Comércio Justo México, A.C.: algumas lições a serem compartilhadas Fernanda Martinez de Oliveira 1 Introdução Um país em busca do desenvolvimento econômico e social; uma democracia jovem em plena construção; muitas culturas, povos tradicionais; a biodiversidade ao lado de grandes metrópoles; uma inserção global que reproduz as desigualdades sociais. Poderia estar falando do Brasil? Certamente, entretanto, apesar das semelhanças, essa reflexão trata do México e, principalmente, das lições que podem ser tiradas da experiência mexicana de construção de um sistema nacional de comércio ético e solidário. A existência de atravessadores que remuneram de forma inadequada à produção de pequenos agricultores e artesãos, por exemplo, também poderia gerar novamente alguma dúvida. Contudo, se adicionarmos a tradição de comercialização por meio de sistemas solidários em pequena escala e que o envolvimento dos pequenos produtores mexicanos com o fair trade remonta da fundação do selo Max Havellar (primeiro selo de comércio solidário), caracterizamos os antecedentes da formação do sistema de comércio justo mexicano, o qual será descrito detalhadamente a seguir. A experiência mexicana apresentada permite perceber que é possível estruturar um coletivo de organizações para colaborar na implantação de um mercado justo e solidário seja em nível nacional, como internacional. O processo vivido no México foi apresentado com vários momentos de fracassos e revisões de caminho, mas sobretudo de êxitos. Hoje, o México é o primeiro país a abrir e consolidar nacionalmente um mercado nacional para produtos justos e solidários. Comércio Justo México, A.C. Esse artigo foi construído a partir da sistematização das principais questões colocadas durante exposição de Jerónimo Pruijn, diretor executivo da Comercio Justo México, A.C., no II Seminário Internacional de Comércio de Justo e Solidário, organizado pela Fundação Friedrich Ebert/ILDES, com apoio da FASE 1 Administradora Pública formada pela EAESP-FGV e membro da equipe do Programa Gestão e Cidadania. O Programa Gestão Pública e Cidadania faz parte do Departamento de Administração Pública e Governo da FGV -SP e tem como objetivo identificar, analisar, disseminar e premiar práticas inovadoras de governos subnacionais brasileiros. Nacional, Fundação Lyndolpho Silva e Secretaria de Agricultura Familiar/Ministério de Desenvolvimento Agrário, realizado nos dias 11 e 12 de junho de 2002, em São Paulo. Além disso foram consultados documentos produzidos pela Comercio Justo México, A. C., como também as informações disponíveis em seu website , cujo endereço é: http://www.comerciojusto.com.mx. A Comercio Justo México, A.C. é uma associação civil fundada em 1998, a partir da necessidade de reunir e vincular os múltiplos esforços de grupos de pequenos produtores e organizações da sociedade civil mexicana para a construção de relações e sistemas econômicos e comerciais mais justos e eqüitativos. Essa organização, que reúne cerca de 125 mil famílias de pequenos produtores organizadas e mais de 400 organizações não governamentais2, tem como missão a promoção dos produtos mexicanos nos mercados nacional e estrangeiros de comércio justo. Sua estrutura organizacional é composta por: uma estrutura formal, constituída pela Assembléia de Sócios, o Conselho Diretor, e a Secretaria Executiva; e por uma estrutura de trabalho, formada pelo Comitê de Normas, pelos Comitês de Produto, pelas Assembléias de Produto e de Produtores. Essas estruturas têm como principais linhas de ação: • • • • • • 2 Criar normas e sistemas de certificação regionais. Aplicar o Sello de Garantía Comercio Justo México nos produtos finais (seja a produção das organizações de pequenos produtores, sejam os produtos finais do setor privado, desde que feitos com a matéria prima dos pequenos produtores, como também as marcas coletivas da Agromercados, a Empresa Mexicana de Comércio Justo). A promoção da comercialização adequada desses produtos, por meio da pesquisa de mercados e da promoção dos produtos e organizações. A capacitação empresarial dos pequenos produtores por meio da assessoria no desenvolvimento de produtos e de estratégias comerciais e financeiras. A promoção do comércio justo entre os diferentes atores sociais mediante a divulgação dos conceitos e das práticas de comércio justo, em particular do Sello de Garantía Comercio Justo México. A vinculação e o intercâmbio com iniciativas de comércio justo e linhas de trabalho similares no México e no exterior. Os sócios fundadores são: Asociación Mexicana de Arte y Cultura Popular (AMACUP), Asociación Nacional de Empresas Comercializadoras de Productores del Campo (ANEC), El Café de Nuestra Tierra, Coordinadora Estatal de Productores de Café de Oaxaca (CEPCO), Coordinadora Nacional de Organizaciones Cafetaleras (CNOC), Impulsora de Alternativas Regionales (IDEAR), INVERTIR para la sustentabilidad, Unión de Ejidos y Comunidades de Cafeticultores del Beneficio Majomut de R.I. (MAJOMUT), Pequeños Apicultores Unidos de América Latina (PAUAL), Servicios Informativos Procesados (SIPRO), Unión de Comunidades Indígenas de la Región del Istmo, de R.I. (UCIRI), Fundación para el Desarrollo Sustentable (VAMOS). Visando manter essas estruturas no longo prazo e consolidar a produção, a certificação e a comercialização dos produtos mexicanos, a Comercio Justo México buscou diversificar suas linhas de financiamento, com o objetivo de autosustentabilidade. Desse modo, essa estrutura organizacional é mantida pelos aportes das organizações associadas e pelas receitas geradas pela inspeção, certificação e uso do selo. Além disso, a Comercio Justo México recebe apoios de programas governamentais nacionais, fundos internacionais e organizações e fundações mexicanas e estrangeiras que fomentam seus projetos e colaboram no seu processo de desenvolvimento. Vale destacar que o sistema de comércio justo mexicano é formado, além da Comercio Justo México, pela empresa Agromercados (que presta serviços coletivos de comercialização e distribuição) e a certificadora independente Certimex, S.C., cujo papel é a inspeção e a certificação de organizações e de produtos orgânicos e de comércio justo. Princípios básicos do comércio justo mexicano Toda a normatização do comércio justo no México é derivada de alguns princípios básicos que formam a filosofia do comércio justo, tal como é concebida pela Comercio Justo México 3: a) O comércio justo deve a sua existência em boa medida às deficiências do sistema globalizado de livre comércio que, aplicado em sua forma mais pura, exclui de uma participação plena e digna os diversos grupos de pequenos produtores mexicanos, resultando em uma distribuição desigual da riqueza, em altos índices de pobreza, marginalizarão, carência dos serviços públicos e na falta de perspectivas para uma grande parte da população mexicana, em particular para a população indígena. b) O comércio justo é um esquema comercial internacional, desenvolvido originalmente para promover uma comercialização mais justa de produtos de pequenos produtores organizados de regiões marginalizadas do mundo. A situação de exclusão que vivenciam os pequenos produtores mexicanos fazem do comércio justo uma necessidade imperiosa na busca de uma sociedade mais igualitária. c) O comércio justo busca oferecer maior segurança econômica e comercial aos produto res partindo do valor intrínseco do produto e protegendo-os das flutuações de preços. d) O comércio justo envolve toda a cadeia produtiva entre o produtor e o consumidor, eliminando intermediários e estabelecendo preços justos. e) O comércio justo se constrói e se fomenta com base na solidariedade entre o consumidor final e o pequeno produtor. 3 COMERCIO JUSTO MÉXICO, A.C. Norma General de Comercio Justo. Ed. Nov. 2000. 40 p. Tradução da autora. f) O comércio justo promove a consciência dos cidadãos a respeito de seus direitos. O Comércio Justo estimula o consumo consciente ao proporcionas informações sobre a origem e as características do produto e convidando o consumidor a exercer seu poder de decisão no momento da compra. g) O comércio justo fomenta a sensação de responsabilidade, sobre o desenvolvimento e sobre a construção de uma vida digna para toda a população, nos diferentes atores da sociedade. h) Apesar de partir da problemática do produtor, o Comércio Justo é um modelo em que todas as partes envolvidas devem considerar, de maneira eqüitativa, os interesses e direitos dos demais participantes. i) O comércio justo somente prosperará como modelo comercial de massas no qual os pequenos produtores, em colaboração com empresas industriais e comerciais, dos setores social e/ou privado, conseguem oferecer. j) O comércio justo não é caridade nem assistencialismo. Trata-se de um reconhecimento justo do valor do trabalho dos pequenos produtores e da qualidade dos produtos. k) O comércio justo, ao contrario dos mecanismos tradicionais de mercado, facilita que os instrumentos organizativos e econômicos dos pequenos produtores possam c onsolidar-se, desenvolver-se e profissionalizar-se. l) O comércio justo é parte do processo de criação de modelos econômicos, ecológicos, sociais e culturais sustentáveis. Outros elementos dessa sustentabilidade são a justiça social, a democracia, o respeito a diversidade cultural, o manejo adequado dos recursos naturais e o respeito a biodiversidade. m) A aplicação de um selo de comércio justo oferece a possibilidade de diferenciar os produtos dos pequenos produtores mexicanos no mercado de consumo. O selo é um instrumento de promoção coletivo que representa valor agregado a produção. n) Os selos de comércio justo são um elemento-chave para que os pequenos produtores consigam atingir o mercado de massas e assim possam reduzir o peso dos custos do sistema de normas, certificação e promoção. o) A certificação, seus procedimentos e instrumentos devem ser totalmente independentes e confiáveis, sem que seus custos afetem negativamente a criação de valor agregado. Normatização do comércio justo no México A partir da reflexão sobre a experiência de outras organizações de comércio justo e certificação, entre outubro de 1999 e maio de 2001 a Comércio Justo México desenvolveu a normatização inicial para o comércio justo naquele país. Esta estrutura é composta por pela Norma Geral de Comercio Justo, pelos Regulamentos de Produtos, pela Norma para os Pontos de Venda, pela Norma para a Empresa Mexicana de Comercio Justo. A Norma Geral4 reflete os princípios e as regras gerais do comércio justo dos produtos de pequenos produtores para o mercado mexicano. Vale destacar, dentro da Norma Geral, além dos princípios enumerados anteriormente, os critérios gerais da Comercio Justo México: ♦ Os produtos do Comércio Justo são provenientes de organizações democráticas de pequenos produtores com uma administração independente e transparente ♦ A estes produtores é pago, além de um prêmio social e ecológico, um preço de garantia que permite cobrir os custos de produção e obter rendimentos dignos pelo trabalho realizado. ♦ ♦ ♦ ♦ Privilegia-se nessa relação o compromisso com o desenvolvimento econômico, social, cultural e ecologicamente sustentável. Busca-se fomentar a participação da mulher e a promoção dos direitos das crianças. Objetiva-se estabelecer relações comerciais justas, co-responsáveis e duradouras. A garantia de qualidade é oferecida aos consumidores por meio de uma certificação independente. Os Regulamentos de Produtos determinam, por sua vez, as regras específicas para cada produto, complementando a Norma Geral. Até junho de 2002, apenas o café havia sido regulamentado, mas estava em desenvolvimento a regulamentação para produtos como o artesanato, grãos, mel, chocolate, dentre outros. O “Reglamento para el Café”5 estabelece critérios ecológicos (não se aplicam fertilizantes, herbicidas e pesticidas químicos na produção, por exemplo) e de qualidade (estabelece os tipos de café que podem ser exportados sob os termos “Café Gourmet” e “Café de Exportação”, por exemplo) seja para os produtores, seja para as organizações que farão a comerciali zação e a exportação. Além disso, são estabelecidos o preço mínimo de garantia (em dólares americanos, baseados em contratos da Bolsa de Nova York), os valores do prêmio social (US$5/100libras para todas as qualidades de café) e de qualidade ecológica (US$15/100libras para o café orgânico reconhecido pela Comercio Justo México). Os percentuais que devem ser pagos pelos atores envolvidos (produtores, empresas comerciais e exportadoras) a Comercio Justo México pela certificação e pelos direitos de uso do selo também estão discriminados neste documentos. 4 COMERCIO JUSTO MÉXICO, A.C. Norma General de Comercio Justo. Ed. Nov. 2000. 40 p. Tradução da autora. 5 COMERCIO JUSTO MÉXICO, A.C. Reglamento para el café. Ed. Nov. 2000. 12 p. Tradução da autora. A Norma para Pontos de Venta Qualificados de Comercio Justo 6 envolve os distribuidores que tem contato direto com o consumidor no sistema de certificação de comércio justo. Nesse documento são estabelecidos critérios de admissão, comercialização, inspeção e certificação para os pontos de venda. Vale notar que, no caso do café, a margem bruta (a diferença entre o preço de venda e aquele de aquisição) deverá ser igual ou inferior a 25% sobre o preço de venda ao consumidor, segundo este documento. A Norma para a Empresa Mexicana de Comercio Justo7 se refere a comercialização coletiva entre diferentes grupos de pequenos produtores. Esse documento contém os critérios de estrutura e funcionamento, os objetivos e políticas empresariais, as regras e custos para a inspeção e certificação, bem como um código de ética. Certificação Figura 1: “Sello de Garantia Comercio Justo México, A.C.”: 8 Fonte: COMERCIO JUSTO MÉXICO, A.C. Website institucional. Para a Comercio Justo México a certificação de comércio justo equivale a revisão documental e a inspeção física exaustivas que garantam ao consumidor o cumprimento das normas estabelecidas. O processo de criação do selo mexicano iniciou-se no final de 1998, com o desenvolvimento e o registro da marca, e sua implementação deu-se em junho de 2001, com a introdução do café no mercado. O intervalo entre esses dois extremos foi marcado pela criação de uma estrutura organizacional estratégica, bem como pela estruturação do processo de normatização. Vale ressaltar que 6 COMERCIO JUSTO MÉXICO, A.C. Norma para Puntos de Venta Calificados de Comercio Justo. Ed. Jun. 2002. 11 p. Tradução da autora. 7 COMERCIO JUSTO MÉXICO, A.C. Norma para la Empresa Mexicana de Comercio Justo. Ed. Abr. 2001. 21 p. Tradução da autora. 8 Acesso em 01 de outubro de 2002. esse conjunto de normas próprio foi desenvolvido pelos diferentes participantes do sistema, os quais também tem uma participação ativa no processo de certificação. Existem diversas modalidades de certificação dependendo da natureza da organização. As organizações de produtores podem certificar-se como organizações de comercio justo, podem ter reconhecidas o produto final, como também a matéria prima e a relação comercial com os compradores. Já as empresas (sociais ou privadas) podem certificar-se como entidades que cumprem as normas de comercio justo, como pontos de venda qualificados e podem também receber a certificação em seus produtos. Cabe aqui elucidar uma confusão recorrente: certificação é diferente do uso do selo. A certificação de comercio justo, com base nas normas da Comercio Justo México não vem necessariamente acompanhada pelo uso do “Sello de Garantia Comercio Justo México”. Existe a opção que a organização e seus produtos se certifiquem como de comercio justo sem que pretendam utilizar o selo, dependendo do mercado no qual pretendem atuar. No caso mexicano, a certificadora independente Certimex realiza as inspeções, bem como o processo de certificação. Os custos envolvidos nessas operações dependem do tamanho e da complexidades dos trabalhos necessários para tal. Já ara o uso do “Sello de Garantía Comercio Justo México” firma-se um convênio entre os solicitantes e a Comercio Justo México. O custo do uso do selo varia por produto e está fixado no regulamento do produto correspondente. Segundo o “Reglamento para el Café”9 para a utilização do selo as organizações de pequenos produtores devem pagar 0,5% sobre o valor da fatura e o valor pago pelas empresas usuárias corresponde a 1,5% do valor total da transação. As receitas obtidas pela Comercio Justo México pelo pagamento pelos direitos de uso do selo são utilizadas principalmente na promoção deste frente aos consumidores. Outra questão que merece destaque é o fato do selo e o sistema de certificação mexicano cumprirem as normas internacionais de certificação. O selo mexicano ainda não faz parte dos selos agrupados pela Fair Trade Labelling Organizations International (FLO) e seu reconhecimento no exterior depende ainda da aceitação das cadeias de comercio justo e dos consumidores, contudo a semelhança dos critérios adotados facilitará esse processo, como também a certificação dos produtos mexicanos pelos selos estrangeiros. Como a experiência mexicana pode ser útil para o Brasil? As possibilidades colocadas pela estruturação e a implantação de um mercado de comércio justo nacional às organizações interessadas em promover o 6 COMERCIO JUSTO MÉXICO, A.C. Reglamento para el café. Ed. Nov. 2000. 12 p. Tradução da autora. comércio ético e solidário no Brasil são a principal questão a ser destacada a partir da reflexão sobre a experiência da Comercio Justo México. O processo histórico de discussão e envolvimento de diversos segmentos sociais com o comercio justo no México permite projetar o longo caminho que ainda deve ser percorrido para a consolidação do comércio ético e solidário no Brasil. Embora as experiências brasileiras que buscam à valorização de iniciativas locais de produção sinalizarem para uma cultura diferenciada na comercialização desse produtos, principalmente com a valorização regional observada em alguns nichos de comercialização, ainda não há uma organização interna que formalize essa prática no país. A estrutura organizacional, bem como as informações referentes à normatização e aos processos de certificação implantados pela Comercio Justo México podem configurar-se como referências importantes na implementação e na consolidação do comércio ético e solidário no mercado brasileiro. Outro aspecto observado na experiência mexicana está relacionado a preocupação, embora não central, com a promoção de seus produtos no mercado internacional de fair trade. A sustentação desse objetivo só pode ser possível com uma estrutura organizacional adequada, condizente com as responsabilidades e desafios que esse processo impõe. No Brasil também é possível observar relações mercantis norte – sul. No entanto, mais uma vez, isso se dá de maneira atomizada, sem uma lógica interna comum. Isto é, os produtos originários do sul do país enfrentam dificuldades/facilidades de diferentes ordem, se comparado com os produtos originados, por exemplo, no nordeste. Independentes das vantagens e desvantagens que um lógica comum de comercialização pode trazer, isto é um fato que não pode ser subdimensionado. A experiência mexicana destaca-se por integrar a dinâmica nacional à internacional, propondo o desenvolvimento a partir do local. Em sua estrutura percebemos uma visão que busca articular todos os atores envolvidos na cadeia produtiva. Essas são questões fundamentais que o México coloca para a reflexão sobre a construção de um sistema nacional de comércio ético e solidário no Brasil.