após
período histórico de extrema violência, autoritarismo e omissão estatal.
Negar eficácia aos direitos fundamentais é negar a própria Constituição,
é negar nossa história.
13
Utilizamos da expressão “âmago nuclear”, embora pleonástica, mas propositadamente, para transmitirmos a ideia de absoluta primazia da dignidade humana.
44
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Somando a todo esse preocupante quadro, acrescentaríamos que a
falta de informação da população mais carente e sua relativa inexperiência,
diante das mais complexas relações jurídicas que vêm se desenvolvendo
na atualidade, acaba elevando ainda mais essa vulnerabilidade. Contratos
de adesão, contratos virtuais e serviços de televendas são apenas
alguns exemplos que representam o risco da atual conjuntura comercial
e obrigacional. Muitas vezes, até os mais protecionistas microssistemas
jurídicos, como o implementado pelo Código de Defesa do Consumidor,
não são capazes de fornecer soluções às demandas apresentadas ao
Defensor Público, exigindo elevado grau de atenção e criação.
A atenção e a vontade de ouvir são importantes virtudes para a
colheita do maior número de peculiaridades do caso concreto, sendo
que a criatividade deverá incidir sobre o contexto fático para a adoção da
medida mais adequada e satisfatória para a questão, ainda que, em um
primeiro momento, pareça ela não solucionável.
Diante desse contexto socioeconômico e jurídico, sob o prisma do
Neoconstitucionalismo, propomos uma atuação de potencialização dos
direitos fundamentais à Defensoria Pública, para o bem cumprimento de
seu mister institucional.
4. A APLICAÇÃO PRÁTICA E POTENCIALIZADA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS: A FÓRMULA
Em primeiro lugar, cumpre advertirmos que a grande diversidade
de casos submetidos ao crivo do Defensor Público torna quase inviável
a elaboração de uma fórmula ou modelo padrão de atendimento, mas
não afasta a possível elaboração de um caminho útil na condução dos
trabalhos.
Pois bem. Uma vez superada a fase de avaliação financeira, com a
concessão do benefício da assistência jurídica, o Defensor Público passa a
análise técnica da questão, para, ao final, diante de todas as possibilidades
jurídicas levantadas, adotar aquela que melhor se adéqua aos fatos narrados.
Ocorre, porém, que o arrolamento dessas possibilidades, muitas vezes,
pode não ser tarefa simples, exigindo do profissional muita criatividade e
visão construtiva, cujos critérios e fatores relevantes de análise passaremos
a colocar sob a forma de uma fórmula que, vale repetir, apenas auxiliará a
análise da questão e a adoção da solução adequada.
A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo
45
Chamaremos de índice de possibilidades (IP) o número de
alternativas possíveis, que será diretamente proporcional ao número de
peculiaridades do caso concreto (PCC) e ao nível valorativo do direito
violado (NVD). Em outras palavras, quanto mais rico em peculiaridades
for o caso em questão e mais nobre for o direito ameaçado, maior deve
ser o “cardápio” de possibilidades jurídicas, exigindo do Defensor Público
alto grau exegético e de construção técnica.
É dizer, a violação aos direitos fundamentais exige que o Defensor
Público se transforme em verdadeiro engenheiro ou arquiteto jurídico
na elaboração de todas as alternativas possíveis e na escolha daquela
que melhor satisfaça os interesses do sujeito atendido. Se pudéssemos
reduzir este raciocínio em simples fórmula matemática, teríamos a
presente equação: IP = PCC x NVD. No plano cartográfico, teríamos uma
reta oblíqua crescente que representa o desenvolvimento do índice de
possibilidades (IP). No plano vertical teríamos a variante representante
do nível de valoração do direito violado (NVD) e, no plano horizontal, a
variante das peculiaridades do caso concreto (PCC).
Tal fórmula nos leva a uma série de conclusões e ditames para
o bom desempenho da função da Defensoria Pública, no contexto do
Neoconstitucionalismo, quando do atendimento aos necessitados e
desenvolvimento dos seus trabalhos: é preciso alto grau de sensibilidade
para a valoração do interesse supostamente violado ou ameaçado; exigese atenção e paciência na colheita do maior número de dados conexos
ao problema apresentado e; por derradeiro, tem o Defensor Público a
responsabilidade de criar, desenvolver e operacionalizar as mais variadas
medidas jurídicas adequadas à satisfatória solução da questão ao seu
crivo submetida.
Isso não significa, e aqui vale uma ressalva, que a Defensoria Pública
não deve se empenhar na defesa efetiva de direitos não fundamentais.
Direitos são direitos que carecem de proteção, pois possuem titulares/
sujeitos, objeto e uma função orgânica no sistema jurídico como um todo.
Uma vez presentes as condições da ação e os pressupostos processuais,
ao titular de um direito devem ser fornecidos todos os meios para sua
adequada tutela judicial ou extrajudicial. Agora o que não podemos
negar é que a Defensoria Pública no Brasil ainda encontra-se em fase
de construção e não dispõe de estrutura e pessoal suficientes para um
atendimento ideal a qualquer tipo de direitos/interesses e a definição de
prioridades passa a ser fase obrigatória na fixação de suas metas e de
46
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
seu plano de atuação. Aliás, a própria definição de metas, no sentido
de priorizar a defesa dos direitos humanos, decorre do próprio conceito
de ação afirmativa ou do conteúdo material do princípio da igualdade,
mormente no Brasil, cujos direitos fundamentais carecem da necessária
efetividade e concretude.
5. EXEMPLOS PRÁTICOS
Parece uma utopia a idealização e aplicação de uma fórmula quase
que matemática para a potencialização dos direitos fundamentais na
seara de atuação da Defensoria Pública. Porém, a exposição de alguns
casos práticos indica a possibilidade de se pensar uma forma concreta
de efetiva concretização desses direitos no âmbito dessa Instituição
Democrática e quebrar velhos e obsoletos conceitos e preconceitos do
modelo de subsunção da modernidade, no caminho da aplicação do
direito sob a óptica pós-moderna.
Como acima colocado, o Defensor Público depara-se diariamente
com as mais variadas e complexas questões jurídicas ou lides. Alguns
exemplos práticos por nós atendidos podem ilustrar o presente estudo.
O primeiro caso que merece destaque ocorreu quando fazíamos o
procedimento de avaliação financeira e análise inicial dos problemas, em
meados do ano passado.14 A atendida Marina nos apresentou sua questão
que, em um primeiro momento, parecia de difícil ou de controvertida
solução. Segundo nos relatou, há meses não quitava as contas de água
e coleta de esgoto por total impossibilidade financeira e estava com o
respectivo fornecimento do serviço interrompido. Em tese, ainda que não
admitamos o corte aos serviços públicos essenciais,15 muitos juízes e
14
Para fins de preservar a intimidade das pessoas atendidas na Defensoria Pública do Estado,
Regional de Ribeirão Preto, optamos por citar apenas o prenome, sem referências aos sobrenomes.
15
Segundo entendemos, o arcabouço jurídico de tutela do consumidor impossibilita a interrupção à
serviço público essencial. O Código de Defesa do Consumidor veda a cobrança vexatória e humilhante (art. 42) e prevê expressamente o princípio da continuidade do fornecimento de serviço
público essencial (art. 22: “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços
adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”). É bem verdade que o Código
de Defesa do Consumidor não cuidou de elencar quais são os serviços considerados essenciais,
no entanto, tal rol pode ser encontrado na Lei de Greve (Lei n.º 7.783/89), que estabeleceu quais
os serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Nesse
A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo
47
tribunais têm aceitado a interrupção sob argumento de que a inadimplência
coloca em risco a continuidade do fornecimento à coletividade.16 Diante
disso, a primeira saída seria a propositura de uma precária e malfadada
ao malogro ação de obrigação de fazer, com pedido de antecipação de
tutela. Notem que, inicialmente, a questão envolve apenas direitos do
consumidor e direitos civis obrigacionais.
Entretanto, com base na tese ora proposta, na ocasião ainda
despida de contornos mais precisos, questionamos se sua residência
abrigava alguém portadora de alguma enfermidade, cuja ausência da água
potável prejudicaria seu tratamento ou sua cura. Vejam que elevamos as
peculiaridades do caso concreto (PCC) para fins de aumentarmos o índice
de possibilidades (IP). Além disso, pensávamos em elevar a nobreza do
direito violado (NDV) com o deslocamento da questão dos direito das
obrigações para o direito fundamental à vida e à saúde para também
aumentar as alternativas jurídicas. E foi exatamente o que ocorreu. Marina
nos informou que possuía uma filha, Ester, portadora de insuficiência renal
crônica, cujo tratamento exigia a realização de, pelo menos, três sessões
de hemodiálise por semana, sendo a limpeza e higienização da fístula,17
com água potável, indispensável para o sucesso do tratamento.
Diante dessas circunstâncias, com a elevação das peculiaridades
e do nível valorativo dos direitos envolvidos, as possibilidades jurídicas
se expandiram. Propusemos uma ação de obrigação de fazer, com tutela
antecipada, em face da concessionária do serviço público (DAERP –
Departamento de água e esgoto de Ribeirão Preto), cumulada com ação
condenatória em face do Município de Ribeirão Preto, para que fosse
obrigado a custear aquele serviço àquela unidade consumidora, até que
se realizasse o transplante de rim na paciente com sua consequente cura,
uma vez que ao Estado se atribuiu constitucionalmente e legalmente a
obrigação de garantir o direito à saúde dos cidadãos.18
sentido dispõe o artigo 10 da mencionada lei: “São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; (...)”. Em suma, defendemos a impossibilidade do corte aos serviços públicos essenciais.
16
Aliás, a Lei n.º 8987/95, que regulamenta a concessão e permissão da prestação de serviço público, em seu artigo 6º, §3º, admite a interrupção em casos de inadimplemento.
17
A fístula é o orifício por onde entra o tubo do aparelho de filtragem sanguínea.
18
O direito à saúde, nos termos do artigo 196 da Constituição Federal de 1988, revela-se como direito
público subjetivo dos cidadãos, os quais, inclusive, são legitimados a demandarem, inclusive judi-
48
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Na citada ação interposta, o juiz a quo não concedeu a tutela
antecipada, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de Agravo
de Instrumento, cujo Desembargador Relator atribuiu efeito ativo ao
recurso, reconheceu presentes os pressupostas para a antecipação da
tutela, determinando o imediato restabelecimento do fornecimento de
água e coleta de esgoto à unidade consumidora em questão, custeado
pelo Poder Público Municipal até a cura da paciente com o futuro e
eventual transplante de renal.
Outro exemplo prático que ilustra a “atuação neoconstitucional”
da Defensoria Pública e a necessária atitude criativa/empreendedora,
no sentido técnico-jurídico, do Defensor Público, em caso que também
envolvia o direito à saúde e à sadia qualidade de vida, ocorreu quando
atendemos um cidadão enfermo, Roselino, cuja doença progredia
rapidamente, mas cujo medicamento prescrito pelo seu médico não
gozava de eficácia científica comprovada, mas, segundo o profissional,
era a única droga que poderia conter a doença.
Diante disso, propusemos uma ação de obrigação de fazer, em
face do Poder Público, para o fornecimento do remédio, com pedido de
antecipação de tutela, cujo deferimento fora negado pelo juízo a quo, sob
argumento de que aquela substância não possuía eficácia comprovada
para tratamento daquela enfermidade. Cientificado da decisão, sabíamos
das dificuldades na obtenção daquela tutela, pois, além de obstáculos
cialmente, face o Estado, providências hábeis a concretizá-los. Ainda sob a égide constitucional, o
direito à saúde adquire contornos de aplicabilidade imediata e eficácia plena (art.5°, §1° da CF/88).
A legislação infraconstitucional aponta no mesmo sentido, conforme disposição do art. 2° da Lei
n°8.080/90 ao impor que “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado
prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. A administração da saúde, como
direito subjetivo dos cidadãos, conforme disposição constitucional (art. 23, inciso II da CF/88), é
de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, criando uma
espécie de obrigação solidária.
No entendimento jurisprudencial: “MEDICAMENTOS – Fornecimento pelo Estado – Prestação de
serviço público – Obrigação de Fazer – Pedido de medicamentos e insumos para tratamento de patologia que padece – Diabetes Mellitus tipo II – Extinção do feito sem exame de mérito em relação
à Municipalidade de São Paulo – inadmissibilidade – Competência delineada na Lei n.8.080/90 que
atribui competência à União, Estados, Municípios e Distrito Federal – Direito à saúde, à vida e à
dignidade da pessoa humana que não pode ser relegado à mercê de toda sorte de inconvenientes
provocados pelo Poder Público – Responsabilidade solidária entre Estado e Município para cumprimento da obrigação, cujos órgãos deverão se interagir para entendimento de determinação –
Recurso provido” (Apelação Cível com Revisão n° 523.335-5/0 – São Paulo - 7ª Câmara de Direito
Público – Relator Coimbra Schimidt – 23.7.2007 – M.V. – Voto n.8.548).
A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo
49
como o princípio da discricionariedade da Administração e o princípio da
reserva do possível, ainda tínhamos em nosso desfavor a questão da
dúvida científica acerca da eficácia da droga.
Mas, conscientes da nobreza do interesse envolvido, tínhamos
a responsabilidade de bem fundamentar o recurso para reverter aquela
situação jurídica totalmente desfavorável à autora. E assim fizemos,
trazendo para o âmbito da saúde o princípio da precaução do direito
ambiental, segundo o qual a não comprovação científica não pode ser óbice
à concretização de direitos fundamentais como o direito ao meio ambiente
sadio19 e, no nosso caso, o direito à saúde. Assim, com a ampliação das
possibilidades e da consistência na fundamentação do recurso de agravo
de instrumento20, foi-lhe concedido efeito ativo pelo Desembargador Relator,
o Ministro Gama Pellegrini, no sentido de conceder a tutela antecipada
pleiteada para o imediato fornecimento da droga indicada.
Por derradeiro, o terceiro exemplo prático se deu quando
atendemos um cidadão, Edvaldo, inadimplente nas suas últimas contas
de energia elétrica, cujo fornecimento havia sido interrompido. Ainda que
defendêssemos a impossibilidade do corte a serviço público essencial,
conforme acima exposto, o débito era realmente devido e a reversão
daquele quadro seria sobremodo trabalhoso, ao menos em tutela liminar,
ainda que o devedor se dispusesse a quitar em parcelas o total da
dívida, cujo fracionamento fora negado pela empresa concessionária.
Porém, resolvemos apurar o que realmente teria ocorrido naquele caso,
que justificasse a inadimplência, e outras peculiaridades que continha.
Descobrimos que o inadimplemento decorreu de séria dificuldade
financeira do usuário do serviço, em razão de problemas de saúde do
filho do casal, cujos gastos se elevaram com medicamentos e consultas
médicas inesperadas.
19
O princípio da precaução, já consolidado no Direito Ambiental, visa a evitar a ocorrência de danos,
no sentido de prevenir, não apenas o dano que irá inevitavelmente ocorrer, mas também aquele do
qual não há prova irrefutável de que ocorrerá. Verifica-se, no princípio 15 da Declaração do Rio de
Janeiro em Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992: “Com o fim de proteger o meio ambiente,
o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza
científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente
viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Ou seja, a dúvida científica não impede a tutela
preventiva do meio ambiente.
20
TJ/SP, Agravo de Instrumento n.º 916.468.5/7, 1º Grupo de Câmaras de Direito Público.
50
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Portanto, diante de um contexto de inadimplência justificada, que
demonstra boa-fé do devedor, e do desejo no parcelamento da dívida,
mas com resistência do credor, resolvemos defender a existência de
um verdadeiro direito material ao pagamento parcelado, cuja tese fora
exposta no VII Congresso Nacional dos Defensores Públicos, na cidade de
Cuiabá, Estado do Mato Grosso, em outubro de 2008, a qual foi aprovada
e concedida menção honrosa pela banca examinadora. No caso prático,
por sua vez, em tutela antecipada, o juízo a quo acolheu a fundamentação
exposta na petição inicial e autorizou o pagamento do débito em parcelas,
independentemente da anuência do credor.21
Observam que somente encontramos este caminho, quando saímos
da relação obrigacional limitada entre credor e devedor e adentramos
na seara constitucional que abarca princípios como o da dignidade da
pessoa humana e da eticidade nas relações entre particulares. Em outras
palavras, ampliamos o leque de possibilidades ao passarmos do direito
Segundo defendemos, “o artigo 745-A do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei nº
11.382/06, autoriza o devedor executado, no prazo para os embargos à execução, reconhecendo o
crédito e depositando a quantia inicial de 30% do valor executado, incluindo as custas e honorários
advocatícios, a pagar o restante do débito em 6 (seis) parcelas mensais, com correção monetária e
juros de 1% ao mês. Tal proposta será apreciada pelo juiz que poderá deferi-la ou indeferi-la (§ 1º).
O não pagamento das prestações implicará em vencimento antecipado do débito, incidindo multa
de 10% sobre as prestações não pagas, vedada a apresentação de embargos (§ 2º).
Nestes termos, o legislador criou um verdadeiro direito subjetivo do devedor ao pagamento parcelado, cujo exercício independe da anuência do credor. Ao juiz, por sua vez, somente lhe cabe
averiguar se presentes estão os requisitos ao exercício dessa faculdade, não podendo indeferi-la
injustificadamente. (...)
Requer também, como corolário da boa-fé objetiva, uma justificativa plausível acerca do não adimplemento da prestação no momento adequado, pois, caso contrário, estaríamos admitindo a má-fé
e legitimando o “direito ao calote”. Portanto, o devedor, ao apresentar a proposta de parcelamento
deve justificar os motivos do não pagamento no tempo inicialmente fixado pelas partes, cabendo
ao magistrado apreciar o pleito, segundo os critérios da razoabilidade e verossimilhança das alegações, juízo semelhante ao realizado pelo juiz na execução de prestações alimentícias regida pelo
rito do artigo 733 do Código de Processo Civil, após a defesa do executado alimentante. (...)
Como dissemos acima, o direito ao pagamento parcelado pode ser exercido nas seguintes hipóteses: no prazo para embargos no bojo da ação de execução de título extrajudicial ou no prazo para
impugnação na fase de cumprimento de sentença; em ação própria de consignação em pagamento
(artigos 891 e seguintes do CPC); em defesa na ação de despejo por falta de pagamento nas
locações urbanas, visando o locatário devedor à manutenção do contrato (artigo 62, II, da Lei nº
8.245/91); e em defesa na ação de busca e apreensão nos contratos de alienação fiduciária, com
o fim de evitar que o credor fiduciário consolide sua propriedade sobre o bem, objeto da avença”
(artigo 3º, § 2º, do Decreto-lei nº 911/69).” (RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri, BAQUETA, Daniela
Furquim. Artigo: O direito material ao pagamento parcelado. In: Revista de Processo, n.º 166, dezembro/2008, RT)
21
A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo
51
civil do credor de ter satisfeito seu crédito para o direito fundamental a
uma vida digna ao devedor e à sua família.
Em suma, tais exemplos práticos ilustram o presente estudo, na
medida em que demonstram que as possibilidades jurídicas se estendem
na mesma proporção que elevamos a nobreza e a relevância dos direitos/
interesses ameaçados/violados, autorizando o Defensor Público a adotar
uma postura criativa e inovadora diante dos mais variados casos e
problemas jurídicos a ele diariamente submetidos.
6.CONCLUSÃO
A título de arremate, concluímos que a Defensoria Pública, como fato
neoconstitucional e também instrumento de sua efetivação, tem um importante
papel a ser desenvolvido em nosso país, mormente na luta pela efetivação
e concretização dos direitos fundamentais, ainda que o arcabouço jurídico
se mostre arcaico e obsoleto na previsão satisfatória de tutelas, tendo em
vista a grande variedade de direitos e relações jurídicas que se transformam
com velocidade não absorvida pelo sistema jurídico posto, e muito menos
pela ciência e consciência cidadã da grande parcela economicamente
hipossuficiente da sociedade brasileira, exigindo do Defensor Público uma
postura de criatividade/inovação para a inclusão e transformação social.
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MOBILIZAÇÃO JURÍDICA
VERSUS MOBILIZAÇÃO
SOCIAL: UMA
ABORDAGEM A PARTIR
DA JUSTIÇA AMBIENTAL
Élida Lauris
Pesquisadora da Universidade de Coimbra
1.INTRODUÇÃO
Neste artigo, pretendo investigar a utilização de ferramentas
jurídicas como estratégia de luta dos movimentos sociais. Para tanto,
concentrei-me na análise do aparato jurídico-institucional e de acção
colectiva disponível aos movimentos ambientalistas presentes no estado
português e brasileiro.
A escolha do ambientalismo deve-se a razões específicas. O meio
ambiente representa em si um desafio para proteção e concretização por
parte Estado, dependendo em grande medida da acção social coletiva
e de iniciativa por parte da política pública. Do ponto de vista da acção
colectiva, o ambientalismo enquanto movimento social enquadra-se em
um novo paradigma, não só identitário, como também de intervenção,
dados os recursos que os atores sociais têm mobilizado em sua luta pela
defesa do meio ambiente.
Proponho-me, inicialmente a apresentar a mudança de paradigma
da atuação dos tribunais e dos movimentos sociais. Em seguida, tento
indicar as peculiaridades que individualizam a questão ambiental e a
justiça ambiental como desafio ao jurídico e à ação dos movimentos
sociais. De seguida, apresento as soluções institucionais e organizações
de defesa do meio ambiente existentes no Brasil e em Portugal para, no
fim, apresentar as diferentes facetas da relação entre mobilização jurídica
e mobilização social.
56
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
2. PODER JUDICIÁRIO E MOVIMENTOS SOCIAIS:
UMA MUDANÇA DE PARADIGMA
No Estado Moderno, o poder judiciário é concebido dentro de uma
estrutura legal-racional típica do período liberal. Nesse esquema são
valorizadas a separação de poderes, a ideia de representação política
e a submissão do Estado à lei, de modo que as ações do Estado são
legitimadas por meio do voto, da previsão de mecanismos de controlo
entre os diferentes poderes do estado e, ainda, se estiverem de acordo
com os procedimentos legais previamente estabelecidos.
Em uma concepção liberal de Estado e de direito, o judiciário
desempenharia seu papel em uma sociedade separada do Estado,
cabendo-lhe, portanto, uma atuação retrospectiva, no sentido de restaurar
a ordem violada, garantindo, quando acionado, um conjunto de direitos
individuais contra o Estado ou em detrimento de outros cidadãos. A
neutralidade política do juiz residiria em sua passividade, pois atua apenas
quando provocado, e adstrito à lei, a qual aplica silogisticamente aos fatos.
Como não cabe ao judiciário dizer o que é melhor para a sociedade ou
qual a melhor sociedade, este modelo implica uma neutralidade axiológica
dos operadores do direito face aos problemas políticos e sociais.
Essa estrutura e cultura jurídicas, contudo, mostraram-se ineficazes
para lidar com a crescente complexificação das sociedades. Neste contexto,
o esgotamento dos mecanismos tradicionais de representação política,
o aparecimento de novas situações conflitivas, em especial conflitos
coletivos, associados às dificuldades do Estado em institucionalizar as
demandas sociais e o correlato desgaste da legitimidade dos mecanismos
de distribuição de recursos do sistema político passaram a desafiar os
tribunais a uma reformulação da função que tinham estado a desempenhar.
Inicialmente, influenciada pela ascensão do operariado e pelas reivindicações
de expansão da cidadania interclasses, a questão social enfatizava o
papel da administração executiva na cobertura dos direitos económicos e
sociais. As crises do sistema capitalista exasperaram a incapacidade de
incorporação das demandas sociais por meio de políticas de promoção do
Estado, transferindo para arena judicial demandas antes negociadas com
a administração pública. Nos países periféricos, como é o caso brasileiro, a
crise do desenvolvimentista coincidiu com o processo de democratização, o
que levou às portas do judiciário conflitos inéditos em conteúdo e forma de
manifestação.1 O judiciário passa então a conjugar o legado da concepção
1
Cf. RIBEIRO, Hélcio. Justiça e Democracia: Judicialização da Política e Controle Externo da
Magistratura. Porto Alegre: Síntese, 2001, p. 25-57.
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
57
liberal de direito com um novo padrão de intervenção que lhe é requerido
face às novas demandas sociais emergentes. Enquanto o modelo liberal
é marcado pelo isolamento dos tribunais em relação à sociedade e aos
demais poderes do Estado, este novo contexto de consagração dos
direitos convive com a intensa acção coletiva por parte da sociedade civil,
denunciando não só as consequências da exploração de classes como
também os diferentes contextos de opressão vividos pelas populações à
margem do contrato social.
Consequentemente, a consciência de direitos é ampliada numa
consciência complexa em que a liberdade e a igualdade não são
prerrogativas formais exercidas apenas individual e autonomamente,
passando a ser reivindicadas como direitos materiais a serem garantidos
pelo Estado. Trata-se não só de direitos individuais como de direitos
colectivos e difusos, não só de direito à igualdade como de direito à
diferença. O Judiciário, por sua vez, enfrenta as expectativas de assumir
uma maior responsabilidade social, sob pena de colocar em causa a
legitimidade do sistema jurídico e ainda tornar-se social e politicamente
irrelevante. Corresponder às expectativas, por sua vez, acarretará uma
maior controvérsia política entre os diferentes poderes do Estado, uma
vez que, ao decidir sobre a garantia direitos não instrumentalizados pela
política pública, os tribunais facilmente entram em choque com as esferas
de influência do executivo e legislativo.
Esse padrão de intervenção judicial, em um quadro em que o
raciocínio lógico de aplicação do direito, segundo a ideia de igualdade
formal, é substituído pela máxima da justiça distributiva e do direito à
diferença, reivindica um desempenho funcional distinto. Como afirma
Santos,2 a ampliação das esferas de atuação do direito também refletiu no
alargamento dos campos de litigação e da procura judiciária desembocando
em uma consequente explosão de litigiosidade. A exigência de novos
direitos, em sua maior parte não regulamentados e dependentes de
políticas públicas, impulsionou as decisões das cortes a interferir sobre
suas condições de efetividade. Note-se aqui uma atuação prospectiva
contrária à prevista na concepção liberal que se limitava à restauração da
ordem violada. Já a ampliação da titularidade dos direitos e dos efeitos
das decisões, agora de caráter coletivo, conduziu a uma atitude pró-ativa
2
SANTOS, Boaventura, et al. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português.
Porto: Afrontamento, 1996, p. 25-27.
58
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
dos tribunais no controle do acesso à justiça e na solicitação da tutela de
interesses coletivos e difusos.
Essa “explosão de litigiosidade”, alargamento dos campos de
litigação e demanda por um novo papel a ser cumprido pelos tribunais
também podem ser explicados com a mudança de paradigma dos
movimentos sociais e dos recursos dos quais lançam mão para a ação
coletiva. O paradigma marxista deixa de ser a principal inspiração das
formas de ação coletiva a partir da década de 1970, como nota Gohn:
Categorias que ficaram por duas décadas congeladas, por pertencerem
ao corpo teórico funcionalista – tais como raça, cor, nacionalidade, língua,
vizinhança etc., que eram utilizadas como atributos básicos explicativos
da ação dos indivíduos e grupos – foram retomadas de forma totalmente
nova, em esquemas que privilegiam a heterogeneidade sócio-econômica
em detrimento da homogeneidade económica dada pela classe.3
De acordo, com Duarte,4 esses movimentos, que deixam o adjetivo
classista para nominarem-se transclassistas, reúnem as seguintes
características:
1) A política tem uma centralidade na sua constituição
epistemológica. O poder deixa de ser visto apenas como
componente da esfera do Estado e passa a ser visto como
componente da esfera pública da sociedade civil. De tal modo
que campos antes considerados despolitizados (relações de
género, defesa do ambiente) são politizados.
2)
Os participantes da ação coletiva são vistos como atores sociais
– substitui-se o padrão de um sujeito histórico determinado
pelas condições do capitalismo por um novo sujeito difuso,
não hierarquizado, empenhado em ampliar o grau de acesso
aos bens da humanidade mas também extremamente crítico
em relação a seus efeitos.
3)
Cria-se uma nova identidade coletiva que não se baseia
mais nos códigos políticos binários tradicionais (direita/
3
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos,
São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 121.
4
DUARTE, Madalena. Novas e Velhas formas de protesto: o potencial emancipatório da lei nas lutas
dos movimentos sociais, Oficina do Centro de Estudos Sociais, Julho de 2004, p. 2-3.
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
59
esquerda, liberal/conservador) ou baseado em categorias
socioeconômicas
(operariado/burguesia,
pobre/rico,
população urbana/rural).
Assim, se formas de ação direta, espontâneas, não burocráticas ainda
são vistas como atrativas, a verdade é que a expansão e aumento de força
política dos movimentos, a afirmação de suas lideranças, a estruturação
dos seus programas de orientação ideológica e a sedimentação de sua
base organizativa tendem a influenciar o aprimoramento da componente
formal, conduzindo-os para uma progressiva cooptação e enquadramento
institucional. De tal modo que, várias ONGs e associações vêm substituindo
ações mais radicais ou alternativas pelo recurso, por exemplo, à ciência
e ao direito.5
O raio de ação desses movimentos tanto vai ser maior quanto mais
as diversas dimensões de direitos humanos estiverem compreendidas pelo
ordenamento jurídico estatal. Assim, a tendência de constitucionalização
e criação de mecanismos processuais para a proteção não só de direitos
individuais como também de direitos coletivos e difusos traz uma nova
agenda de reivindicações possíveis dos movimentos sociais junto ao
Estado e é uma das razões para o aumento da procura dos tribunais. Nesse
conjunto de direitos, a questão ambiental traz, em si, complexidade para
o arcabouço jurídico institucional do Estado. Como demonstra Ascerald6 a
construção de um conceito de justiça ambiental aumenta essa dificuldade,
pois envolve igualmente a consideração de direitos civis (como igualdade)
exigindo atenção para as políticas oficiais de distribuição dos riscos e dos
danos ambientais. No próximo item, desenvolvo as características da
questão ambiental e do conceito de justiça ambiental bem como suas
implicações para a ação do Estado e dos movimentos sociais.
3. AMBIENTALISMO E JUSTIÇA AMBIENTAL
O meio ambiente como objeto a ser tutelado pelo direito traz consigo
a predominância de interesses coletivos e difusos intergeracionais, além
de conviver com a realidade de dispersão normativa dos diplomas que
5
DUARTE, Madalena. Ibid., p. 7.
6
ACSERALD, Henry. Justiça ambiental: novas articulações entre meio ambiente e democracia, p.
2/3
60
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
se encarregam de discipliná-lo. Essas características do direito ambiental
impedem que as decisões judiciais nessa matéria sejam absolutamente
neutras e técnicas, pois se afasta daquele ideal civilista de aplicação de um
código para solucionar um conflito entre partes individualmente consideradas.
Além de afastar o debate do terreno atomizado e estritamente formal, dada
a multiplicidade dos interesses envolvidos e as pressões sociais,7 deve-se
ter ainda em mente que o direito ambiental é um campo do conhecimento
jurídico atravessado por diversos outros saberes (antropologia, biologia,
economia, sociologia, entre outros). Não à toa, esse tema convoca a
necessidade de acção transdisciplinar, como se vê nos estudos de impactos
ambiental e nas considerações sobre desenvolvimento sustentável, o que
torna raro que a solução de demandas de alta repercussão nessa área se
operacionalize sob um ponto de vista estritamente jurídico.8
O papel do direito ambiental na instrumentalização de um meio
ambiente ecologicamente equilibrado implica as tarefas de defesa (frear
efeitos contrários ao meio ambiente e preservá-lo da degradação) e
promoção ambiental.9 Para a defesa ambiental atuam os princípios como
da correção na fonte, do poluidor pagador e da prevenção; a promoção
ambiental, por sua vez, conta com o princípio da precaução ambiental.
A defesa do meio ambiente requer não só uma atitude preventiva, dever
de impedir a efetivação de danos certos e definidos ao meio ambiente,
obstando-os em sua origem (correção na fonte), como também uma
atitude reparadora, procurando responsabilizar aquele que degrada o
meio ambiente pelo ônus de sua atividade e pelos custos destinados a
impedir a agressão e repará-la (poluidor-pagador).
A promoção ambiental envolve uma ação acauteladora, no sentido
de rechaçar a ação em que há dúvida sobre a potencialidade agressiva.
Nesse caso, impera o entendimento de que, na incerteza sobre a
lesividade do empreendimento, decide-se a favor do meio ambiente, in
dubio pro ambiente.10 Além da precaução, a promoção do meio ambiente
7
A multiplicidade de interesses em torno das questões ambientais é ainda reforçada pelo direito com
a atuação dos princípios da informação e da participação comunitária
8
Cf. COSTA, Flávio Dino Castro e. Autogoverno e Controle do Judiciário no Brasil: A proposta do
Conselho Nacional de Justiça. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 37
9
Cf. FRAGA, Jesús Jordano. La Protección del derecho a un Medio Ambiente Adecuado. Barcelona:
José Maria Bosch Editor, 1995, pp. 121-155.
10
COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Proteção Jurídica do meio ambiente. Belo Horizonte: Del
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
61
exige a efetivação de políticas ambientais, ações afirmativas do Estado
no sentido de implementar um ambiente ecologicamente equilibrado,
o que se afina, entre outras, com as diretrizes previstas no art. 225 da
Constituição Federal brasileira para o poder público: (1) preservar e
restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico
das espécies e ecossistemas; (2) preservar a diversidade e a integridade
do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas
à pesquisa e manipulação do material genético; (3) definir espaços
territoriais a serem protegidas; (4) promover a educação ambiental; (5)
proteger fauna e flora.
O sistema jurídico e judicial está mais afeito a garantir a reparação
ambiental, responsabilizando as partes e exigindo o ressarcimento do
dano. No mesmo sentido, tem condições de concretizar o princípio da
prevenção uma vez que tem poderes para frear a ação danosa ao meio
ambiente. Contudo, as políticas de promoção do meio ambiente dependem
da ação voluntária de outros poderes do Estado, leia-se Legislativo e
Executivo. Face os limites da sua capacidade operativa, a interferência
do judiciário na promoção e execução de políticas públicas é altamente
controversa. Daí que a promoção de políticas públicas em prol do meio
ambiente, quando não executada voluntariamente pelo poder político, vai
depender muito mais da ação política e reivindicação dos movimentos
sociais.
Nos casos em que há uma discrepância entre o quadro jurídicoinstitucional (leis, órgãos administrativo encarregados da defesa do meio
ambiente) e a realização efetiva de políticas ambientais e não se conta
com uma última instância de força no quadro jurídico estatal para alcançar
a promoção do meio ambiente, há um papel particular a ser desenvolvido
pelas organizações de defesa ambiental. Uma noção mais alargada de
justiça ambiental implica uma maior agenda de encargos para a ação e
articulação política dos movimentos sociais. De acordo com Acserald,11
o movimento de justiça ambiental constitui-se a partir de uma interação
criativa entre lutas de caráter social, territorial, ambiental e de direitos civis.
O movimento constitui-se nos EUA a partir de reivindicações como a de
equidade geográfica: configuração espacial e locacional de comunidades
Rey, pp. 121-155.
11
ACSERALD, Henry. Justiça ambiental: novas articulações entre meio ambiente e democracia, p.
2-3.
62
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
em sua proximidade a fontes de contaminação ambiental, instalações
perigosas, usos do solo localmente indesejáveis como depósitos de
lixo tóxico, incineradores, estações de tratamento de esgoto, refinarias,
etc. Estudos apontavam, por exemplo, a existência de uma distribuição
espacialmente desigual da poluição segundo a etinicidade das populações
a elas mais expostas.
Um outro exemplo de luta do movimento de justiça ambiental, nos
anos de 1970, foi a reunião de reivindicações relacionadas a questões
ambientais urbanas entre sindicatos preocupados com saúde ocupacional,
grupos ambientalistas e organizações de minorias étnicas. Na mesma
direção, entre 1976 e 1977, foram feitas negociações destinadas a fazer
entrar na pauta das associações ambientalistas tradicionais o combate
à localização do lixo tóxico e perigoso predominantemente em áreas de
concentração residencial da população negra.
O movimento por justiça ambiental contrapõe-se à visão hegemónica
de modernização ecológica. Assim, recusa a ideia que a superação da crise
ambiental pode ser feita utilizando as instituições da modernidade e sem
abandonar o padrão de modernização ou o modo de produção capitalista
em geral. A denúncia do movimento, na verdade, evidencia que o padrão
de modernização ecológica encobre existência de uma tendência da
lógica política a orientar uma distribuição desigual dos danos ambientais,
existindo uma articulação perversa entre degradação ambiental e injustiça
social. A ação do movimento, ao revelar que há um caráter socialmente
desigual nas condições de acesso à proteção ambiental, criou uma
concepção particular de bem público e ganhou força simbólica em suas
ações por sua capacidade de: (a) estender a matriz dos direitos civis ao
campo do meio ambiente, fundando a noção de justiça ambiental como
alternativa à oposição homem-natureza; (b) politizar, nacionalizar e unificar
uma multiplicidade de embates localizados; (c) elaborar apropriadamente
uma classificação dos grupos sociais compatível com a posição diferencial
dos indivíduos no espaço social.12
Esse padrão de intervenção vem sendo apontado como aquele que
possivelmente virá a liderar um novo ciclo de embate por transformação
social, o que resulta da capacidade que tem demonstrado em influenciar
a agenda política, quer por meio de estratégias de ação como a utilização
de recursos multidisciplinares para fortalecer seus argumentos, quer por
12
ACSERALD, Henry. Justiça ambiental: novas articulações entre meio ambiente e democracia, p. 12
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
63
meio do recurso à solidariedade interlocal, de modo a evitar a exportação
de injustiça ambiental para áreas com menor capacidade de organização
e resistência. Nesse sentido, o movimento procurou internacionalizarse para construir uma oposição global às dimensões mundiais de
reestruturação espacial da poluição.13
O movimento por justiça ambiental interessa aqui por sua ação em
criar estratégias argumentativas que defendam a promoção ambiental
contra as políticas oficiais de proteção do meio ambiente. A atividade
do movimento em alterar a pauta política de proteção do meio ambiente
revelando suas iniquidades mostra que uma proteção ambiental alargada
associada a outros direitos exige não só a proteção institucional, tampouco
apenas a ação coletiva institucionalmente arquitetada, mas também a
ação coletiva contra a política oficial das instituições. A seguir, faço um
breve esboço dos arranjos institucionais e da acção social de defesa do
meio ambiente em Portugal e no Brasil.
4. PORTUGAL E BRASIL: ARRANJOS INSTITUCIONAIS E ORGANIZAÇÕES DE DEFESA DO MEIO AMBIENTE
O 25 de Abril de 1974 pode ser considerado um divisor de águas na
organização institucional portuguesa sobre meio ambiente. Antes dessa
data, a única instituição estatal com destaque é a Comissão Nacional
do Ambiente, criada em 1971.14 Pós-25 de Abril, a referência imediata é
a Constituição da República Portuguesa de 1976 que traz o direito ao
ambiente como um direito fundamental estabelecendo também deveres
do Estado com a proteção ambiental. Na década de 1980, são criadas a
Reserva Agrícola Nacional e a Reserva Ecológica Nacional instrumentos
jurídicos que só receberam regulamentação em 1989.
Até a primeira metade da década de 1980, o cenário português
de proteção jurídica do meio ambiente é marcado por um certo vazio
institucional. Os marcos fundamentais de mudança na política oficial
portuguesa do meio ambiente são lançados nos anos de 1986/87. Em
13
ACSERALD, Henry. Justiça ambiental e construção social do risco, p. 9
14
Cf. RODRIGUES, Maria Eugénia. Globalização e Ambientalismo: atores e processos no caso da
indineradora de Estarreja, Universidade de Coimbra: Dissertação de Mestrado em Sociologia, pp.
52-77.
64
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
1986, Portugal adere à então chamada Comunidade Económica Europeia
e vê-se condicionado a consolidar as estruturas institucionais do Estado
e proceder a harmonização de seu ordenamento jurídico com as diretivas
europeias. 1987 é o ano europeu do ambiente. Esse conjunto de fatores
conduziu à promulgação da Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87) e
da Lei das Associações de Defesa do Ambiente (Lei n.º 10/87). Logo a
seguir às leis, é criado o Instituto Nacional do Ambiente encarregado da
gestão dos fundos financeiros das organizações não governamentais de
defesa do meio ambiente. Essas iniciativas mostram o peso das questões
ambientais no âmbito do governo, ao menos formalmente.
Em 1990 cria-se o Ministério do Ambiente e Recursos Naturais.
O auge do processo de consolidação jurídico-institucional da proteção
ambiental dá-se com a criação do Ministério do Ambiente e do Ordenamento
Territorial. A criação desse órgão é promissora pela concentração de
competências face o anacronismo da separação administrativa das
questões ambientais e territoriais.
A evolução de um arranjo institucional, por si, como já foi dito acima,
não é uma garantia plena da proteção do bem ambiental. De maneira
geral, o funcionamento das instituições pode garantir eficácia em ações
de controle e prevenção de danos ao meio ambiente, mas as políticas
públicas referentes à questão ambiental ficam a cargo da boa vontade
política dos governantes. Como expliquei acima, o entendimento geral é
da incompetência do judiciário para interferir em matérias dessa natureza.
Em Rodrigues (ano, p. 61), vê-se a seguinte avaliação a política ambiental
do Estado Português:
O desenvolvimento da política de ambiente do Estado Português, no
que respeita à sua lentidão, às suas ambiguidades, e por vezes à
clara contradição entre o campo das propostas e das iniciativas legaisinstitucionais, por um lado, e a eficácia das medidas de prevenção e
controlo, por outro, evidenciam em alguns dos seus traços, a própria
natureza contraditória dual e heterogénea do estado português
Usando os termos apresentados na citação acima, é na cobrança por
medidas de prevenção e controlo e na tentativa de superar o fosso entre
iniciativas legais-institucionais e propostas que está o campo de ação dos
movimentos e organizações de defesa do meio ambiente. A questão que
fica por responder é como essa dualidade e heterogeneidade da ação
estatal portuguesa reflete-se na atuação das organizações ambientais.
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
65
As organizações tendem para o recurso a formas mais imediatas de
mobilização? A maior institucionalização da questão ambiental em Portugal
provoca um maior grau de institucionalização da ação das organizações
ambientais? A dualidade da ação do Estado gera dualidade na ação das
organizações que intercalam medidas diretas com medidas institucionais?
É no período pós-25 de Abril que aparecem as primeiras
organizações de defesa do meio ambiente. Nesse contexto, havia uma
tendência de integração das questões ecológicas à problemática mais
ampla do movimento social popular. Assim, a mais destacada associação
ambiental do período, o Movimento Ecológico Português, unia em sua
plataforma a preocupação ecológica e a causa política e social.
Já no final da década de 1970 e início da década de 1980 ganham
importância os movimentos de defesa das energias alternativas contra os
projetos de instalação de centrais nucleares em Portugal, assim como o
movimento pacifista de desarmamento. A luta antinuclear foi um importante
eixo de contestação que reuniu setores e militantes, de tal modo que o
mais forte protesto popular ocorreu em torno da luta antinuclear em Ferrel.
Em meados dos anos de 1980, inicia-se uma nova fase em torno da
organização e autonomização de um movimento associativo que tivesse
o problema do ambiente como central. Nesse sentido, a Associação
Nacional de Conservação da Natureza – Quercus adquiriu maior projeção
na luta contra as indústrias de celulose.
A partir da década de 1980, duas vertentes têm impacto na atuação
e identificação do movimento ambientalista português: (a) o contato
internacional, nomeadamente após o ingresso de Portugal na União
Europeia; (b) a institucionalização pelo Estado da questão ambiental.
O impacto desta última em algumas associações representou o maior
pragmatismo e ruptura com posições ideológicas mais radicais. De
maneira geral, é comum uma descrença no uso do direito como uma
estratégia exitosa para a ação dos movimentos sociais.
Assim, alguns autores da corrente Critical Legal Studies argumentam
que os tribunais como instrumentos hegemónicos não podem interferir
significativamente em prol da transformação social. Duarte15 enumera as
principais vertentes desses argumentos:
15
DUARTE, Madalena. Novas e Velhas formas de protesto: o potencial emancipatório da lei nas lutas
dos movimentos sociais, Oficina do Centro de Estudos Sociais, Julho de 2004, p. 8-9.
66
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
(1)
A justiça falha na sua componente redistributiva. Os tribunais
têm limites operacionais, de modo que não têm capacidade
operativa para fazer valer por si o enunciado de suas decisões.
(2)
O restrito acesso ou mesmo negação da justiça aos grupos
minoritários é um fator de desmobilização legal. De outro
modo, nem todos os grupos minoritários são tratados de forma
idêntica pelas decisões judiciais.
(3) Dado o grau de abertura do direito, os direitos podem ser
manipuláveis e utilizados para garantir qualquer tipo de
decisão judicial.
(4) A estratégia judicial pode levar a que o Estado condicione a
ação do movimento.
A refutação desses argumentos depende da crença de que
o uso do direito pode ser emancipatório, o que pode ser
defendido por meio das seguintes hipóteses:
(a)
O uso dos tribunais representa uma forma de exercício
de democracia e cidadania, indicando a consciência da
existência de um direito e a afirmação da capacidade de
reivindicá-lo.
(b) Para algumas minorias, o recurso aos tribunais pode
criar ou reforçar a ideia de identidade coletiva.
16
(c)
Os tribunais têm uma função simbólica e,
independentemente da eficácia de suas decisões,
enraízam concepções de justiça redistributiva e
distributiva, para além de emprestarem notoriedade à
causa.16
No caso brasileiro, maior preocupação institucional com
meio ambiente surge a partir da Constituição de 1988.
A Constituição declara o meio ambiente como bem de
uso comum do povo e essencial à qualidade de vida,
impondo-se ao poder público e à comunidade o dever
de protegê-los. O sistema institucional de proteção do
meio ambiente espraia-se na estrutura administrativa
do Estado, cabendo ao executivo o papel de polícia
ambiental através de órgãos como o Instituto Brasileiro
DUARTE, Madalena. Op. cit., p. 10-11.
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
67
de Meio Ambiente (IBAMA), além de delegacias de meio
ambiente estaduais. Nesse sistema, o Ministério Público
e o judiciário têm um importante papel especialmente
face à possibilidade de protecção do meio ambiente por
meio de Ação Civil Pública.
Furriela17 indica nove tipos de ambientalismo que têm
se desenvolvido no Brasil ao longo das décadas de
1980/1990:
(a)
Ambientalismo governamental: profissionais que
assumiram um compromisso com os valores e práticas
do ambientalismo e foram atuar na área governamental.
Sua prática expressa-se em canais governamentais em
vários níveis e limitações.
(b) Ambientalismo dos cientistas: aqueles que se dirigem
à opinião pública enquanto cientistas para fazer
denúncias, alertas, pressionarem por mudanças, sem
necessariamente aderirem ao movimento ecológico.
(c)
Ambientalismo das ONGs de desenvolvimento social:
entidades que trabalham com o desenvolvimento social
e acabam por adotar preocupações ambientais.
(d)
Ambientalismo das religiões: no discurso de respeito ao
meio ambiente presente nas várias religiões.
(e)
Ambientalismo dos políticos profissionais: políticos que
passaram a ser eleitos com discursos ambientalistas.
(f)
Ambientalismo dos educadores: professores de escolas
que passaram a trabalhar com a questão ambiental.
(g) Ambientalismo dos artistas: artistas preocupados em
produzir obras com consciência ambientalista.
(h) Ambientalismo dos empresários: expressa-se em
propagandas ou em empresário que por valores próprios
tentam desenvolver tecnologias ambientalmente
adequadas.
(i)
17
Ao se analisar mais detidamente o funcionamento da
FURRIELA, Rachel Biderman. Democracia, cidadania e proteção do meio ambiente. São Paulo:
Fapesp, AnnaBlume, 1999, p. 154-155.
68
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
proteção judicial brasileira, ver-se-á que o aparato jurídicoinstitucional construído tem maior eficácia no binómio
prevenção-controle, mas não conta com mecanismos
que garantam a promoção ambiental por meio de políticas
públicas. Veja-se exemplificativamente a jurisprudência
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEI ORGÂNICA MUNICIPAL. MEIO
AMBIENTE. EXIGÊNCIA DE CRIAÇÃO DE POSTOS DE CONTROLE
E FISCALIZAÇÃO DE TRANSPORTES DE CARGAS TÓXICAS NO
MUNICÍPIO. NORMA DE EFICÁCIA REDUZIDA. INÉRCIA DO MUNICÍPIO.
INEXISTÊNCIA DE DANO AO MEIO AMBIENTE. DESCABIMENTO DA
AÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. A ação civil pública não é o meio processual
adequado para constranger o Município a criar postos avançados de
controle e fiscalização de transporte de cargas tóxicas. A ação não se
presta a compelir a Municipalidade a regulamentar a norma genérica e
de eficácia contida presente na Lei Orgânica do Município, até em razão
da previsão de despesas que devem ser dimensionadas na legislação
reguladora. Inexistência, ainda, de prova de efetivo dano ao meio
ambiente, pressuposto para a condenação do poluidor. Improcedência da
ação. APELAÇÃO PROVIDA. (APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO
N.º 70005972914, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO RS, RELATOR: HENRIQUE OSVALDO POETA ROENICK, JULGADO
EM 12/11/2003)
EMENTA: ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEIO AMBIENTE.
REALIZAÇÃO DE FATOS CONCRETOS. POLÍTICAS PÚBLICAS. 1. A
realização de fatos concretos pela Administração, com a finalidade de
despoluir bacias hidrográficas, subordina-se à prévia previsão orçamentária,
ou seja, ao princípio da realidade, não cabendo ao órgão judiciário
estabelecer prioridades e ordenar obras, provado que a pessoa jurídica
de direito público tudo faz ao seu alcance para proteger o meio ambiente
e desenvolve políticas públicas concretas e objetivas com tal finalidade.
Precedente do STJ. No entanto, cabe ordenar o exercício do poder de
polícia, com o fito de impedir que os particulares continuem com atividades
poluidoras. 2. APELAÇÃO PROVIDA EM PARTE. (APELAÇÃO CÍVEL Nº
70006898332, QUARTA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
RS, RELATOR: ARAKEN DE ASSIS, JULGADO EM 08/10/2003)
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
69
É na decisão sobre a promoção do meio ambiente pelo poder
público que o judiciário encontra seu grande desafio, pois, ao sair da
esfera de decisão sobre a defesa ambiental – em que lhe compete apenas
evitar os danos certos e definidos, avaliá-los, condenar os responsáveis
ou confrontar-se com o Executivo para evitar a atividade administrativa
danosa – e, empenhar-se em ampliar sua atuação para fazer cumprir
ações afirmativas de promoção ambiental, o judiciário arrisca-se a ter
esse protagonismo questionado quanto à legitimidade, capacidade e
independência. De acordo com Santos,18 na dimensão da legitimidade,
os tribunais são questionados quanto ao conteúdo democrático de suas
decisões. Como, em grande parte do mundo, os juízes não são eleitos
pergunta-se: como pode se sustentar uma decisão judicial que contraria
a maioria política ao interferir na atuação do Executivo ou do Legislativo,
ambos eleitos democraticamente?
O questionamento quanto à capacidade dos tribunais, por sua
vez, diz respeito aos limites estruturais para a efetivação das decisões
judiciais. O judiciário depende da atuação de outros ramos do Estado para
executar suas decisões. O desempenho judicial arrisca-se a uma perda de
credibilidade em conflitos judiciais de grande repercussão cuja resolução
fique pendente por não falta de execução. A independência é questionada
pelo próprio judiciário pois, por estar vinculado financeiramente ao executivo
e ao legislativo, pode a qualquer momento sofrer retaliações que atentem
contra sua independência, prejudicando seu desempenho funcional.
A restrição da esfera de atuação do sistema judicial ainda pode
implicar o risco de os tribunais tornarem-se socialmente irrelevantes,
isso porque as decisões dos tribunais teriam maior impacto social se
envolvessem a efetividade da promoção de políticas públicas em prol
do meio ambiente. Neste cenário, com a existência de outro órgão
institucional que pode resolver extrajudicialmente conflitos relativos à
defesa do meio ambiente e de forma mais célere, como, por exemplo,
o Ministério Público, é legítimo sustentar a hipótese de que a via judicial
como alternativa para a solução de contendas envolvendo matéria
ambiental seria automaticamente relegada para segundo plano.
Ainda no âmbito desta hipótese, a despeito da eficiência do Ministério
Público em solucionar não judicialmente as demandas de defesa do meio
18
SANTOS, Boaventura, et al. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português.
Porto: Afrontamento, 1996, p. 25-27.
70
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
ambiente, casos existiriam em que a promoção ambiental dependeria de
atuação concreta e voluntária das partes envolvidas. Vejam-se, a título
de exemplo, dois Procedimentos Administrativos de Inquérito instaurados
pela Promotoria de Meio Ambiental da Comarca de Belém, Ministério
Público do Pará, no período de 2000 a 2003.
ACONDICIONAMENTO DE GÁS NO MUNICÍPIO DE BELÉM
A fiscalização da regularidade do acondicionamento de gás na cidade
interessa pela possibilidade de dano ambiental em depósitos clandestinos,
onde o gás é acomodado de forma inadequada. Em audiência foi aventada
a possibilidade de atuação conjunta da Delegacia de Meio Ambiente e a
Funverde no sentido de obrigar ao licenciamento as atividades de depósito
e comercialização do gás de cozinha, o impasse para a solução da questão
reside na restrição da Funverde em assumir a atividade de licenciamento já
que sua responsabilidade só se impõe em caso de vazamento significativo
e constante que alterem as condições físico-químicas do ar e, no período
de carga e descarga de botijões, se os ruídos provocarem poluição sonora.
GESTÃO COMPARTILHADA DAS ÁREAS LIMÍTROFES ENTRE OS
MUNICÍPIOS DE BELÉM, ANANINDEUA, BENEVIDES, SANTA BÁRBARA
E MARITUBA NO TRATO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
Como o trato de resíduos sólidos se dá em área compartilhada por diversas
municipalidades, o primeiro impasse a ser resolvido para solucionar a
questão estaria na fixação das obrigações de fazer de cada Município,
após uma audiência pública para tratar do assunto, a busca da solução
vem sido obstada pela ausência das partes envolvidas nas audiências
marcadas.
Estes dois exemplos interessam por demonstrarem empiricamente
que, ainda que exista um órgão ativo na defesa de direitos, a própria
engenharia constitucional e os limites operacionais de cada organismo
estatal servem de obstáculos para que os direitos sejam assegurados
institucionalmente em sua plenitude. Nesse sentido, ainda que se verifique
nalguns casos maior eficiência do Ministério Público no processamento
das demandas relacionadas ao meio ambiente sobressaltando esse órgão
para a solução de conflitos ambientais em detrimento do poder judiciário,
em determinados momentos, a atuação do órgãos de administração da
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
71
justiça paralisa-se, dependendo da ação voluntária dos responsáveis pela
política pública.
Essa situação indica um cúmulo, porque se for transferida
ao judiciário, esse poder também se debateria com o limite de sua
competência previsto no esquema de separação de poderes para
forçar o poder público a solucionar problema. Basta pensar nos casos
exemplificados, em que a solução depende ou de políticas públicas ou
da delimitação de competências entre os executivos municipais, campos
em que o poder executivo tem constitucionalmente salvaguardado sua
autonomia de ação. Retoma-se aqui a antiga discussão sobre os limites
para que o direito possa ser utilizado como instrumento de emancipação
social. Dadas as restrições de atuação dos órgãos jurídicos para a
garantia de direitos, pode o direito ser usado como meio eficaz para luta
dos movimentos sociais?
5. MOBILIZAÇÃO JURÍDICA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL
Adiscussão em torno do potencial emancipador do uso de instrumentos
jurídicos para a obtenção de direitos remonta à década de 1980 com a
avaliação feita por académicos americanos sobre o movimento de direitos
civis. Basicamente, o debate está contido em duas posições, uma mais
radical e outra moderada.19 Para aqueles que defendem a ineficácia do
uso do direito para a luta dos movimentos sociais, sobreleva-se o caráter
individualista do direito e, portanto, a ineficácia da resposta do direito no
plano colectivo. Nesse sentido, o recurso ao direito, nomeadamente o
recurso judicial, teria o condão de trivializar e individualizar as demandas,
debilitando a luta contra-hegemônica dos movimentos sociais. De outro
lado, há os que veem que, ainda que persista no direito uma tendência à
dominação, pode também haver caminhos de resistência que favoreçam
os movimentos sociais e, nesse sentido, podem ser citadas leis e a
consagração jurídica de direitos das minorias, por exemplo: direito à
igualdade para as mulheres, legislação social para os trabalhadores, leis
de assistência social para os pobres, entre outros.
19
UPRIMNY, Rodrigo. GARCIA-VILLEGAS, Maurício. Tribunal constitucional e emancipação social
na Colômbia. In SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da
democracia participativa. Porto: Afrontamento, p. 253-254.
72
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Já desde a década de 1990, vem se consolidando nos críticos a visão
de que a eficácia ou ineficácia do instrumental jurídico é um fenómeno
complexo não passível de generalizações; as reformas jurídico-legais
tanto podem reforçar o status quo quanto virem a contribuir para a luta
política por transformação social. Trata-se, portanto, de um campo aberto
à investigação.
A análise feita neste artigo indicia que, mesmo com uma legislação
favorável à proteção do meio ambiente e a atuação positiva por parte
de alguns órgãos responsáveis pela administração da justiça, não há
cobertura institucional plena para todos os casos que afetam a questão
ambiental; ou seja, mesmo um instrumental jurídico progressista encontra
limites operacionais. Dessa forma, é possível reformular o debate em
torno da mobilização legal: no lugar da pergunta sobre a contribuição do
direito para a implementação e progresso da luta dos movimentos sociais,
deve-se indagar sobre a importância da luta dos movimentos sociais para
a implementação e progresso do próprio direito. Defendo, portanto, que é
a mobilização social a mola propulsora da aproximação do fosso abissal
que acaba por existir entre o que a sociologia do direito convencionou
chamar: law in books e law in action.
Nesse processo, os mecanismos à disposição dos movimentos
sociais são heterogéneos, podendo lançar mão de manifestações mais
diretas a manifestações mais institucionalizadas. O feixe de opções liga-se
às alternativas construídas no âmbito de cada movimento e intermovimento,
bem como as articulações com a legalidade em suas diferentes escalas.
Isso remete às organizações de defesa ambiental portuguesas que têm
que lidar com a eficácia da ação do Estado em algumas dimensões e
a inércia em outras, muitas vezes utilizando como vantagem o contexto
europeu de aplicação do direito. A acção colectiva liga-se, assim, à
realidade dos poderes e dos discursos dos locais e translocais em que
os movimentos estão inseridos e, ainda, à sua capacidade de incorporar,
traduzir, ressignificar, subverter e contrariar esta realidade.
6.CONCLUSÃO
Neste artigo, propus-me a refletir sobre os mecanismos jurídicoinstitucionais colocados à disposição dos movimentos sociais, seu sentido,
alcance e eficácia. Para tanto, analisei a construção de alternativas
jurídicas e institucionais e o ambientalismo em Portugal e Brasil. Em
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
73
Portugal, a presença de um Estado dual e heterogéneo dá aos movimentos
ambientalistas duas margens: a inércia e a eficácia estatal. No percurso
de uma margem para outra, os movimentos podem lançar mão de um
conjunto de estratégias de ação que vão, desde a ação direta, até a ação
mais institucionalizada, como, por exemplo, uma ação judicial. No caso
brasileiro, a análise da atuação jurisdicional das demandas ambientais dá
sinal de um vazio institucional nas políticas públicas afirmativas em prol
do meio ambiente, o que destaca a importância dos atores coletivos para
remediar o fosso existentes entre law in books X law in action.
A efetiva proteção de direitos depende de um amálgama complexo
de soluções institucionais e mobilização social, esses dois polos devem
fortalecer-se reciprocamente, seus limites ou fraqueza podem por em
risco a acção colectiva agindo como obstáculos às lutas por efectividade
dos direitos.
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A DEFENSORIA PÚBLICA
PAULISTA: CAMINHANDO
NA CONTRAMÃO1
Eneida Gonçalves de Macedo Haddad
Mestre em Antropologia Social e Doutora em
Sociologia/USP, docente e pesquisadora/UNINOVE
[email protected]
1.INTRODUÇÃO
“Não haverá justiça mais próxima dos cidadãos, se os
cidadãos não se sentirem mais próximos da justiça.”
(Boaventura de Sousa Santos)
Na década de 1980, antes e durante os trabalhos da Assembleia
Nacional Constituinte convocada em 1987, a garantia do acesso à justiça
já constava da pauta de reivindicações dos movimentos organizados da
sociedade civil. Atendendo a essa necessidade, a Constituição, promulgada
em 05 de outubro de 1988, dispôs no Art. 5º LXXIV que “O Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência
de recursos”.
O Art. 134 da Constituição consolida a responsabilidade do Estado:
“A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os
graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”.
1
Este artigo corresponde a alguns resultados de uma investigação cujo objetivo é resgatar a história
da Defensoria Pública no Estado de São Paulo. A coleta de dados, realizada por quatro pesquisadoras, docentes do curso de direito da Universidade Nove de Julho, foi iniciada em agosto de
2007 e concluída em julho de 2009. Atualmente, os dados estão sendo analisados e interpretados
para posterior publicação. Além da autora deste artigo, compõem a equipe as Professoras Andréa
Cristina Oliveira Gozetto, Cibele Cristina Baldassa Muniz e Thaís Aparecida Soares.
76
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Ao iniciar o século XXI, o Estado de São Paulo ainda não havia
cumprido essa obrigação constitucional. Buscando alterar a cadência
lenta da história, em 2002, nas dependências da Faculdade de Direito do
Largo São Francisco, foi oficializado o Movimento pela Defensoria Pública/
MDPESP, contando com o apoio de centenas de entidades. Deflagrado um
amplo debate pela criação em São Paulo de uma defensoria democrática
e independente, o Movimento, organizado por alguns membros da
Procuradoria Geral do Estado/PGE, enfrentou as injunções políticas
resistentes à existência dessa instituição. Em 9 de janeiro de 2006, foi
sancionada a Lei Complementar n.º 988 que criou a Defensoria Pública
paulista.
Acrescente-se ainda que a reforma constitucional do judiciário
reconheceu a relevância das defensorias públicas, de sorte que a Emenda
n.º 45/2004 garantiu a autonomia funcional, administrativa e financeira
das defensorias públicas estatais. A Defensoria Pública da União2 e a do
Distrito Federal subordinam-se ao Poder Executivo.
2. O MOVIMENTO POR UMA INSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA
Além do descompromisso do Poder Executivo com os segmentos
socioeconomicamente desfavorecidos, a PGE e a seção paulista da
Ordem dos Advogados do Brasil/OAB eram contrárias à criação de uma
instituição que substituísse os serviços prestados pela Procuradoria
da Assistência Judiciária (PAJ) e pelos advogados dativos. Somente
flexibilizaram suas posições quando o MDPESP ganhou força. Criada
em 1947, a PAJ teve uma longa vida, extinguindo-se após a criação da
Defensoria Pública.
Os crescentes impasses gerados pela impossibilidade de conciliação
das funções exercidas pela PAJ – defensora dos direitos da população
desprovida de recursos – com as da PGE – defensora do Estado –
anunciavam a necessidade de uma solução. Em entrevista concedida em
2008, uma defensora pública que atuava como procuradora da assistência
judiciária referiu-se a diversas situações paradoxais, dentre as quais o
episódio da vídeoconferência:
2
Criada e organizada pela Lei Complementar n.º 80 de 1994 e implantada com a Lei n.º 9020 de
30/03/1995.
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
77
Sempre houve, de uma forma mais ou menos intensa, uma dicotomia
dentro da PGE porque, para fazer valer o direito dos cidadãos, a PAJ
acionava o Estado. Foi o caso do episódio da vídeo-conferência que, no
aspecto penal e processual penal, é de flagrante inconstitucionalidade.
Entretanto, havia um parecer da PGE autorizando o governo do Estado
a instalar e a implementar o sistema de vídeo-conferência. Quer dizer,
nós, procuradores da PAJ, participávamos de audiência, cuja defesa dos
hipossuficientes do processo criminal exigia que nos manifestássemos
contra a vídeo-conferência, recusando, inclusive, o parecer da PGE. Eram
funções que não podiam estar dentro de uma mesma instituição pela
própria essência, pela própria natureza da atividade.3
Alguns procuradores estavam conscientes de que a assistência à
população socioeconomicamente desfavorecida não poderia continuar
sendo realizada por um braço da PGE, exigindo a criação da Defensoria
Pública e, por consequência, a revisão da situação profissional dos que
atuavam na PAJ.
O estranho hibridismo de funções no interior da PGE não era
recente; arrastou-se ao longo das décadas, desde a criação da
PAJ, em 1947. Mas, por que o conflito se manifestou tão tarde? Nos
limites dessas reflexões acerca da problemática, compreende-se que
às condições históricas favoráveis – dentre as quais se destacam o
dispositivo constitucional, o anseio popular pelo acesso à justiça,4 a
existência de defensorias públicas na grande maioria dos estados
brasileiros – somou-se o “despertar” dos dois principais articuladores do
MDPESP, Vitore André Zílio Maximiano e Antonio José Maffezoli Leite,
profissionais da PAJ cujas biografias tinham sido enriquecidas com a
atuação no Centro de Integração da Cidadania/ CIC5 em funcionamento
3
Arquivo das autoras.
4
Têm sido importantes as contribuições acerca da da situação das classes sociais desfavorecidas.
Dentre elas: MARTINS, José de Sousa. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
5
Os Centros de Integração da Cidadania/CIC foram idealizados por um grupo de operadores da
justiça da cidade de São Paulo, no início de 1990. O primeiro CIC foi implantado no distrito de Itaim
Paulista, em 1996. Atualmente, essa política pública funciona em várias regiões do município de
São Paulo e do Estado de São Paulo e em outros estados brasileiros, fazendo parte do Plano de
Segurança Nacional da Secretaria Nacional de Segurança Pública/SENASP. O projeto que levou
à criação dos CIC é expressão de um novo paradigma de justiça e segurança fundado na bus-
78
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
no Itaim Paulista e no Centro de Referência e Apoio à Vítima (CRAVI),6
políticas sociais alternativas que começaram a ser implementadas
na década de 1990. Não bastasse, foram eleitos para os cargos de
presidente e de secretário-geral no Sindicato dos Procuradores do
Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas
do Estado de São Paulo/Sindiproesp, o que exigiu a ampliação dos
contatos com defensores públicos de outros estados e com as entidades
organizadas da sociedade civil. Portanto, atribuir unicamente à solução
de problemas institucionais a iniciativa de procuradores da PAJ de
organizar o MDPESP é desconsiderar suas percepções de justiça e
de “direito” e seus compromissos democráticos com a população que
atendiam e com os movimentos sociais, cuja participação tem sido
significativa na construção de políticas públicas voltadas à ampliação
do acesso à justiça.7
Concorda-se que, em relação ao judiciário, podem ser identificados
dois grandes campos. Se, de um lado, o campo hegemônico reclama
ca da concretização dos direitos humanos. A respeito, consultar: HADDAD, Eneida Gonçalves de
Macedo; SINHORETTO, Jacqueline; PIETROCOLLA, Luci Gati. Justiça e Segurança na periferia de São Paulo: os centros de integração da cidadania. São Paulo: IBCCRIM, 2003; HADDAD,
Eneida Gonçalves de Macedo; SINHORETTO, Jacqueline; ALMEIDA, Frederico de; PAULA, Liana
de. Centros Integrados de Cidadania. Desenho e Implantação da Política Pública (2003-2005).
SÃO PAULO: IBCCRIM, 2006; SINHORETTO, Jacqueline. Ir aonde o povo está: etnografia de uma
reforma da justiça. Tese de Doutoramento. Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2006. MIMEO.
6
Em 1998, a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo criou o programa
Centro de Referência e Apoio à Vítima/CRAVI para atender as vítimas diretas e indiretas de violência contra a vida na Região Metropolitana de São Paulo. Advogados, psicólogos e assistentes sociais compõem a equipe de atendimento, buscando uma abordagem integrada do problema. O trabalho tem parceria com o Instituto São Paulo Contra a Violência, Instituto Therapon Adolescência,
Secretaria de Estado de Direitos Humanos da Presidência da República e Secretaria Estadual de
Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo. Dentre seus objetivos, destacam-se: “dar
visibilidade à questão dos homicídios nos centros urbanos e às suas vítimas indiretas, garantindo-lhes o direito de serem ouvidas; reposicionar socialmente as vítimas de violência, oferecendo-lhe
os instrumentos necessários para o exercício político da cidadania e transformando-as em sujeito
de deveres e direitos; proporcionar, às vítimas, condições para que identifiquem e impeçam novas
situações de violência” (Cf. http://www.forumseguranca.org.br/ praticas/cravi-centro-de-referencia-e-apoio-a-vitima. Acesso em 21 de setembro de 2009).
7
A respeito, ALVARENGA, Ana Maria; TEODORO, António. A “Lenda” ou história da borboleta: os
movimentos sociais e a educação - o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
e a educação do Campo. In: São Paulo: ECCOS - Revista Científica. v. 11, nº 1, p. 193-207, jan/
jun.2009.
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
79
por “um sistema judiciário eficiente, rápido, um sistema que permita,
efectivamente, a previsibilidade dos negócios, dê segurança jurídica e
garanta a salvaguarda dos direitos de propriedade” (SANTOS, 2008, p.
23), por outro, o campo contra-hegemônico é
o campo dos cidadãos que tomaram consciência de que os processos
de mudança constitucional lhes deram direitos significativos – direitos
sociais e econômicos – e que, por isso, vêem no direito e nos tribunais
um instrumento importante para reivindicar os seus direitos e as suas
justas aspirações e serem incluídos no contrato social. (SANTOS,
2008: 29)
Assim, é inegável o significado dos movimentos sociais no processo
democrático.
Maria da Glória Gohn classifica os movimentos sociais em
movimentos identitários (os que lutam por direitos sociais, econômicos,
políticos e culturais, nos quais podem ser incluídas as lutas das mulheres,
dos idosos, dos afrodescendentes, dentre outros); movimentos voltados
à melhoria das condições de vida e de trabalho, no meio urbano ou
rural, “que demandam acesso e condições para terra, moradia,
alimentação, educação, saúde, transportes, lazer, emprego, salário etc.”
e, finalmente, movimentos globais ou globalizantes. Neste último, estão
incluídas as “lutas que atuam em redes sociopolíticas e culturais, via
fóruns, plenárias, colegiados, conselhos etc.”. Essa subdivisão, explica
a autora, “não tem a pretensão de criar uma tipologia de formas únicas
e excludentes, até porque, na prática, algumas vezes elas se misturam,
e alguns movimentos assumem mais de uma frente de ação” (GOHN,
2008, p. 439-440).
A organização do MDPESP, isto é, a luta pelo direito da população
historicamente desfavorecida contar com uma instituição a lhe garantir
uma assistência jurídica de qualidade, foi possível devido à parceria com
diferentes movimentos sociais e entidades organizadas da sociedade
civil. Os serviços oferecidos pela Defensoria Pública paulista refletem
a presença e o peso dos movimentos sociais identitários e daqueles
que lutam por melhores condições de vida – mulheres, idosos, moradia,
direitos humanos, dentre outros, desde o anteprojeto de lei de sua
criação. Inicialmente elaborado pelo Sindiproesp, o anteprojeto foi
aprimorado por entidades da sociedade civil organizada, em encontros
promovidos pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa
80
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Humana (Condepe) e pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos
(CTV).8 Cabe observar a composição do comitê organizado quando da
deflagração do MDPESP:
Comitê de Organização: Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana – CONDEPE; Comissão Teotônio Vilela de Direitos
Humanos – CTV; Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias,
das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo –
SINDIPROESP; Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito
da USP; Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos
da Mulher – CLADEM-Brasil; Fala Preta Organização das Mulheres
Negras e Centro de Direitos Humanos do Sapopemba – CDHS. (BOLETIM
ELETRÔNICO, n.º 1)
O MDPESP congregou as demandas dos sujeitos coletivos
articulando-as em torno de um interesse comum: a criação de um órgão
Vale registrar as principais características da Defensoria Pública a ser criada, propostas pelo
anteprojeto.
1 – Prestar, de forma descentralizada, assistência jurídica integral às pessoas carentes, no campo
judicial e extrajudicial.
2 - Defender os interesses difusos e coletivos das pessoas carentes.
3 - Assessorar juridicamente, por meio de núcleos especializados, grupos, entidades e organizações não governamentais, especialmente aquelas de defesa dos direitos humanos, do direito das
vítimas de violência, das crianças e adolescentes, das mulheres, dos idosos, das pessoas portadoras de deficiência, dos povos indígenas, da raça negra, das minorias sexuais e de luta pela moradia
e pela terra.
4 - Prestar atendimento interdisciplinar realizado por defensores, psicólogos e assistentes sociais.
Esses profissionais também devem ser responsáveis pelo assessoramento técnico aos defensores, bem como pelo acompanhamento jurídico e psicossocial das vítimas de violência.
5 - Promover a difusão do conhecimento sobre os direitos humanos, a cidadania e o ordenamento
jurídico.
6 - Promover a participação da sociedade civil na formulação do seu Plano Anual de Atuação, por
meio de conferências abertas à participação de todas as pessoas.
7 - Implantar Ouvidoria independente, com representação no Conselho Superior, como mecanismo
de controle e participação da sociedade civil na gestão da Instituição.
8 - Estabelecer critérios que, no concurso de ingresso e no treinamento dos defensores, realizado
durante todo o estágio confirmatório, garantam a seleção de profissionais vocacionados para o
atendimento qualificado às pessoas carentes.
9 - Ter autonomia administrativa, com a eleição do Defensor Público Geral para mandato por tempo
determinado.
10 - Ter autonomia orçamentária e financeira, utilizando-se dos recursos do FAJ. Cf. Boletim eletrônico n° 1, divulgado pelo Movimento, em julho de 2002. Arquivo da autora
8
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
81
público voltado à defesa do acesso à justiça.9 A citação abaixo corresponde
a um trecho do documento divulgado quando da oficialização do MDPESP,
em 2002, nas dependências da Faculdade de Direito da USP:
Após as falas iniciais e a leitura do Manifesto do Movimento foi entregue
ao Procurador Geral do Estado o anteprojeto para a criação da Defensoria
Pública, que foi elaborado em reuniões abertas com intensa participação
da sociedade civil. Esse anteprojeto possui importantes características
para que, uma vez criada, a Defensoria Pública funcione como efetivo
instrumento de acesso à Justiça, atuando de forma ampla e organizada.
Por isso o Movimento espera que ele seja usado pelo Governo Estadual
como subsídio para a elaboração de um eventual projeto de Defensoria
Pública para o Estado, que só pode ser enviado à Assembléia por iniciativa
do Governador Geraldo Alckmin. (BOLETIM ELETRÔNICO n.º1)
A Defensoria Pública paulista nasceu como uma instituição
democrática. Sua criação teve impacto inegável no sistema de justiça.
Criando espaços de participação da sociedade civil na sua gestão e
fiscalização, é um modelo a ser seguido pela administração pública.
Em 07 de outubro de 2009, foi sancionada a Lei Complementar n.º
132 que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e
territórios e a Defensoria Pública dos estados.10 Garantindo assistência
jurídica a todos os cidadãos que recebem até três salários mínimos, esse
novo dispositivo legal contemplará 78% dos brasileiros.
Segundo o Art. 1º desse dispositivo legal,
A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do
regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção
9
Conforme Maria da Glória Gohn, “há diferentes paradigmas teóricos na atualidade para o estudo
da ação dos sujeitos coletivos que produzem e reproduzem as demandas, ações, inovações ou até
mesmo retrocesso nas ações coletivas organizadas. (…) Como há diversidade entre os sujeitos, as
redes poderão estar mais ou menos institucionalizadas, segundo a sua composição, com alguma
forma de juridização que normatiza suas ações. Isso não significa que sejam redes estatais ou
governamentais, porque essa qualificação incorreria num erro de confusão entre estado, governo
e instituição de qualquer natureza, operando na sociedade civil, com ou sem algum tipo de articulação ou parceria com os órgãos governamentais” (GOHN, 2008, p. 439-440).
10
Altera dispositivos da Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria
Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e da Lei n.º 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, e dá outras providências.
82
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial,
dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da
Constituição Federal.
Merecem destaque dois outros artigos. O Art 4º,II, reza que as
defensorias públicas deverão
promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando
à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de
mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e
administração de conflitos.
O Art. 105-A determina que as defensorias públicas deverão ter como
órgão auxiliar a Ouvidoria-Geral, canal de participação da sociedade na
fiscalização do órgão. O ouvidor, escolhido pelo Conselho Superior dentre
cidadãos de reputação ilibada a partir de uma lista tríplice apresentada pela
sociedade civil, não poderá ser um integrante dos quadros da Defensoria.
Cabe destacar que a Defensoria Pública paulista já vinha realizando
as atividades de solução extrajudicial dos litígios e foi o primeiro órgão
jurídico do Brasil a ter um cargo de ouvidor ocupado por um membro fora
da carreira, indicado por entidades de direitos humanos.
Ante o exposto, pode-se concluir que a Defensoria Pública do
Estado de São Paulo é modelo para as defensorias públicas do país.
3. CAMINHANDO NA CONTRAMÃO
Alguns obstáculos vêm impedindo a extensão a todas as comarcas
dos serviços já implantados na Grande São Paulo e a criação de novas
formas de atendimento que garantam a passagem da assistência judiciária
para a assistência jurídica, cuja implementação exige uma gama de
serviços, inexistentes quando a finalidade é unicamente a litigância. Com
a assistência jurídica há
uma evidente transmutação. Passa-se da idéia de assistência judiciária
para o de acesso à justiça; de assistencialismo público para serviço
público essencial; de extensão da Advocacia privada aos financeiramente
carentes à promoção dos direitos humanos; de mera promoção judicial de
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
83
demandas privadas à identificação dos direitos fundamentais da população
e sua instrumentalização, eventualmente pela via judicial. Daí porque é
essencial a compreensão da natureza distinta das defensorias públicas,
em comparação com os serviços de assistência judiciária antes existentes
(ainda que nomeados defensorias públicas), a fim de que se organize o
novo serviço público em razão de sua real finalidade, constitucionalmente
desenhada. (WEIS, 2002, p. 5)
É significativo o papel desempenhado pela Defensoria Pública
paulista. Além de prestar assistência em todas as áreas do Direito de
competência da Justiça Estadual, incluindo a atuação nos tribunais
superiores, promove a cidadania por meio da educação em direitos,
soluções alternativas de conflitos, intervenção multidisciplinar, mediação
de conflitos e nas demandas sociais coletivas.
Apresentando uma concepção moderna de administração pública,
possui canais de participação popular – a Ouvidoria-Geral11, as PréConferências Regionais12, a Conferência Estadual13 e o Momento
11
Cf Art. 36 da Legislação da Defensoria Pública, “a Ouvidoria-Geral é órgão superior da Defensoria
Pública do Estado, devendo participar da gestão e fiscalização da instituição e de seu membros e
servidores”. O Art. 39 reza que “O Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral, composto por 11 (onze)
membros e presidido pelo Ouvidor-Geral, terá como finalidades precípuas acompanhar os trabalhos do órgão e formular críticas e sugestões para o aprimoramento de seus serviços, constituindo
canal permanente de comunicação com a sociedade civil”. Legislação da Defensoria Pública. São
Paulo, 2007.
“A Conferência Estadual e as pré-conferências regionais poderão desenvolver-se sob a forma de
palestras, painéis, debates e grupos de trabalho que permitam a formulação de propostas pelos
delegados, observadores e convidados e deverão abordar os seguintes temas e subtemas a serem
discutidos:
I. Prioridades no desempenho das atribuições institucionais da Defensoria Pública;
II. Direito das pessoas que buscam a Defensoria Pública e definição das propostas e melhorias no
atendimento;
III. Atuação da Defensoria Pública com vistas à garantoia, promoção, prot´ção e prevenção dos
direitos (…)”. (Capítulo IV. Da Organização e Desenvolvimento. Legislação da Defensoria Pública.
São Paulo, 2007).
12
13
“A Conferência Estadual deverá garantir ampla participação popular, em especial de representantes de todos os conselhos estaduais, municipais e comunitários, de entidades, organizações
não-governamentais e movimentos populares, eleitos nas pré-conferências regionais. Terá a participação de delegados eleitos nas pré-conferências regionais, com 60% de representantes da
sociedade civil (totalizando 300) e 40% indicados por membros da área pública (totalizando200)”
(Capítulo V, Artigos 25 e 26. Legislação da Defensoria Pública, São Paulo, 2007).
84
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Aberto nas reuniões do Conselho Superior da Defensoria Pública14
– que viabilizam a participação da sociedade civil na elaboração do
seu Plano Anual de Atuação. Acrescente-se, ainda, a importância
que vêm assumindo os núcleos especializados por receberem as
reivindicações das comunidades. Assim, quando ocorre a violação de
direitos, têm sido propostas ações civis públicas. No momento, estão
em funcionamento os seguintes núcleos: Direitos Humanos e Cidadania,
Infância e Juventude, Habitação e Urbanismo, Segunda Instância e
Tribunais Superiores, Situação Carcerária e Direito do Consumidor.
O modelo de Defensoria construído para São Paulo conta ainda com
a Escola da Defensoria (EDEPE), a Ouvidoria15 e a Corregedoria.16
Todavia, atualmente, há menos de 400 defensores para atender
às necessidades da população socioeconomicamente desfavorecida.
Assim sendo, a grande maioria daqueles que não dispõem de recursos e
informações continua recebendo apenas assistência judiciária, prestada
por entidades conveniadas dentre as quais, e majoritariamente, pela
OAB. Não bastasse o pequeno número de defensores e da precária
infraestrutura, outro entrave para que a Defensoria paulista atinja seu
objetivo – prestar assistência jurídica à população desfavorecida – é
a remuneração da carreira, muito inferior às demais carreiras jurídicas
com o mesmo status constitucional, quais sejam o Ministério Público e a
Magistratura. Daí a Defensoria estar sendo apontada como uma “carreira
de passagem”.
Cabe observar que, em outubro de 2009, a Defensoria Pública
paulista estava atendendo a capital e mais 25 comarcas da Grande São
14
O Conselho Superior é o órgão deliberativo máximo da Defensoria Pública, uma espécie de Poder
Legislativo interno. O Momento Aberto ocorre em todas as sessões. Qualquer pessoa pode se
dirigir livremente aos conselheiros para expor um assunto que julgue relevante para a instituição
(Artigo 29, parágrafo 4º, Lei nº 988/2006).
15
Deve participar da gestão e fiscalização da instituição e de seus membros e servidores. O ouvidor-geral é nomeado pelo Governador do Estado, dentre os indicados em lista tríplice organizada pelo
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da pessoa Humana - CONDEPE, para mandato de dois
anos, permitida a recondução (Capítulo I, Subseção VII. Legislação da Defensoria Pública. São
Paulo, 2007).
16
A Corregedoria-Geral é órgão da administração superior encarregado da orientação e fiscalização
da atividade funcional e da conduta pública dos membros da instituição, bem como da regularidade
do serviço (Capítulo I, Subseção VI. Legislação da Defensoria Pública. São Paulo, 2007)
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
85
Paulo e interior, o que representa menos de 10% das comarcas do estado.
Lamentavelmente, São Paulo está assistindo à terceirização da prestação
jurisdicional. Os defensores públicos paulistas realizam em média 850 mil atendimentos
por ano sendo que, em 2008, participaram de 180 mil audiências, atuaram
em 50 mil ações cíveis e impetraram 14 mil habeas corpus. No Superior
Tribunal de Justiça (STJ), 73% dos pedidos de habeas corpus ajuizados
pelos defensores paulistas foram concedidos. (APADEP, out. 2009)
Assim, a experiência de São Paulo, de um lado, permite apreender
os limites do acesso à justiça impostos pela forma como a sociedade está
organizada. Concebendo e conservando a cidadania como privilégio de
classe, a classe dominante regula seu exercício pelas demais classes
sociais. Contudo, de outro lado, a experiência de São Paulo aponta o
significado histórico do modelo singular da Defensoria Pública paulista na
defesa dos direitos da população socioeconomicamente desfavorecida. O
exemplo que segue é emblemático. Em 8 de setembro de 2009, o ouvidorgeral da Defensoria Pública de São Paulo, Willian Fernandes, reuniu-se
com representantes da Frente Nacional de Movimentos Urbanos, da qual
fazem parte entidades de 11 estados brasileiros. A reunião objetivou
levantar as demandas do Movimento e identificar aquelas em que a
Defensoria Pública pode atuar, promovendo uma aproximação com a
instituição. (…) Diante do que foi exposto na reunião, o Ouvidor fez diversas
proposições às lideranças, entre elas a elaboração de um documento que
contenha os principais problemas, questões e dificuldades vivenciadas
pelos integrantes do referido movimento social, e propostas de ações às
Defensorias Públicas, para servir de subsídio aos militantes no diálogo
com a Instituição. (BOLETIM DA OUVIDORIA, 2009, p. 11)
Conforme Boaventura de Sousa Santos, amparadas na Constituição,
as classes populares estão aprendendo a utilizar o direito e os tribunais
como arma (SANTOS, 2008, p. 31). De fato, a Constituição de 1988 é
responsável pela ampliação dos direitos civis, políticos, sociais, culturais
e difusos e coletivos.
Florestan Fernandes, ao fazer um balanço das dificuldades vividas
nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) em decorrência
do poder exercido pelas forças reacionárias e conservadoras, anunciava,
86
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
ao findar a década de 1980, as possibilidades abertas pela Constituição
então promulgada:
A Constituição está aí, de pé – e não se afirma como uma peça
conservadora, obscurantista ou reacionária. Ao revés, abre múltiplos
caminhos, que conferem peso e voz ao trabalhador na sociedade civil
e contém uma promessa clara de que, nos próximos anos, as reformas
estruturais reprimidas serão soltas. (FERNANDES, 1989, p. 361)
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, fundada em outra
concepção de justiça, abre espaço para o questionamento do padrão
homogêneo do aparato de justiça construído no passado e reatualizado
ao longo da história brasileira. O perfil diferenciado de administração da
justiça – expresso nos instrumentos de acesso ao direito e à justiça por ela
implementados – anuncia a possibilidade de construção de uma cultura
jurídica democrática que poderá se tornar ainda mais sólida se vencer
os impasses que lhe vêm sendo postos. Contudo, apesar do número
insuficiente de defensores públicos para atender às demandas de todas
as comarcas, dos baixos salários que recebem e da pequenez de sua
infraestrutura, continua seu percurso, sempre na contramão.
As formas alternativas de práticas democráticas da Defensoria
Pública paulista, os mecanismos de participação da sociedade civil na
sua gestão e fiscalização, inovadores no cenário jurídico, vêm desafiando
a cultura jurídica dominante – normativista, elitista e tecnoburocrática.
Fontes
APADEP-Imprensa- www.apadep.org.br.
Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2009.
Entrevista com defensor público: arquivo da autora.
Lei Complementar nº 132, de 7 de outubro de 2009
Legislação da Defensoria Pública, São Paulo: Escola da Defensoria
Pública do Estado, 2007.
Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental
87
Referências
ALVARENGA, Ana Maria e TEODORO, António. A “Lenda” ou história da
borboleta: os movimentos sociais e a educação- o caso do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra e a educação do Campo. In: São Paulo:
ECCOS- Revista Científica. V. 11, nº 1, p. 193-207, jan/jun.2009.
ASSOCIAÇÃO PAULISTA DOS DEFENSORES PÚBLICOS. Disponível
em: <http://www.apadep.org.br./. Acesso em 09 out. 2009.
BOLETIM DA OUVIDORIA GERAL DA DEFENSORIA PÚBLICA DO
ESTADO DE SÃO PAULO. Ano 1, n.º 10, 1º de agosto a 15 de setembro
de 2009. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/.../Boletim%20
da%20Ouvidoria%20nº%2010 .pdf>. Acesso em 21 set. 2009.
FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada. São Paulo: Estação
Liberdade, 1989.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Disponível em:
<http://www.forumseguranca.org.br/praticas/cravi-centro-de-referencia-eapoio-a-vitima>. Acesso em 21 set. 2009.
GOHN, Maria da Glória. Abordagens teóricas no estudo dos movimentos
sociais na América Latina. Cadernos CRH (online). V. 21, nº 54. p. 439455, 2008.
HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo; SINHORETTO, Jacqueline e
PIETROCOLLA, Luci Gati. Justiça e Segurança na periferia de São Paulo:
os centros de integração da cidadania. São Paulo: IBCCRIM, 2003.
HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo; SINHORETTO, Jacqueline;
ALMEIDA, Frederico de; PAULA, Liana de. Centros Integrados de
Cidadania. Desenho e Implantação da Política Pública (2003-2005). SÃO
PAULO: IBCCRIM, 2006.
MARTINS, José de Sousa. A sociedade vista do abismo. Novos estudos
sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da
justiça. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.
SINHORETTO, Jacqueline. Ir aonde o povo está: etnografia de uma
reforma da justiça. Tese de Doutoramento. Departamento de Sociologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, 2006. MIMEO.
WEIS, Carlos. Direitos humanos e defensoria pública. Boletim IBCCRIM.
São Paulo, v.10, n.115, p. 5-6, jun. 2002.
EDUCAÇÃO
REPUBLICANA PARA OS
DIREITOS HUMANOS
SUA IMPORTÂNCIA NUM
ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO1
Paulo Ferreira da Cunha
Professor Catedrático de Direito Constitucional e Filosofia do Direito e
Diretor do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da
Universidade do Porto, Catedrático convidado de Estudos Brasileiros
da Universidade Lusófona do Porto, Associado ao Departamento de
Direito e Justiça da Universidade Laurentienne, Doutor em Direito das
Universidades de Coimbra e Paris II, Agregado em Ciências Jurídicas
Públicas.
1. MAGISTÉRIO E MAGISTRATURA
Estou feliz de estar hoje entre Magistrados da Defensoria
Pública, nova Magistratura utilíssima e nobilíssima. Estou, na verdade,
se me permitem, entre colegas, porque, além de jurista de formação
académica, a minha profissão é a de professor de Direito, ou seja,
exerço o magistério.
Magistério e Magistratura são palavras com a mesma raiz.
Professores e Magistrados judiciais de todos os tipos detêm uma
1
O presente texto, preparado para servir de base escrita a uma conferência na Defensoria Pública
de São Paulo, em 7 de Abril de 2010, no âmbito do I Curso de Educação em Direitos Humanos,
contém em palimpsesto ecos de vários outros, sobretudo de artigos publicados na nossa coluna
“M@ils do meu Moinho”, e cruza-se com matérias dos nossos livros Constituição, Crise e Cidadania
(Porto Alegre, Livraria do Advogado), Direito Constitucional Aplicado, Pensar o Estado, Filosofia
Jurídica Prática (todos editados em Lisboa, pela Quid Juris e o último também em Belo Horizonte,
pela Forum), etc., para que remetemos, para maiores desenvolvimentos. Contudo, além de materiais novos que obviamente convoca, este estudo parece-nos importar sobretudo pelo reunir dos
fios dispersos e apontar caminhos a partir dessa unificação e síntese de dados e reflexões.
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legitimidade social especial, que infelizmente nem sempre é entendida
em sociedades sem cultura política e jurídica.
Tal como os Magistrados judiciais, os Professores têm a autoridade
(auctoritas) de quem detém saber, e, por isso, têm obrigação de o
transmitir, cultivar e mesmo venerar, como sacerdotes. Que os juristas
eram sacerdotes da Justiça, já o diziam os Romanos. Uns e outros não
são entre nós eleitos, mas isso – como deveria ser óbvio – em nada colide
com a democracia, que não vive sem elites dela amigas.
O jacobinismo guilhotinou Lavoisier, afirmando não precisar da
revolução de cientistas. Do mesmo modo, a Comuna de Paris proclamaria
o fim dos advogados. Shakespeare coloca na boca de um tirano inglês:
“A primeira coisa a fazer é matar todos os causídicos”. Um autocrata
espanhol deploraria: “Todo o mal nos vem dos togados”.
Contudo, Juristas e Professores também já foram prestigiados,
obreiros de património simbólico, condutores dos destinos dos países.
Esse é aliás o seu grande crime aos olhos de alguns…
Na oficina preparadora da cultura, a Escola, e na da alta cultura, a
Universidade, assim como no domínio da chamada “medicina da cultura”,
o Direito, reina a demagogia. Se não tivermos uma escola capaz de formar
e magistraturas de contribuir eficazmente para que se faça justiça, que
será de nós? E se não prezamos e acarinhamos quem ensina e quem
faz justiça, até quando resistirá o sentido de dever de quem se não vê
valorizado? Com Professores e Juristas sem prestígio e consideração
social, sem respeito e sem admiração, acabarão por só ir para essas
profissões precisamente aqueles que lá nunca deveriam estar. Muito do
mal de hoje já vem do enviesamento das vocações.
2. CRISE DA JUSTIÇA E CULTURA DOS JURISTAS
O nosso tema de hoje é a Educação Republicana para os Direitos
Humanos. Ela só é possível se fizermos, antes de mais, um diagnóstico
sobre a própria crise dos formadores nessa educação, que seriam, que
deveriam ser, os juristas.
Temos, pois, que começar por falar da crise da justiça.
A tão falada crise da justiça não é apenas uma crise de instituições.
É, antes de mais, uma crise dos próprios juristas. Os juristas, como se diria
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da tradição, começam a não ser já o que eram. A tribo dos juristas não
aguenta o teste do espelho: como vermo-nos sem de nós nos rirmos ou
sobre nós chorarmos? Evitamos ver-nos. Enleamo-nos frequentemente
em charadas extrínsecas a nós e ao Direito.
Têm-se verificado mudanças preocupantes no recrutamento dos
juristas. E isso reflecte-se no seu comportamento, e este na sua imagem
e consideração sociais. De vez em quando, figuras das Ordens dos
Advogados lançam o alerta, até para a falta de conhecimentos da língua
de candidatos a advogados. E é apenas um exemplo.
Está a começar a haver o que antes seria uma contradição nos
próprios termos: juristas incultos. A autossuficiência pedante e triunfante
desses juristas incultos (ou ignorantes, como lhes chamaria já Tomás de
Aquino – em um tempo em que, todavia, sabiam bem mais do que mais
importa) mata por um lado o seu prestígio junto das gentes de cultura,
e, por outro, faz definhar o Direito enquanto filosofia prática (como lhe
chamavam os Romanos). Mas mais, e pior, torna o Direito aquela matéria
entediante, maçadora, sem alma e qualidade – coisa de mangas-dealpaca. Já o grande jurista alemão Rudolf von Jhering (1818-1892) se
queixava amargamente deste perder de qualidade e de qualidades do
Direito. Hoje deve revolver-se na tumba.
A falta de cultura (assim como a falta de educação) navegam no
oceano da indiferença. Só o interesse pela cultura redimirá o direito. Porque
o interesse pela cultura é sinal do interesse pelo Homem. Só a Cultura –
obviamente em uma dimensão interdisciplinar, como o programa deste I
Curso de Educação em Direitos Humanos o é, e magnificamente – poderá
ser a base de uma Educação para os Direitos Humanos. Desde logo,
pelo conhecimento histórico e sociológico da injustiça, e o conhecimento,
dessas áreas e também, por exemplo, o saber filosófico, das lutas pela
liberdade, pela igualdade, pela fraternidade. Que não são palavras vãs,
embalsamadas na História, de uma longínqua revolução, em um reino cuja
rainha, ao dizerem-lhe que o povo não comia pão recomendou (cremos
que sem ironia) que nesse caso comesse brioche... Não são palavras no
passado. São vectores incumpridos (como sublinha, por exemplo, Eligio
Resta), para fazer o nosso futuro.
O jurista como simples burocrata da coacção, mero verbo de aluguer,
especialista em uma técnica e não mais que em uma técnica, subordinado
ao poder e aos poderes, aos interesses, enfim, o detentor apenas de um
saber-fazer, deixa de estar vocacionado para comandar Homens, porque
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não mais os compreendendo pelo seu universalismo (como salientava o
romanista Sebastião Cruz, como exaltava o jurisfilósofo Francisco Puy), e
máquinas também nunca saberá dominar... Logo, o jurista de hoje acaba
por ser pouco prestável para múltiplas tarefas de outrora. Mas no cerne
das suas funções, que são de defender os fracos, os injustiçados, os
humilhados, os oprimidos (de todas as classes, mas principalmente, por
natureza, das menos favorecidas) contra a injustiça, esse papel ainda o
faz bem?
Infelizmente nem sempre. Porque nem sempre interessado pela
sua própria ética e deontologia em colocar a defesa da justiça acima dos
seus próprios interesses pessoais. E mesmo porque nem sempre dotado
de conhecimentos e de sabedoria (desde logo sabedoria da vida e dos
homens – elementos fulcrais de Prudentia!). Conta-se uma história de
um juiz novato que nunca tinha visto uma galinha e o primeiro caso que
teve foi precisamente, numa comarca do interior mais profundo, julgar um
grupo de rapazotes que furtaram as galinhas da capoeira do padre da
terra... Asneou, naturalmente. E muito. Contam-se até as duas versões
alternativas do seu erro: em um caso, por rigorismo, em outro por laxismo.
Essas situações revelam uma décalage significativa entre a sociedade
e o direito – com regras que não são mutuamente compreendidas. Por
exemplo, o ignorantia legis non excusat é totalmente contrário ao senso
comum e aos valores comuns. Mas mesmo que se reconheça que sem
esse princípio seria o caos processual, a verdade é que grandes autores,
como Michel Bastit, já o ousaram colocar em causa.
Responsável por essa situação de aprofundado divórcio é a presente
sociedade de cretinismo tecnológico, de que falava Duvigneau, e de
barbárie civilizada, como sublinhou Paolo Ottonello, em que o sucesso
se mede pela conta bancária e pelos cadáveres dos adversários como
troféus de caça.
Responsável é uma Universidade que, pelo mundo fora, fascinada
com os ganhos da sua ligação com o mundo empresarial, esqueça,
subalternize e discrimine tudo o que não seja rentável e passível de ser
adquirível pelas empresas, as quais, como é óbvio, jamais oferecem
“almoços grátis”, preferindo adquirir alta tecnologia e alta ciência ao preço
barato que os apesar de tudo sempre um tanto distraídos “cientistas” estão
ávidos por lhe oferecer. É a moda e é a necessidade. A Universidade,
porém, tem de ir à frente das empresas, não atrás. E o Estado deve dotar
as suas universidades de meios para que não estejam dependentes do
Educação republicana para os direitos humanos
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capitalismo e dos seus interesses. Será que, nesse contexto, não se
compreende que não há mesmo “almoços grátis”, nem mesmo para as
venerandas e beneméritas Universidades?
Responsável é, finalmente, pelo mundo fora, a governação de timbre
anarco-capitalista (ou neoliberal), que se demite das funções de qualquer
Estado e sistematicamente desinveste na Educação, e mais ainda na
Educação para o Ser e não para o ter, que se ri das Humanidades e puxa
logo da calculadora quando ouve falar de cultura.
Responsável é, na Europa, uma errónea visão tecnocrática do
processo de Bolonha, pretendendo fazer de todas as cadeiras cursos
breves e transformar as licenciaturas em cursos profissionalizantes,
minicursos, para que o Estado pague menos, redundando em que a
Universidade seja, de novo, apenas para uns tantos, com posses para
tal.
Hoje (vemos isso em alguns filmes – na vida real é mais preocupante
ainda) o decorador de leis, ou o especialista em chicana, o serial killer
do direito, sempre de faca nos dentes, pronto a apunhalar o vizinho,
que desconhece as coisas mais elementares, que se ri de quem leu um
romance, que de cinema conhece os enlatados com muito sangue e
barulho, que nunca entendeu para que servia a filosofia do Direito e outras
matérias jurídico-humanísticas, esse vero primitivo actual a quem pode
ser dada licença para andar à solta a discutir da fazenda, da liberdade, da
vida e da honra das pessoas, para ganhar dinheiro com o seu infortúnio,
acha-se um Senhor. E despreza do alto da sua ignorância todos os que
não inveja. E apenas inveja os de sucesso: os que ganham mais que
ele, que têm carro melhor, etc. Para esses, o Direito tem tudo a ver com
coacção, e da Justiça relembram vagamente uma estátua vendada.
Além do mais, a proliferação de cursos de Direito fez com que, pelo
menos em alguns lugares do mundo, menos bons juristas conseguissem
chegar até à docência. E aí se regalarem, colocando títulos pomposos
nos cartões de visita… Do mesmo modo, tornou-se fácil como nunca, com
a globalização, desde logo, o acesso a um diploma de pós-graduação,
mestrado e até doutoramento. Maus doutores baptizarão novos doutores
péssimos: a reprodução da má qualidade faz-se em progressão
geométrica. E nem sempre as famas das universidades correspondem ao
valor real de todos os seus diplomados.
Pobre Direito se não souber defender-se desse tropel de bárbaros
que entram pela porta grande, primeiro, e depois pelas janelas e telhados…
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Várias crises, assim, se imbricam e se implicam em cadeia. A
montante, a crise da educação e da cultura em geral – onde toda a questão
começa. Mais especificamente, a degradação e deriva tecnocrática
da aprendizagem do Direito e da formação cultural dos juristas. E, na
decorrência destas, a crise das instituições jurídicas. Porque, se não pode
haver Justiça sem homens justos (como, entre outros, sublinharia Santo
Agostinho), sendo o Direito autêntica “medicina da cultura”, não pode
haver bom Direito, Direito de qualidade, sem agentes jurídicos cultos.
Se os próprios juristas se converterem à superficialidade, quem
segurará as águas do dique? Se os juristas se alhearem dos direitos
humanos, como poderão ser seus paladinos e promover a sua educação?
Se ignorarem os princípios de imparcialidade, de severidade mesmo para
consigo mesmo, que foram apanágio das nossas Repúblicas velhas,
e que hoje deveríamos reviver, adaptando à pós-modernidade, não
grassará o laxismo, o “jeitinho”, a corrupção? Em Portugal fala-se agora
de considerar como sendo corrupção presentear-se qualquer funcionário
público – desde a faxineira ao Presidente da república.
Querem saber? Acho muito bem. Além de me eximir de escolher
a caixa de bombons que sempre envio para a festa de fim de ano dos
professores e funcionários, a que não vou, porém, porque não me sinto
bem com almoços grátis de entidades públicas, mesmo no Natal…
Os juristas têm que estar na primeira linha do combate pela justiça,
e da educação republicana para os direitos do homem. Esss duas tarefas
exigem sobretudo têmpera e preparação ética, cultural e jurídica.
Se a Democracia não conseguir dotar-se de uma escola para a
Cidadania e os Direitos Humanos em todos os seus sentidos – e desde
logo o mais elementar, que é o de uma Escola de ordem, sentido do
mundo, inserção social, e compreensão do universo nos seus dados mais
elementares – terá falhado, e certamente perecerá às mãos dos seus
contrários, que sempre pegaram na pistola contra a cultura, e sempre a
acharam um luxo para os comuns mortais.
3. CRISE E IMPORTÂNCIA DO ESTADO
É um lugar comum falar-se na Crise do Estado, como se fala em
crise da razão, da civilização, etc. A crise e a crítica andam de par, e já
compreendemos o que é estar em crise permanente. A habitualidade da
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crise leva ao instalarmo-nos nela, ao ponto de perguntarmos primeiro, e
proclamarmos depois: “Crise, quelle crise? Vive la crise!”. Apercebemonos também de que crises são janelas de oportunidade para novos
desenvolvimentos, rupturas que se podem revelar redentoras.
E contudo os juspublicitas, e os constitucionalistas em especial,
talvez façam mal em se preocuparem em excesso com a sua bela criação,
o Estado. Jacob Burckardt chamou-lhe obra de arte. Assim se tivesse
mantido, com o necessário engenho. Mas, como se sabe, nem o Estado é
a única forma ou sociedade política, nem existiu sempre. E está a colocarse muito em dúvida se é sempre pessoa de bem. Deus nos livre de dizer
mal do Estado, que é o que nos tem separado da barbárie dos gangs e da
barbárie dos trusts – enquanto for ainda regulador e defensor do interesse
público. Mas há que reconhecer que o Estado, aqui e ali, claudica. Não
age, mesmo, permite que as silvas da desordem e da desigualdade
enlacem o belo castelo da princesa Aurora. Mas por quê? Porque no
castelo do Estado muita gente dorme...
E há mais vida, além do Castelo.
É um problema não só de actualidade, como de deontologia: a
política (e os saberes sobre ela) não deve centrar-se no Estado, mas no
Cidadão. O Estado, o Império, a Polis, qualquer a forma política, deve
estar ao serviço das Pessoas, e não o contrário.
Estamos muito longe, sabemos, dessa alteração de paradigma. O
cidadão é ainda encarado como passivo, dócil, domesticado, pagador,
contribuinte, e destinatário do Poder. Não seu obreiro, seu participe de
pleno direito.
Importa mudar, com uma profunda reforma de mentalidades, que
nos permita a todos ser sujeitos activos, protagonistas da governação
(que se faz a tantos níveis já: desde o local territorial à escola; até, por
vezes, à empresa), tomando nas nossas mãos os nossos destinos. O que
não implica o individualismo feroz e a privatização em massa em prol de
uns tantos hoje já mais aptos a agir, mas um lento e profundo trabalho
de alargamento da cidadania real: que passa por uma outra atitude do
Estado e por um profundo investimento na Educação, que deve preparar
Mulheres e Homens livres, e não bons robots, acríticos ou críticos, só até
ao ponto permitido pelas cartilhas críticas toleradas. Mas sob a capa de
modernização – nunca são de mais os gritos de alerta – a escola, por todo
o mundo, parece, está a transformar professores e alunos em cobaias
amestradas, gente dócil, sem tempo, com medo. É a formação não para
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Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
o empreendimento, não para a liberdade, mas para o trabalho servil, sem
direitos, para a mobilidade laboral, para a indiferenciação. Nunca como
agora sentimos tanto o peso da ameaça da fome pelo desemprego, nunca
a subserviência foi tão grande no mundo laboral, com medo da perda do
lugar. E, pela técnica do choque, todos os dias a comunicação social,
mensageira permanente de péssimas notícias, nos prepara para uma
nova catástrofe. Já se comparou essa forma de tratamento a choques
eléctricos. Sim, as cobaias não têm descanso.
E a par disso, os escândalos... Que vão até embotando e cauterizando
as consciências. Já nos habituamos à miséria, à exploração, à corrupção?
São normais?
Nenhuma comunidade política pode subsistir sem que a sociedade
recobre o respeito por si mesma e a atenção vigilante pelos poderes
instituídos, sem subserviência e com sentido crítico construtivo, única
forma de a cidadania activa e responsável poder corresponder uma
autoridade das instituições, não simplesmente fundada na coercibilidade,
mas na legitimidade de exercício do poder. Por isso são preocupantes
alguns sinais de debilidade dos poderes públicos e de crescente
incumprimento do Direito, como sucede em países muito diferentes, em
diversos continentes.
E longe de pensar que a solução se encontra em medidas
autoritárias e voluntaristas, cremos urgente reforçar a confiança dos
cidadãos nas instituições: pela eticização da política geral, pela acção
justa e oportuna dos tribunais, pela intervenção protectora da polícia, pela
desburocratização da administração pública, pela facilitação da vida a
quem pretende trabalhar honestamente ou empreender para o benefício
social.
Reforma dos sistemas políticos pela sua abertura, pela sua
permeabilização aos temas e aos especialistas das sociedade civil,
pela desburocratização, a descentralização e até, quando pertinente, a
federalização e a regionalização, o aprofundamento da responsabilidade
dos titulares dos cargos políticos e a limitação da duração de todos os
mandatos, uma vigilância sem tréguas à corrupção, etc., são rumos
desejáveis e possíveis. Mas não tenhamos ilusões quanto a medidas já
muito apregoadas. Exige-se mais imaginação. E mais concretização do
que é consabido, mas não praticado.
Todos estaremos de acordo que política deve responder muito
mais directamente aos problemas reais das Pessoas; mas a acção não
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se justifica a si própria, antes se baseia em ideias e ideais. E quando
se proclama, quer de forma intelectual quer agressiva, o fim da política,
ou o mal da política, e o fim das ideologias – são maus ventos para a
democracia que se conjuram. Além de tal vaticínio constituir nada mais do
que uma péssima análise.
O Direito, por seu turno, e muito em particular o Direito Constitucional,
dificilmente contém em si (só por si) os vectores de dinamismo suficientes
para as grandes mudanças. O mais normal é as grandes reformas ficarem
no papel, como essa letra morta que só pode mesmo matar. A falta de
força normativa de um preceito constitucional inefectivo (como diria Jean
Cabonnier) põe em perigo o todo da Constituição. Mesmo soluções
hermenêuticas temerárias (e a que não deveríamos ter pejo de considerar,
apesar de todo o “pluralismo”, “erradas”) fazem perigar a dignidade da
reputação constitucional.
Aquando das últimas eleições presidenciais, fomos um dos
promotores de uma iniciativa inédita em Portugal: um movimento para dar
a conhecer a Constituição, que consistiu em convidar cidadãos, do político
ao homem da rua, a transcreverem artigos da nossa Constituição. A adesão
foi muito animada. Mas alguns dos participantes, que visivelmente nunca
tinham lido o texto constitucional, maravilharam-se e escandalizaram-se
como era possível terem no papel tantos direitos, de que efectivamente
se viam privados na prática… E a ideia de que a Constituição é uma
cornucópia de promessas não cumpridas (errada interpretação, apesar de
tudo) pode pôr em perigo a sua sacralidade de Bíblia da República.
Contudo, este choque por estranhamento pode ser o principium
sapientiae para uma frutuosa discussão e para incentivar o conhecimento
cidadão das Constitituições e dos Direitos que reconhecem.
4. EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS
A solução das angústias jurídico-políticas do presente pode implicar,
naturalmente implicará, nova legislação. Mas ela será liminarmente
inconcebível se não repensarmos a nossa vida, a nossa existência
colectiva, a nossa situação de homens e mulheres no Mundo.
Assim, se quisermos viver em um Mundo mais respirável, teremos
de pensar quais os valores, princípios, convicções que queremos ter como
mínimo denominador comum.
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E antes de irmos ao mínimo denominador internacional, comecemos
pelo nacional. As nossas sociedades pluralistas estão longe de ter chegado
a acordos básicos. Alguns pensam que as Constituições deveriam
teoricamente sê-lo. Mas não têm conseguido desempenhar esse papel,
sendo duvidoso que caiba a um instrumento jurídico fazer muitos dos
consensos.
A tese da procura dos consensos é estigmatizada, com clamor e
escândalo, pelos que proclamam, sinceramente ou não, que uma espécie
de mão invisível democrática da anarquia cultural e espiritual de uma
comunidade política faria nascer, como por milagre, a comunhão e a
harmonia.
Professa-se como garantia da total liberdade a demissão completa
do Estado enquanto educador político (mesmo a formação para a
Cidadania e os Direitos Humanos é quase nula, em países democráticos
– pelo menos é muito menor do que deveria ser), com a preocupação,
reconhecidamente saudável, de não doutrinar. É o espectro totalitário,
que dá receios destes, sabemos bem… Mas este laissez faire tem tido
o catastrófico resultado de que a democracia, os valores democráticos,
a cidadania democrática, estarem ao Deus-dará da sorte, para mais
caluniadas pelas desventuras que a “República real” causa à República
dos sonhos (diríamos, recordando Álvaro Ribeiro).
O laxismo vai em cadeia: ninguém já se sente com autoridade para
corrigir ninguém. Mesmo as normas da mais elementar urbanidade e
civilidade deixam de ser óbvias e necessárias: como responder a uma
carta, ou cumprimentar na rua um colega…
O debate faz-se cada vez mais entre tribos. Os estudantes
adolescentes tribalizam-se de forma jamais vista. E mesmo a sociedade
toda se tribaliza. Sempre foi tribalista o círculo elegante e snob. A senha
e contrassenha dos nomes de família. Mas eram, apesar de tudo, legíveis
no contexto social. Hoje há cada vez mais grupos que criam os seus
próprios guetos.
Tudo isso é muito interessante para o colorido de um mundo visto
da estrela Sirius, mas problemática no mundo sublunar...
Só se tivéssemos uma linguagem comum de racionalidade e de
civismo é que poderíamos realmente dialogar. Todos somos vítimas dessa
sedimentação de irracionalidades e sentimentos. E como o Esperanto
foi em geral um fracasso (apesar de algumas bolsas de resistência),
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presumimos que as dificuldades de conotação e denotação, expressão
e sentido nos acompanharão irremediavelmente, até que a alma nos
seja trocada por um sistema de algoritmos. E não será para as próximas
gerações, certamente.
O grave é que, sem um espaço de comunidade de convicções,
estritamente pensadas naquilo que convier à nossa índole, e para nossa
utilidade espiritual, cultural e material, jamais a Lei poderá deixar de ser
simplesmente a expressão do mais forte – pelos votos, pelo dinheiro ou
pela convicção, ditada pelo temor reverencial face a quem sobre si manda
de facto, pela força ou pela sedução.
O Estado tem de defender os cidadãos contra a ignorância e a
colonização de ideias de grupos activistas – quer os arautos miúdos
do politicamente correcto, quer as grandes máquinas de marketing,
que inventam o que for preciso, mesmo ideologia, para vender. Nesse
particular é perigosíssima a concentração capitalista das empresas de
cultura, designadamente a criação de grandes monopólios e monopsónios
(ou oligopólios e oligopsónios, se quisermos ser mais exactos) do livro –
que, no limite, fazem com que só seja publicado e só seja consumido
pouco mais que o lixo dos enlatados sensacionalistas... É a degradação
da cultura e o espezinhamento do nosso comum direito à cultura pelo
interesse do lucro, baseado em uma péssima imagem do consumidor
corrente. Aquilo a que o grande jornalista de cultura Bernard Pivot chamou
o recua até à doméstica de 40 anos – seria ela o alvo da televisão, e, em
geral, da massa da propaganda.
Se de um lado a escola não eleva o nível da doméstica de 40
anos, não serão os media a fazê-lo. E todos nós teremos que consumir
os produtos que os grandes técnicos de marketing acham que ela vai
comprar... E o curioso é que a democracia global também serve para
adormecer iniciativas alternativas. Quando tínhamos ditadura, circulava
literatura clandestina... Agora, achamos que há democracia, e que o triste
panorama das nossas livrarias decorre de falta de autores. Não é verdade.
Há muito quem queira (e mereça) um lugar ao sol e não o consegue. Mas
também é certo o círculo vicioso: um dia o pintor converte-se a contabilista,
o compositor passa a dar lições de piano a crianças ricas, para sobreviver,
o romancista que escreve para a gaveta decide escrever um blog... mas
encontrar um ganha-pão entediante que lhe pague as contas. É uma
decadência, com consequências de falta de tubos de escape sociais, de
insatisfação geral, uma nuvem sobre a sociedade.
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Ora a única forma de o travar e inverter é uma revolução mental, na
própria concepção do Estado de Direito Democrático. É o assumir-se ele
como Estado de Educação para a Liberdade. Ou, se preferirmos, para os
Direitos Humanos, que são a sua tradução actual. Mas deixar de o fazer
platonicamente, e fazê-lo activamente.
De todas as vozes, a voz da democracia, da liberdade, da autonomia,
parece ser a que mais teme exprimir-se. Os inimigos da liberdade devem
ter liberdade, sem dúvida – ao contrário do que dizia Lenine. Mas os
amigos da liberdade, para mais arcando com o ónus de gerir um Estado
democrático, têm direito e têm obrigação de fazer cultura e educação de
Liberdade. Contudo, com Lenine devemos aprender que os inimigos da
liberdade tudo farão, usando-a, para a tirar aos demais... E as democracias
têm que não ser ingénuas. Desde logo, educando na democracia e
sublinhando a excelência da democracia, que nada tem a ver com
facilidade, com anarquia, etc. Mas requer muito rigor. Montesquieu disse
tudo: o princípio da democracia é a virtude. Sem a virtude republicana,
a democracia degenera, e a termo será substituída por uma autocracia.
Outrora esta regra era clara: vinha um ditador que duramente reclamava
a ordem perdida. Hoje a situação é mais subtil: pode haver mil e um
ditadores a nível local, que procuram fazer mais duramente ainda que um
mais distante déspota. E sem que deixe de haver eleições para os órgãos
de democracia superficial geral, pode a sociedade ser minada por esses
espíritos tacanhos, mesquinhos, que, de posse de um grão de poder, o
fazem multiplicar por milhares, como no tabuleiro de xadrez do grão-vizir.
Levemos a sério a Educação, que está na base de tudo. Não
basta uma disciplina escolar de educação cívica. Toda a educação deve
prosseguir esse fim. O que implica ainda o fim dos mitos tecnicistas. É
preciso saber técnicas, mais e melhor: mas subordinadas às Humanidades,
como as mãos à cabeça. Stupid scientists são ainda piores que ignorantes.
E fáceis adeptos de ditaduras, que lhes parecem mais eficientes, e mais
“matemáticas”… Logo, o melhor dos mundos.
E, pelo contrário, seriam precisamente o melhor dos mundos às
avessas: pura distopia.
Os juristas, e em especial os constitucionalistas, têm a grave
responsabilidade de dar alma e ser sinal de alarme num momento de
viragem como o presente. Podem tranquilamente deixar-se na sua
posição confortável de áugures das crises políticas e elaboradores de
pareceres a pedido, representantes dignos do direito nos livros. Ou podem
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ser principais obreiros do direito em acção, explicando, antes de mais,
que a Democracia e os Direitos Humanos não são dados adquiridos, mas
conquistas quotidianas, que passam pela adesão das gerações mais
novas, que já não conheceram o que é viver em ditadura.
A televisão portuguesa tinha, nos seus primeiros anos, uma “mira”
para os casos de avaria. Era de fundo negro, nada atractiva, simplicíssima,
e dizia apenas: “Pedimos desculpa por esta interrupção, o programa
segue dentro de momentos”. Inspirados nesse texto, após a revolução
dos cravos, os sempre argutos anarquistas pintaram nos muros do País
este alerta que deveríamos considerar sempre: “Pedimos desculpa por
esta Democracia, a Ditadura segue dentro de momentos”.
Esperemos que jamais. Mas temos que fazer por isso. Ninguém o
fará por nós.
E se pode ocorrer um apagão geral na democracia, o certo é
que também pode ela entrar em degenerescência pela falta de ética
republicana.
Ora é imperioso saber educar – multidimensionalmente – para a ética
republicana. Ela é pressuposto da educação para os direitos humanos e
pode identificar-se com a educação para a cidadania.
Como se sabe, a ética republicana tem uma dimensão objectiva, a
dos valores, que começam nos valores políticos da Liberdade, Igualdade
e Justiça, a caminho da Fraternidade, e a das virtudes, mais difíceis de
sistematizar, mas que, além das clássicas virtudes ditas cardeais, e sobre
o seu legado, acrescenta virtudes tipicamente políticas.
Em síntese, as virtudes republicanas poderiam enumerar-se num
breve decálogo:
I. Serve dedicadamente a Coisa Pública.
II. Sê no serviço público frugal, comedido, despojado, rigoroso.
III. Pratica a Constância, mas adapta-te de forma inteligente e
coerente.
IV. Respeita às leis como garantes da liberdade e dos direitos, e
usa-as sempre para a Justiça e não para a burocracia
V. Contra a licenciosidade, cultiva a Delicadeza, a Atenção e a
Solidariedade.
VI. Contra o Privilégio, prativa o Amor à Racionalidade e à Ordem, à
Imparcialidade e à Equidade.
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VII. Contra o abuso do poder e a corrupção, eleva o amor ao diálogo,
ao pluralismo, à transparência, ao rigor, e aplica o controlo e separação
dos poderes.
VIII. Aprende o bom uso da lentidão, mas age depressa e bem
quando for mesmo urgente.
IX. Contra os Lobos e as Raposas da Política e do Direito, cria
Pombas-Serpentes
X. Age sempre segundo uma consciência bem formada.
5. DEFESA DA DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO
“Quem seus inimigos poupa, às suas mãos morre”. Terrível máxima.
Infelizmente muito verdadeira.
Será que a democracia tem inimigos? Será que deveria liquidar os
seus inimigos, antes de ser ela mesma exterminada?
Uma clássica resposta, mas totalitária, é a de Lenine: “Nenhuma
liberdade para os inimigos da liberdade”. Rosa Luxemburgo replicou: “A
liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de maneira diferente” (cito
ambos de cor).
Deverá então a democracia cruzar os braços face às agressões
e sedições dos que a querem perder? A democracia não se identifica,
obviamente, com todos os que se dizem democratas. Sendo um ideal,
a democracia tem inimigos-ideias. Deve garantir a todos a liberdade,
mas tem de combater os seus inimigos ideológicos: não só ditaduras
de figurino, como mais subtis amarras que prendem as consciências e
enleiam os espíritos.
Ingénua e enredada nas suas estafadas guerrilhas internas, a
democracia ainda não entendeu. A ditadura, e o obscurantismo que com
ela sempre vem (com sorriso de veludo ou mão de ferro), espreita sempre
à esquina do descuido democrático.
Professa-se a demissão completa do Estado enquanto educador
político (formação para a Cidadania e Direitos Humanos é quase
nula). Confundindo-se uma opção de silêncio suicida com a saudável
preocupação de não doutrinar.
Compreende-se que é o espectro ditatorial e totalitário que dá
receios destes. Mas um tal laissez faire tem tido o catastrófico resultado
Educação republicana para os direitos humanos
103
de os valores democráticos estarem ao Deus-dará da sorte, para mais
caluniados pelas desventuras que a “República real” sempre causa à
República dos sonhos.
É óbvio que a democracia real tem sempre dificuldades: desde logo,
percorre inevitavelmente o caminho mais longo e difícil. Onde o ditador dá
uma ordem, prontamente obedecida por sequazes acríticos e temida por
multidões sufocadas, a democracia tem de empreender um desgastante
trabalho de estudo, avaliação dos problemas, consulta dos interessados,
discussão pública, convocação de peritos, elaboração das propostas, etc.:
procedimentos legislativo ou administrativo, devido processo legal (due
processo of law), que configura – além de outras – uma legitimação pelo
procedimento (Legitimation duerch Verfaheren). O caminho da vontade
do ditador, muitas vezes caprichosa, desde que nasceu no seu coração
até à prática, é curto, e as possibilidades de refrangência escassas, pelo
temor da punição sem freio da parte dos súbditos. E súbditos são já o
ajudante de campo, o lugar-tenente, o vice-rei. O caminho das decisões
democráticas é, pelo contrário, complexo, e sempre sujeito às subtis
deformações dos diversos intervenientes, que não temem normalmente
um Estado em que, se as garantias protegem até criminosos, como não
hão-de acautelar servidores públicos?
E o saudável pluralismo tem o seu preço. Em sociedades sem
comunidade de convicções (cada um pensa como mais julga convir à sua
índole ou utilidade), a Lei parece votada a ser expressão da pura vontade
do mais forte – pelos votos, pelo dinheiro, ou pela convicção, ditada pelo
temor reverencial face a quem manda de facto, pela força, preconceito,
ou sedução.
O Estado tem de defender os cidadãos contra a ignorância e a
colonização de ideias atiçadas por grupos activistas – arautos miúdos
do politicamente correcto, ou grandes máquinas de poder e marketing,
que inventam o que for preciso, mesmo ideologia. A única forma de o
fazer é uma alteração na própria concepção do Estado. É o assumir-se
ele como Estado de Educação para os Direitos Humanos. Impossível a
sobrevivência do Estado democrático sem tal dimensão formativa.
De todas as vozes, a voz da democracia, da liberdade, da autonomia,
parece ser a que mais receia exprimir-se. Liberdade para quem pensa de
forma diferente? Sem dúvida. Mas os amigos da liberdade têm direito e
obrigação de promover Educação de Liberdade.
104
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Levemos a sério a educação. Não bastaria uma única disciplina
escolar, votada a tão decorativa e maltratada como a clássica “Moral”.
Toda a educação, formal e informal, toda a sociedade, deve prosseguir
esse fim.
Quando perderão os democratas os seus complexos e entenderão
que, quando há ditadura, é esta, pela sua própria existência, a ensinar
(dolorosamente e por contraste) o valor da liberdade; mas quando se vive
em democracia, é preciso recordar e formar - explicitamente? Para que
não ocorra como com a saúde, que tantos só estimam quando perdem.
6. EDUCAÇÃO PARA O DIREITO E PARA A JUSTIÇA
Há uma mania pedagogista em expansão de que tudo se resolveria
na escola e na sociedade com melhores classificações (não se diz que
com melhor aprendizagem) na língua materna, na matemática, e agora
também com o ensino da língua franca, o inglês. É na verdade muito
pouco. Precisamos de todas as disciplinas. A nossa responsabilidade
ambiental obriga-nos a saber as ciências da vida e da terra, além das
físico-químicas, a prevenção da doença, as ciências biológicas e médicas,
a nossa localização no espaço impõe a geografia, o conhecimento da
experiência anterior, a história... tudo é imprescindível.
Tomemos uma disciplina ainda menos prezada: a Filosofia.
O papel da Filosofia para um jurista é essencial. Não compreendemos
que hoje seja possível o acesso ao curso de Direito sem um profundo
conhecimento curricular da Filosofia. O resultado é sempre o mesmo:
uma incompreensão profunda das coisas essenciais, o substituir do
conhecimento sapiente, saboreado, da sapida scientia, por um saber
decorado que nem sequer é feito com o coração. Sem Filosofia, que
é do conhecimento formalizado, abstracto mas discursivo ainda, do
conhecimento histórico-filosófico das correntes de pensamento, do treino
dialéctico, da capacidade reflexiva, da perspectivação e ponderação
hermenêutica, etc., etc.?
A Filosofia tem de preparar para o Direito ensinando o amor à
Verdade, o amor ao Bem, e o próprio amor à Justiça.
Falta uma educação para a Justiça. De pequenos ensinam-nos hoje
a avidez, o egoísmo, o prazer hedonístico e a competitividade. Não nos
ensinam a ponderação, a imparcialidade, a capacidade de decidir pelo
Educação republicana para os direitos humanos
105
bem comum. Não falámos já no altruísmo… Há hoje uma persistente e
bastarda ideia de que a justiça é uma espécie de permanente “venha
a nós”. Antigamente, nos Liceus de França, por exemplo, havia difíceis
e argutas dissertações sobre a Justiça e seus temas... Agora, a própria
literatura se rebaixa ao não literário, ao casual, ao banal... Os exemplos
deixam de existir, as crianças, os adolescentes e os jovens (assim como
os adultos, de resto) não têm a quem tomar por modelos. Tomam-nos nas
revistas mundanas, nos tops da música, nos programas de TV cada vez
de pior qualidade... Já nem o comum dos políticos consegue qualquer
popularidade real... E demasiadas vezes se verifica que quem suscita
entusiasmo passa a gerar desilusão depois de eleito: e nem sempre por
sua culpa. O “sistema” enreda, enleia, manieta…
Falta educação para a Justiça porque falta educação em geral e
educação ética, estética, cívica... Os Estados, vacinados em excesso
pelas doutrinações nazis, fascistas, comunistas, acharam por bem demitirse de formar, de educar... Limitam-se a informar, a ocupar os estudantes,
a deixar rédea livre a quem os queira intoxicar de correcção política... mas
com o pretexto da sua neutralidade demitiram-se de educar. O resultado
são gerações perdidas... na droga, no desespero, no sem sentido do
mundo...
O Estado tem de voltar a não ter complexos e educar, sem
ideologismos, sem dogmatismos, mas para aquele núcleo de valores e
adquiridos comuns sobre que há até socialmente (ainda) largo consenso.
E dizemos ainda porque a escalada avalorativa e antivalorativa poderá
subverter as coisas no futuro... Mas não é só o Estado como grande
máquina, como um todo, movendo-se portanto lentamente, com o peso
da sua enorme burocracia. Cada magistrado, cada um que exerce o
magistério, deveria sentir-se investido (e não desautorizado depois) dessa
função de educar, mesmo civicamente, os seus concidadãos. E tem de
acabar a mania de cada “señorito”, como diria Ortega Y Gassett, de achar
que já sabe tudo – recusando e até ofendendo-se quando alguém lhe
diz umas verdades. E esse alguém pode ser apenas quem sabe mais.
Porque saber, independentemente do poder, é um posto. O dito amargo
de Heródoto não pode valer em uma democracia, e menos ainda se
optarmos pelo modelo da democracia dialogante, deliberativa. Heródoto,
como sabemos, queixava-se de se ter saber sobre muito, mas poder sobre
nada. Saber deveria ser poder, mas, pelo menos, é autoridade. Resta
saber como quem sabe, em uma sociedade que promove a ignorância,
106
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
vai fazer valer o seu título. Mas enquanto não se resolver essa questão,
muito difícil será resolver o resto.
Nas escolas começa a fazer-se sentir uma educação para os
Direitos Humanos, e, timidamente embora, reabilitam-se as ideias de
educação cívica. Mas é preciso encarar a questão com frontalidade
e sem complexos. A manutenção da teoria da neutralidade absoluta é
incompatível já com essas reticentes abordagens. E a educação para os
Direitos Humanos, que é vital para a formação integral, e deve contribuir
e colher contributos da para e da Filosofia e do Direito, deve integrar-se
em uma mais geral Educação para a Justiça. Toda a Justiça: quer o suum
cuique, o dar o seu a seu dono, como a justiça social ou política.
A Educação para a Justiça não consome toda a Educação. Há
muito mais coisas a ensinar. Mas é uma vertente a não descurar. E nela
plenamente se harmonizarão os contributos propriamente jurídicos e
os propriamente filosóficos, que farão ainda apelo a outros: literários,
históricos, etc...
Tal como a educação artística, a educação para a Justiça necessita
de diuturno contacto com as obras de arte do sector – as obras da justiça.
Contacto com exemplos de leis, decisões, sentenças justas. Como aquele
operário referido nos Propos de Alain, que ia todos os dias ao Museu do
Louvre para se embriagar de arte e aprender a sua essência.
Infelizmente, se podemos ir facilmente à Avenida Paulista e tomar
banho diário de arte no MASP (Museu de Arte de São Paulo), nem sempre
a Justiça está assim tão disponível para que a possamos mostrar, viva
ainda que emoldurada, aos nossos estudantes.
Mas há que fazer um esforço...
7. VENCER OS OBSTÁCULOS
Falávamos de inimigos da democracia. Também poderíamos falar
de inimigos da república. Mas ao falar-se de “inimigos da República” nem
sequer se está, aqui, a falar de pessoas em concreto. Mas, como é óbvio,
de posições, perspectivas e de realidades que a contrariam. Estamos
persuadido de que, como nós próprio, a grande maioria dos republicanos
(para não ousar dizer a totalidade) poderia subscrever estas palavras que
Albert Camus dirigiu a François Mauriac:
Educação republicana para os direitos humanos
107
Je n’ai aucun goût pour la haine. La seule idée d’avoir des ennemis me
paraît la chose la plus lassante du monde, et il nous a fallu, mes camarades
et moi, le plus grand effort pour supporter d’en avoir.2
A sociedade contemporânea tem ainda não poucos inimigos da
República. Apesar do consensualismo, embora não militante, do ideal
republicano. Mas não há, hoje como ontem, nenhum inimigo invencível,
porque nela se encontram as forças para os vencer ou ir vencendo. A
verdade é que não se deve pensar que haja, como dizem os aliás muito belos
versos da Internacional, uma “luta final”. A luta contra o obscurantismo, o
privilégio, a servidão, o preconceito, são lutas de todos os dias. E quando
esperávamos que estivesse ganha, de novo rola a pedra para o sopé da
montanha da História, a fim de que o Sísifo republicano volte à luta, à
escalada.3
O historiador António Reis enuncia não inimigos, mas perigos para
os valores republicanos. Com a devida vénia, é importante citá-lo mais
detidamente:
A educação para a cidadania é tanto mais urgente quanto sabemos os
perigos que hoje ameaçam os valores republicanos. Sem procurarmos ser
exaustivos, elenquemos alguns deles:
1. A cultura do individualismo egotista e dos valores do sucesso pessoal,
do dinheiro fácil, em clara oposição ao sentimento comunitário da “res
publica” e ao sentido individual da honradez e do mérito pelo trabalho.
2. O corporativismo, o lobiismo e o populismo, em oposição a uma cultura
de interesse público e nacional.
3. O laxismo, em oposição ao corajoso exercício da autoridade democrática.
4. A desvalorização da cultura de serviço público e do papel do Estado, com
as consequências negativas que tal acarreta para o valor da igualdade e
da justiça.
5. A homogeneização cultural da globalização, com a sua ameaça à
identidade cultural nacional.
2
CAMUS, Albert — Artigo em « Combat », 11 de Janeiro de 1945, in Oeuvres, Essais, col. La Plêiade,
Paris, Gallimard, 1965, p. 286.
3
CAMUS, Albert — Le mythe de Sisyphe, in Oeuvres, Essais, col. La Plêiade, Paris, Gallimard, 1965,
p. 89 ss.
108
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
6. A xenofobia e o racismo, em oposição ao sentido universal da
Humanidade.
7. O indiferentismo ou mesmo o desprezo pela política e pelos políticos,
com a concomitante exaltação do económico, em oposição à cidadania
participativa.
8. A pseudodemocracia de opinião ou teledemocracia, com o privilégio
concedido à opinião espontânea e individual, através de sondagens ou
depoimentos, facilmente confundida com a totalidade da opinião, e que
ignora a necessidade das mediações da participação organizada em
instituições, prejudicando o debate, a reflexão pessoal e o exercício do
espírito crítico. (...)4.
A partir desses tópicos, não custará enunciar, em síntese, os
antídotos necessários, alguns dos quais podem mesmo ser hauridos dos
respectivos valores romanos :
a) Honor et Labor. Honradez e do mérito pelo trabalho – de novo a
dignitas, a industria...
b) Patria, Res Publica – cultura de interesse público e nacional,
procurando reforçar a identidade cultural nacional, com uma cultura de
serviço público e de (sentido de) Estado. Sem prejuízo, obviamente, do
salutar internacionalismo…
c) Firmitas - autoridade democrática – não só auctoritas, mas uma
potestas actuante, vinculada à auctoritas. E desta dependente.
d) Um tanto menos romanos, certamente, são os não pouco
importantes e necessários tópicos valorativos do Universalismo, da
Cidadania participativa5 e da Democracia não populista e não mediática.
Todos esses vectores têm de ser enquadrados e promovidos por
uma educação para a cidadania, para os Direitos Humanos, e mesmo
uma muito alargada educação jurídica, não para fazer de cada cidadão
um caricatural aprendiz de jurista, nem para formatar cidadãos obedientes
às leis (ninguém obecede por conhecer apenas – embora algum
conhecimento, ou pseudoconhecimento, possa funcionar como discurso
4
REIS, António — Os Valores Republicanos Ontem e Hoje, in A República Ontem e Hoje, org. de
António Reis, II Curso Livre de História Contemporânea, Lisboa, Colibri, 2002, p. 28.
5
Cf., porém, v.g., SHERWIN-WHITE, A. N. — The Roman Citizenship, 2.ª ed., reimp., Oxford, Oxford
University Press, 2001.
Educação republicana para os direitos humanos
109
legitimador), mas sobretudo para os fazer conscientes dos seus direitos e
deveres e da sua íntima interligação. Um autor como Norberto Bobbio já
se dava conta de que as democracias poderão vir a pagar o preço de não
educarem (suficientemente, convenientemente)...
Como se vê, as ideias republicanas não pactuam com o laxismo
institucional e legal, nem com o desmantelamento neoliberal do Estado,
antes querem um Estado vigoroso (ainda que flexível e naturalmente
democrático, de direito e de cultura), capaz de assumir a plenitude das suas
funções. Todas as suas funções. E um dos instrumentos essenciais dessa
renovação do Estado (não estatalista nem estadualizante, não totalitária
nem colectivista – como é óbvio) é precisamente a explicação da sua
importância, pela Educação. Sem ela, cresce uma mentalidade passiva,
para a qual o Estado, tal como o inferno de Sartre, « são os outros »,
em relação ao qual e aos quais se não reconhece nem afinidade nem
deveres. Essa mentalidade redunda no parasitismo e no assistencialismo,
que clama sempre subsídios e benesses do Estado, sem nada dar em
troca. E são esses parasitismo e assistencialismo que colocam em risco
– caricaturados e agigantados pelo teólogos do mercado, apostados no
desmantelamento do Estado e avessos a todas as políticas sociais – o
Estado social,6 que, com o Estado de cultura e de Educação,7 e, já antes,
o Estado de democrático de Direito, são pilares da República.
Há por vezes atavismos em certas sociedades que se tornam
especialmente prejudiciais à República. Em outros casos, são males mais
recentes, da sociedade de massas e de deseducação, que se lhe opõem.
Mas que soluções propomos, afinal?
Elas já foram sendo esboçadas, ao longo da nossa exposição. E
não sã milagrosas.
Não vemos como sem a assunção clara da democracia, da república
e dos direitos humanos se consigam defendê-los. Não vemos que essa
defesa se faça sem pena e sem luta, desde logo jurídica. Não vemos
que nada se consiga mudar sem mudar as mentalidades. E para que
estas mudem, é preciso que mudemos nós, cada um de nós, para uma
6
Sobre o Estado Social e a Constituição Social, v. por todos, FERREIRA DA CUNHA, Paulo —
Geografia Constitucional. Sistemas Juspolíticos e Globalização, Lisboa, Quid Juris, 2009, p. 55 ss.
7
Desenvolvendo a fulcral importância da educação para a República, cf. Idem — Pedagogia, Poder
e Direito, in Direito Universitário e Educação Contemporânea, coord. de André Trindade, Porto
Alegre, Livraria do Advogado, 2009, p. 85 ss. = Idem — Filosofia Jurídica Prática, pp. 425-507
110
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
atitude de maior militância democrática, antropodikeia e republicana. E
pelo nosso exemplo, mas também pela descomplexada educação formal,
consigamos educar para a cidadania e para os Direitos Humanos. É um
Direito e é, para nós, professores e magistrados um Dever.
REFERÊNCIAS
CAMUS, Albert — Artigo em «Combat», 11 de Janeiro de 1945, in Oeuvres,
Essais, col. La Plêiade, Paris, Gallimard, 1965, p. 286.
CAMUS, Albert. Le mythe de Sisyphe, in Oeuvres, Essais, col. La Plêiade,
Paris, Gallimard, 1965.
FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Geografia Constitucional. Sistemas
Juspolíticos e Globalização, Lisboa, Quid Juris, 2009.
REIS, António. Os Valores Republicanos Ontem e Hoje, in A República
Ontem e Hoje, org. de António Reis, II Curso Livre de História
Contemporânea, Lisboa, Colibri, 2002.
SHERWIN-WHITE, A. N. — The Roman Citizenship, 2.ª ed., reimp.,
Oxford, Oxford University Press, 2001.
Pedagogia, Poder e Direito, in Direito Universitário e Educação
Contemporânea, coord. de André Trindade, Porto Alegre, Livraria do
Advogado, 2009.
EDUCAÇÃO EM DIREITOS
E DEFENSORIA PÚBLICA:
REFLEXÕES A PARTIR DA
LEI COMPLEMENTAR
N.º 132/09
Gustavo Augusto Soares dos Reis
Defensor Público do Estado de São Paulo. Assistente de Direção da
Escola da Defensoria Pública para a área de Educação em Direitos.
Nem todo homem tem direito a conhecer os seus direitos.
Carlos Drummond de Andrade1
1.INTRODUÇÃO
Em 7 de outubro de 2009 foi aprovada a Lei Complementar n.º 132,
que altera consideravelmente o regime jurídico nacional da Defensoria
Pública. As alterações vão desde aspectos ligados à nomenclatura (por
exemplo, os antes defensores públicos da União agora se denominam
defensores públicos federais – art. 5º, II, ”a”) até aqueles atrelados à própria
substância do que é e do que deve ser a Defensoria Pública (por exemplo,
no altiplano dos Estados a Ouvidoria externa passa a ser uma exigência
mínima – art. 105-A;2 a lei explicitou a legitimidade da Defensoria Pública
1
2
O Avesso das Coisas [aforismos], 5ª edição, Record: Rio de Janeiro, 2007, p. 65.
A experiência de a instituição contar com uma Ouvidoria externa foi inaugurada pelo Estado de São
Paulo. Nesse Estado a Defensoria Pública foi criada apenas no ano de 2006 (o que se deu pela
Lei Complementar n.º 988) após intensa mobilização social. Dessa gênese democrática culminou
uma lei moderna que prevê importantes mecanismos de participação social, de que é exemplo a
ouvidoria externa. Agora, a LC 80/94 traz normas gerais voltadas aos Estados que determinam que
as respectivas Defensorias contem com uma Ouvidoria externa (infelizmente, essa exigência não
vinculou a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Distrito Federal e Territórios).
Deve-se enfatizar que, nesse ponto, a LC 132 disse o mínimo, nada obstando, assim, que os
112
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
para propor ação civil pública3, além de estabelecer a necessidade de
que o manejo desse importante instrumento de concretização de direitos
humanos seja submetido a audiências públicas – art. 4º, VII c/c XXII).
Além dessas e de outras substanciais modificações, a nova lei de
regência da Instituição Defensoria Pública deu nova disciplina à educação
em direitos. E o tema de nosso artigo é este: analisar quais foram as
mudanças na nova lei no que tange a educação em direitos.
2. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS4 EM OUTROS PLANOS, OU DOS PORQUÊS DE A DEFENSORIA PÚBLICA TER DE APRENDER A INSPIRAR A SUA IMPORTÂNCIA
Um pouco mais a frente exporemos nosso pensamento que entende
a educação em direitos como uma das perspectivas do direito de acesso à
justiça. Já neste tópico nossas atenções serão voltadas para o seguinte: a
educação em direitos, inclusive na sua versão emancipadora, não surge
em diplomas relacionados à atuação da Defensoria Pública. Na verdade,
a Defensoria Pública, por ser uma instituição nova no Brasil e na América
Latina, talvez seja uma das pioneiras5 a consagrar normativamente a
Estados democratizem ainda mais a sua Ouvidoria.
3
O que era de todo prescindível, ao menos se almejamos levar a sério a expressão “assistência
jurídica integral” (art. 5º, LXXIV, CF88). Sobre o assunto: Eurico Ferraresi (Ação popular, ação civil
pública e mandado de segurança coletivo, Forense, Rio de Janeiro, 2009, sobretudo p. 205-210),
Tiago Fensterseifer (Direitos fundamentais e proteção do ambiente, Livraria do Advogado, Porto
Alegre, 2008, sobretudo p. 108-10), Fredie Didier Jr e Hermes Zaneti Jr. (Curso de direito processual civil, vol. 4, 3ª edição), JusPodivm (Bahia, 2008, sobretudo p. 236-239 ) e José Augusto Garcia
de Sousa (org.) (A Defensoria Pública e os processos coletivos, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008).
4
A educação em direitos (que às vezes se apresenta com o nome educação jurídica popular ou educação em direitos humanos) é uma modalidade de educação popular, que consiste em “um modelo
de intervenção educativa heterogêneo, que se constitui como um movimento pedagógico e social
ao estabelecer um horizonte utópico e formular um imperativo ético: ou se educa a favor dos setores populares e da transformação social, ou se educa contra os setores populares e para perpetuar
sistemas de opressão” (Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe, Coord. Emir
Sader e Ivana Jinkings, Boitempo, Rio de Janeiro, 2006, p. 449, verbete: educação popular).
5
Observe-se que dissemos “consagrar normativamente”, haja vista que a educação em direitos há
muito vem sendo praticada no Brasil e na América Latina. A educação em direitos, a propósito,
nasce da prática, e é por isso que a Defensoria Pública, que agora assume tal compromisso, jamais poderá ousar realizar uma educação em direitos não emancipadora (expressão esta, a nosso
sentir, contraditória). E certamente o movimento feminista da América Latina é dos mais relevantes
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
113
educação em direitos como uma atividade inerente ao ideal de justiça
social.
Há documentos internacionais de meados do século XX que já
propugnavam pela educação em direitos humanos, sobretudo após
as atrocidades da Segunda Guerra6. Mas, para os fins deste trabalho,
faremos referência a documentos mais recentes.
Após a Guerra Fria a educação em direitos humanos tem merecido
atenção da ONU. Assim, em dezembro de 1994 a Assembleia Geral da
ONU proclamou 1995-2005 como a Década das Nações Unidas para a
Educação em Direitos Humanos7.
Trazendo a discussão para o plano nacional, em 10 de dezembro de
2006 foi anunciado o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos,
documento subscrito pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
Ministério da Educação e Ministério da Justiça8. O Plano traz inúmeras
metas que giram em torno da importância da educação em direitos
humanos para o Estado Democrático de Direito e direciona a sua execução
em cinco esferas: educação básica; educação superior; educação não
formal; educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança
e, por fim, educação e mídia.
quando o assunto é educação popular em direitos. Nas obras que tratam de experiências concretas de educação jurídica popular raramente não é feita menção a algum exemplo de curso sobre
a questão de gênero. Sobre essa temática, vale consultar a obra Quando o direito encontra a rua:
o curso de formação de Promotoras Legais Populares, de Fernanda Castro Fernandes (Luminária
Academia, São Paulo, 2009).
6
Eric Hobsbawn, o maior historiador do séc. XX, expõe com profundas palavras aquilo que nunca devemos esquecer. Em passagem em que se refere à catástrofe humana que foi a Segunda Guerra,
diz: “Suas perdas são literalmente incalculáveis, e mesmo estimativas aproximadas se mostram impossíveis, pois a guerra (ao contrário da Primeira Guerra) matou prontamente civis quanto pessoas
de uniforme, e grande parte da pior matança se deu em regiões, ou momentos, em que não havia
ninguém a postos para contar, ou se importar. As mortes diretamente causadas por essa guerra
foram estimadas entre três e quatro vezes o número (estimado) da Primeira Guerra Mundial (...) e,
em outros termos, entre 10% e 20% da população total da URSS, Polônia e Iugoslávia; e entre 4%
e 6% da Alemanha, Itália, Áustria, Hungria, Japão e China (...). Mesmo assim, são palpites (...). De
qualquer modo, que significa exatidão estatística com ordens de grandeza tão astronômicas?” (Era
dos extremos – o breve século XX, Cia. das Letras, São Paulo, 1995, p. 50).
7
Um respeitável livro que trata da educação em direitos humanos (não apenas a educação não formal voltada à população) deve ser consultado: Educação em direitos humanos para o século XXI
(Orgs.: Richard P. Claude e George Andreopoulos, Edusp, São Paulo, 2009).
8
O documento pode ser obtido no site www.planalto.gov.br/sedh.
114
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Embora tanto Defensoria Pública como Ministério Público estejam
elencados no rol de parceiros para a implementação do Plano9,
infelizmente, no ano de 2009, quando se discutia o projeto de lei
complementar10 que culminou na LC 132/09 e em uma época em que já
tanto se falava em máxima efetividade dos direitos humanos, o Conselho
Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público dos Estados e
da União (CNPG) enviou um estudo11 acerca do referido projeto de lei
complementar e que foi entregue aos senadores quando lá se passou a
discutir o projeto recentemente aprovado na Câmara dos Deputados.
Inúmeros pontos do projeto de lei foram desafiados pelo CNPG,
todos eles supostamente em nome da defesa dos direitos humanos,
quando, em verdade, tratava-se de uma postura visando ao monopólio
da defesa dos direitos humanos. Certamente essa postura do Ministério
Público foi infeliz e deve ser superada, pois, quando a Constituição Federal
de 1988 (CF/88) imputou à Defensoria Pública e ao Ministério Público
(além de outros entes) o caráter de funções essenciais à justiça, é porque
essas instituições – que, ao contrário da Advocacia Pública, defendem o
interesse público primário – têm de atuar conjuntamente.
De qualquer forma, em um dos pontos combatidos estava o
inconformismo quanto ao art. 4º, III, que posteriormente passou a viger
na LC 132/09, onde o estudo afirmou, inacreditavelmente, que “(...) a
promoção, a difusão e a conscientização dos direitos humanos não é
atribuição constitucional da Defensoria Pública e, assim, não tem amparo
nos arts. 5º, LXXIV e 134, ambos da CF/88”.12 (!)
9
Por tratar-se de um Plano nacional, é feita referência à Defensoria Pública da União e ao Ministério
Público da União, o que, certamente, não impede (como impõe) parcerias com tais entidades das
esferas estaduais.
10
Trata-se do PLC 137/07.
11
O mencionado estudo, como já dito, foi entregue aos senadores por volta do mês de setembro de
2009 e, curiosamente, nele não consta o timbre da respeitável instituição e nem sequer a assinatura de seu presidente. Isso dá a entender que nem mesmo o CNPG acredita piamente no que lá
estava escrito, o que é bom, pois sugere que, no fundo, Defensoria Pública e Ministério Público
devem trabalhar juntos.
12
O maior problema dessa monopolização da educação em direitos pelo Ministério Público é que,
convenhamos, ele não vem dando cumprimento a isso (e, quando o faz, isso se dá por meio do
voluntarismo de alguns de seus membros e por meio de entidades associativas como o Ministério
Público Democrático – este sim um compromissado pela educação jurídica popular). Assim, se (i)
por um lado há elevado número de pobres no Brasil, e se (ii) o Ministério Público (que se proclama
o educador em direitos humanos) não vem realizando essa tarefa, há uma única conclusão: (iii)
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
115
Tudo isso demonstra que a Defensoria Pública ainda está na fase de
refletir sobre a educação jurídica popular, sem, é claro, deixar de colocá-la
em prática. A educação em direitos não é uma invenção sua e, dada a sua
importância, não pode ser deixada no plano do voluntarismo do defensor
público.
3. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS EM ANÁLISE COMPARATIVA: A LC 80/94 ANTES E DEPOIS DA ALTERAÇÃO PELA LC 132/09
A fim de construir o nosso raciocínio e de talvez chegar a algumas
conclusões, mostra-se imprescindível apontar os principais dispositivos
da LC 80/94 que tratavam e que agora tratam da educação em direitos.
No regime jurídico anterior, o art. 4º consagrava onze atribuições
institucionais da Defensoria Pública.13 Já após a LC 132/09 o rol de
atribuições quase dobrou (os incisos XII e XII foram vetados), passando
a perfazer vinte missões republicanas.14 De qualquer sorte, o caput é
“que se fodam os de sempre”, na expressão de Eduardo Galeano (De pernas pro ar – a escola do
mundo ao avesso, 8ª edição, L&PM, Porto Alegre, 1999, p. 222).
Assim dispunha o antigo art. 4º:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
I - promover, extrajudicialmente, a conciliação entre as partes em conflito de interesses;
II - patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública;
III - patrocinar ação civil;
IV - patrocinar defesa em ação penal;
V - patrocinar defesa em ação civil e reconvir;
VI - atuar como Curador Especial, nos casos previstos em lei;
VII - exercer a defesa da criança e do adolescente;
VIII - atuar junto aos estabelecimentos policiais e penitenciários, visando assegurar à pessoa, sob
quaisquer circunstâncias, o exercício dos direitos e garantias individuais;
IX - assegurar aos seus assistidos, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral, o contraditório e a ampla defesa, com recursos e meios a ela inerentes;
X - atuar junto aos Juizados Especiais de Pequenas Causas;
XI - patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado;
13
E assim dispõe a LC 80/94 pós LC 132/09:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus;
II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as
pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos;
III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento
14
116
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
explícito ao dizer que esse rol não obsta o reconhecimento de outras
atribuições. Essa cláusula aberta é salutar, mas talvez fosse prescindível,
jurídico;
IV – prestar atendimento interdisciplinar, por meio de órgãos ou de servidores de suas Carreiras de
apoio para o exercício de suas atribuições;
V – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor
de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos
e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de
propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses;
VI – representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante
seus órgãos;
VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada
tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda
puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;
VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal;
IX – impetrar habeas corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança
ou qualquer outra ação em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de
execução;
X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus
direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas
as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela;
XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso,
da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar
e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado;
XII – (vetado)
XIII – (vetado)
XIV – acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante
pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado;
XV – patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública;
XVI – exercer a curadoria especial nos casos previstos em lei;
XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e
garantias fundamentais;
XVIII – atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas;
XIX – atuar nos Juizados Especiais;
XX – participar, quando tiver assento, dos conselhos federais, estaduais e municipais afetos às
funções institucionais da Defensoria Pública, respeitadas as atribuições de seus ramos;
XXI – executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando
devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e
destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional
de seus membros e servidores;
XXII – convocar audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções
institucionais.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
117
pois se o art. 1º da lei consagra a Defensoria Pública como expressão
e instrumento do regime democrático, todas as situações não previstas
no art. 4º que restem desafiadas pelo princípio do art. 1º haverão de ser
tuteladas pela Defensoria Pública. A propósito, esse raciocínio de máxima
efetividade dos direitos humanos encontra guarida na própria lei e no alto
do pódio: o art. 3º, que traça as normas-objetivo da Defensoria.
Para as finalidades deste texto, o importante a apontar é que, ao
menos explicitamente, a LC 80/94 não consagrava a ideia da educação
em direitos como expressão do acesso à justiça, diversamente do que
prevê a atual lei no art. 4º, III. Do ponto de vista da literalidade legislativa
– o que para alguns “intérpretes” se afigura uma mudança copernicana15
– a nova normatização é que consagra nacionalmente a educação em
direitos como expressão16 do acesso à justiça, até porque o art. 134
da Constituição Federal já incumbia à Defensoria Pública a tarefa da
orientação jurídica.
Assim, se o art. 1º da nova lei – que, diferentemente do regramento
pretérito, também explicita o dever da orientação jurídica – possui
alguma relevância, essa relevância é a de ter instado o intérprete da lei
a diferençar orientação jurídica de educação em direitos, distinção que
tentaremos trabalhar logo adiante. Sim, porque, para início de conversa,
é no mínimo mais poético falar em difusão e conscientização dos direitos
humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico do que falar em
orientação jurídica.
A despeito das considerações acima expendidas – que aparentam
falta de euforia com as mudanças ocorridas ex lege –, na verdade
a consagração da educação em direitos nos primeiros, principais e
principiais artigos da lei há de ser ovacionada. Isso porque, no mínimo,
guia a Defensoria Pública nacionalmente considerada para um norte de
15
Embora trate da situação inversa, ou seja, da revogação de lei, esse apego exacerbado à lei é mais
ou menos parecido com famosa frase de Kirchmann: “três palavras retificadoras do legislador são
suficientes para converter bibliotecas inteiras em tiras de papel” (apud, Luiz Sérgio Fernandes de
Souza, O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no direito, RT, São Paulo, 1993, p. 67,
nota 14).
16
Como já mencionado, o art. 1º da nova lei consagra a Defensoria Pública como expressão e como
instrumento do regime democrático. A palavra “expressão”, segundo o dicionário Aurélio, possui
como um de seus significados “representação, manifestação”, ou seja, assim como a Defensoria
Pública é uma manifestação da Democracia, a educação em direitos se afigura como uma manifestação do acesso à justiça. Isso será melhor desenvolvido em breve.
118
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
diálogo, de caminhos comuns que devem ser percorridos por todas as
Defensorias do Brasil17.
Realmente, até essa modificação legislativa a lei era omissa quanto
ao dever de educação em direitos. Assim, a educação em direitos – que,
ressalte-se, difere da orientação jurídica – consubstanciava algo acidental
nas realidades das diversas Defensorias, e, consequentemente, ela era
vista pelo defensor público como algo caritativo.
Agora, porém, o olhar caritativo pelo defensor público pode até
ser elogiado em algum plano ético, filosófico ou religioso, mas no contexto da lei ele se entremostra uma afronta a sua missão republicana.
O Defensor Público (as iniciais maiúsculas são propositais) jamais deve
assumir-se como um agente público que promove o assistencialismo.18
Seu ideal deve ser dar voz a quem não costuma ter19 e sua meta deve
ser a transformação social, o que enseja consequências práticas consideráveis20.
17
E talvez isso já tenha começado a render frutos, pois no VIII Congresso Nacional dos Defensores
Públicos realizado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 2009, promovido pela Associação
Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), houve a destinação de uma mesa para discutir a
atuação do defensor público na educação em direitos.
18
O Defensor Público carioca Cléber Francisco Alves, um dos maiores estudiosos brasileiros do
tema acesso à justiça e Defensoria Pública, traz as seguintes palavras, com a qual concordamos:
“O futuro da Defensoria Pública depende, em grande medida, da conscientização dos próprios
membros da carreira, no sentido de que a eles cabe uma responsabilidade decisiva na edificação
permanente da instituição” (Justiça para todos! – assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos,
na França e no Brasil. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 261).
19
Sobre o papel do defensor público, poderia citar aqui belos trechos de grandes pensadores como
José Afonso da Silva, Boaventura de Sousa Santos ou Paulo Galliez. Mas prefiro citar um trecho de
uma entrevista concedida por um grande Defensor Público paulista, Rafael de Morais Português,
que, ao lado de outros combativos Defensores e em um momento de tensão vivido em um despejo
coletivo, espontaneamente soltou o seguinte pensamento: “Não sou teórico, intelectual, nem bem
defino conceitos de esquerda e direita. Sou Tribuno da Plebe, minha missão constitucional é defender o cidadão pobre e garantir a afirmação de seus direitos contra toda a violação injusta, inclusive
aquelas decorrentes de uma ação do Estado” (Justiça para quem precisa, Revista do Brasil, n. 38,
agosto, 2009, p. 20).
Desenvolveremos melhor essa ligação entre educação em direitos e transformação social um pouco
mais a frente, mas podemos dizer – e tais palavras representam opiniões pessoais – que só se pode
interpretar o direito na linha da transformação social se o defensor público for educado a se despir do
dogmatismo jurídico a que foi submetido na faculdade de direito. Assim, vemos como fundamental
a existência de uma escola (sem querer discutir aqui qual o melhor regime jurídico) destinada aos
defensores públicos que zele pelo olhar crítico e multidisciplinar do mundo (nessa linha dispõem os
atuais arts. 26-A e 112-A da LC 80/04). Ademais disso, a educação em direitos não deve se limitar a
20
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
119
Deve-se destacar que a Constituição Federal previu a Defensoria
Pública como instituição una, mas, no plano da organização administrativa,
consagrou em seu art. 24, XIII que a legislação sobre defensoria pública
e assistência jurídica compete à União no que atina às normas gerais,
cabendo aos Estados legislar concorrentemente a partir delas.
Pois bem. No plano nacional nada se previa em tema de educação
em direitos, mas isso não obstava que os Estados normatizassem à luz
de suas realidades e vontades de Defensoria Pública. Assim, e sem
querer cometer injustiças, vale citar que alguns Estados se anteciparam
ao regramento nacional e incumbiram as suas Defensorias na missão da
educação em direitos.
As Defensorias do Rio de Janeiro, Ceará, Sergipe, Rio Grande do
Sul, Mato Grosso do Sul, Alagoas e Espírito Santo não têm dispositivo
similar no que atina à educação em direitos (este artigo está sendo escrito
no final do ano de 2009).
Em outros Estados, porém, a educação em direitos não passou
despercebida. Por exemplo, na Defensoria Pública do Estado do Pará
o inciso XII do art. 6º da Lei Complementar n.º 54/06 estabelece como
função institucional a de manter ações preventivas e educacionais visando
à conscientização dos direitos e deveres da pessoa humana.
Assim também ocorre com a Defensoria Pública da Bahia, onde o
inciso III do art. 7º da Lei Complementar n.º 26/06 estabelece a promoção
da difusão e da conscientização dos direitos humanos, da cidadania e
do ordenamento jurídico (e, ao que tudo indica, foram estas as palavras
que inspiraram o legislador da LC 132/09. Se resolveram plagiar, dessa
vez isso está perdoado, pois, como já dito, essa é uma das poéticas
atribuições institucionais do art. 4º).
A Defensoria Pública do Piauí também determina como função
institucional a de “informar, conscientizar e motivar a população carente,
ter conteúdo de exposição literal da Constituição e das leis para o conhecimento da população, ainda que isso seja feito mediante uma linguagem adequada. Quando a lei for injusta ou mesmo conservadora, cabe ao defensor público refletir junto à população se não seria o caso de revê-la, seja
no plano político ou judicial, ou seja, mobilização social que se vale das regras do jogo democrático.
Educar em direitos significa educar as pessoas para que saibam e tentem resolver racionalmente
seus conflitos, inclusive em situações de violação de direitos humanos, evitando-se a justiça com
as próprias mãos. Para um exemplo do que não é lutar pela justiça social mediante o uso do direito,
vale a pena ver o filme V de Vingança (que exorta uma “solução” para os problemas da democracia
representativa). E, como contraponto seu, vale assistir ao documentário Viva Zapatero!.
120
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
inclusive por intermédio dos diferentes meios de comunicação a respeito de
seus direitos e garantias” (art. 5º, inciso II da Lei Complementar n.º 59/05).
Por fim, não podemos deixar de citar a Defensoria Pública de São
Paulo, onde o art. 5º da Lei Complementar n.º 988/06 foi elogiosamente
pleonástico. Com efeito, o mencionado dispositivo prevê em seu inciso I
caber à instituição prestar aos necessitados orientação permanente sobre
seus direitos e garantias, ao passo que o inciso II diz competir-lhe informar,
conscientizar e motivar a população carente, inclusive por intermédio dos
diferentes meios de comunicação, a respeito de seus direitos e garantias
fundamentais.21
Em síntese: agora – isto é, deixando de lado que sua fundamentação
é constitucional, como veremos em breve – a educação em direitos
consubstancia norma geral, competindo a todas as Defensorias Públicas
colocá-la em prática, embora seus métodos e seus conteúdos sejam
assuntos a serem tratados localmente.
Por fim, e embora essa novidade que é a educação em direitos
exija reflexões sobre vários aspectos e até mesmo sobre o peso que deve
possuir em uma política institucional de atuação, que fique claro que ela é
tão atribuição ordinária quanto o é o dever de propor ação e fazer defesa.
Tudo isso é atribuição ordinária e o é para que a atuação da Defensoria
seja extraordinária, inovadora. O que está em jogo é o acesso à justiça
universal e transformador.
4. DISTINÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO EM DIREITOS E ORIENTAÇÃO JURÍDICA
”Não se presumem, na lei, palavras inúteis”,22 costuma-se ensinar
nos cursos de direito. Conquanto concordemos que a tradição não deve
21
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo possui uma peculiaridade, talvez existente em outras
Defensorias. É que o art. 65 da LC 988/06 prevê que cabe à Coordenadoria de Comunicação auxiliar a Escola da Defensoria Pública na realização da educação em direitos e orientação jurídica, ou
seja, a lei definiu (talvez o mínimo) a quem cabe realizar a educação em direitos. A vantagem desse
modelo é que, sendo órgãos da instituição, recursos públicos devem ser-lhes destinados, o que
possibilita pôr em prática o cumprimento de seu dever-poder (no caso, a educação em direitos). Ou
seja, a educação em direitos passa a ser algo a ser considerado no planejamento orçamentário da
instituição e, pois, dos órgãos.
22
Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 12ª edição, Forense, Rio de Janeiro,
1992, p. 250.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
121
significar o governo dos vivos pelos mortos (Rui Barbosa), a distinção entre
orientação jurídica e educação em direitos partirá dessa premissa. Para
tanto, utilizaremos como esteio de argumentação apenas o regramento
contido na LC 80/94 (pós-LC 132/09), deixando de lado qualquer menção
às normatizações estaduais. Ao final, porém, tentaremos proceder a uma
fundamentação de ordem material.
Analisando a LC80/94, vemos que já em seu início ela se vale de
expressões diferentes para indicar uma nova atribuição institucional da
Defensoria Pública.
No art. 1º faz-se referência como missão da Defensoria a ”orientação
jurídica”. Não trabalharemos aqui eventual relação entre a educação em
direitos e a expressão “promoção dos direitos humanos”, também contida
nesse dispositivo. De qualquer forma, educar as pessoas em seus direitos é
promover os direitos humanos23 e, nesse sentido, já no art. 1º encontraríamos
a distinção formal entre orientação jurídica e educação em direitos.
Mas é no art. 4º que a distinção formal fica mais visível.
Enquanto o inciso I diz caber à Defensoria prestar orientação jurídica,
o inciso III lhe atribui a missão de promover a difusão e a conscientização
dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico. Portanto,
negar a existência de uma diferença entre orientação jurídica e educação
em direitos – qualquer que seja ela – é ter de enfrentar o ônus de assumir
que a lei contém palavras inúteis24.
23
Esse é o ensinamento de Flávia Schilling quando trata do assunto educação em direitos humanos:
“A primeira constatação a ser feita é a de que a educação é um direito humano. É um direito humano em si e, como tal, fundamental para a realização de uma outra série de direitos” (O direito à educação: um longo caminho, In Educação e metodologia para os direitos humanos, Coord. Eduardo
Bittar, Quartier Latin, São Paulo, 2008, p. 273). Note-se que podemos chegar a essa conclusão até
mesmo com uma simples leitura da CF88, que em seu art. 205 estabelece que a educação deve
possuir como uma de suas metas a de preparar para o exercício da cidadania.
24
E já antecipamos que essa postura teria a solidariedade de um dos maiores juristas brasileiros da
atualidade: Celso Antônio Bandeira de Mello. No ponto, o insigne doutrinador critica o parágrafo 8º
do art. 37 da CF que, dentre outras coisas, prevê a possibilidade de realização de contratos entre
órgãos da Administração Pública. Para ele, essa prática contratual seria fática e juridicamente impossível. Os argumentos vão desde o fato de os órgãos não possuírem autonomia (e um contrato
não poderia ampliá-la) até a inexequibilidade dos referidos contratos, pois os órgãos são apenas
repartições internas de competência do Estado, ou seja, são o próprio Estado. E sendo o próprio
Estado, o contrato entre os órgãos seria um contrato consigo mesmo, configurando, assim, uma
ilogicidade jurídica. Ante tais reflexões sobre o art. 37, parágrafo 8º da CF, o jurista lança a sua
opinião sobre a existência de palavras inúteis no direito positivo com os seguintes dizeres: “Assim,
tal dispositivo constitucional – no que concerne a contratos entre órgãos – haverá de ser conside-
122
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Desse modo, se orientação jurídica e educação em direitos são
fenômenos diferentes – e cabe a todas as Defensorias Públicas admitir
essa norma geral – devemos agora explorar qual seria essa diferença. De
antemão, que fique claro que as conclusões a seguir não têm a pretensão
de impor qualquer verdade, mas apenas estimular um debate.
A orientação jurídica é um discurso que enfatiza a dogmática, em
que o defensor atua como agente de aconselhamento jurídico e como
técnico para a solução de controvérsia. Aqui, assim, cabe ao defensor
agir como um profissional que, diante de uma situação-problema (que não
necessariamente seja um litígio), esclarece para a pessoa (o assistido) a
melhor solução jurídica para o seu caso.
Como leciona o Defensor Público carioca Rogério Nunes de
Oliveira, quando a Constituição de 1988 alterou a expressão “assistência
judiciária” pela expressão “assistência jurídica”, talvez o primeiro intento
do constituinte “foi o de tornar os mais amplos possíveis os serviços de
assistência jurídica gratuita, que vão desde a orientação jurídica – inclusive
aconselhamento voltado à consecução de acordos entre potenciais
litigantes para prevenir ou excluir uma demanda – até a defesa em juízo
do cidadão hipossuficiente...”.25
Observe-se que o inciso II do art. 4º - como decorrência direta do ideal
de assistência jurídica integral – exorta a Defensoria Pública a assumir o
seu papel de indutora de solução extrajudicial dos conflitos. Ora, para que
a composição pacífica, que pressupõe o diálogo, seja eficaz, o mínimo
que se requer é que as partes tenham algum conhecimento acerca do
papel socializador do direito. Se o conhecimento dos direitos não é uma
condição absoluta para a solução pacífica do litígio, ao menos ele é um
detalhe que, como todo detalhe, é pequeno mas relevante.
A orientação jurídica, assim, é casuística – pois que abordada em um
contexto de situação-problema – e possui tripla função: prevenir conflitos
ou solucioná-los pacificamente, ou encorajar o litígio mediante a jurisdição.
Nos três casos isso só é possível devido ao esclarecimento (orientação
jurídica), pois, como já ensinavam Mauro Cappelletti e Bryant Garth,
rado como não escrito e tido como um momento de supina infelicidade em nossa história jurídica,
pela vergonha que atrai sobre nossa cultura, pois não há acrobacia exegética que permita salvá-lo
e lhe atribuir um sentido compatível com o que está na própria essência do Direito e das relações
jurídicas”. Curso de Direito Administrativo, 20ª edição, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 216-7.
25
Assistência jurídica gratuita. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 74.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
123
num primeiro nível está a questão de reconhecer a existência de um direito
juridicamente exigível. Essa barreira fundamental é especialmente séria para
os despossuídos, mas não afeta apenas os pobres (...). Mesmo consumidores
bem informados, por exemplo, só raramente se dão conta de que sua
assinatura num contrato não significa que precisem, obrigatoriamente, sujeitarse a seus termos, em quaisquer circunstâncias. Falta-lhes o conhecimento
jurídico básico não apenas para fazer objeção a esses contratos, mas até
mesmo para perceber que sejam passíveis de objeção.26
Há ainda outro aspecto a considerar sobre a orientação jurídica
e que a difere da educação em direitos. É que na orientação jurídica o
defensor público é um ator passivo, no sentido de que é a pessoa atendida
pela Defensoria que traz o problema a ser esclarecido. E nem poderia ser
diferente, pois, segundo pensamos, o conteúdo da orientação jurídica é
essencialmente casuístico, isto é, carrega consigo um caso concreto que
já é ou potencializa um litígio.
Aliás, esse conteúdo da orientação jurídica é que nos faz entender
o quão relevante é a educação em direitos para o próprio acesso à justiça
na perspectiva da orientação jurídica.
Com efeito – e permitimo-nos antecipar algo que será dito em breve
–, o direito de acesso à justiça necessita ser estudado com o auxílio do
direito comparado, como o faz Cléber Francisco Alves de forma distinta,
mas, no Brasil, seu conteúdo deve ser refletido e projetado a partir da
realidade brasileira.
No Brasil o acesso à informação de qualidade e útil (como as noções
sobre os direitos) é extremamente debilitado – razões de ordem neoliberal
explicam melhor o porquê disso27 – e isso gera uma consequência: por
26
Acesso à justiça. Trad.: Ellen Gracie Northfleet, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1988, p.
22-23.
27
Uma das explicações é que vivemos em uma sociedade de consumo, e “a cultura da sociedade de
consumo envolve sobretudo o esquecimento, não o aprendizado” (Zygmunt Bauman, Globalização
– as consequências humanas, Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 1999, p. 90). Mais enfático é o
escritor estadunidense Benjamin Barber: “para o capitalismo de consumo prevalecer, é preciso tornar as crianças consumidores e tornar os consumidores crianças” (Consumido – como o mercado
corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos, Record, Rio de Janeiro, 2009, p. 32). Para
ilustrar isso, vale assistir ao filme de comédia Idiocracy, que faz uma crítica à sociedade imaginária
do ano de 2505, a qual se encontraria excessivamente burra devido à ideologia do consumo e à
manipulação pelos meios de comunicação de massa. Quanto à fome pelo lucro desmesurado, em
124
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
vezes as pessoas só podem usufruir de seus direitos se souberem que os
possuem, de tal sorte que a orientação jurídica por vezes só será exigida da
Defensoria Pública se a pessoa tiver um mínimo de noção a respeito disso.
É por isso que um dos mais respeitáveis historiadores brasileiros, José
Murilo de Carvalho, sentencia que “o acesso à justiça é limitado a pequena
parcela da população. A maioria ou desconhece seus direitos, ou, se os
conhece, não tem condições de os fazer valer” – e, no que toca a esta última
consideração, logo adiante o intelectual critica o insuficiente número de
defensores públicos mesmo após o mandamento da Constituição de 1988.28
Por fim, e sem querer chegar a conclusões, dado que esse assunto
merece um estudo mais aprofundado, mas talvez haja outra distinção a
ser notada entre a orientação jurídica e a educação em direitos. É que
enquanto aquela se atrelaria mais aos assuntos privados, esta teria como
meta o espaço público.29 Em outras palavras, a primeira contribui para
que as pessoas saibam cuidar de seu jardim, ao passo que a segunda
ensina-lhes a importância de cuidar da praça, para usar o título de uma
obra de Nelson Saldanha.30
Apenas para exemplificar, é comum as Defensorias Públicas do
Brasil periodicamente se dirigirem a locais onde não existem instalações
da instituição e, mediante a utilização de espaços de alta visibilidade
(como barracas em ruas movimentadas), um grupo de defensores tira
dúvidas jurídicas pessoais da população.
Quando se fala em educação em direitos, porém, os principais livros
vários momentos mostra-se alguém idiotizado que manifesta a célebre frase: “eu gosto de dinheiro”. O contexto em que a frase é dita leva o telespectador mais atento a enxergar verdadeira crítica
à prática do lucro excessivo.
28
Cidadania no Brasil – o longo caminho. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006, p. 214-215.
Diga-se de passagem, o livro certamente é uma leitura obrigatória para o defensor público.
29
Nesse ponto, o culto filósofo Renato Janine Ribeiro sugere a reflexão sobre alguns problemas
dos direitos humanos para a democracia: “Nas raras democracias e repúblicas da Antigüidade,
o estatuto de cidadão estava ligado à disposição de colocar o bem comum à frente do privado. A
modernidade, quando revive a democracia, constata que, se for essa a exigência para ter cidadãos,
não os terá, porque pouquíssimos – basicamente, só os militantes de partidos – estarão dispostos
a tanto” (Os direitos humanos poderão ameaçar a democracia?, In: Educação em direitos humanos – discursos críticos contemporâneos, Org: Theophilos Rifiotis e Tiago Hyra Rodrigues, UFSC,
Florianópolis, 2008, p. 22, nota 1).
30
O jardim e a praça – ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Sérgio
Fabris editor, Porto Alegre, 1986.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
125
sobre o assunto demonstram que não é esse discurso que está em jogo.
O que está em jogo é a educação para a ação, que visa a contribuir para
que as pessoas se sintam cidadãs e, com isso, assumam-se como um ser
social, responsável pela sociedade.
Note-se: para isso o conteúdo da educação em direitos é diverso,
pois nem mesmo visa apenas a apresentar as leis para as pessoas,31 e
sim por vezes ajudá-las a entender as razões do surgimento da lei32 e até
mesmo colocá-la em questão.33 Como ensinava Paulo Freire, “Pobre do
31
O que, por si só, já seria transformador, dado que “as pessoas, que têm consciência dos seus direitos, ao verem colocadas em causa as políticas sociais ou de desenvolvimento do Estado, recorrem
aos tribunais para as protegerem ou exigirem a sua efectiva execução” (Boaventura de Sousa
Santos, Para uma revolução democrática da justiça, Cortez, São Paulo, 2007, p. 19).
32
Por exemplo, desde a sua edição a Lei n.º 11340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, tem
enfrentado muita resistência pelos próprios profissionais do direito na sua aplicação, às vezes sob o
argumento da inconstitucionalidade por ofensa à isonomia e às vezes por simples descumprimento
(como quando se aplicam institutos benéficos ao agressor contra a literalidade da lei). Tanto num
como noutro caso a não aplicação da lei decorre do desconhecimento que “de cada 100 mulheres
assassinadas no Brasil, 70 o são em relações domésticas, sendo 66% dos autores parceiros delas.
Ademais, estima-se que, em 1990, nenhum dos dois mil casos do RJ terminou com a punição dos
acusados”, segundo constatação da Human Rights Watch (In Flávia Piovesan, Temas de Direitos
Humanos, 3ª edição, Saraiva, 2009, p. 228).
33
Assim, por vezes o defensor público – que não é dono da verdade, diga-se de passagem – pode
e deve refletir com a população carente se estar em liberdade é somente não estar em um presídio (sobre essa reflexão acerca do direito à liberdade, vale a leitura de ao menos dois livros: O
que é liberdade – capitalismo X socialismo, de Caio Prado Jr. [15ª edição, Brasiliense, São Paulo,
1994] e O horror econômico, de Viviane Forrester [Unesp, tradução de Álvaro Lorencini, São Paulo,
1997], além do filme italiano Onde está a Liberdade?). Ou se perguntar por que milhares de seres
humanos morrem de fome todos os dias se as forças produtivas agrícolas modernas são capazes
de alimentar o dobro da população do planeta (sobre isso, vide Carlos Walter Porto-Gonçalves,
A globalização da natureza e a natureza da globalização, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
2006, sobretudo a Parte IV). Contudo, a mais instigante indagação a respeito disso tenha sido feita
por Josué de Castro: “Será a calamidade da fome um fenômeno natural, inerente à própria vida,
uma contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio
homem?” (Geopolítica da fome, 5ª edição, 1º vol., Brasiliense, São Paulo, 1959, p. 45). Ou se a população urbana não possui moradia devido à falta de locais habitáveis nos centros urbanos (sobre
isso, Ermínia Maricato, As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias, In A cidade do pensamento
único, 4ª edição, Vozes, Rio de Janeiro, 2007). Ou se a população carente não lê livros porque não
quer ou se não o faz devido à falta de políticas públicas (sobre um exitoso exemplo de Ribeirão
Preto, São Paulo: Galeno Amorim, Livros para todos, In Práticas de cidadania, Org. Jaime Pinski,
Contexto, São Paulo, 2004). Por fim, posto que a lista seria imensa, se a atuação do defensor público na área criminal corresponde à preocupação com os direitos humanos ou se, como nos dizem
os sensacionalistas da grande mídia, isso seria “direito de bandidos” (sobre isso, a sugestão é de
filmes, que, se não são profundos como os livros, certamente têm mais poder de sensibilização
do que eles: Assassinato em primeiro grau; Ônibus 174; O Expresso da Meia-Noite; Injustiçados;
126
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
povo que aceita, passivamente, sem o mais mínimo sinal de inquietação,
a notícia segundo a qual, em defesa de seus interesses, ‘fica decretado
que, nas terças-feiras, se começa a dizer boa-noite a partir das duas
horas da tarde’”.34
Para finalizar esse raciocínio, é imperioso transcrever o seguinte
pensamento do saudoso Geraldo Ataliba:
Se é verdade que os princípios fundamentais têm da comunidade nacional
razoável adesão – embora não explícita, nem consciente –, como é o
caso da república, federação, autonomia municipal, tripartição do poder
e legalidade, as regras, entretanto, que lhes asseguram a eficácia são
ignoradas, desprezadas, mal-cumpridas. E isto com a aquiescência de uns,
a indiferença de outros, a complacência de muitos; com a acomodação dos
órgãos de promoção do Direito e a preocupação de poucos. Este é um
problema cultural. (...) Mas a responsabilidade maior cabe aos homens do
Direito (...). A nós incumbe a responsabilidade de ensinar as virtudes do
Direito e as vantagens de sua observância.
Citando S. Dória:
“o serviço mais prestante que pode um cidadão prestar (...) à sua Pátria é
contribuir para que tenham seus concidadãos idéias claras das instituições
políticas, espalhadas pelo mundo, e sob algumas das quais vivem, ou terão
de viver”. E esta ensinança é tarefa que não se esgota num gesto, nem
numa pregação. É um múnus constante, diuturno, incessante, que será
tanto mais eficaz quanto mais traduzido em comportamentos exemplares.35.
Tendo sido feitas as definições acerca do que seria a orientação
jurídica, urge agora debruçarmo-nos sobre o conteúdo e a abrangência
da educação em direitos. E, ao longo desse discurso, demonstraremos
que a educação em direitos possui uma fundamentação constitucional e,
desse ponto de vista, a normatização atual da LC 80/94 não se mostra tão
O Processo; O Quarto Poder; 12 Homens e uma Sentença; A Outra História Americana; Inspeção
Geral; Vive-se uma só vez; Justiça; Zona do Crime, etc).
34
A importância do ato de ler, 34ª edição, Cortez, São Paulo, 1997, p. 40.
35
República e constituição, 2ª edição, Malheiros, São Paulo, 2007, p. 17. A atualização da obra coube
a Rosolea Miranda Folgosi.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
127
revolucionária – o que não nega a sua importância simbólica e até mesmo
jurídica.
5. EDUCAÇÃO EM DIREITOS COMO DECORRÊNCIA DO ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS
É inquestionável que a Constituição Federal de 1988 trouxe inúmeros
avanços no Brasil, e já em seu nascimento se lhe atribuía a designação de
“Constituição-Cidadã”, não apenas devido à intensa participação popular
em sua gênese,36 mas também por causa do enaltecimento dos direitos
fundamentais ao longo de todo o texto.37
Diante desse contexto, Luís Roberto Barroso diz que
sob a Constituição de 1988, aumentou de maneira significativa a demanda
por justiça na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, pela redescoberta
da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios
direitos. Em seguida, pela circunstância de haver o texto constitucional
criado novos direitos, introduzido novas ações e ampliado a legitimação
ativa para a tutela de interesses...38
Linhas atrás dissemos que as inovações trazidas pela LC 132/09
hão de ser louvadas, embora não mereçam ser concebidas como algo
novo na missão da Defensoria Pública quanto ao direito de acesso à
justiça. Essas proposições que fazemos têm a ousadia de sugerir uma
36
Comparando a constituinte de 1987 com as constituintes pretéritas da história constitucional do
Brasil, Paulo Bonavides e Paes de Andrade dizem que “(...) foi a de 1987 a que obteve maior
participação popular. Pode-se afirmar que essa participação não resultou em adoção de propostas
populares, mas o fato é que as sugestões e emendas com milhões de assinaturas chegaram ao
Congresso (...), permitindo aos indicados pelos subscritores das mesmas, o direito de palavra no
plenário”. História constitucional do Brasil, 3ª edição, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1991, p. 475.
37
Após elogiar o fato de a CF88 ter dado aos direitos fundamentais o tratamento merecido, Ingo
Wolfgang Sarlet destaca que “três características consensualmente atribuídas à Constituição de
1988 podem ser consideradas (ao menos em parte) como extensiva ao título dos direitos fundamentais, nomeadamente seu caráter analítico, seu pluralismo e seu forte cunho programático e
dirigente”. A eficácia dos direito fundamentais, 8º edição, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2007,
p. 77.
38
Curso de direito constitucional contemporâneo,Saraiva, São Paulo, 2009, p. 383.
128
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
fundamentação constitucional da educação em direitos ao menos quando
se trata de Defensoria Pública.
Como é sabido, fundamentar constitucionalmente alguma coisa é
muito mais do que reconhecer o seu estar no mundo do jurídico; é conferirlhe supremacia. E atribuir o status de supremacia constitucional à educação
em direitos pela Defensoria Pública é reconhecer (i) que, no fundo, a LC
80/94 não precisava explicitá-la como uma atribuição constitucional sua,
além de (ii) isso impedir que a referida lei seja pontualmente revogada
visando retirar-lhe tal mister, pois que no mínimo isso afrontaria a cláusula
da vedação ao retrocesso.
Evidentemente, para concluirmos que eventual simples revogação da
lei incorreria em retrocesso social, temos de partir da seguinte premissa:
o direito de acesso à justiça até pode figurar como um direito de primeira
dimensão, mas a inovação da CF88, qual seja, a tutela da população carente
por meio de um órgão público (Defensoria Pública), se nos afigura um direito
de cunho prestacional, e, pois, sujeito à cláusula da vedação ao retrocesso.
Segundo Canotilho, a cláusula da vedação ao retrocesso social,
também denominada por ele de contrarrevolução social ou vedação à
evolução reacionária, significa que “(...) os direitos sociais e econômicos
(ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência39, direito à educação),
uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir,
simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo”, o que
“(...) limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (...)”.40E a prova de que
39
E possivelmente o autor inclui na expressão “direito à assistência” o direito à assistência jurídica.
Isso porque quando trata do direito de acesso à justiça (que denomina acesso aos tribunais) o
jurista lança as seguintes considerações: “Desta imbricação entre o direito de acesso aos tribunais e direitos fundamentais resultam dimensões inelimináveis do núcleo essencial da garantia
institucional da via judiciária. A garantia institucional conexiona-se com o dever de uma garantia
jurisdicional a cargo do Estado. Este dever resulta não apenas do texto da constituição, mas também de um ´princípio geral (‘de direito’, das ‘nações civilizadas’) que impõe um dever de protecção
através dos tribunais como um corolário lógico: (1) do monopólio de coacção física legítima por
parte do Estado; (2) do dever de manutenção da paz jurídica num determinado território; (3) da
proibição de autodefesa a não ser em circunstâncias excepcionais definidas na Constituição e na
lei (...).” (Direito constitucional e teoria da constituição, 7ª edição, Almedina, Coimbra, Portugal,
2003, p. 497). No mesmo sentido é o pensamento de Ana Paula de Barcellos, que encara o direito
de acesso à justiça como um mínimo existencial capaz de otimizar a concretização de direito: A
eficácia jurídica dos princípios constitucionais – o princípio da dignidade da pessoa humana, 2ª
edição, Renovar, Rio de Janeiro, 2008, p. 325-33.
40
Op. Cit., p. 339.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
129
a educação em direitos encontra arrimo constitucional está exposta já no
art. 3º da Carta, que traça objetivos da República41.
Apenas para expor a argumentação, basta mencionar que o inciso
III do mencionado artigo determina a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de
discriminação.
À vista disso, como imaginar a realização da meta do art. 3º, III, sem
que o Estado difunda junto à sociedade as noções básicas de sociabilidade
por meio do direito?42
Por se nos afigurar clara essa imbricação, sugerimos ao leitor o
belíssimo e inspirador filme Escritores da Liberdade, que se baseia em
fatos reais ocorridos nos EUA. Em suma, uma certa localidade daquele
país sofria com altíssimo índice de tensão étnico-racial, até mesmo em uma
escola. Até que uma professora abnegada (Erin Gruwell, representada pela
premiada Hilary Swank) faz seus alunos compreenderem o significado da
tolerância e da recusa à justiça com as próprias mãos.
E já que é notório que a população, sobretudo a pobre, carece de
saber seus direitos, urge sintetizarmos nossa ideia no seguinte raciocínio:
educação em direitos + objetivos da República + Defensoria Pública +
Assistência jurídica integral = acesso à justiça.
Uma coisa é certa: se por um lado a CF88, diferentemente da LC
80/94, não definiu quem, embora sem qualquer exclusividade, deveria
incumbir-se do mister da educação em direitos, por outro lado, a exigência,
por parte do poder público, da educação em direitos decorre não apenas
do art. 3º como do art. 205 da Constituição.
41
Cabe a nós, profissionais do direito, procurarmos manifestações de aplicação do art. 3º da CF88,
pois, como adverte José Afonso da Silva, “é a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do Estado brasileiro” (Curso de direito constitucional positivo, 27ª edição, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 105). E assim já ensinava Konrad Hesse: “(...) a Constituição
converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na
consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade de poder
(Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)” (A força normativa da constituição, trad.: Gilmar Ferreira Mendes, Sérgio Fabris editor, Porto Alegre, 1991, p. 19).
42
“O direito à educação para todos – mulheres e homens – tem sido crescentemente reconhecido
pela comunidade internacional como uma questão estratégica para a consecução da igualdade,
do desenvolvimento e da paz” (Silvia Pimentel, Educação, Igualdade e Cidadania – a contribuição
da Convenção Cedaw/Onu, In: Igualdade, diferença e direitos humanos, Daniel Sarmento, Daniel
Ikawa e Flávia Piovesan (orgs.), Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008, p. 311).
130
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
No que toca ao art. 205, norma-matriz do direito educacional
constitucional, ele consigna que a educação, que é direito de todos e
dever do Estado e da família, terá como uma de suas metas o preparo
das pessoas para a cidadania.
Como se vê, enquanto o detentor do direito subjetivo constitucional
é universal (todos), o correlato sujeito a quem cabe o dever é definido:
essa missão cabe não apenas ao Estado, mas à família.
Quanto ao Estado, é de uma obviedade agressiva que a educação para
a cidadania, que exige a educação em direitos, passa pela educação formal,
isto é, os bancos escolares. Mas a educação certamente não se esgota no
plano formal e, nessa medida, a educação não formal também se impõe.43
Pois bem. Conquanto não se lhes afigure um monopólio, por
que não exigir que as instituições do sistema de justiça, que detêm o
monopólio de um dos poderes do Estado (o Judiciário), assumam a sua
responsabilidade de educar as pessoas nas noções jurídicas básicas,
como pregava Geraldo Ataliba, já citado anteriormente?
A jurista Ana Paula de Barcellos vê o esclarecimento da população
quanto aos direitos como conditio sine qua non para o efetivo acesso à
justiça, e exorta as instituições jurídicas a terem essa compreensão. Vale
transcrever um trecho:
O segundo obstáculo fático que se identifica no caminho do acesso
à justiça é a questão da informação (...). A médio e longo prazo, a
generalização do ensino fundamental por toda a população brasileira e
a inclusão em seu conteúdo curricular de noções sobre o Judiciário e
seu papel, o acesso à justiça e os mecanismos postos à disposição do
cidadão (...). Enquanto isso, cabe a toda a sociedade e às instituições
diretamente envolvidas – como o Ministério Público, a Defensoria
Pública, o Poder Judiciário, as Faculdades de Direito – promoverem
a informação acerca de suas atividades em especial, e da estrutura
do acesso à justiça em geral, em um esforço de esclarecimento da
população, especialmente a de mais baixa renda e escolaridade (...).
43
Aliás, no que toca à educação para a cidadania, muitos estudiosos-ativistas veem inúmeras vantagens da educação não formal sobre a formal. Nesse sentido, ver Vera Candau (Educação em
direitos humanos: questões pedagógicas, In: Educação e metodologia para os direitos humanos,
Coord. Eduardo Bittar, Quartier Latin, São Paulo, 2008, p. 291), Garth Meintjes (Educação em direitos humanos para o pleno exercício para a cidadania, In: Educação em direitos humanos para o
século XXI, Op. Cit., p. 135, onde o autor elenca cinco vantagens).
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
131
Neste ponto, campanhas de divulgação implementadas voluntariamente
pelas instituições referidas serão muito mais eficientes na construção
desse aspecto da dignidade humana (...).44
Note-se, no entanto, que a respeitável jurista atrela essa iniciativa por
parte dos membros das instituições jurídicas como algo atinente ao mundo
do voluntarismo, da caridade. O único problema desse entendimento é
que caridade é uma noção antitética à de direito (subjetivo),45 como já
anotara Norberto Bobbio.46
No que tange à Defensoria Pública, porém, vemos que a educação
em direitos, tal como a orientação jurídica, já encontrou a resposta
na CF88, que alterou a antiga expressão assistência judiciária pela
expressão assistência jurídica integral e gratuita. Assim, em face dessa
nova instituição não se há de excogitar de voluntarismos ou caridades, e
sim de dever republicano. Isso deve estar no espírito de todo o defensor
público.
Por fim, a educação para a cidadania – que, reitere-se, pressupõe
a educação em direitos – também cabe à família. E se cabe à família,
urge fazermos a seguinte indagação: se (i) a educação formal no Brasil
não garante o ensinamento das noções básicas acerca do Direito (e
de sua função socializadora); se (ii), inconstitucionalmente, raríssimas
44
Barcellos, 2008, p. 333.
45
E esse é o motivo de o saudoso, ou melhor, saudosíssimo, pensador-humanista Milton Santos enxergar no Estado, e não no Terceiro Setor, uma condição para uma outra globalização, a globalização da cidadania. Sobre isso, ver Por uma outra globalização, 13ª edição, Record, Rio de Janeiro,
2006, p. 67, bem como exortamos que o leitor deve assistir ao documentário Encontro com Milton
Santos, dirigido pelo cineasta Silvio Tendler. Assim também Paulo Freire, tratando especificamente
da educação fulcrada na pedagogia do oprimido: “As massas (...) descobrem que a educação
lhes abre uma perspectiva (...). Começam a exigir e a criar problemas para as elites. Estas agem
torpemente, esmagando as massas e acusando-as de comunismo. As massas querem participar
mais na sociedade. As elites acham que isto é um absurdo e criam instituições de assistência social para domesticá-las. Não prestam serviços, atuam paternalisticamente, o que é uma forma de
colonialismo. Procura-se tratá-las como crianças para que continuem sendo crianças” (Educação e
mudança, 30ª edição, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2007, p. 37).
46
“Um ordenamento normativo em que não houvesse nunca a necessidade de recorrer à sanção e
fosse sempre seguido espontaneamente, seria tão diferente dos ordenamentos históricos que costumamos chamar de jurídicos que ninguém ousaria ver ali realizada a idéia de direito: sinal evidente
que a adesão espontânea acompanha a formação e a perduração de um ordenamento jurídico,
mas não o caracteriza” (Teoria da norma jurídica, 2ª edição, Edipro, São Paulo, 2003, p. 164).
132
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
são as vezes em que os meios de comunicação dão cumprimento ao
disposto no art. 221 da CF/88;47 se (iii), para terem acesso à informação
sobre seus direitos, as pessoas, para não ingressarem na faculdade
de direito, têm de ter acesso à internet ou aos livros (algo que não
corresponde à realidade da imensa população pobre), pergunta-se:
como exigir, de forma legítima, que a família se incumba de educar
para a cidadania?
Portanto, o art. 205 também casa com o dever estatal de promover
a educação em direitos. E se a família está imbuída no dever de educar
para a cidadania, cabe ao Estado (por exemplo, por meio da Defensoria
Pública) educar tais educadores. Felizmente a LC 132/09 captou essa
mensagem constitucional, e é isso que gradativamente vem legitimando
a Defensoria Pública perante a sociedade. Assim, cabe aos defensores
públicos se inspirarem nesse abençoado fardo que lhe impôs a CF88.
Não compreender isso significará para a Instituição o início do fim.
6. PARA QUÊ A EDUCAÇÃO EM DIREITOS?
A indagação “para quê a educação em direitos?” consegue ser ao
mesmo tempo ofensiva e necessária.
Ofensiva porque qualquer resposta é suficiente com a simples
indagação ”por que não se educar para os direitos humanos?”. Necessária
porque “a história nada ensina, apenas castiga quem não aprende suas
lições”.48 Assim, basta assistir ao brilhante documentário brasileiro
Utopia e Barbárie49 para concluir que a história exige a linguagem dos
direitos humanos, ou ainda porque a televisão (a grande mídia) continua
47
Feliz e profundo é o pensamento de Luís Fernando Veríssimo: “Vivemos num tempo maluco em
que a informação é tão rápida que exige explicação instantânea e tão superficial que qualquer explicação serve” (apud Jornalismo em tempo real, Sylvia Moretzsohn, Revan, Rio de Janeiro, 2002,
p. 119). Pierre Bourdieu chega a constatar que a televisão tem o poder de, “paradoxalmente, ocultar
mostrando” (Sobre e televisão, Zahar editor, Rio de Janeiro, 1997, p. 24). Três filmes ilustram muito
bem esse poder que detêm os meios de comunicação: 1984 (da obra de George Orwell), Olhar
estrangeiro sobre o Brasil e o famoso Cidadão Kane.
48
Frase de Vladimir Smelev e Nicolai Popov (apud O capitalismo do século XXI, Robert Heilbroner,
Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 1994, p. 9).
49
O documentário foi lançado no final do ano de 2009 e é dirigido pelo cineasta-sonhador Silvio
Tendler.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
133
mascarando inúmeras violações de direitos humanos e isso às vezes nos
faz enxergar as coisas como algo normal.50
Podemos nos indagar quais são os motivos de educar a população
carente para os direitos humanos. A resposta é simples.
Primeiro, porque os direitos e a justiça social surgem de baixo pra
cima, e não de cima pra baixo.51 Segundo, porque, como decorrência
do primeiro – e esse é um diferencial da Defensoria, que diariamente
convive com a pobreza e, por isso, gradativamente aprende a entender as
principais necessidades da população, que é algo relevante para a própria
interpretação do direito –, é no espírito de solidariedade e de vontade de
mudança vistos na população carente que entendemos a importância de
que ela possua o conhecimento mínimo de seus direitos.52
Assim sendo, a Defensoria Pública – que, segundo pensamos, só
poderá crescer e realizar um efetivo e diferençado acesso à justiça se
mantiver o espírito de participação social – possui o dever de contribuir para
que a população saiba de seus direitos e, mais que isso, para que saiba
lutar pelos direitos, pois direito é conquista, e não um dado. A Defensoria
Pública deve contribuir para que a população aprenda a se defender com
ela, e não apenas que seja defendida por ela (que consubstancia uma
50
“Quando o escravo era acorrentado com grilhões de ferro era fácil perceber a escravidão. Quando
agora desfila acorrentado a algemas semânticas torna-se difícil perceber a escravidão do homem”,
já advertiu o pensador Albert Camus (apud Carlos Roberto Siqueira Castro, 20 anos da Constituição
democrática de 1988, In Vinte Anos da Constituição Federal de 1988, Cooord. Cláudio Pereira de
Souza Neto e outros, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2009, p. 23).
51
Milton Santos, que era daqueles intelectuais sonhadores que fazem falta nos dias atuais e que
servem de referência para os jovens, já averberou: “Uma coisa parece certa: as mudanças a serem
introduzidas, no sentido de alcançarmos uma outra globalização, não virão do centro do sistema,
como em outras fases de ruptura na marcha do capitalismo. As mudanças sairão dos países subdesenvolvidos” (Por uma outra globalização, Op.Cit., p. 153-154). A propósito, reiteramos valer a pena
ver o documentário Encontro com Milton Santos – o mundo global visto do lado de cá, também
dirigido pelo premiado cineasta Silvio Tendler.
52
Em um livro-testamento destinado aos jovens, Ernesto Sabato – que abandonou uma renomada
vida científica para viver na árdua simplicidade da luta pelos direitos humanos – lançou as seguintes palavras a fim de demonstrar por que ainda temos de acreditar em algo: “E não só por meio das
inocentes criaturas da natureza, mas também encarnada em heróis anônimos, como aquele pobre
homem que, no incêndio de uma favela, entrou três vezes no barraco de chapas de metal onde
umas crianças estavam trancadas – ali deixadas pelos pais, que haviam ido trabalhar –, até morrer,
na última tentativa. Mostrando-nos que nem tudo é miserável, sórdido e sujo nesta vida, e que este
pobre ser anônimo, como aquelas florezinhas, é uma prova do Absoluto” (Antes do fim – memórias,
Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p. 12).
134
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
visão paternalista e, pois, historicamente questionável do ponto de vista
da justiça social).53
7. OS CONTEÚDOS DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS
Optamos por falar em “conteúdos” (plural) da educação em direitos,
e não em “conteúdo” (singular), para que fique nítido que tudo o que disser
respeito à educação em direitos não deve ousar ser definitivo.54 A educação
em direitos, tanto no conteúdo como no método ou no destinatário, deve ser
pensada a partir da criatividade.55 Isso, porém, não impede que alguns nortes
sejam estabelecidos. O importante é o constante diálogo entre as Defensorias.
Antes de tudo, o papel da Defensoria Pública é a educação em
direitos, isto é, a educação jurídica popular. Assim, o defensor público deve
ser estimulado a protagonizar com mais intensidade as aulas jurídicas, o
que certamente não impede a abordagem crítica.
53
De abril a novembro de 2009 a Defensoria Pública do Estado de São Paulo realizou, por meio de
sua Escola, um curso de educação em direitos denominado Curso de Defensores Populares, nome
este criado a partir da inspiração do curso de Promotoras Legais Populares. Conquanto os recursos
públicos para a realização do curso tenham cabido à Escola da Defensoria Pública de São Paulo,
sua realização só foi possível devido à coordenação conjunta com outros parceiros da sociedade
civil e um ente público: União dos Movimentos de Moradia (UMM), Escritório Modelo Dom Paulo
Evaristo Arns (PUC-SP), Associação Paulista dos Defensores Públicos (APADEP), Centro Gaspar
Garcia de Direitos Humanos e Defensoria Pública da União em São Paulo. Diga-se de passagem,
a ideia de realização do curso não partiu da Defensoria de São Paulo, mas da sociedade civil,
mais especificamente da UMM, na época representada pelo inspirador ativista Benedito Barbosa,
o “Dito”. O Curso de Defensores Populares teve o êxito de formar cerca de 50 pessoas ligadas
a movimentos sociais e possuía uma grade curricular que enfatizava a educação em direitos em
sua perspectiva freireana. As aulas (quinze ao todo) foram quinzenais e aos sábados de manhã
(das 9h às 13h), posto que esse horário era condizente com as possibilidades da população.
Para mais informações, cf. www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Materia/MaterialMostra.
aspx?idItem=4575&idModulo=5278, Acesso em 30 nov. 2009.
54
“(...) a EDH [educação em direitos humanos] não deve jamais ser um conjunto estático de determinados conhecimentos de enunciados de direitos, mas deve preservar sempre um envolvimento
dinâmico com esses conhecimentos” (Upendra Baxi, Educação em direitos humanos: promessa do
terceiro milênio?, In: Educação em direitos humanos para o século XXI, Op.Cit., p. 236).
55
Por exemplo, promover cursos mais longos ou mais curtos; utilizar ou não recursos audiovisuais
(como o cinema) ou grupos teatrais (como o Teatro do Oprimido); definir o grau de participação
dos alunos; realizar curso voltado para certo perfil de aluno (mulher, criança, idoso, pessoa com
deficiência) ou mesclar os perfis; tornar o curso mais jurídico ou, por meio de parcerias com outros
atores, deixá-lo multidisciplinar; centralizar a atuação junto à educação formal ou informal, etc.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
135
Não basta, porém, a mera apresentação das leis, embora seja o
mínimo exigível (e note-se que o art. 4º, III, da lei diz caber à Defensoria
a promoção da difusão do ordenamento jurídico).56 Aliás, a abordagem
puramente jurídica – como se isso fosse possível... – não deveria
jamais ser o cerne dos cursos de direito, como têm advertido inúmeros
estudiosos.
No que tange à apresentação das leis, é imprescindível o estímulo
à leitura da Constituição, e o estímulo passa por vezes por fornecer
um exemplar do texto para cada aluno. Fazer isso é fazer cumprir a
Constituição ao menos no que atina ao art. 64 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias, que de transitório nada pode ter.57
A linguagem deve ser adequada, além de não precisar se
preocupar em focar demasiadamente os termos técnicos. Como diz
o maior historiador do século XX, Eric Hobsbawm, citando Rutherford
acerca de outra área do conhecimento, “nenhuma física podia ser boa
se não pudesse ser explicada a uma garçonete de bar”.58 O mesmo
se dá com a educação jurídica popular, que não deve se ocupar com
56
“La historia de los derechos humanos es la historia de los esfuerzos que se han hecho para definir
la dignidad y valor básicos del ser humano y sus derechos más fundamentales. Esos esfuerzos
prosiguen em la actualidad. Conviene que el profesor incluya uma exposición de esa historia como
parte esencial de la enseñanza de los derechos humanos, que puede ir haciéndose más detallada
em los grados superiores” (La enseñanza de los derechos humanos – actividades prácticas para
escuelas primarias y secundarias, Naciones Unidas, Nueva York y Ginebra, 2004, p. 19).
57
O mencionado dispositivo diz que “A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, da Administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição,
que será posta a disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas
e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão
brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil”. Para alguns doutrinadores não se deve interpretar o dispositivo como disposição transitória. Confira-se Rodrigo Costa
Vidal Rangel, Educação constitucional, cidadania e estado democrático de direito, Nuria Fabris,
Porto Alegre, 2008. O autor toma essa posição e cita o mesmo entendimento de José Afonso da
Silva (p. 96).
58
Era dos extremos – o breve século XX, Op.Cit., p. 519. E como conhecimento é poder e o direito
não deixa de ser uma tecnologia (cf. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao estudo do direito,
Atlas, São Paulo, 1989, p. 87), neste capítulo do imprescindível livro, em que o historiador aborda
a ciência no (breve) século XX, urge transcrever a seguinte passagem: “O problema dessas tecnologias é que se baseavam em descobertas e teorias tão distantes do mundo do cidadão comum,
mesmo nos países desenvolvidos mais sofisticados, que só algumas dezenas ou, no máximo,
algumas centenas de pessoas no mundo podiam captar inicialmente que elas tinham implicações
práticas” (p. 507).
136
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
“vícios redibitórios”, “lucros cessantes”, “arguição de descumprimento
de preceito fundamental”, “intervenção de terceiros”, e por aí vai59.
Mas há outro ponto a destacar, e felizmente o discurso abaixo pode
partir da comodidade da dogmática jurídica.
Segundo o art. 4º, III, da LC 80/94, deve a Defensoria preocuparse em “promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos,
da cidadania e do ordenamento jurídico”. Diante disso, e para tanto
nos valeremos das lições da pedagoga Vera Candau, é possível (e
recomendável) concluir que a educação em direitos possui três metas:60
1ª) Formação de sujeitos de direito: pois a maior parte dos cidadãos
não tem consciência de seus direitos e “consideram que os direitos são
dádivas de determinados políticos ou governos”.
2ª) Favorecer o processo de empoderamento: aqui, o foco da EDH
deve ser principalmente aos atores sociais que tiveram menos poder na
sociedade.61
3ª) Processos de transformação necessários para a construção de
sociedades verdadeiramente democráticas e humanas: “educar para o
nunca mais”, para resgatar a memória, romper a cultura do silêncio e da
impunidade.
Como se vê, a educação em direitos, tal como toda e qualquer
educação, deve visar à ação, à transformação social. E esse assunto não
59
O carioca Nei Lopes resume essa necessidade em um samba engraçado e que tem tudo a ver
com o papel do defensor público no que toca à linguagem. Aliás, na letra é feita referência a um
“defensor”, e possivelmente o compositor se referia ao defensor público, ao mesmo tempo em que
se menciona “desembargador” em um contexto que deixa entender tratar-se de uma crítica ao tradicional formalismo do Judiciário. Confira-se um trecho: “Felicidade passou no vestibular/E agora
tá ruim de aturar/Mudou-se pra Faculdade de Direito/E só fala com a gente de um jeito/Cheio de
preliminar (é de amargar)/Casal abriu, ela diz que é divórcio/Parceria é litisconsórcio/Sacanagem
é libidinagem e atentado ao pudor/Só fala cheia de subterfúgios/Nego morreu, ela diz que é “de
cujus”/Não agüento mais essa Felicidade/Doutor defensor/(só mesmo um Desembargador)...”. O
nome da música é Justiça Gratuita.
60
Educação em direitos humanos: questões pedagógicas, Op. Cit., p. 289-290.
61
Nessa linha, é necessário que a educação em direitos se preocupe que essa camada social entenda
minimamente os porquês da opressão. Um exemplo pode ser ilustrado na letra ‘Saudosa Maloca’,
de Adoniran Barbosa: “Mais, um dia/nois nem pode se alembrá/Veio os home cas ferramentas/O
dono mandô derrubá/Peguemos tudo as nossas coisa/E fumos pro meio da rua/Preciá a demolição/
Que tristeza que nóis sentia/Cada táuba que caía/Duia no coração/Mato Grosso quis gritá/Mas
em cima eu falei:/Os homi tá cá razão/Nós arranja outro lugá/Só se conformemos quando o Joca
falou:/”Deus dá o frio conforme o cobertô”.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
137
pode ser abordado deixando de lado o seu maior expoente, Paulo Freire.
Nas lições do Mestre,
É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante
a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação (...). A
alfabetização, por exemplo, numa área de miséria só ganha sentido na
dimensão humana se, com ela, se realiza uma espécie de psico-análise
histórico-político-social de que vá resultando a extrojeção da culpa
indevida.62
O mais curioso é que o exemplo de Humanista que foi não impediu
Paulo Freire de exortar um direito que talvez falte nas Constituições
mundiais: o direito à raiva. O mais fantástico é que ele nos convence,
nem poderia ser diferente.
Após visitar um certo local do Nordeste, Paulo Freire ouviu de um
morador o seguinte: “Os moradores de toda esta redondeza ‘pesquisam’
no lixo o que comer, o que vestir, o que os mantenha vivos”. E refletiu:
“Foi desse horrendo aterro que há dois anos uma família retirou de lixo
hospitalar pedaços de seio amputado com que preparou seu almoço
domingueiro”, e por isso pregou:
Tenho direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para
minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao
mundo, de tê-lo como motivação de minha briga (...). Não posso, por
isso, cruzar os braços fatalistamente diante da miséria, esvaziando, desta
maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e ”morno”, que fala da
impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim.63
Para finalizar este tópico, nada melhor do que citar dois pensamentos
que bem resumem a necessidade da educação em direitos humanos:
“No primeiro dia do novo ano letivo, todos os professores de uma
escola particular receberam uma nota do diretor.”
“Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos
viram o que nenhum homem devera ver; Câmaras de gás construídas por
engenheiros formados; Crianças envenenadas por médicos diplomados.
62
Pedagogia da indignação – cartas pedagógicas e outros escritos, Unesp, São Paulo, 2000, p. 84-5.
63
Idem, p. 78-9.
138
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês
fuzilados e queimados por graduados em colégios e universidades.
Assim, tenho minhas dúvidas a respeito da Educação. Meu pedido é
este: ajudem seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca
deverão produzir monstros treinados. Aprender a ler, a escrever, aprender
aritmética só são importantes quando servem para fazer nossos jovens
mais humanos’”.64
Por fim, vale citar o belo pensamento de Nelson Mandela:
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por
sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam
aprender; e, se podem aprender a odiar, podem aprender a amar”.65
Portanto, em um tempo em que inúmeros documentos nacionais e
internacionais consagram a tutela dos direitos humanos e que ainda assim
não obstam a sua violação, urge que as instituições jurídicas assumam
o seu papel de agentes de transformação social. E esse papel compete,
sobretudo, à Defensoria Pública, que pioneiramente foi agraciada com
imposições legislativas que explicitam esse dever-poder e que possui
contato diário com a população carente.
Nesse aspecto a LC 80/94, com sua redação pós-LC 132/09, deve
ser concebida como algo inovador posto que escancara algo que decorre
de uma leitura progressista da Constituição. Cabe agora às Defensorias
Públicas dar cumprimento a esse mandamento, assim como cabe aos
defensores públicos inspirar sua Profissão como algo além dos gabinetes
e dos processos judiciais, até porque isso até hoje não favoreceu qualquer
mudança social considerável.
8. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
A educação em direitos, sobretudo em um país tão desigual como
o nosso, figura como condição de um efetivo e transformador acesso à
64
Haim Ginott, O professor e a Criança, Bloch Editores, 1973, p. 215. É importante dizer que o livro
é de autoria de um psicólogo e traz relatos de professores, ou seja, todas as situações de fato
ocorreram.
65
Essa frase foi extraída de um documentário denominado Diversidade religiosa e direitos humanos,
realizado no ano de 2006 pelo Centro Popular de Formação da Juventude, com apoio da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos. Para mais informações, consulte www.entec.com.br.
Educação em direitos e defensoria pública: Reflexões a partir da lei complementar n.o 132/09
139
justiça, e por isso ele deve ser encarado pela Defensoria Pública como
uma atribuição ordinária sua, e não como algo sujeito ao voluntarismo.
Nessa perspectiva, a Lei Complementar Nacional n.º 132/09 merece
elogios, posto que reconhece cabalmente esse instrumento de afirmação
republicana da Defensoria Pública, além de ter o condão de explicitar tal
tarefa como norma geral vinculante para todas as Defensorias.
Além disso, a lei consagra uma distinção entre orientação jurídica e
educação em direitos, distinção esta que também decorre de uma vontade
constitucional de acesso à justiça. Assim, a fundamentação da educação
em direitos é de ordem constitucional.
Cabe agora às Defensorias assumir essa tarefa, e embora a educação
em direitos seja alçada ao plano de dever jurídico do defensor público,
esse mister só será eficazmente cumprido se o defensor compreender a
importância da educação em direitos. Portanto, pensar em cumprir o dever
de educar em direitos educando os defensores é dar um grande passo.
Mais uma vez citando Eric Hobsbawm,
não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe
até este ponto e (...) por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade
quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do
passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa
base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para
uma mudança da sociedade, é a escuridão.66
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infantiliza adultos e engole cidadãos, Record, Rio de Janeiro, 2009.
Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais
66
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Periódico consultado
Justiça para quem precisa, In: Revista do Brasil, n. 38, agosto, 2009.
Parecer sobre a
legitimidade da
Defensoria Pública
para o ajuizamento
de ação civil pública
Ada Pellegrini Grinover
Professora Titular da Universidade de São Paulo
A CONSULTA
Honram-me os ilustres advogados, Doutores Pierpaolo Cruz Bottini
e Igor Tamasauskas, formulando consulta, com pedido de parecer, em
nome da Associação Nacional de Defensores Públicos – ANADEP, a
respeito da arguição de inconstitucionalidade do inciso II do artigo 5º da
Lei da Ação Civil Pública – Lei n.º 7.347/85 -, com a redação dada pela Lei
n.º 11.488/2007, que conferiu legitimação ampla à Defensoria Pública para
ajuizar a demanda, em discussão na Ação Direta de Inconstitucionalidade
promovida pela Associação Nacional dos Membros do Ministério PúblicoCONAMP (ADIN n. 3943, Relatora Ministra Cármen Lúcia).
Das cópias do processo encaminhadas pela Consulente, verifica-se
que a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público-CONAMP
ajuizou ação direta de inconstitucionalidade em relação ao inciso II do
artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública – Lei n.º 7.347/85 -, com a redação
dada pela Lei n.º 11.488/2007, que conferiu legitimação ampla à Defensoria
Pública para ajuizar a demanda, alegando violação aos artigos 5º, inciso
LXXIV, e 134, caput, da Constituição Federal.
Alega a Associação requerente que a norma impugnada, ao atribuir
legitimação à Defensoria Pública para a ação civil pública, afetaria a
atribuição do Ministério Público, impedindo-lhe de exercer plenamente as
atividades que a Constituição lhe confere. Afirma, ainda, que a Defensoria
Pública tem como objetivo institucional atender aos necessitados que
comprovem, individualmente, carência financeira.
144
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Requer, consequentemente, a CONAMP a declaração da
inconstitucionalidade do inciso II do artigo 5º da Lei n.º 7.347/85, na
redação da Lei n.º 11.488/07, ou, alternativamente, sua interpretação
conforme a Constituição, para que, sem redução do texto, seja excluída
da referida legitimação a tutela dos interesses ou direitos difusos, uma vez
que, por disposição legal, seus titulares são pessoas indeterminadas, cuja
individualização e identificação é impossível, impossibilitando a aferição
de sua carência financeira.
A Associação Nacional de Defensores Públicos – ANADEP –
ingressou no processo como amicus curiae, manifestando-se pela
constitucionalidade do inciso II do artigo 5º da Lei n.º 7.347/85, na redação
da Lei n.º 11.488/07 e defendendo a legitimação irrestrita da Defensoria
Pública à ação civil pública.
Também obteve sua participação no processo como amicus curiae,
esposando a mesma tese a favor da legitimação irrestrita da Defensoria
Pública à ação civil pública, a Associação Nacional de Defensores Públicos
da União – ANDPU.
O Congresso Nacional, ao prestar suas informações, suscitou,
preliminarmente, a ausência de pertinência temática em relação à
requerente, defendendo a legitimação irrestrita da Defensoria Pública. O
Presidente da República destacou, em suas informações, inexistir no bojo
da lei hostilizada ofensa às atribuições do Ministério Público, afirmando que
a adequada exegese do art. 134 da CF deve ser pautada pela assistência
incondicional aos necessitados, ainda que, de forma indireta e eventual,
essa atuação promova a defesa de direitos de indivíduos bem estabelecidos.
Manifestaram-se a seguir a Advocacia do Senado Federal, que
também se refere à ausência de pertinência temática em relação à
requerente, bem como a Advocacia Geral da União – AGU, sendo que
ambas opinaram, no mérito, pela constitucionalidade do dispositivo
guerreado e pela legitimação irrestrita da Defensoria.
No mesmo diapasão, a manifestação do Advogado Geral da
União, quer em relação à ausência de pertinência temática em relação
à requerente, quer no que toca ao mérito, pela constitucionalidade do
dispositivo guerreado e pela legitimação irrestrita da Defensoria.
Foram juntadas razões e documentos e, finalmente, o Instituto Brasileiro
de Advocacia Pública – IBAP – também requereu o ingresso no processo
como amicus curiae, secundando as razões da Defensoria Pública.
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 145
Finalmente, a Consulente apresenta os seguintes quesitos.
QUESITOS
1 – A legitimação do Ministério Público à ação civil pública é
exclusiva, nos termos da Constituição e da lei?
2 – A legitimação da Defensoria Pública para a ação civil pública
afeta as atribuições do Ministério Público?
3 – A abertura da legitimação às ações coletivas significa um maior
acesso à Justiça?
4 – Como deve ser interpretado o artigo 134 da CF, que atribui à
Defensoria Pública a assistência jurídica e a defesa, em todos os graus,
dos necessitados?
5 – Ainda que, ad argumentandum, se entenda que necessitados são
apenas os economicamente carentes, a função precípua da Defensoria
Pública impede que, de forma indireta e eventual, sua atuação se estenda
à defesa de direitos de indivíduos bem estabelecidos?
6 – Qual o histórico da atuação da Defensoria Pública na defesa dos
interesses ou direitos difusos?
7 – Infringe a Constituição o inciso II do artigo 5º da Lei da Ação Civil
Pública – Lei n.º 7.347/85 -, com a redação dada pela Lei n.º 11.488/2007,
que conferiu legitimação à Defensoria Pública?
8 – Deve-se dar ao dispositivo interpretação conforme a Constituição,
para que seja excluída da referida legitimação a tutela dos interesses ou
direitos difusos?
Bem examinados os documentos encaminhados e analisada a
questão submetida à minha apreciação, passo a proferir meu parecer.
PARECER
1.RETROSPECTO HISTÓRICO
Nos anos de 1970, a doutrina jurídica italiana introduzia no mundo
de civil law a preocupação com a conceituação e a defesa dos direitos
difusos, com um amplo debate sobre sua tutela processual, que empenhou
146
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
autores como Mauro Cappelletti, Andrea Proto Pisani, Vittorio Denti,
Vincenzo Vigoriti, Nicolò Trocker.
Os primeiros estudos publicados no Brasil sobre a matéria foram os
de José Carlos Barbosa Moreira (A ação popular no direito brasileiro como
instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos, 1977),
Waldemar Mariz de Oliveira Junior (“Tutela jurisdicional dos interesses
coletivos”, 1978) e Ada Pellegrini Grinover (“A tutela jurisdicional dos
interesses difusos”, 1979).
Esses estudos motivaram o debate que se instaurou no Brasil sobre a
tutelabilidade judicial dos interesses supraindividuais, centrado sobretudo
no problema da titularidade da ação, tendo sido apresentadas propostas
concretas capazes de superar os esquemas rígidos da legitimação para
agir, fixados pelo artigo 6º do CPC. Também se começou a entender que
a indivisibilidade do objeto dos interesses difusos permitiria o acesso à
justiça, sobretudo por parte do membro do grupo.
Em 1982, realizou-se na Faculdade de Direito da USP o primeiro
seminário sobre a tutela dos interesses difusos, coordenado por Ada
Pellegrini Grinover. No encerramento, o desembargador Weiss de Andrade
propôs, em nome da Associação Paulista de Magistrados, que os juristas
ali reunidos formasse um grupo de estudos objetivando a apresentação de
um anteprojeto de lei relativo à matéria. O grupo, formado por Ada Pellegrini
Grinover, Cândido Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de
Oliveira Junior, preparou um anteprojeto que, depois de apresentado à
APAMAGIS, foi discutido em vários congressos e seminários jurídicos, ao
longo do ano de 1983.
No início de 1984, o Projeto foi levado ao Congresso Nacional pelo
Deputado Flávio Bierrenbach, do PMDB paulista, acompanhado de uma
justificativa assinada pelos próprios autores do anteprojeto. O projeto de
lei tomou, no Congresso Nacional, o n.º 3.034/84.
Paralelamente, integrantes do Ministério Público também discutiam
o assunto. No XI Seminário Jurídico dos Grupos do Ministério Público de
Estado de São Paulo, realizado em 1983 em São Lourenço, foi aprovada
a proposta, formulada por A. M. de Camargo Ferraz, Edis Milaré e Nelson
Nery Junior, no sentido da elaboração de uma proposta de lei sobre a
ação civil pública. Embora os autores tenham declaradamente tomado
como ponto de partida o anteprojeto do grupo constituído pela APAMAGIS,
o resultado foi uma proposta que resultava no fortalecimento do MP (à
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 147
época, parte integrante do Poder Executivo), em detrimento da sociedade
civil.1
Em junho de 1984, o Procurador Geral da Justiça de São Paulo, Paulo
Salvador Frontini, encaminhou o projeto elaborado pelo MP ao Presidente
da Confederação Nacional do Ministério Público, Luiz Antonio Fleury Filho,
para encaminhamento ao Congresso Nacional. Dada a ligação do MP com
o executivo, à época, Fleury encaminhou o projeto ao Ministro da Justiça do
Governo Figueiredo, Ibrahim Abi-Ackel que, após alguns estudos, enviou
o projeto ao Congresso Nacional, com mensagem do Executivo. O projeto
do Executivo, apesar de ter chegado ao Congresso depois, andou mais
rapidamente do que o do Deputado Flávio Bierrenbach, tendo sido aprovado
em meados de 1985, transformando-se na Lei n.º 7347/85, sancionada em
julho pelo Presidente Sarney, sendo que o veto presidencial recaiu sobre
a proteção de “qualquer outro interesse difuso”, contida no projeto do MP.
Segundo afirmação constante de Edis Milaré, a lei aprovada manteve 90%
do anteprojeto elaborado pelo grupo de trabalho da APAMAGIS.
Vale a pena lembrar que, antes da promulgação da Lei n.º 7347/85,
viera a lume a Lei n.º 6938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio
Ambiente, prevendo o monopólio do MP para a ação de responsabilidade
civil e criminal. Logo após, a Lei Complementar n.º 40 definiu como uma
das funções institucionais do MP “promover a ação civil pública, nos termos
da lei”, sendo seguida pela Lei Orgânica do Ministério Público estadual n.º
304, de 1982, que ampliou significativamente o leque de direitos difusos
passíveis de defesa pela instituição. Mas, antes da Lei n.º 7347/85, não
havia regras sobre o regime processual da “ação civil pública” – privativa
do MP – nem tratamento da legitimação concorrente, da coisa julgada,
dos controles sobre o exercício da ação.
O minissistema brasileiro de processos coletivos, assim, foi
moldado pela Lei n.º 7347/85, complementada pelo Código de Defesa do
Consumidor.
1
Assim, expressamente, Rogério Bastos Arantes (Ministério Público e Política no Brasil. Editora
Sumaré-IDESP-EDUC, 2002, p. 51-76,) analisa as posições do MP paulista, inicialmente pleiteando a titularidade exclusiva da ACP; depois, pela influência de Nelson Nery Junior, admitindo a cotitularidade das associações, mas ampliando o requisito da pré-constituição de seis meses (projeto
original) para um ano; retirando a titularidade de outros entes públicos, prevista no projeto original,
depois reintroduzida pelo Ministério da Justiça; criando o inquérito civil, exclusivo do MP, com poderes de requisição de certidões, informações, exames e perícias de qualquer organismo público
ou particular, bem como prevendo a tipificação do crime consistente na recusa, retardamento ou
omissão de dados técnicos requisitados pelo MP.
148
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988, o então
Presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, Flávio
Bierrenbach, constituiu comissão, no âmbito do referido Conselho, com o
objetivo de apresentar Anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor,
previsto, com essa denominação, pelos trabalhos da Assembleia Nacional
Constituinte. A Comissão foi composta pelos seguintes juristas: Ada
Pellegrini Grinover (coordenadora), Daniel Roberto Fink, José Geraldo
Brito Filomeno, Kazuo Watanabe e Zelmo Denari. Durante os trabalhos de
elaboração do anteprojeto, a coordenação foi dividida com José Geraldo
Brito Filomeno, e a comissão contou com a assessoria de Antonio Herman
de Vasconcellos e Benjamin, Eliana Cáceres, Marcelo Gomes Sodré,
Mariângela Sarrubo, Nelson Nery Júnior e Régis Rodrigues Bonvicino.
Também contribuíram com valiosos diversos promotores de Justiça de
São Paulo. A comissão ainda levou em consideração trabalhos anteriores
do CNDC, que havia contado com a colaboração de Fábio Konder
Comparato, Waldemar Mariz de Oliveira Junior e Cândido Dinamarco.
Finalmente a comissão apresentou ao ministro Paulo Brossard o
primeiro anteprojeto, que foi amplamente divulgado e debatido em diversas
capitais, recebendo críticas e sugestões. Desse trabalho conjunto, longo
e ponderado, resultou a reformulação do anteprojeto, que veio a ser
publicado no Diário Oficial (DO) de 4 de janeiro de 1989, acompanhado
do parecer da comissão, justificando o acolhimento ou a rejeição das
propostas recebidas.
Nesse ínterim, diversos projetos legislativos haviam sido apresentados
por vários parlamentares – aliás, já a partir da publicação da primeira
proposta, em 1989, espelhando as diversas fases de amadurecimento
pelas quais passou o trabalho. O projeto final foi finalmente apresentado,
a pedido da comissão, pelo Deputado Michel Temer (Projeto de Lei n.º
1330/88). Ainda em 1988, o Deputado Geraldo Alkmin apresentou um
substitutivo a um seu primeiro Projeto, que trazia algumas novidades com
relação ao trabalho da comissão. Foi então que o Congresso Nacional,
com fundamento no art. 48 do Ato das Disposições Transitórias, constituiu
Comissão Mista destinada a elaborar Projeto do Código do Consumidor.
Presidiu a Comissão Mista o Senador José Agripino Maia, sendo seu VicePresidente o Senador Carlos Patrocínio e Relator o Deputado Joaci Góes.
Distinguindo com sua confiança os membros da Comissão do
CNDC, por intermédio de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Herman de
Vasconcelos e Benjamin e Nelson Nery Júnior, o relator da comissão
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 149
incumbiu-os de preparar uma consolidação dos trabalhos legislativos
existentes, a partir do quadro comparativo organizado pela PRODASEN.
Verificados, assim, os pontos de convergência, pudemos preparar um
novo texto consolidado, que tomou essencialmente por base o Projeto
Michel Temer – que espelhava a fase mais adiantada dos trabalhos da
comissão – e o Substitutivo Alkmin, que oferecia algumas novidades
interessantes.
Para debate dos pontos polêmicos do Código e apresentação
de sugestões, a Comissão Mista realizou ampla audiência pública,
colhendo o depoimento e as sugestões de representantes dos mais
variados segmentos da sociedade: indústria, comércio, serviços, governo,
consumidores, cidadãos.
Finalmente, o Projeto da Comissão Mista, publicado a 4 de
dezembro de 1989, recebeu novas emendas, até ser aprovado pela própria
comissão e, a seguir, pelo Plenário durante a convocação extraordinária
do Congresso, no recesso de julho de 1990.
O Projeto acabou sendo sancionado, com vetos parciais, e publicado
a 12 de setembro de 1990, como Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de
1990.
Foi assim que o Código de Defesa do Consumidor veio coroar o
trabalho legislativo, ampliando o âmbito de incidência da Lei da Ação
Civil Pública, ao determinar sua aplicação a todos os interesses difusos
e coletivos, e criando uma nova categoria de direitos ou interesses,
individuais por natureza e tradicionalmente tratados apenas a título
pessoal, mas conduzíveis coletivamente perante a justiça civil, em função
de sua homogeneidade e da origem comum, que denominou direitos
individuais homogêneos.
2.A POSTURA DO MP: DO MONOPÓLIO DA ACÃO CIVIL PÚBLICA
À SUPRESSÃO DA LEGITIMAÇÃO DE OUTROS ÓRGÃOS
PÚBLICOS
Conforme visto na nota n.º 1 supra, Rogério Bastos Arantes2
descreve minuciosamente, com o apoio de documentos, a postura do MP
2
ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e Política no Brasil. Editora Sumaré-IDESP-EDUC,
2002, p. 51-76.
150
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
paulista quando da preparação do projeto de lei ministerial que resultaria
na promulgação da Lei n.º 7.347/75. Ouça-se o autor:
O processo que levou à promulgação da Lei da ação civil pública em 1985,
que descreveremos a seguir, mostra claramente que o Ministério Público
estava disposto a se transformar no defensor desses novos direitos, nem
que para isso tivesse que afastar a própria sociedade civil.3 (grifei)
E o autor relata4:
Nos documentos de apresentação e justificativa dos respectivos projetos
é possível perceber as diferentes intenções quanto à regulamentação da
defesa dos direitos coletivos. Enquanto os juristas salientavam que “a
crescente conscientização quanto à necessária tutela jurisdicional dos
interesses difusos tem estimulado diversas iniciativas, quase todas no
sentido de atribuir-se legitimação extraordinária às associações, para a
defesa dos interesses coletivos”, a carta de Fleury ao ministro da Justiça
afirmava que, caso o projeto viesse a ser convertido em lei, “viria coroar
as recentes conquistas alcançadas pelo Parquet com a edição da Lei
Complementar 40, de 14 de dezembro de 1981, que mais reafirma o seu
papel de legítimo tutor dos interesses indisponíveis da sociedade”.
E mais:
Segundo Fiorillo5, citando documentos do arquivo pessoal de Nelson Nery Jr.
(integrante do Ministério Público paulista e um dos autores do anteprojeto),
“em 5 de setembro de 1984 o prof. Nelson Nery Jr. teve a oportunidade
de, em documento encaminhado ao DAL (Departamento de Assuntos
Legislativos do Ministério da Justiça), fazer algumas observações visando
ao aprimoramento do anteprojeto revisto e adaptado pelo Ministério da
Justiça, considerações estas que, conforme se verá, foram incorporadas
à Lei 7.347/85”.
(.......................................................................................)
Uma outra passagem importante do documento, descrita por Fiorillo,
menciona a ocorrência de uma reunião em Brasília, na qual os
3
ARANTES, op. cit., p. 54.
4
ARANTES, op. cit., p. 59-63.
5
FIORILLO, op. cit., p.197.
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 151
participantes teriam retirado do projeto um dos pontos mais caros aos
juristas, introduzido para incentivar a participação das associações
civis na defesa judicial de direitos difusos e coletivos. Corrigindo-se a
tempo, Nery Jr. evitou o que seria uma afronta aos defensores da proposta
associativista, maior do que a que ocorreu depois da votação da lei no
Congresso (veremos esse ponto adiante). (–grifei)
E finalmente, com relação à retirada de legitimação de outros órgãos
públicos, complementa Rogério Bastos Arantes6:
O Ministério Público foi audacioso também ao propor a retirada da
legitimação para agir da União, estados, municípios, autarquias,
empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista,
mas o Ministério da Justiça tratou de reincorporá-los ao projeto que
foi encaminhado ao Congresso Nacional. É provável que aqui tenha
pesado, da parte do Ministério Público, o receio da concorrência
com outras entidades públicas. Como o projeto da comissão de
juristas vinculava a participação desses órgãos à existência de finalidade
institucional específica, pode-se afirmar que a intenção era abrir terreno para
organismos estatais especializados na defesa de certos direitos difusos,
na linha do que preconizava Mauro Cappelletti em seu famoso artigo.
Evidentemente, num contexto em que soluções como a do Ombudsman
sueco ganhavam cada vez mais simpatia, pode-se imaginar que a criação
desses organismos públicos altamente especializados introduziria
uma indesejável concorrência para o Ministério Público, ameaçando
sua posição de poder duramente conquistada ao longo dos anos.
Ao contrário, o Parquet se constituiria no único órgão público capaz
de ajuizar ações coletivas se a legitimidade de agir fosse estendida
apenas às associações civis, tal como constava do seu anteprojeto
de lei. No final, o Ministério da Justiça fez retomar ao projeto os
legitimados que o Ministério Público havia suprimido, contrariando
sua intenção de ser o único órgão estatal a ter legitimidade para usar
a ação civil pública. (grifei)
Fica claro, assim, que o verdadeiro intuito da requerente, ao propor
a presente ADIN, é simplesmente o de evitar a concorrência da Defensoria
6
ARANTES, op. cit., p. 71.
152
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Pública, como se no manejo de tão importante instrumento de acesso à
justiça e de exercício da cidadania pudesse haver reserva de mercado.
3.A LEGITIMAÇÃO CONCORRENTE DO MP À AÇÃO CIVIL
PÚBLICA
A Constituição Federal não prevê exclusividade do Ministério Público
para a propositura da ação civil pública.
Após enumerar, no art. 129, as funções institucionais do MP –
dentre as quais a de “promover (...) a ação civil pública, para a proteção
do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos” (inc. III) – o legislador constitucional teve o cuidado de
destacar expressamente, no par. 1º do mesmo artigo:
Par. 1º: A legitimação do Ministério Público para as ações civis
previstas neste artigo não impede a de terceiros, segundo o disposto
nesta Constituição e na lei. (grifei)
E a lei – exatamente a Lei n.º 7.347/85 – legitimou à ação civil pública
a União, o Estado, o Distrito Federal e o Município, autarquias, empresas
públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações (art.
5º, caput), e agora, pela Lei n.º 11.488/2007, a Defensoria Pública. A essa
lista ainda adiciona-se a legitimidade da Ordem dos Advogados do Brasil,
a teor da Lei n. 8.906/94 (art. 54, inc. XIV).
Assim sendo, a legitimação do MP não é exclusiva, mas concorrente
e autônoma, no sentido de que cada órgão ou entidade legitimados podem
mover a demanda coletiva, independentemente da ordem de indicação.
Por outro lado, não se percebe como essa legitimação, concorrente
e autônoma, poderia afetar aquela do MP, impedindo ao parquet exercer
plenamente suas atividades, conforme alega a requerente em relação
à Defensoria Pública. A inclusão desta no rol dos diversos legitimados
em nada interfere com o pleno exercício das atribuições do MP, que
continua a detê-las. E tanto assim é que diversos órgãos públicos que
se manifestaram sobre essa demanda chegam à conclusão de falta de
pertinência temática em relação à requerente.
A nova norma legal permite, simplesmente, que a Defensoria Pública
venha somar esforços na conquista dos interesses ou direitos difusos,
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 153
coletivos e individuais homogêneos da sociedade, podendo inclusive agir
em litisconsórcio com o Ministério Público.
Por outro lado, a ampliação da legitimação à ação civil pública
representa poderoso instrumento de acesso à justiça, sendo louvável
que a iniciativa das demandas que objetivam tutelar interesses ou direitos
difusos, coletivos e individuais homogêneos seja ampliada ao maior
número possível de legitimados, a fim de que os chamados direitos
fundamentais de terceira geração – os direitos de solidariedade – recebam
efetiva e adequada tutela.
Lembre-se, a propósito, do que já vinha estampado na Exposição
de Motivos anexada à Mensagem n.º 123, de 25/02/85, encaminhando o
Projeto de Lei que resultaria na Lei n.º 7.347/85:
A ação civil pública para defesa de interesses coletivos encontra-se regulada
apenas na Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que disciplinou a política
nacional do meio ambiente (art. 14, par. 1º). A lei, porém, só regulamenta
a proteção jurisdicional do meio ambiente, deixando de lado os demais
interesses difusos, e concedendo exclusividade ao Ministério Público
como titular da ação. Estendendo-se a legitimação a outras entidades,
aqueles interesses serão defendidos com a eficácia exigida pela sua
importância. Parece não haver discrepância em torno dessa exigência.
(grifei)
Acesso à justiça: este é o fundamento para uma legitimação ampla,
articulada, composta para as ações em defesa de interesses ou direitos
difusos, coletivos e individuais homogêneos. Não se pode olvidar, aqui,
a lição clássica de Mauro Cappelletti, referência obrigatória na matéria,
que inseriu a defesa dos direitos difusos na segunda onda renovatória do
acesso à justiça7.
E é oportuno lembrar as palavras de processualistas contemporâneos,
como Carlos Alberto de Salles, advertindo sobre a dispersão e a tendência
à sub-representação dos interesses difusos e coletivos:
As opções relativas à legitimidade para defesa dos interesses difusos e
coletivos devem ter por norte a maior ampliação possível do acesso à
7
- CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet, Porto
Alegre: Fabris, 1988, p. 31
154
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
justiça. Deve-se ter em mente que, tendo em vista a anatomia social dos
interesses em questão, o problema será sempre de sub-representação,
não o de um número exacerbado de litígios jurisdicionalizados. Cabe,
dessa forma, ampliar ao máximo a porta de acesso desses interesses
à justiça e, ainda, criar mecanismos de incentivo para sua defesa judicial.8
(grifei)
4.AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA.
ECONOMICAMENTE NECESSITADOS E NECESSITADOS DO
PONTO DE VISTA ORGANIZACIONAL
O art. 134 da CF não coloca limites às atribuições da Defensoria
Pública. O legislador constitucional não usou o termo exclusivamente,
como fez, por exemplo, quando atribuiu ao Ministério Público a função
institucional de “promover, privativamente, a ação penal pública, na
forma da lei” (art. 129, inc. I). Desse modo, as atribuições da Defensoria
podem ser ampliadas por lei, como, aliás, já ocorreu com o exercício da
curadoria especial, mesmo em relação a pessoas não economicamente
necessitadas (art. 4º, inc. VI, da Lei Complementar n.º 80/94).
O que o art. 134 da CF indica, portanto, é a incumbência necessária
e precípua da Defensoria Pública, consistente na orientação jurídica e na
defesa, em todos os graus, dos necessitados, e não sua tarefa exclusiva.
Mas, mesmo que se pretenda ver nas atribuições da Defensoria
Pública tarefas exclusivas – o que se diz apenas para argumentar -, ainda
será preciso interpretar o termo necessitados, utilizado pela Constituição.
Já tive oportunidade de escrever, em sede doutrinária, a respeito da
assistência judiciária (na terminologia da Constituição de 1988, defesa)
aos necessitados:
Pois é nesse amplo quadro, delineado pela necessidade de o Estado
propiciar condições, a todos, de amplo acesso à justiça que eu vejo situada
a garantia da assistência judiciária. E ela também toma uma dimensão
mais ampla, que transcende o seu sentido primeiro, clássico e tradicional.
Quando se pensa em assistência judiciária, logo se pensa na assistência
aos necessitados, aos economicamente fracos, aos “minus habentes”.
8
- SALLES, Carlos Alberto. Políticas Públicas e legitimidade para defesa de interesses difusos e
coletivos, Revista de Processo, n. 121, mar. 2006, p. 50
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 155
É este, sem dúvida, o primeiro aspecto da assistência judiciária: o mais
premente, talvez, mas não o único.9 (grifei)
Isso porque existem os que são necessitados no plano econômico,
mas também existem os necessitados do ponto de vista organizacional.
Ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis: os consumidores,
os usuários de serviços públicos, os usuários de planos de saúde, os que
queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à
saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente, etc.
E tanto assim é que se afirmava, no mesmo estudo, que a
assistência judiciária deve compreender a defesa penal, em que o Estado
é tido a assegurar a todos o contraditório e a ampla defesa, quer se trate
de economicamente necessitados, quer não. O acusado está sempre em
uma posição de vulnerabilidade frente à acusação. Dizia eu:
Não cabe ao Estado indagar se há ricos ou pobres, porque o que existe
são acusados que, não dispondo de advogados, ainda que ricos sejam,
não poderão ser condenados sem uma defesa efetiva. Surge, assim, mais
uma faceta da assistência judiciária, assistência aos necessitados,
não no sentido econômico, mas no sentido de que o Estado lhes deve
assegurar as garantias do contraditório e da ampla defesa.10 (grifei)
Em estudo posterior, ainda afirmei surgir, em razão da própria
estruturação da sociedade de massa, uma nova categoria de
hipossuficientes, ou seja, a dos carentes organizacionais, a que se referiu
Mauro Cappelletti, ligada à questão da vulnerabilidade das pessoas em
face das relações sociojurídicas existentes na sociedade contemporânea.11
Da mesma maneira deve ser interpretado o inc. LXXIV do art. 5º
da CF: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos” (grifei). A exegese do termo
constitucional não deve limitar-se aos recursos econômicos, abrangendo
recursos organizacionais, culturais, sociais.
9
GRINOVER, Ada Pellegrini. Assistência Judiciária e Acesso à Justiça, in Novas Tendências do
Direito Processual, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2ª ed., 1990, p. 245.
10
GRINOVER, op. cit., p. 246.
11
GRINOVER, Ada Pellegrini, Acesso à justiça e o Código de Defesa do Consumidor, in O Processo
em Evolução, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 116-117.
156
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Saliente-se, ainda, que a necessidade de comprovação da
insuficiência de recursos se aplica exclusivamente às demandas
individuais, porquanto, nas ações coletivas, esse requisito resultará
naturalmente do objeto da demanda – o pedido formulado. Bastará que
haja indícios de que parte ou boa parte dos assistidos sejam necessitados.
E, conforme já decidiu o TRF da 2ª Região, nada há nos artigos 5º, LXXIV
e 134 da CF que indique que a defesa dos necessitados só possa ser
individual12. Seria até mesmo um contrassenso a existência de um órgão
que só pudesse defender necessitados individualmente, deixando à
margem a defesa de lesões coletivas, socialmente muito mais graves.
Conforme bem observou Boaventura de Souza Santos, daí surge “a
necessidade de a Defensoria Pública, cada vez mais, desprender-se
de um modelo marcadamente individualista de atuação”.13
Assim, mesmo que se queira enquadrar as funções da Defensoria
Pública no campo da defesa dos necessitados e dos que comprovarem
insuficiência de recursos, os conceitos indeterminados da Constituição
autorizam o entendimento – aderente à ideia generosa do amplo acesso
à justiça – de que compete à instituição a defesa dos necessitados do
ponto de vista organizacional, abrangendo portanto os componentes de
grupos, categorias ou classes de pessoas na tutela de seus interesses ou
direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
5.A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA TUTELA DOS
INTERESSES OU DIREITOS DIFUSOS
Mesmo antes da edição da Lei n.º 11.488/07, que atribuiu
expressamente legitimação à Defensoria Pública para a ação civil pública
(inciso II do artigo 5º da Lei n.º 7.347/85), a Defensoria Pública vinha
ajuizando demandas coletivas, com fundamento no art. 82, III, do Código
de Defesa do Consumidor, c/c o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública.
Com efeito, o inciso III do art. 82 do CDC, inserido em seu Título III,
confere legitimação para agir às entidades e órgãos da administração
pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, que
12
Apelação cível n. 2004.32.00.005202-7/AM.
13
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à sociologia da administração da justiça, Revista de
Processo, São Paulo, n. 37, jan-mar. 1985, p. 150.
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 157
incluam entre seus fins a defesa de interesses e direitos protegidos
por este Código. E, por sua vez, o art. 21 da LACP prescreve:
Art. 21: Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos
e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei n.
8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Defesa do
Consumidor. (grifei)
Assim, a Defensoria Pública ajuizou diversas demandas coletivas,
sendo sua legitimação reconhecida pelos tribunais. Citem-se as seguintes
decisões:
PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSE COLETIVO DOS
CONSUMIDORES. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA.
1 – A Defensoria tem legitimidade, a teor do art. 82, III, da Lei 8.078/90
(Cód. de Defesa do Consumidor), para propor ação coletiva visando à
defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos
consumidores necessitados.14
AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DEFENSORIA PÚBLICA – LEGITIMIDADE ATIVA
– CRÉDITO EDUCATIVO.
Agravo de Instrumento. Ação Civil Pública. Crédito Educativo. Legitimidade
ativa da Defensoria Pública para propô-la. Como órgão essencial à função
jurisdicional do Estado, sendo, pois, integrante da Administração Pública,
tem a Assistência Judiciária legitimidade autônoma e concorrente para
propor ação civil pública, em prol dos estudantes carentes, beneficiados
pelo Programa do Crédito Educativo.15
Aliás, o próprio Ministério Público já defendeu a legitimação da
Defensoria Pública às ações coletivas: assim o fez o Ministério Público
Federal, no RESP 555.111, Rel. Min. Castro Filho, julgado em 20/04/2006.
E, no Agravo de Instrumento n.º 2006.01.00.038978-5, julgado pelo TRF
da 1ª Região, julgado aos 6/07/2006, nos termos do parecer favorável do
MP, in verbis:
Ora, sendo a Defensoria Pública o órgão estatal destinado à promoção do
direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV) em
14
TJRS, Acórdão n. 70014401784/2006, Apel. Cível, 4a Câm., relator Araken de Assis, j.12.04.06.
15
- TJRJ – AI 3274/96 – Vassouras – 2ª Câm., relator Luiz Odilon Bandeira, j. 25.02.97.
158
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
relação aos necessitados (CF, art. 5º, LXXIV, c/c art. 134), certamente a
ela é permitido valer-se de quaisquer medidas judiciais adequadas à
defesa dos direitos metaindividuais das pessoas carentes, podendo,
assim, dispor da ação civil pública como legítimo instrumento de
atuação. (grifei)
O Superior Tribunal de Justiça manifestou-se no mesmo sentido:
O NUDECON, órgão especializado, vinculado à Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro, tem legitimidade ativa para propor ação
civil pública objetivando a defesa dos interesses da coletividade de
consumidores que assumiram contratos de arrendamento mercantil,
com cláusula de indexação monetária atrelada à variação cambial.16
Outro precedente do STJ diz respeito à legitimação da Procuradoria
de Assistência Judiciária do Estado de São Paulo, que então exercia as
funções de Defensoria Pública, criada só em 200617.
E a Ministra Nancy Andrighi, em voto proferido no Recurso Especial
n.º 555.111, havia afirmado:
De fato, se a Constituição impõe, por um lado, ao Estado o dever de
promover a defesa dos consumidores (art. 5º, LXXIV) e de prestar
assistência jurídica integral (e aqui repiso o integral) aos que comprovarem
insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV) e, por outro, que a execução de
tal tarefa cabe à Defensoria Pública (cfr. Art. 134 da CF c/c o art. 4º, inciso
XI, da Lei Complementar n. 80/94), o âmbito de atuação desta não pode
ficar restrito, pela vedação ao manejo de tão importante instrumento
de tutela do direito do consumidor e de fortalecimento da democracia
e da cidadania como a ação civil pública, sob pena de não se dar
máxima efetividade aos referidos preceitos constitucionais. (O itálico
é do texto; os grifos são nossos).
Finalmente, o Supremo Tribunal Federal, na ADIN n.º 558/RJ,
proposta contra a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, destacou,
pelo voto do Min. Sepúlveda Pertence:
16
17
STJ, REsp. 555.111/RJ, 3ª Turma, rel. Castro Filho, j.06/09/06.
STJ, REsp. 181.580/SP, 3ª Turma, rel. Castro Filho, j.09/12/03.
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 159
(...) a própria Constituição da República giza o raio de atuação institucional
da Defensoria Pública, incumbindo-a da orientação jurídica e da defesa,
em todos os graus, dos necessitados. Daí, contudo, não se segue a
vedação de que o âmbito da assistência judiciária da Defensoria Pública
se estenda aos patrocínio dos ‘direitos e interesses (...) coletivos dos
necessitados, a que alude o art. 176 da Constituição do Estado: é óbvio
que o serem direitos e interesses coletivos não afasta, por si só,
que sejam necessitados os membros da coletividade. Daí decorre
a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública. Não, porém, o
impedimento a que os seus serviços se estendam ao patrocínio de
outras iniciativas processuais em que se vislumbre interesse social
que justifique esse subsídio estatal.” (grifei).
Observe-se, ainda, que a atuação da Defensoria Pública tem
sido intensa no campo da defesa dos interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos. Selecionamos algumas ações civis públicas
para a tutela de interesses difusos promovidas pela Defensoria
Pública:18
Processo n° 2006.61.00.027802-9, da 7ª Vara Federal Cível da
Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão
de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público
para provimento de cargos do Ministério Público da União. Na ação civil
pública ajuizada pela DPU, foi parcialmente concedida a liminar, sendo
posteriormente suspensa sua execução pela Presidente do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região.
Processo n.° 2007.61.00.000433-5, da 23ª Vara Federal Cível da
Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão
de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público
para provimento de cargos do Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Na ação civil pública ajuizada pela DPU, foi concedida a liminar, havendo
notícias, inclusive de que inúmeros candidatos conseguiram inscrever-se
graças à liminar obtida.
Processo n.° 2007.61.00.001723-8, da 7ª Vara Federal Cível da
Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão
18
Isso porque, conforme se viu, o pedido alternativo da requerente refere-se à exclusão da tutela dos
interesses ou direitos difusos da legitimação da Defensoria Pública.
160
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público
para provimento de cargos do Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Na ação civil pública ajuizada pela DPU, foi concedida a liminar, sendo
posteriormente suspensa sua execução pela Presidente do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região.
Processo n.° 2007.61.00.001722-6, da 10ª Vara.Federal Cível da
Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão
de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público
para provimento de cargos da Câmara dos Deputados. Pedido liminar
indeferido.
Processo n.° 2007.61.00.03010-3, da 25ª Vara Federal Cível da
Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão
de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público
para provimento de cargos da Agência Nacional de Aviação Civil. O juízo
entendeu que o pedido liminar perdeu o objeto.
Processo n.° 2007.61.00.002795-5, da 1ª Vara Federal Cível da
Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão
de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público
para provimento de cargos da Câmara dos Deputados. Pedido liminar
indeferido.
Processo n.° 2007.61.00.010539-5, da 13ª Vara Federal Cível
Subseção Judiciária de São Paulo, mandado de segurança coletivo em
que se pleiteia a isenção da taxa de expedição do Registro Nacional
de Estrangeiro para os hipossuficientes. O pedido liminar foi deferido.
Processo n.° 2007.61.00.011093-7, da 15ª Vara Federal Cível da Subseção
Judiciária de São Paulo, sobre os expurgos inflacionários do Plano
Bresser. O pedido liminar foi deferido, com efeitos em todo o território
nacional, visando a impedir que os bancos se desfaçam dos documentos
comprobatórios dos valores depositados pelos consumidores entre junho/
julho 1987.
Processo n.º 2007.51.01.017691-7, da 11ª Vara Federal da
Subseção Judiciária do Rio de Janeiro, visando à isenção de taxa de
inscrição para hipossuficientes no concurso público para Procurador da
Fazenda Nacional. Liminar parcialmente deferida.
Processo n.º 2007.51.01.020475-5, da 9ª Vara Federal da Subseção
Judiciária do Rio de Janeiro, em que se pleiteia leite materno para as
pessoas hipossuficientes.
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 161
Processo n.º 2007.51.01.0171051, da 8ª Vara Federal da Subseção
Judiciária do Rio de Janeiro, visando ao conserto de aparelhos em
hospitais públicos.
Processo n.º 2007.34.00.003387-9, da 6ª Vara Federal da Seção
Judiciária do Distrito Federal, sobre a correção das provas de redação
de todos os candidatos às vagas reservadas a deficientes fisicos no 4°
concurso para provimento de cargos para o Tribunal Regional Federal e
Justiça Federal da 1ª Região.
Muitas outras demandas existem, intentadas pela Defensoria
Pública, em defesa de interesses difusos.19
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ
Licenciamento ambiental: Pedido principal: declaração de nulidade do licenciamento ambiental
para construção da termelétrica a carvão mineral MPX no complexo do Pecém. Pedido liminar:
obrigação de que a empresa requerida se abstenha de dar início às obras até o desfecho da causa
(liminar concedida). Juízo: comarca de São Gonçalo do Amarante-CE.
Fornecimento de medicamentos: Pedido: fornecimento de medicamento para tratamento de insuficiência pulmonar a todos os pacientes que necessitem desta medicação. Concessão de tutela antecipada Juízo: comarca de Crato-CE. Observação: ação proposta, conjuntamente, pela
Defensoria Pública e pelo Ministério Público do Estado do Ceará.
Idem: Pedido: obrigação de fornecer medicamentos relativos ao mal de Alzheimer a todos os cidadãos residentes em Tabuleiro do Norte-CE, especialmente o remédio Excelon 1.5 mg (com pedido
de antecipação de tutela). Juízo: comarca de Tabuleiro do Norte-CE. Requeridos: Município de
Tabuleiro do Norte e estado do Ceará. Observação: ação proposta, em conjunto, pela Defensoria
Pública e pelo Ministério Público do Estado do Ceará.
Acesso aos deficientes físicos no sistema de transporte público: Pedido: obrigação das empresas de
transporte de garantir acesso livre e irrestrito, sem cobrança de tarifa, aos deficientes físicos (com pedido liminar). Juízo: comarca de Fortaleza-Ceará. Requerido: prefeitura municipal de Fortaleza e empresas Concessionárias e/ou permissionárias de serviço de transporte urbano coletivo de Fortaleza.
Pedido: previsão de verba orçamentária para criação e manutenção de um abrigo para crianças e
adolescentes em situação de risco no município, que não conta com estabelecimento desta natureza.
Juízo: comarca de Tianguá-CE. Requerida: Prefeitura do Município de Tianguá.
Alimentação de menores: Pedido: obrigação ao município de prestação do serviço de abrigo domiciliar, com fornecimento de alimentos e aquisição de infra-estrutura adequada para o acolhimento
de crianças e adolescentes que necessitem do serviço (com pedido liminar). Juízo: comarca de
Iguatu-CE. Requerido: Município de Iguatu.
Ilegalidade de cobrança de tarifa de coleta de esgoto: Pedido: obrigação de não fazer, consistente
na abstenção de cobrança de tarifa irregular pela coleta e tratamento de esgoto domiciliar, industrial,
hospitalar ou similar. Juízo: comarca de Fortaleza. Requerida: Cia. de Água e Esgoto do Ceará.
Regularização do fornecimento de água: Pedido: obrigação de realizar a captação da água fornecida à população em mananciais adequados, devidamente isolados de toda atividade que possa
contaminar a água, tornando-a inadequado ao uso humano, realizar a adução da água por adutoras tecnicamente adequadas; construir uma estação de tratamento de água e construir reservatórios de água. Juízo: comarca de Icapui-CE. Requerido: serviço autônomo de água e esgoto – autarquia municipal – e Município de Icapui. Observação: ação proposta, em conjunto, pela Defensoria
19
162
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Pública e pelo Ministério Público do Estado do Ceará.
Interdição de cadeia pública: Pedido: interdição da cadeia pública de Tianguá-CE até a realização
de reforma que permita a sua utilização de forma compatível com a finalidade a que se destina,
garantindo-se a segurança e a integridade física dos presos e policiais militares. Juízo: comarca de
Tianguá-CE. Requerido: Estado do Ceará.
Corte do fornecimento de energia elétrica: Pedido: declarar a ilegalidade do corte de energia, em
caso de acusação unilateral de fraude pela concessionária; declarar a inexistência de dívida em
caso de não comprovação da existência ou autoria da fraude, de aferição unilateral da fraude e de
uso dos critérios de cálculos ilegais previstos na Resolução 456/00 da ANEEL; declarar a nulidade
dos termos de confissão de dívida assinados pelos consumidores nessas condições e contemplá-los com a devolução em dobro dos valores eventualmente pagos (art. 42, CDC); condenar a concessionária à utilização dos critérios delineados na petição inicial para o cálculo da dívida pertinente ao período de consumo irregular, em substituição aos previstos na Resolução ANEEL 456/00,
sob pena de multa diária. Juízo: 29ª Vara Cível de Fortaleza. Requerido: COELCE – Companhia
Energética do Ceará.
Meio ambiente: Termo de ajustamento de conduta entre a Defensoria Pública e o Ministério Público
e a empresa Cialne (Companhia de Alimentos do Nordeste) através do qual a empresa assumiu
a obrigação de desenvolver projeto técnico para tratamento de resíduos denominados “cama de
frango” visando à eliminação de odores e a não contaminação do solo e água.
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Meio ambiente. Pedido: obrigação de fazer consistente em não construir um cemitério em área de
preservação permanente (APP); anulação do licenciamento ambiental realizado junto à CETESB.
Juízo: Vara da Fazenda Pública da comarca de São Paulo-SP. Requeridos: Companhia de
Tecnologia Ambiental – CETESB e particulares
Idem: Cultivo de eucaliptos pelas empresas de papel e celulose e meio ambiente: Pedido: obrigação das empresas de reflorestamento ambiental demandadas de confeccionarem estudos de
impacto ambiental, com relatórios de impacto ambiental (EIA/RIMA) e audiências públicas, para os
plantios já consumados e para os projetos a serem implantados; obrigação de cortarem todas as
árvores exóticas plantadas em áreas de preservação permanente – APPs ou em áreas de preservação ambiental – APAs; recomposição da floresta nativa atingida pela expansão da monocultura
de eucalipto; condenação do município de Paraitinga de instituição de zoneamento agroflorestal
(dentre outros). Liminar concedida e mantida pelo Tribunal de Justiça.
Direito à moradia: Pedido: obrigação de construir unidades de habitação de Interesse Social –
HIS no Jardim Edith, assegurando-se o reassentamento definitivo das famílias atingidas por obras
(complexo viário) previstas para o local (liminar concedida). Observação: ação proposta em conjunto com a Associação de Moradores do Jardim Edith.
Coleta seletiva de lixo: obrigação à Prefeitura de prestar assistência jurídica, administrativa e operacional para a constituição de associações de catadores de material reciclável não organizadas
regularmente em cooperativas; criar um plano de implementação progressiva de coleta seletiva de resíduos sólidos (dentre outros). Liminar concedida e confirmada pelo Tribunal de Justiça. Observação:
ação proposta em conjunto com o Instituto GEA – Ética e Meio Ambiente, PÓLIS – Instituto de
Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais e Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
Regularização fundiária e urbanística: edição de normas simplificadas e especiais da ZEIS em que
a Favela o Tanque está inserida (140 famílias); proceder a concessão especial de uso individual ou
coletiva em favor dos ocupantes do imóvel (liminar concedida e juntada, confirmação do Tribunal).
Financiamento público: Pedido: Inscrição dos ocupantes do imóvel em linhas de financiamento
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 163
público para aquisição de imóveis que se possam caracterizar como de interesse social.
Defensoria Pública de Jundiaí: pedido de não interrupção do fornecimento de água de esgoto no
condomínio de baixa renda denominado Morada das Vinhas.
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Meio ambiente e direito a saúde: derramamento de óleo: Pedido: obrigação da empresa de arcar
com os procedimentos necessários para o restabelecimento da saúde das vítimas; pagamento de
pensão para a garantia da sobrevivência. Juízo: comarca de Itaboraí. Requerida: Ferrovia Centro
Atlântica S.A.. Observação: ação proposta em conjunto com a Associação de Moradores do Porto
de Caxias Vítimas dos danos causados por derramamento de óleo da empresa Ferrovia Centro
Atlântico S.A..
Idem: Poluição de rio: objetivo de conter as enchentes do rio Pavuninha, evitando a exposição dos
moradores da região a doenças e contaminações. Pedido: reassentamento das famílias que se encontram em situação de risco (casas construídas sobre o rio e na sua margem); realização de dragagem no rio; desenvolvimento de programas de conscientização da população para não jogarem
lixo no rio, instalação de rede de esgoto. Juízo: comarca da capital. Requeridos: Município e Estado
do Rio de Janeiro. Observação: ação proposta em conjunto com a Associação dos Sofredores do
Loteamento de Curicica
Direitos sociais: saúde e assistência a autistas: Pedido: criação pelo Estado de unidades especializadas para tratamento de saúde, educacional e assistencial aos autistas; Juízo: Vara da Fazenda
Pública da capital; Requerido: Estado do Rio de Janeiro; Observação: ação proposta em conjunto
com a Associação de Pais e Amigos de Pessoas Autistas – Mão Amiga.
Direito à saúde: epidemia de dengue: Contratação de agentes de endemia até o fim da epidemia de
dengue no município do Rio de Janeiro; intensificação da política de controle da dengue; eliminação dos focos da dengue; fornecimento de repelentes à população nos postos de saúde; realização
de exame de sorologia nos pacientes da rede pública e privada. Juízo: Vara da Fazenda Pública da
Capital. Requeridos: Estado e Município do Rio de Janeiro.
Igualdade de condições em concurso público: Pedido: realização de novo teste de aptidão física às candidatas reprovadas na respectiva etapa do concurso do Corpo de Bombeiros Militar do
Estado do Rio de Janeiro com aplicação de índices e tempos específicos para o sexo feminino,
garantindo-se a igualdade substancial entre homens e mulheres (pedido liminar); declaração de inconstitucionalidade de item do edital do concurso que previa iguais exigências físicas para homens
e mulheres. Juízo: Vara da Fazenda Pública da Capital. Requeridos: Estado do Rio de Janeiro e
FUNRIO.
Fornecimento de água e esgoto: Pedido: individualização da cobrança dos serviços prestados com
a instalação de hidrômetros individuais nas casas da comunidade pobre identificada, mantendo-se
o serviço público essencial de forma adequada, eficiente, segura e contínua. Juízo: Vara empresarial da comarca da capital. Requerida: Companhia estadual de águas e esgotos – CEDAE.
Fornecimento de energia elétrica: Pedido: declaração de ilegalidade de norma regulamentar que
autoriza a suspensão do fornecimento de energia elétrica como forma de compelir o usuário no pagamento de dívidas, assim como da que autoriza o cálculo da dívida dos consumidores com base em
estimativa de consumo e período retroativo em até 24 meses. Juízo: comarca da capital. Requeridos:
Light Serviço de Eletricidade S.A. e CERJ – Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro.
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
Direito à saúde: abertura dos postos de saúde nos fins de semana: Pedido: abertura dos Postos de
Assistência Médica – PAM e dos postos de saúde municipais nos fins de semana, com funciona-
164
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Importante ressaltar que em nenhuma dessas ações o Poder
Judiciário se manifestou pela ilegitimidade da Defensoria Pública.
Conclui-se, assim, que a atuação da instituição na defesa de
interesses difusos tem sido de grande relevância, contribuindo para
ampliar consideravelmente o acesso à justiça e para a maior efetividade
das normas constitucionais.
Assim examinadas as questões submetidas à consulta, passo a
responder aos quesitos oferecidos pela Consulente.
RESPOSTA AOS QUESITOS
1 – A legitimação do Ministério Público à ação civil pública é
exclusiva, nos termos da Constituição e da lei?
R. Não. Conforme visto no parecer, é ela concorrente e autônoma.
2 – A legitimação da Defensoria Pública para a ação civil pública
afeta as atribuições do Ministério Público?
R. De modo algum. Como se disse no parecer, a legitimação da
Defensoria Pública em nada altera o pleno exercício das atribuições do
MP. Por essa razão, aliás, foi levantada no processo a questão de falta de
pertinência temática em relação à requerente.
3 – A abertura da legitimação às ações coletivas significa um maior
acesso à Justiça?
R. Sim, conforme visto no parecer.
4 – Como deve ser interpretado o art. 134 da CF, que atribui à
Defensoria Pública a assistência jurídica e a defesa, em todos os graus,
dos necessitados?
mento 24 horas, para o atendimento dos pacientes vítimas da dengue enquanto perdurar a epidemia com o objetivo de se minimizar as longas filas para atendimento nos hospitais públicos (antecipação de tutela concedida). Juízo: vara federal cível da capital. Requeridos: Estado e Município do
Rio de Janeiro.
Direito à segurança: Pedido: retirada das tropas do exército do morro da Providência na cidade
do Rio de Janeiro, devendo a segurança pública ser efetuada pela Polícia Militar (antecipação da
tutela concedida). Juízo: vara federal cível da capital. Requerido: União.
Direitos sociais: Pedido: expedição gratuita das vias da carteira do Registro Nacional de Estrangeiro
em todo o território nacional, desde que se trate de pessoa pobre, nos termos da lei (liminar concedida). Juízo: vara federal cível da capital.Requerida: União.
Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 165
R. A exegese do texto constitucional, que adota um conceito jurídico
indeterminado, autoriza o entendimento de que o termo necessitados
abrange não apenas os economicamente necessitados, mas também os
necessitados do ponto de vista organizacional, ou seja, os socialmente
vulneráveis.
5 – Ainda que, ad argumentandum, se entenda que necessitados são
apenas os economicamente carentes, a função precípua da Defensoria
Pública impede que, de forma indireta e eventual, sua atuação se estenda
à defesa de direitos de indivíduos bem estabelecidos?
R. Não. Ainda que se entenda que função obrigatória e precípua
da Defensoria Pública seja a defesa dos economicamente carentes, o
texto constitucional não impede que a Defensoria Pública exerça outras
funções, ligadas ao procuratório, estabelecidas em lei.
6 – Qual o histórico da atuação da Defensoria Pública na defesa dos
interesses ou direitos difusos?
R. A atuação da Defensoria Pública na defesa dos interesses ou
direitos difusos tem sido intensa, significando, de um lado, ampliar o
acesso à justiça e, de outro, contribuir para a máxima eficácia das normas
constitucionais.
7 – Infringe a Constituição o inciso II do artigo 5º da Lei da Ação Civil
Pública – Lei n.º 7.347/85 -, com a redação dada pela Lei n.º 11.488/2007,
que conferiu legitimação à Defensoria Pública?
R. Não, conforme exposto no parecer.
8 – Deve-se dar ao dispositivo interpretação conforme a Constituição,
para que seja excluída da referida legitimação a tutela dos interesses ou
direitos difusos?
R. Não, conforme exposto no parecer.
É o parecer.
São Paulo, 16 de setembro de 2008
Ada Pellegrini Grinover
Professora Titular da Universidade de São Paulo
Parecer sobre o
convênio entre a
Defensoria Pública
do Estado e a OAB/
SP na prestação de
assistência
judiciária
Virgílio Afonso Da Silva
Professor titular de direito constitucional da USP
A CONSULTA
A Conectas Direitos Humanos, associação civil sem fins lucrativos,
que se manifestou na qualidade de amicus curiae na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4163, proposta pelo Procurador Geral da República,
elaborou consulta acerca do objeto da referida ação, a inconstitucionalidade
de expressões do art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo e do
art. 234, e parágrafos, da Lei Complementar Estadual 988/2006SP.
No entendimento da consulente e de diversas outras associações
civis também signatárias do amicus curiae, os referidos artigos, que
dispõem sobre a Defensoria Pública e convênios com a Ordem dos
Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OABSP), violam os arts. 5°,
LXXIV, 134 e 135 da Constituição Federal de 1988, que dispõem sobre
o direito fundamental à assistência jurídica gratuita aos necessitados e
sobre a autonomia funcional e administrativa das defensorias públicas.
Diante dessa situação, e no intuito de fortalecer os argumentos
apresentados ao Supremo Tribunal Federal, a Conectas Direitos Humanos
formula a presente consulta, mediante a apresentação dos seguintes
quesitos:
1. O art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo é
constitucional?
168
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
2. O art. 234 da Lei Complementar estadual n. 988/06 (Lei Orgânica
da Defensoria Pública do Estado de São Paulo) é constitucional?
3. No modelo de assistência jurídica gratuita desenhado na
Constituição Federal precisamente nos arts. 5º, inciso LXXIV, e 134
é cabível a celebração de convênios pelo Estado com particulares
para o estabelecimento de sistemas alternativos para a prestação do
serviço público em relevo?
A resposta sintética, ao final, a esses quesitos exige, dentre outras,
considerações acerca do conceito de autonomia das defensorias públicas
e da ideia de liberdade que subjaz ao conceito de convênio, envolvido na
questão, além de uma breve análise acerca da eficácia e da restrição a
direitos fundamentais. É o que será feito a seguir.
1.INTRODUÇÃO
Embora a ideia de assistência jurídica aos necessitados esteja
presente, no Brasil, desde o Império, quando a Lei Imperial 261/1841
estabeleceu a possibilidade de isenção de custas processuais, é só a
partir do início do século XX que essa ideia desenvolve-se na direção da
necessidade de uma instituição responsável por essa assistência. No início,
foram alguns setores da sociedade civil que, em grande parte, assumiram
essa tarefa, sendo pioneiro o trabalho do Departamento Jurídico XI de
Agosto, criado em 1919 e mantido pelos alunos da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. Pouco depois, o Estado de São Paulo passa
a se preocupar também com a questão, acrescentando a possibilidade
de designação de advogado ex officio à já existente possibilidade de
isenção de custas.1 Durante todo o século XX, diversas foram as leis e
constituições que reforçaram a necessidade da prestação do serviço de
assistência jurídica gratuita, tendo a Constituição de 1934 transformado
esse serviço em um direito fundamental (arts. 113, 32).
Não é a intenção deste parecer fazer um histórico dos antecedentes
da criação da Defensoria Pública no Brasil.2 Mas ressalte-se, nesta
1
Cf. art. 2° da Lei Estadual 1763/1920.
2
Para um histórico dessa evolução, especialmente no Estado de São Paulo, cf. Cássio Schubsky
(coord.), Advocacia pública, São Paulo: CEPGE/Imprensa Oficial, 2008, p. 104 e ss. Cf. também o
tópico II do amicus curiae proposto pela consulente.
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP
169
introdução, que a Constituição de 1988, especialmente com as mudanças
introduzidas pela EC 45/2004, operou mudança substancial no conceito
de assistência jurídica aos necessitados, ao estabelecer a criação de
defensorias públicas autônomas.
2.A AUTONOMIA DAS DEFENSORIAS PÚBLICAS ESTADUAIS
A Constituição Federal, em seu art. 134, § 2°, garante autonomia
funcional e administrativa às defensorias públicas estaduais. Como se
verá ao longo deste parecer, a precisa compreensão desse conceito tem
reflexos importantes na análise da constitucionalidade do art. 109 da
Constituição do Estado de São Paulo e do art. 234 da Lei Complementar
Estadual 988/2006SP.
Ao comentar o mencionado § 2° do art. 134 da Constituição Federal,
José Afonso da Silva aponta que, enquanto instituição autônoma,
essencial à função jurisdicional, a Defensoria Pública “não pode ser órgão
subordinado, ou parte de outra instituição, que não ao próprio Estado”.3
Especificamente sobre a autonomia funcional e administrativa, são
os seguintes os comentários do autor: autonomia funcional significa “o
exercício de suas funções livre de ingerência”;4 autonomia administrativa
significa “que cabe à Instituição organizar sua administração, suas
unidades administrativas, praticar atos de gestão, decidir sobre a situação
funcional de seu pessoal [...] estabelecer a política remuneratória [...]”.5
O que se pretenderá demonstrar neste parecer é, em primeiro lugar,
que o art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo e o art. 234 da
Lei Complementar Estadual 988/2006SP são incompatíveis com essa
previsão constitucional de autonomia das defensorias públicas. Além
disso, em um segundo momento, será demonstrado que esses artigos,
para além de seus efeitos inconstitucionais na autonomia das defensorias
públicas, têm efeitos inconstitucionais também na realização do direito
fundamental à assistência jurídica gratuita aos necessitados (art. 5°,
LXXIV). Os textos dos artigos impugnados são os seguintes:
3
SILVA, José Afonso da, Comentário contextual à Constituição, 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2009,
p. 615.
4
Idem.
5
Idem, p. 616.
170
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Constituição do Estado de São Paulo:
Art. 109. Para efeito do disposto no art. 3º desta Constituição, o Poder
Executivo manterá quadros fixos de defensores públicos em cada juizado
e, quando necessário, advogados designados pela Ordem dos Advogados
do Brasil SP, mediante convênio.
Lei Complementar Estadual 988/2006SP:
Art. 234. A Defensoria Pública do Estado manterá convênio com a Seccional
de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, visando implementar,
de forma suplementar, as atribuições institucionais definidas no artigo 5º
desta lei.
§ 1º. A Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, em função
do convênio previsto neste artigo, deverá:
1. manter nas suas Subsecções postos de atendimento aos cidadãos que
pretendam utilizar dos serviços objeto do convênio, devendo analisar o
preenchimento das condições de carência exigidas para obtenção dos
serviços, definidas no convênio, bem como a designação do advogado
que prestará a respectiva assistência;
2. credenciar os advogados participantes do convênio, definindo as
condições para seu credenciamento, e observando as respectivas
Comarcas e especialidades de atuação, podendo o advogado constar em
mais de uma área de atuação;
3. manter rodízio nas nomeações entre os advogados inscritos no
convênio, salvo quando a natureza do feito requerer a atuação do mesmo
profissional.
§ 2º. A remuneração dos advogados credenciados na forma deste artigo,
custeada com as receitas previstas no artigo 8º, será definida pela
Defensoria Pública do Estado e pela Seccional Paulista da Ordem dos
Advogados do Brasil.
§ 3º. A Defensoria Pública do Estado promoverá o ressarcimento à
Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil das despesas e
dos investimentos necessários à efetivação de sua atuação no convênio,
mediante prestação de contas apresentada trimestralmente.
Nos próximos tópicos (3 a 5), será demonstrada a incompatibilidade
desses dispositivos com o art. 134, § 2°, da Constituição Federal. No
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP
171
tópico seguinte (6), será demonstrada a sua incompatibilidade com o art.
5°, LXXIV, também da Constituição Federal.
3.A ATUAL SITUAÇÃO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA NO ESTADO
DE SÃO PAULO
Conforme se pode perceber a partir do quadro apresentado no texto
do amicus curiae ao qual esse parecer diz respeito,6 estima-se que mais
de 70% da população economicamente ativa no Brasil sejam potenciais
usuários dos serviços das defensorias públicas nos estados da federação.
Isso significa, em números absolutos, algo em torno de 130 milhões de
pessoas.7 A criação de uma estrutura capaz de dar conta dessa demanda
não é possível no curto ou no médio prazo. No Estado de São Paulo,
atualmente são apenas 400 defensores públicos para atender a mais de
20 milhões de pessoas.
Por razões que não precisam ser abordadas neste parecer, o
aumento do efetivo de defensores públicos, com a criação de novos
cargos, tem sido mais lento do que deveria. Mas, mesmo que esse
ritmo possa (e deva) ser acelerado nos próximos anos, não há como se
imaginar, nem no curto nem no médio prazo, um cenário em que toda a
população-alvo possa ser atendida por defensores públicos de carreira.
Como se sabe, essa é a razão pela qual a Constituição do Estado de São
Paulo previu a possibilidade de convênio com a Ordem dos Advogados
do Brasil, para atuar de forma complementar na prestação desse serviço
público. A manutenção desse convênio, no entanto, mostra-se cada vez
mais insustentável, dados os seus elevados custos. Ao contrário do
que ocorre com os defensores públicos, que têm remuneração mensal
fixa, os advogados que prestam serviço por meio do convênio com a
OAB recebem por processo ou audiência. Em razão dessa disparidade,
dentre outras, são gastos hoje8 no Estado de São Paulo quase 4 vezes
mais com o convênio com a OAB (R$ 272 milhões) do que com toda a
infraestrutura (e não apenas os salários) da Defensoria Pública (R$ 75
milhões).
6
Cf. amicus curiae, pp. 17 e ss.
7
Idem, p. 18.
8
Dados de 2007. Cf. amicus curiae, p. 26.
172
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
A associação das duas variáveis apontadas acima, (1)
impossibilidade de, no curto e no médio prazo, a defensoria dar conta da
demanda pelo serviço de assistência judiciária, e (2) a situação cada vez
mais insustentável do convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil,
exigiria, para o bem da prestação desse serviço público e, sobretudo,
para a maior eficácia na realização do direito fundamental previsto no art.
5°, LXXIV (“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos
que comprovarem insuficiência de recursos”), que outra solução fosse
encontrada. A busca por outra solução, contudo, esbarra no texto do art.
109 da Constituição do Estado de São Paulo e no art. 234 e §§ da Lei
Complementar 988/2006SP.
Esse é, portanto, um primeiro argumento, de caráter substancial,
para a inconstitucionalidade de ambos os dispositivos. Se, dadas as
situações fáticas existentes, as exigências desses artigos (exclusividade
de convênio com a OAB) impedem ou dificultam sobremaneira a realização
de um direito fundamental sem que haja motivo relevante ou proporcional
para tanto parece claro que não há como aceitar a sua constitucionalidade.
Para tentar sair desse impasse, em julho de 2008, a Defensoria
Pública do Estado de São Paulo editou o ato normativo DPG 10/2008,
que dispunha sobre novas regras gerais de prestação de assistência
judiciária complementar no Estado, e no qual se fazia uma chamada aos
advogados de São Paulo para se cadastrar diretamente para a prestação
desse serviço. Esse ato normativo foi uma reação da Defensoria em face
das dificuldades financeiras na renovação do convênio com a OABSP. No
mesmo mês, a OABSP ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra
esse ato, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Essa ação e
seus argumentos serão analisados a seguir.
4.A AÇÃO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
O interesse dessa ação para o presente parecer é sobretudo o de
tornar claros os argumentos que, segundo a Secção São Paulo da OAB,
embasam a constitucionalidade do art. 109 da Constituição Estadual, que
disciplina o convênio entre Defensoria e Ordem dos Advogados do Brasil.
Como se perceberá mais adiante, nenhum desses argumentos, que são
pouquíssimos, resiste a um escrutínio mais detalhado. E é justamente a
negação desses argumentos, um a um, que constitui um dos alicerces da
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP
173
tese oposta, ou seja, a da inconstitucionalidade da exigência de convênio
exclusivo com a OAB.
Na mencionada ação, todas as justificativas invocadas são ou
baseadas em legislação infraconstitucional ou na própria Constituição do
Estado de São Paulo. O primeiro argumento invoca o próprio art. 109, da
Constituição do Estado de São Paulo, e o art. 234, da Lei Complementar
988/2006SP. Como esses são justamente os dispositivos que estão sendo
impugnados na ADI 4163, esse argumento de nada serve, por ser circular.
Mas a ação faz também referência à legislação ordinária para
sustentar a constitucionalidade do convênio exclusivo (ou, na verdade,
para sustentar a inconstitucionalidade da convocação direta pretendida
pela Defensoria Pública). É possível identificar três grupos argumentos:
(1) aqueles baseados na competência privativa da OAB para fixar tabelas
de honorários advocatícios (arts. 22 e 58, V, ambos da Lei 8906/1994, e
arts. 39, 40 e 41, do Código de Ética e Disciplina); (2) aqueles que fazem
referência à exclusividade da OAB na promoção da representação dos
advogados no Brasil (art. 44, também da Lei 8906/1994); e (3) aqueles
baseados em precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto.
Passo a analisar esses três grupos de argumentos a seguir.
4.1A fixação de tabelas de honorários
No que diz respeito à competência exclusiva para a fixação da
tabela de honorários, a ação ajuizada pela OAB faz menção aos seguintes
dispositivos: arts. 22 e 58, V, ambos da Lei 8906/1994, e arts. 39, 40 e 41, do
Código de Ética e Disciplina. Contudo, a leitura conjunta desses dispositivos
parece apontar em direção diversa daquela pretendida pela Secção São
Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, segundo a qual a competência
para fixar honorários conferiria à OAB a palavra final sobre as condições
do convênio e impediria qualquer acordo acerca desses honorários que
não respeitasse essas condições. Ainda que o art. 22 estipule, como regra
geral, que os honorários serão baseados em tabela organizada pela OAB e
que o art. 58, V disponha que é o Conselho Seccional o órgão competente
para tanto, o art. 41 do Código de Ética e Disciplina claramente faz menção
a “motivo plenamente justificável” como fundamento da possibilidade de
fixação de valores diversos daqueles pretendidos pela OAB. Parece ser
difícil encontrar motivo mais justificado do que a efetiva realização de um
direito fundamental, como é o caso em questão.
174
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Além disso, imaginar que a aceitação de outra tabela de honorários,
na forma proposta pela Defensoria Pública, seria uma forma de captação
de clientes ou causa, como quer fazer crer a OAB, é simplesmente querer
fechar os olhos para a realidade. Por duas razões.
Em primeiro lugar, porque é difícil (pode-se dizer, impossível)
imaginar a captação de clientes de baixíssima renda (para outras causas
que não aquela para a qual o advogado já foi designado como substituto
do defensor público), porque quem ganha menos de três salários mínimos
não só não tem condições de pagar um advogado, como não tem motivos
para fazê-lo, já que pode sempre procurar a defensoria pública.
Em segundo lugar, porque todos os advogados inscritos na OAB
podem se apresentar para a prestação de serviços de defensoria pública,
e essa prestação, no modelo desejado pela Defensoria, seria em forma de
rodízio. Que captação desleal poderia ser essa que está aberta a todos,
em regime de rodízio?
4.2.A OAB e o exercício da advocacia
A OAB alega que a contratação direta de advogados, pretendida
pela Defensoria Pública, violaria também o disposto no art. 44, II, da Lei
8906/1994, que confere à Ordem dos Advogados do Brasil a exclusividade
de representação dos advogados em todo o território nacional. Ora,
em nenhum momento a Defensoria Pública pretendeu representar os
advogados. O que ela pretende é, pura e simplesmente, selecioná-los
diretamente. Os advogados selecionados deverão ser, por razões óbvias,
advogados inscritos na OAB e se submetem, também por razões óbvias,
à disciplina desse órgão de classe. O Estado não pretende burlar isso.
Neste ponto como em tantos outros a tese da OAB não parece fazer
nenhum sentido.
4.3A decisão no RMS 4884: um falso precedente
A ação ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São
Paulo, apoia-se ainda em um suposto precedente do Supremo Tribunal
Federal, que demonstraria a impossibilidade de que a Defensoria Pública
selecione advogados por conta própria. Cumpre ressaltar, em primeiro lugar,
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP
175
que o precedente (RMS 4884) não é do STF, mas do Superior Tribunal de
Justiça. Independentemente disso, no entanto, o que importa é que ele não
se presta a sustentar os argumentos da OAB. Diz a ementa da decisão:
Processual civil. Assistência judiciária gratuita. Delegação do Estado.
Advogados designados pela OAB. Observância da lista elaborada.
Tendo a legislação do Estado de São Paulo cometido ao Poder Executivo
o encargo de oferecer profissionais da advocacia para os pobres e
revéis, que, por sua vez, delegou essa incumbência à OAB, é a esta que
compete, enquanto perdurar tal delegação, a indicação dos advogados
dativos, sendo ofensivo ao seu direito líquido e certo a indicação, pelo
juiz, de outros profissionais fora da lista indicada pela OAB. Recursos
providos.9
Aqui, de novo, o argumento da OAB é circular. Ao usar a decisão
mencionada, o que a OAB pode afirmar é, no máximo, que a delegação
é constitucional porque essa delegação está em vigor, e que ela está em
vigor porque é constitucional.
Uma leitura atenta da decisão demonstra que o Superior Tribunal de
Justiça foi mais cuidadoso. Ele afirma, em primeiro lugar, que, enquanto
perdurar a delegação, ela deve ser respeitada. Ora, é justamente a
possibilidade de que essa delegação perdure o que está aqui em jogo.
Usá-la para defender a ela própria é, como já se afirmou acima, um
raciocínio circular. Em segundo lugar, e isso desmistifica ainda mais o
precedente como argumento, a decisão faz menção à impossibilidade
de que o juiz indique profissionais de fora da lista. Como não é essa a
possibilidade que aqui se discute, o argumento, que já era circular e, por
isso, sem valor, cai definitivamente por terra.
5.O CONCEITO DE CONVÊNIO
Como já afirmava o Min. Rafael Mayer, do Supremo Tribunal
Federal, “convênio não é palavra de sentido unívoco no campo do Direito
Administrativo”.10
9
STJ, RMS 48845, DJU de 19.06.1995.
10
RDA 140 (1980), p. 67 [Rep. 1024].
176
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
Há uma série de debates que aqui interessam pouco, como, por
exemplo, aquele que diz respeito à possibilidade ou impossibilidade, nos
casos de convênio, de existência de interesses divergentes e opostos,
típicos dos contratos de direito privado.11 Mas, embora não seja a intenção
aqui, neste parecer, fazer uma espécie de “doutrina do convênio”, ou seja,
embora não interessem aqui todas as possíveis distinções conceituais
que cercam esse termo, parece ser necessária uma breve digressão
sobre alguns aspectos desse conceito. O que interessa aqui, em suma,
neste tópico, é identificar uma característica acerca da qual todos parecem
estar de acordo quando se fala em convênio no âmbito da Administração
Pública. Para tanto, utilizarei a conceituação mais difundida nesse âmbito,
a de Hely Lopes Meirelles. Segundo ele, “[d]iante [da] igualdade jurídica de
todos os signatários do convênio e da ausência de vinculação contratual
entre eles, qualquer partícipe pode denunciá-lo e retirar sua cooperação
quando o desejar”.12
Ainda mais importante, especialmente para o argumento aqui
desenvolvido, são as consequências que Hely Lopes Meirelles tira da
característica mencionada acima. Assim, segundo ele, “[a] liberdade
de ingresso e retirada dos partícipes do convênio é traço característico
dessa cooperação associativa, e, por isso mesmo, não admite cláusula
obrigatória [de] permanência”.13
É claro que, neste ponto, alguém poderia contestar e afirmar que
o art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo é compatível com
essa conceituação, já que não contém nenhuma cláusula obrigatória de
permanência. A Administração Pública, ainda segundo essa interpretação,
estaria inteiramente livre para fazer ou não o convênio com a OAB. É isso,
aliás, o que a própria OAB argumenta.
Essa é, contudo, uma equivocada interpretação das condições
fáticas e jurídicas que subjazem à interpretação desse dispositivo da
constituição estadual. A simples leitura de um texto não é suficiente para
compreender a norma que ele contém. Em outras palavras: a permissão
11
Para uma análise mais aprofundada desse e de outros debates conceituais em torno do conceito
de convênio, cf, por todos, Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 8. ed., São Paulo: RT,
2004, pp. 270 e ss.
12
MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 24. ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p.
361.
13
Op. cit., p. 362.
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP
177
constitucional estadual para se celebrar ou não um convênio só é uma
permissão real se essa liberdade puder ser, de fato, exercida. Ora, como
se viu, por mais que não haja cláusula formal que exija a permanência
no convênio, a previsão constitucional estadual de que o convênio possa
ser feito única e exclusivamente com a OAB e a impossibilidade fática de
que a Defensoria Pública dê conta sozinha da demanda por assistência
jurídica gratuita tem como consequência exatamente essa: um convênio
em que há, sim, uma exigência de permanência.
E se há exigência fática de celebração de convênio, não parece ser
possível não concluir pela incompatibilidade do art. 109 da Constituição do
Estado de São Paulo com os ditames da Constituição Federal. Como foi
visto logo no início deste parecer, a Constituição Federal, ao criar e definir
as bases gerais das defensorias estaduais, determinou: “Art. 134, §2°. Às
Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e
administrativa [...]”.
Já foi visto, também no início deste parecer, o que isso significa.
Mas não custa retomar a questão aqui. Em primeiro lugar, o status de
instituição autônoma significaria que ela “não pode ser órgão subordinado,
ou parte de outra instituição, que não ao próprio Estado”.14 Na medida em
que à Defensoria Pública do Estado de São Paulo não é garantida uma
real autonomia para definir quem, e sob que condições, desempenhará
as atividades supletivas de defesa judicial dos necessitados, já que é a
Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo, que detém a última
palavra a esse respeito, parece não haver outra alternativa que não a de
concluir que essa Defensoria não é, de fato, autônoma.
Em suma, na medida em que a Defensoria Pública do Estado de
São Paulo não tem a real faculdade de denunciar o convênio a qualquer
tempo,15 pois, como o art. 109 da Constituição Estadual não permite que
ela celebre convênio com outras instituições que não a OAB, isso implicaria
uma paralisação de um serviço que tem como finalidade realizar um direito
fundamental, conclui-se, então, que, nesse aspecto, o mencionado art.
14
José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, p. 615.
15
Cf., no sentido de que essa é uma característica essencial do conceito de convênio, Carlos Ari
Sundfeld, Licitação e contrato administrativo, São Paulo: Malheiros, 1994, p. 198-199: “Denominase convênio o ato bilateral por meio do qual pessoas de direito público ou privado ajustam a conjugação de esforços para o atingimento de objetivo comum, como a prestação de certo serviço ou a
execução de obra, facultada a denúncia unilateral a qualquer tempo”.
178
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
109 coloca a Defensoria Pública em uma posição de clara submissão à
Ordem dos Advogados do Brasil, o que é incompatível com a autonomia
constitucional garantida às defensorias.
6A LIBERDADE NA CONFIGURAÇÃO DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA
GRATUITA E A GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
A realização dos direitos fundamentais pode sofrer dois tipos de
condicionantes principais: jurídicas e fáticas.16 As condicionantes jurídicas
dizem respeito sobretudo às colisões entre direitos fundamentais. As
condicionantes fáticas referem-se às medidas existentes para a realização
desses direitos. Nesse sentido, especialmente no caso dos direitos que
exigem uma ação estatal para a sua realização, uma condicionante fática
relevante pode ser a insuficiência de recursos para realizar esse direito
fundamental na medida ideal.
Assim, a realização do direito fundamental garantido pelo art. 5°,
LXXIV, da Constituição Federal (assistência jurídica aos necessitados)
seria tão mais efetiva quanto maior fosse a dotação orçamentária destinada
às defensorias públicas. No caso de São Paulo, sabendo de antemão da
impossibilidade de uma organização ideal da Defensoria Pública, e na
esteira da experiência anterior à própria Constituição Federal de 1988,
a Constituição Estadual previu, como já se repetiu várias vezes ao longo
deste parecer, a possibilidade de que o serviço público17 de assistência
jurídica pudesse ser realizado por meio de convênio com a Ordem dos
Advogados do Brasil, Secção São Paulo. Mas, ainda que essa alternativa
possa ter funcionado a contento durante as últimas décadas, o seu custo
cada vez mais elevado demonstrou que a realização mais eficiente do
16
Sobre isso, cf., por todos, Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 2. ed., Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1994, p. 75 [há tradução brasileira, publicada pela editora Malheiros] e Virgílio Afonso
da Silva, Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, São Paulo: Malheiros,
2009, p. 46.
17
Em diversos momentos deste parecer, fala-se em serviço público de assistência jurídica. Com isso,
quer-se fazer referência à assistência jurídica prestada pelas defensorias públicas e, ao mesmo
tempo, salientar que essa assistência pode também ser realizada fora desse âmbito. Toda forma
de acordo entre as defensorias públicas e outras entidades, mesmo que privadas, inserem-se nesse conceito de serviço público. Fora desse âmbito encontram-se outras iniciativas de assistência
jurídica, como, por exemplo, a advocacia probono, que, a despeito de desempenhar importante
atividade social, não ocorre por meio de acordos ou convênios com órgãos estatais.
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP
179
direito fundamental à assistência jurídica poderia ocorrer por meio de
outras formas de cooperação da Defensoria Pública e atores de sociedade
civil.
Na definição do modelo desejável de cooperação, dois são os
parâmetros constitucionais mais importantes, já mencionados ao longo
do texto. O primeiro é o direito fundamental do art. 5°, LXXIV, que garante
essa assistência aos que comprovarem insuficiência de recursos; o
segundo, a garantia de autonomia para as defensorias públicas, prevista
no art. 134, § 2°.
Diante desses parâmetros claros, o modelo ideal é aquele que (1)
confira às defensorias autonomia e liberdade não apenas na organização
de sua estrutura interna, como também na definição dos termos de
eventuais convênios com particulares (indivíduos ou associações) para o
estabelecimento de sistemas alternativos para a prestação desse serviço
público; e, sobretudo, que (2) garanta o maior grau de realização do direito
fundamental em questão.
A experiência demonstrou que a possibilidade de convênio com
apenas uma única instituição (a Ordem dos Advogados do Brasil), a
despeito de todos os bons serviços por ela prestados nessa área desde
antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988, não é a forma
mais eficiente de realização do serviço. Não por outra razão, a Defensoria
Pública do Estado de São Paulo, por meio do já mencionado ato normativo
DPG 10/2008, procurou dispor sobre novas regras gerais de prestação
de assistência judiciária complementar no Estado, fazendo uma chamada
aos advogados de São Paulo para se cadastrar diretamente na Defensoria
Pública para a prestação desse serviço.18
Ora, se direitos fundamentais devem ser realizados na maior
medida possível, sofrendo apenas as restrições estritamente
necessárias dos pontos de vista fático e jurídico, e se não há nenhum
fundamento plausível para a exigência de convênio exclusivo com a
OAB, prevista pelo art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo,
então este artigo constitucional impõe restrições fáticas e jurídicas
desproporcionais,19 sendo, portanto, inconstitucional. As exigências
18
O convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil baseava-se, em seu início, na Lei Estadual
4476/84 e no Decreto Estadual 23.703/85.
19
Desproporcionais porque há formas mais eficientes de realização desse direito e que implicam
menos restrições à autonomia da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
180
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
de garantia de autonomia das defensorias, de um lado, e de máxima
realização possível do direito fundamental à assistência jurídica aos
necessitados, de outro, podem ser combinadas de várias formas.
As únicas que, com certeza, não atendem a essas exigências são
aquelas baseadas em modelos rígidos e exclusivistas. Quanto mais as
formas públicas e privadas de prestação desse serviço puderem ser
combinadas de forma eficiente e garantidora de autonomia para as
defensorias públicas, mais as exigências constitucionais poderão ser
atendidas com eficiência. Nesse sentido, é precisa a conclusão a que
os autores do amicus curiae chegam:
O modelo público de assistência jurídica gratuita pode ser complementado
com iniciativas privadas de assistência jurídica, como iniciativas pro bono.
No entanto, a Defensoria deve ter autonomia para escolher como e com
quem conveniar, em respeito ao modelo constitucional elaborado.20
Quem ganha com isso são os destinatários do serviço: os
necessitados.
7.SÍNTESE DOS ARGUMENTOS
Antes de responder aos quesitos formulados, é importante retomar
os argumentos desenvolvidos ao longo deste parecer, que pretendeu
demonstrar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais e constitucionais
estaduais que exigem que qualquer forma de contratação de serviços
suplementares de assistência jurídica aos necessitados seja feita por
meio de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São
Paulo.
Os argumentos aqui defendidos basearam-se nos dois seguintes
pilares:
(1) O conceito de autonomia não é compatível com uma situação
em que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo não apenas está
compelida a se conveniar com a OAB, mas também com uma situação na
qual a última palavra sobre os termos dos convênios, especialmente os
honorários, é exclusivamente desta última.
20
Amicus curiae, p. 14.
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP
181
(2) O direito fundamental à assistência jurídica gratuita aos
necessitados deve ser realizado da forma mais ampla possível, diante das
condições fáticas e jurídicas existentes. A exigência de convênio com a
Ordem dos Advogados do Brasil é uma forma menos eficiente (em razão
dos atuais custos) de realizar esse direito e não há nenhuma justificativa
para que essa opção de convênio exclusivo seja preferida às outras.
Além disso, este parecer demonstrou que a Defensoria Pública,
ao pretender selecionar diretamente os advogados dispostos a prestar o
serviço complementar de assistência jurídica aos necessitados, não viola
nenhum dos dispositivos do estatuto da advocacia, porque a Defensoria
não pretende, por razões óbvias, selecionar profissionais não inscritos
na OAB, e porque não pretende burlar a regra geral que determina
que a tabela de honorários em cada estado da federação seja definida
pelo conselho seccional. Como o próprio Código de Ética da Advocacia
estabelece, a fixação de valores diversos daqueles pretendidos pela OAB
pode ocorrer se houver “motivo plenamente justificável”. Parece ser difícil
encontrar motivo mais justificado do que a efetiva realização de um direito
fundamental, como é o caso em questão.
8.RESPOSTA AOS QUESITOS
À vista de todo o exposto, passo agora a responder sinteticamente
aos quesitos da consulta.
Ao 1º quesito
O artigo 109 da Constituição do Estado de São Paulo é
constitucional?
Não. Como se percebeu, diante das condições fáticas existentes,
não existe nenhuma possibilidade de que, no curto e no médio prazo, a
Defensoria Pública do Estado de São Paulo possa, sozinha, dar conta
de prover todo o serviço de defesa e orientação aos necessitados. O art.
109 da Constituição do Estado de São Paulo limita a ação da Defensoria
Pública a uma alternativa binária: ou não celebra convênio nenhum, ou
o faz com a OAB. Como a primeira opção é faticamente impossível, o
que o art. 109 realmente prevê é a imposição de um convênio com uma
determinada instituição (a Ordem dos Advogados do Brasil). Isso, como
se demonstrou ao longo deste parecer, não apenas é incompatível com
a garantia constitucional de autonomia para as defensorias públicas,
182
Revista da Defensoria Pública - Ano 4 n. 2 jul./dez. 2011
como também implica a realização menos eficiente do serviço público de
assistência jurídica gratuita. A imposição, por parte da OAB, de condições
irrealizáveis (em razão de seus custos) faz com que a implementação desse
direito fundamental seja restringida, sem que haja motivo relevante ou
proporcional para tanto. Isso reforça ainda mais o caráter inconstitucional
do art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo.
Ao 2º quesito
O artigo 234 da Lei Complementar Estadual n. 988/06 (Lei
Orgânica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo) é
constitucional?
Na medida em que o art. 234 da Lei Complementar estadual 988/06
é uma espécie de regulamentação do art. 109 da Constituição Estadual, a
constitucionalidade deste último atinge também o primeiro. Some-se a isso
o fato de que o mencionado art. 234 é ainda mais explícito na imposição
do convênio, ao exigir que a Defensoria Pública do Estado mantenha
convênio com a OAB (“Art. 234. A Defensoria Pública do Estado manterá
convênio com a Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do
Brasil”).
Ao 3º quesito
No modelo de assistência jurídica gratuita desenhado na
Constituição Federal precisamente nos arts. 5º, inciso LXXIV, e 134
é cabível a celebração de convênios pelo Estado com particulares
para o estabelecimento de sistemas alternativos para a prestação do
serviço público em relevo?
Sim. Embora seja desejável que o serviço público de assistência
jurídica gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, exercido
pelas defensorias públicas, seja realizado por profissionais dos quadros
de carreira dessas instituições, nada impede, dada a real impossibilidade
de que isso ocorra no curto ou médio prazo, que elas procurem as
alternativas que forem mais eficientes em cada situação concreta. A única
exigência é a de que os profissionais que prestarem esse serviço sejam
advogados regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil,
que tem a exclusividade na representação dos advogados em todo o
território nacional.
Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP
183
É o meu parecer.
São Paulo, 30 de abril de 2009
Virgílio Afonso da Silva
Professor Titular de Direito Constitucional
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
O conteúdo e as conclusões aqui apresentados são de exclusiva
responsabilidade do autor e não refletem necessariamente as opiniões da
Universidade de São Paulo.
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