VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Múltipla exemplificação, holismo e funcionalismo acerca de predicações psicológicas Filipe Lazzeri Universidade de Brasília/Mestrando pelo PPG em Filosofia Bolsista da CAPES Resumo: A tese da múltipla exemplificação (TME), o holismo (TH) e o funcionalismo (TF) acerca de predicações psicológicas são teses frequentemente formuladas pressupondo-se que tais predicações funcionam pela referência a entidades internas causadoras (eficientes) das ações, o que podemos qualificar como uma suposição mentalista (TM). Este trabalho explora a possibilidade de que TME, TH e TF são, na verdade, independentes de TM e, além disso, que elas são compatíveis com uma perspectiva marcadamente behaviorista a respeito de tais predicações. Em particular, com aquela (sugerida por Rachlin e que abrange os resultados de algumas análises de Ryle e de Skinner) segundo a qual funcionam pela remissão a padrões molares de comportamento oriundos de processos de seleção pelas consequências, perspectiva que restringimos a predicações formadas por termos psicológicos intencionais e termos para traços psicológicos (não a estendendo àquelas formadas por termos para experiências). Se o raciocínio que aqui apresentamos estiver correto, então algumas pressuposições encontradiças sobre o behaviorismo e o funcionalismo em filosofia da mente revelam-se equivocadas. Palavras-chave: Termos psicológicos; Múltipla exemplificação; Holismo; Funcionalismo; Behaviorismo. Introdução Múltipla exemplificação (frequentemente chamada de ‘múltipla realização’ e ‘múltipla instanciação’), holismo e funcionalismo correspondem a teses que não só têm formulações em filosofia da mente, mas também em outras áreas da filosofia e áreas acadêmicas. Por exemplo, discute-se uma forma de tese da múltipla exemplificação em filosofia da biologia, acerca de predicados biológicos; fala-se de holismo acerca de teorias científicas, em filosofia da ciência; e o funcionalismo é a denominação de uma escola ou tradição em psicologia do final do século XIX e começo do século XX. O presente trabalho, no entanto, discute tais teses apenas enquanto formulações em filosofia da mente, e, em especial, relativamente a predicações psicológicas. Isso embora as formulações aqui em foco e os resultados aos quais o trabalho chegue tenham possíveis implicações para, e relações com, algumas daquelas outras formulações. O trabalho tem o objetivo de sugerir que a tese da múltipla exemplificação, o holismo e o funcionalismo sobre predicações psicológicas são teses independentes daquilo que podemos chamar de mentalismo a respeito destas predicações, apesar de elas geralmente serem formuladas pressupondo-se de antemão o mentalismo. Mais do que isso, exploramos a possibilidade de que uma abordagem marcadamente behaviorista sobre certas predicações psicológicas (e contrária ao mentalismo) é compatível com as três teses em questão. A partir disso, se a argumentação estiver correta, chegamos a conclusões que vão de encontro a várias suposições usuais sobre behaviorismo e funcionalismo em filosofia da mente, algumas das quais salientamos ao final. ISSN 2177-0417 - 314 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Os termos psicológicos em seu emprego predicativo estão sobretudo aqui em foco, embora estejamos de acordo em que eles nem sempre são empregados em um sentido predicativo. Ou seja, há casos em que eles não figuram em tentativas de explicar ou predizer comportamentos pela atribuição de determinadas propriedades. Notoriamente, certos casos de enunciados psicológicos “de primeira pessoa” que Ryle (1949) e a tradição wittgensteiniana chamam de manifestações (‘avowals’), que podem ser entendidas como formas daquilo que Austin (1975) denomina proferimentos performativos. Desenvolvimento As três teses em questão são familiares. Caracteriza-se a múltipla exemplificação de predicações psicológicas (TME) em termos de poderem ser verdadeiras a respeito de organismos ou sistemas de diferentes constituições físicas, designando causas mentais que podem ser realizadas, em princípio, por entidades internas relevantes de diversos tipos físicos. Caracteriza-se o traço holista das predicações psicológicas (TH) em termos de designarem estados e processos mentais (tomados como causas do comportamento) em massa e não se deixarem reduzir a predicações que não os mencionem. E associa-se o funcionalismo (TF) à ideia de que as predicações psicológicas designam estados e processos internos que realizam funções de causar comportamentos e produzir outros estados e processos internos análogos . Ou seja, TME, TH e TF, em tais formulações usuais, estão em dependência da tese mentalista (TM) de que predicações psicológicas desempenham suas funções de explicar e predizer comportamentos pela designação de (supostas) entidades internas determinantes causais deles (no sentido de causa eficiente). Entretanto, se TME, TH e TF fossem dependentes de TM, então o sentido mais geral de cada uma destas teses não seria preservado sem TM. Procuramos aqui apoiar a negação do consequente desta disjunção, ou seja, mostrar que as intuições mais gerais subjacentes a TME, TH e TF, na verdade, não requerem TM, e, assim sendo, que se tratam de pontos de vista logicamente independentes do mentalismo. A ideia geral de TME é de que as atribuições psicológicas podem, pelo menos Para formulações consideradas originais da primeira tese, cf. Fodor (1975) e Putnam (1960; 1964); da segunda, cf., por exemplo, Davidson (1980) e Dennett (1978); da terceira, cf., por exemplo, Lewis (1972) e Putnam (1964; 1980). Assumimos que as formulações delas em termos diretamente ontológicos podem ser colocadas em termos conceituais. ISSN 2177-0417 - 315 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 em princípio, ser verdadeiras a respeito de fatores R1, e/ou R2, e/ou..., exemplificados por diferentes tipos de entidades físicas relevantes S1, S2... Assim, por exemplo, na formulação usual de TME, um mesmo desejo (como o desejo de ir até o próprio lar) pode ser realizado, em princípio, em uma estrutura neural S1 em um ser humano, em estrutura neural S2 em um sapo, eventualmente em estrutura de cilício S3 em um robô, etc. Esta ideia, como se sabe, corresponde a uma premissa básica em objeção à teoria da identidade entre tipos psicológicos e tipos neurofisiológicos: sugere que um tipo de predicação psicológica não se reduz a um tipo de predicação neurofisiológica. Ora, não é inerente à lógica de TME que os fatores R sejam causais e, tampouco, que as entidades S de base sejam entidades cerebrais ou análogas. O que é central na múltipla exemplificação de predicações psicológicas é simplesmente que os fatores relevantes para sua verdade podem ser realizados por particulares de diversos tipos. É possível que seus fatores de verdade sejam outros que aqueles privilegiados pelo mentalismo, e, ao mesmo tempo, que sejam compatíveis com tal lógica. A ideia geral de TH é de que a veracidade de uma predicação psicológica implica a veracidade de outras do mesmo tipo, sobre o mesmo sistema, de tal modo que uma não se deixa reduzir a caracterizações que não incluam outras predicações psicológicas. Por exemplo, do fato de uma pessoa querer utilizar um guarda-chuva, pode-se inferir que ela supõe que está chovendo ou vai chover, tem a opinião de que o guarda-chuva a protege, não deseja se molhar, etc. Trata-se de um traço da linguagem psicológica comum frequentemente utilizado como premissa em objeção a abordagens que se caracterizam como behavioristas . Porém, é algo discutível (e as próprias abordagens marcadamente behavioristas questionam) se os enunciados psicológicos funcionam pela designação de supostos estados e processos internos causadores dos comportamentos que supõem explicar ou predizer. É possível que as predicações psicológicas impliquem cadeias de outras, mas sem que este fenômeno (linguístico) tenha como razão um suposto holismo de entidades ou propriedades mentais correspondentes. Novamente, tem-se uma tese cuja lógica independe de uma interpretação sob TM. Quanto à TF, seu sentido mais geral é de que predicações psicológicas dizem respeito a categoriais funcionais, ou seja, a coisas que exibem funções. Assim, segundo TF, alguém ter, por exemplo, um determinado propósito, é ter uma ou mais entidades A objeção remete a Chisholm (1957, p. 168ss) e Geach (1957, p. 8). ISSN 2177-0417 - 316 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 estruturais S, que exibam uma ou mais funções relevantes F1, e/ou F2, e/ou... As abordagens funcionalistas tradicionais têm assumido que tais funções são papéis causais realizados por estruturas internas, mas a ideia independe desta interpretação. Tanto é que o teleofuncionalismo, uma versão mais recente, propõe entender em um sentido diferente a noção de função envolvida em fenômenos aos quais atribuições psicológicas estariam relacionadas, a saber, em sentido biológico ou etiológico (ainda que, ao final, tente conciliar isso com TM). Muito embora o mentalismo seja received-view, podemos imaginar que essas categoriais funcionais sejam de outro tipo; por exemplo, de tipo comportamentais. No que vem a seguir, apresentamos (de um modo resumido) o que consideramos ser uma efetiva linha de contraexemplo à pressuposição de que as três teses referidas dependem de TM. Mais do que isso, procuramos mostrar que uma tese eminentemente behaviorista (TB), incompatível com TM, pode ser compatível com as ideias em questão. Restringimo-nos a certas categorias de termos psicológicos; a saber, termos psicológicos intencionais de caráter disposicional (como, por exemplo, ‘supor’, ‘tencionar’) e termos para os por vezes chamados traços psicológicos (como, por exemplo, ‘ser organizado’, ‘ser inteligente’, ‘ser agressivo’). Não estendemos TB a predicações formadas por termos para experiências (como, por exemplo, ‘ter a sensação de calor’, ‘sentir sede’). A tese, em resumo, é de que predicações psicológicas destes tipos desempenham suas funções pela remissão a padrões de comportamento (operante) estendidos no tempo que os comportamentos sendo explicados ou preditos compõem, exibidos pelos organismos – ou, de modo mais geral (para utilizar uma expressão neutra com relação às estruturas físicas), sistemas – inteiros (e não a alguma parte deles). Elas sinalizam que determinado comportamento ocorreu, ocorre ou ocorrerá remetendo indiretamente a correlações existentes entre outros comportamentos e contextos nas quais ele entra . A análise etiológica da noção de função, proposta por Wright (1973), associa as funções de diferentes tipos de itens aos efeitos que os selecionaram historicamente. Cf. também Millikan (1984) e Neander (1991). Esta posição é avançada por Rachlin (1994) e é apoiada também por Baum (2005) e Dutra (2006). Repare-se que os resultados de algumas das análises de Ryle (1949) são capturados pela abordagem, como a centralidade das relações, estendidas no tempo, entre comportamentos do organismo como um todo e contextos. A centralidade da história da seleção pelas consequências de Skinner (1974) é também saliente. ISSN 2177-0417 - 317 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 A noção utilizada aqui de padrão de comportamento é a de comportamento operante, acrescentando-se alguns elementos mais molares . Trata-se (resumidamente) da noção de um agregado de atividades que se definem em função dos contextos (estímulos discriminativos) e consequências que produzem (e não em função de sua topografia). Sua origem, mantimento e determinação deve-se às consequências seletivas que produzem. Segundo a perspectiva molar desta noção, o conjunto de comportamentos singulares de um mesmo padrão operante não requer ser de comportamentos discretos; podem ser atividades estendidas no tempo. Além disso, estas não requerem produzir uma consequência similar contígua no tempo; podem ser consequências ao longo do tempo. As predicações compostas por termos das categorias psicológicas indicadas funcionam encaixando comportamentos aos contextos aos quais estão associados e aos padrões maiores de atividades que compõem, assim tornando-os familiares ou previsíveis. Assim, por exemplo, ao se dizer que uma pessoa ou outra forma de organismo faz tais e tais coisas em razão de certos desejos, intenções ou convicções, e em razão de ser alguém organizado, inteligente ou tímido, não se está remetendo a algo além de histórias de reforço e de punição de certos comportamentos deste organismo e de suas relações com determinados contextos presentes ou prováveis. Antes, está-se apenas sinalizando a ocorrência efetiva ou provável de uma atividade similar a outras ocorridas no passado, sob circunstâncias que foram ocasião para a produção de certos efeitos. TME é compatível com TB na medida em que, nesta perspectiva, alguém satisfazer predicações psicológicas dos tipos referidos é exibir determinados padrões de interação comportamento-ambiente, que são categorias funcionais. Eles podem ser, em princípio, formados por comportamentos diversos, por sua vez incorporados em estruturas neuromotoras ou similares de diferentes tipos. Duas pessoas podem, por exemplo, ser inteligentes ou terem determinada intenção, mas em razão de atividades diversas que realizam, as quais, ademais, são corporificadas na base de diferentes processos neuromotores. Há compatibilidade entre TH e TB na medida em que o traço holista das atribuições em questão pode ser representado como uma maneira de contextualizar cada Sobre a noção de comportamento operante, cf., por exemplo, Baum (2005) e Skinner (1969). Sobre a visão molarista, cf., por exemplo, Baum (2002) e Rachlin (1989). ISSN 2177-0417 - 318 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 vez mais os comportamentos no âmbito de suas relações históricas e presentes. Normalmente, não se vai muito adiante em cadeias de predicações psicológicas intencionais e de traços de personalidade, mas, em todo caso, fazê-lo não é ir adiante na especificação de algum determinante interno do comportamento. É, antes, ir adiante na remissão a contingências de reforço e de punição. Pode-se assumir a parte central da imagem holista sugerida por autores como Dennett (1978), sem ser preciso assumir a dimensão mentalista que lhe infundem. A compatibilidade de TF com TB, conforme antecipamos acima, dá-se porquanto padrões de comportamento são categorias funcionais. Isto quer dizer que eles não se definem em razão de sua topografia, mas em razão das consequências que produzem – atividades não são meros eventos motores, mas eventos motores com determinada ordenação e intencionalidade (no sentido de Brentano). Tal característica, a partir deste behaviorismo, é oriunda de processos históricos de seleção pelas consequências. Em outras palavras, padrões comportamentais exibem funções etiológicas, no sentido de serem regidos por processos causais seletivos, análogos ao da seleção natural das espécies. Conclusão Em suma, se estiverem corretas as formulações mais gerais, sugeridas acima, das teses da múltipla exemplificação, do holismo e do funcionalismo, então elas são independes do mentalismo e são compatíveis com pelo menos uma forma de behaviorismo. No âmbito da perspectiva particular aqui delineada, que apoia TB, um sistema X ter tais e tais opiniões, expectativas, etc., e ser organizado, agressivo, extrovertido, etc., significa: X exibe padrões de atividade P1, e/ou P2, e/ou..., os quais exibem funções F1, e/ou F2,..., e são realizados por estruturas S1, e/ou S2,... Nosso objetivo, neste trabalho, não foi, a rigor, defender a perspectiva acima; entretanto, consideramos que ela não é meramente uma linha de contraexemplo a suposições usuais sobre TME, TH, TF e o behaviorismo. Alhures, argumentamos em favor dela e contra o mentalismo, apontando, dentre outras coisas, que ela está de acordo com as categorias dos termos psicológicos referidos e que o mentalismo incorre em erros de categoria. Por exemplo, argumentamos que nossa perspectiva representa melhor a mereologia destes termos (e que o mentalismo incorre naquilo que Bennett e Hacker (2003) chamam de erro mereológico). ISSN 2177-0417 - 319 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Se o raciocínio do presente trabalho for plausível, têm-se alguns resultados possivelmente significativos. Gostaríamos de salientar três deles. (1) TME é muitas vezes considerada uma novidade do funcionalismo, por sua vez caracterizado em termos de TM, mas, na verdade, independe de TM. Ora, TME é razoável, pois representa adequadamente o emprego comum dos termos em questão. Além disso, é desafio principal ao reducionismo neurofisiológico. Portanto, os funcionalismos mentalistas não são a única possível alternativa ao reducionismo neurofisiológico. Qual alternativa é melhor – se eles ou um behaviorismo funcionalista –, depende da plausibilidade ou não de TM. (2) TH é (como mencionamos acima) usualmente tomada como obstáculo a abordagens behavioristas. Porém, em primeiro lugar, esta objeção é equivocada, pois comete petição de princípio (pressupõe de antemão aquilo que tais abordagens rejeitam), e, em segundo lugar, na verdade, TH é plenamente compatível com pelo menos certa forma de behaviorismo (embora não, certamente, com behaviorismos como aquele dos empiristas lógicos). Portanto, o holismo da linguagem psicológica não lhe é necessariamente um obstáculo. (3) Funcionalismo e behaviorismo são frequentemente contrastados, em termos de uma oposição entre uma visão a favor e uma contrária a TM . Ora, TF é largamente formulada de maneira mentalista, mas não se trata de uma tese que tenha como condição necessária TM. Cabe, então, a ponderação de que apenas o funcionalismo mentalista é oposto a abordagens marcadamente behavioristas, e não qualquer forma possível de funcionalismo a respeito de atribuições psicológicas. Referências bibliográficas AUSTIN, J. L. How to do things with words. 2nd ed. Ed. by J. O. Urmson; M. Sbisà. 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