REPRESSÃO DAS PRÁTICAS CURATIVAS TRADICIONAIS NA PRIMEIRA MODERNIDADE Autora: Camila Pasqualin Orientadora: Profª. Drª. Maria Luiza Andreazza Palavras-chave: Práticas curativas, religiosidade popular, criminalização No decorrer da história da humanidade, observa-se a busca de compreensão do mundo pelo homem. Isso ocorre, na maioria das vezes, através de atitudes que procuram uma aproximação com o transcendental, ou o desconhecido. Essa busca de entendimento ou superação do mundo real com todas suas dores, medos e agonias, costuma resultar, em sociedades tradicionais, na submissão religiosa e no uso de práticas mágicas. O enfrentamento do medo pelo homem pode ser considerado um dos principais motivos para a busca de explicações aos infortúnios. Para Delumeau, na Europa do começo da Idade Moderna, o medo, camuflado ou manifesto, está presente em toda parte. Assim é em toda civilização mal armada tecnicamente para responder às múltiplas agressões de um meio ameaçador.” 1 Naquela sociedade estavam presentes inúmeras crenças mágicas, que tinham implicações sociais e intelectuais, refletindo seu meio inseguro, assombrado por pestes, escassez de alimentos, baixa expectativa de vida e falta de higiene 2 . Por outro lado, começa a organização de um pensamento científico, que não coincide, e por seu fundamento crescentemente racionalista, tende a coibir o pensamento mágico então vigente. Segundo Muchembled 3 , o período anterior ao século XV é caracterizado pela dispersão da cultura popular. Essa dispersão é vista como mecanismos de sobrevivência em meio a um mundo hostil. A partir do século XV até o século XVIII, observa–se na Europa em geral, a busca por uma homogeneização dos costumes e crenças, através da repressão exercida, entre outros, pelos representantes da Igreja no período. Tendo como pressuposto que a coibição das práticas mágicas curativas é resultado da busca da separação entre saber popular e saber erudito que ocorre no início da modernização, foi intenção da pesquisa investigar a criminalização das práticas curativas tradicionais, efetuando a análise da obra Malleus Maleficarum publicado em 1486. Essa obra, em que pese sua função no interior da disseminação do ideário cristão, será considerada um indicador da transição da racionalidade tradicional e mágica para a racionalidade newtoniana. O capítulo 1 - O pensamento científico no mundo erudito do final da Idade Média e Primeira Modernidade discorre sobre a constituição da ciência moderna, o Renascimento e a busca pela homogeneização da cultura, sendo observada a rivalidade entre cultura erudita e cultura popular. Nos séculos XIV, XV e XVI ocorre a criação de um “campo científico” que tende a produzir discursos cada vez mais especializados que de certa forma prenunciam o 1 DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente : 1300 – 1800 Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 41. 2 THOMAS, K. Religião e o declínio da magia: Crenças populares na Inglaterra Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 19. 3 MUCHEMBLED, R. Culture populaire et Culture des elites dans la France moderne (XV – XVIII siècle). Flammarion, 1978 2 pensamento científico moderno com posturas como a verificação empírica e o fracionamento dos problemas. Esse pensamento produz uma cisão e intolerância para com as formas de pensamento que lhe sejam alheias. As calamidades que ocorriam no período estimulavam os intelectuais, assim como a população em geral, a acreditarem numa intervenção dos demônios no mundo. As crises econômicas do começo do período moderno, guerras, fome e pragas reforçaram a convicção de que o diabo era ativo no mundo material. A interpretação do imaginário e crenças sobre o Diabo como auxiliador nos processos que envolviam a cura, doenças e mortes era uma constante naquela sociedade. Essas proposições estão explícitas na leitura e análise do Malleus Maleficarum. Várias forças interagiam nessa sociedade, tendo como objetivo a uniformização dos costumes e crenças. Utilizando a sugestão proposta por Phillipe Ariès4 , essas forças foram a Igreja, a Escola e o Estado. Deste ponto de vista, a obra Malleus Maleficarum pode ser considerada um instrumento utilizado para buscar essa homogeneização, exercendo para tal fim, a punição e a morte. O Malleus Maleficarum demonstrava a repressão que existia contra as pessoas comuns que se utilizavam da medicina tradicional, e da práticas mágicas curativas. Bethencourt considera a classificação das heresias como um instrumento fundamental de afirmação estatuária das Inquisições, que lhes permitem exprimir sua posição central na definição das fronteiras da ortodoxia. Com efeito, o trabalho de classificação desempenha um duplo papel; por um lado, de normalização das práticas e das crenças da população; por outro, de imposição da preeminência do tribunal e, face dos outros organismos da Igreja 5 . Nesse cenário social, as formas de pensamento das pessoas comuns tendem a ser desvalorizadas, enquanto determinadas formas discursivas passam a ser as falas autorizadas. Esse campo de contradições permitiu que, em termos analíticos, fosse possível sugerir uma inflexão em torno dos séculos XVI e XVII, marcando-se essa fase como a do progressivo abandono da diversidade cultural, solapada pela busca da homogeneização dos costumes e práticas em geral. Elias verificou que o processo de civilização é uma alteração do comportamento e da sensibilidade humana numa direção muito definida. A civilização não é um produto da razão humana ou o resultado de uma planificação calculada a longo prazo. Nada indica que as alterações tenham sido realizadas “racionalmente”, como através de uma educação conseqüente de pessoas ou grupos de pessoas 6 . Para Elias, a civilização não é algo “racional”, como também não é algo “irracional”. É cegamente posta e mantida em movimento pela dinâmica própria de um tecido de relações, por alterações específicas na maneira como os homens tem de viver uns com os outros. Mas não é, de modo algum, impossível fazer dela algo mais racional, algo que funcione melhor, no sentido de nossas necessidades e objetivos. É precisamente no contexto do processo civilizacional que a interação cega dos mecanismos de interdependência dá, ela própria, gradualmente, maior margem para intervir, tanto no domínio das estruturas sociais como das psíquicas, de uma forma planificada e com base no conhecimento das regularidades não planeadas dessa interação. 7 4 ARIÈS, P. História da vida privada, 3 : da Renascença ao Século das Luzes / organização Philippe Àries e Roger Chartier : tradução Hildegar Feist. – São Paulo : Companhia das Letras, 1991. p. 7. 5 BETHENCOURT, F. História das Inquisições : Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV-XIX. São Paulo Companhia das Letras, 2000. p 296. 6 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizacional. Investigações sociogenéticas e psicogenéticas 2º Volume. Transformações da Sociedade Esboço de uma Teoria da Civilização. Tradução de Lídia Campos Rodrigues Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990. p. 187. 7 Ibid., p. 189. 3 O caso de Menocchio analisado por Ginzburg em O Queijo e os Vermes é exemplo da posição da Igreja no século XVI em relação com as idéias diferenciadas do moleiro. Ginzburg, em seu prefácio à edição italiana, reconstrói um fragmento do que se costuma denominar “cultura das classes subalternas” ou ainda “cultura popular” 8 . Para Thomas, as crenças mágicas eram intimamente ligadas com a compreensão popular das idéias religiosas. Ambas ofereciam uma explicação para o infortúnio e a adversidade da vida. Assim, as crenças mágicas representavam rivalidade com os ensinamentos cristãos, através da mescla de seus componentes religiosos 9. A ciência ocidental se constituiu no interior do campo teológico, ou pelo menos, com estreita relação com ele 10 . Wortmann 11 analisa a formação de uma ambígua relação entre ciência e religião, já que o discurso científico se constitui em debate com o discurso religioso e o campo da ciência se forma por desimbrincamento do campo teológico. O Renascimento não conseguiu realizar plenamente essa separação, mas foi nesse período que ela se iniciou. Não se deve pensar que os construtores da ciência, como Copérnico, Kepler ou Newton fossem arreligiosos. Apenas transformaram o pensamento religioso ao darem independência ao pensamento científico, mesmo que partindo de princípios místicos. Woortmann considera o Renascimento como um momento de transição fundamental para a ciência moderna – embora esta só tenha se constituído a partir do mecanismo newtoniano – e para as ciências humanas em particular, pois a partir dele uma nova humanidade e uma nova alteridade começam a ser descobertas, juntamente com uma nova cosmografia e uma nova cosmologia. O descobrimento da América pelo Ocidente e a formulação copernicana da relação entre a Terra e o Sol são os marcos fundamentais dessa transformação 12 . O capítulo 2 - A Igreja romana e sua autoridade para o discernimento de práticas sociais corretas e incorretas analisa a Igreja como instituição política, como a Igreja considerava as práticas mágicas de cura, verifica considerações sobre a inferioridade da mulher, aspectos do sabá e a idéia do diabo, como também explica sobre a fonte Malleus Maleficarum. A Igreja Católica na Idade Média pode ser considerada como uma organização totalitária. Tinha um corpo doutrinal definido e abrangente, uma hierarquia organizada, rituais estabelecidos e uma visão clara de sua autoridade e responsabilidade. Qualquer divergência em relação a estes fundamentos constituía um desafio à ordem temporal divinamente ordenada e não podia, portanto, ser tolerada 13. Richards informa que foi no século XII, que as autoridades decidiram que havia chegado o momento de silenciar o tumulto de novas idéias e reintegrar ou eliminar movimentos religiosos dissidentes. A emergência, tanto na Igreja quanto no Estado, de poderes monárquicos centralizados, cujo interesse era manter a unidade e a uniformidade baseadas numa configuração de princípios prescritos – religiosos, políticos e sociais - , fez com que a Europa ocidental passasse a se empenhar numa supressão sistemática da dissensão e da desordem em todas as esferas da vida 14. 8 GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes : o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição; tradução Betania Amoroso/ São Paulo : Companhia das Letras, 1987. p. 16. 9 THOMAS, op. cit. , p. 9. 10 WOORTMANN, K. Cadernos Antropológicos – Série Antropologia, Religião e Ciência no Renascimento. Brasília, 1996. p. 2. < www.unb.br/ics/dan/Serie200empdf.pdf > 11 Ibid., p. 4. 12 Ibid., p. 5. 13 RICHARDS, J. Sexo, desvio e danação : as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. p. 13. 14 Ibid. , p. 20. 4 À medida que se institucionalizou a caça às bruxas na Europa cristã, primeiramente sob o influxo da Inquisição e, num segundo momento, com a participação dos tribunais seculares e das Igrejas reformadas, igualmente se estruturou uma concepção teológica acerca da feitiçaria, de modo a justificar a intolerância. Assim, diversos manuais de caça às bruxas foram surgindo 15. A Igreja não negava que a ação sobrenatural fosse possível, mas enfatizava que tal ação só poderia emanar de duas fontes: Deus ou Diabo. Qualquer mago que procurasse alcançar um resultado prodigioso por meios que não fossem nem puramente naturais, nem dirigidos por Deus era culpado de aliar-se tácita ou expressamente, com Satã 16. Foi preciso assimilar a feitiçaria ao satanismo para que a prática da magia fosse incluída como heresia nos códigos canônicos. E foi preciso que a bruxaria passasse a ser interpretada como conspiração satânica contra a cristandade para que a Igreja se decidisse a lançar contra ela o rigor da Inquisição 17. Mesmo com esse momento de transição do conhecimento mágico ao racional, - que vai do século XV até meados do século XVIII - Thomas explica que na aflição, na doença, ou na perda, os homens não se voltam a Deus, mas para as bruxas. Nisso estava o cerne da queixa do clero, e esta não passava de outra maneira de dizer que o curandeiro ameaçava usurpar algumas das suas mais importantes funções. Os leigos recorriam aos feiticeiros para ajuda ou conselhos, e fossem os seus problemas físicos ou psicológicos, encontravam conforto e assistência. A alegação do feiticeiro de produzir resultados práticos tenha tantas vezes parecido mais atraente que a severa insistência clerical de que tudo deveria ser deixado para a inescrutável misericórdia de Deus. 18 Com essa confiança social e terapêutica no curandeiro, e mais especificamente na mulher “curandeira – feiticeira”, a Igreja e os meios eruditos de poder e saber, sentem–se ameaçados. O saber que as feiticeiras possuíam era um saber tradicional, difícil de ser controlado pelo olhar erudito. Surgem então, mecanismos legitimados por essa ordem vigente – como a Inquisição - para coibir as práticas mágicas que não se enquadravam nos padrões estabelecidos pela Igreja. Os dominicanos inquisidores ativos, Heinrich Kramer / Institoris e Jacob Sprenger fundamentaram de maneira pretensamente científica a doutrina oficial da Igreja Católica e a base teórica de toda bruxaria dos tempos modernos no Malleus Maleficarum. Esse manual definiu a bruxaria definitivamente como um pacto real entre o demônio e a bruxa, realizado verdadeiramente por ato sexual e com isso, a abjuração direta e herética à Deus 19 . O declínio das práticas mágicas ocorre através de sua criminalização pelos órgãos reguladores dessa sociedade. O Malleus Maleficarum atua como instrumento pedagógico da Igreja Católica, ao distinguir a religião da magia e da feitiçaria. O Malleus explica a etimologia da palavra Feminina da seguinte maneira: Femina vem de Fé e Minus, por ser a mulher sempre mais fraca em manter e em preservar a sua fé 20 . O capítulo 3 – A criminalização das práticas de cura tradicionais trata das principais características das práticas mágicas de cura popular, da medicina oficial e da criminalização exercida pela Igreja a essas práticas. 15 LOPEZ, Luiz R. História da Inquisição : Porto Alegre : Mercado Aberto, 1993. p. 58. THOMAS, op. cit. , p. 215. 17 LOPEZ, op. cit. , p. 53. 18 THOMAS, op. cit. , p. 223. 19 MAINKA, P. J. A bruxaria nos tempos modernos. HISTÓRIA: QUESTÕES E DEBATES, Curitiba n. 37, Editora UFPR, 2002. pp 116-117. 20 INSTITORIS Heinrich, O Martelo das Feiticeiras, Heinrich Kramer e James Sprenger. Tradução de Paulo Froes. 8ª edição, Rio de Janeiro – RJ: Rosa dos Tempos, 1991. p. 177. 16 5 Na Breve Introdução Histórica da edição usada do Malleus Maleficarum 21 , Rose Marie Muraro salienta que desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes era transmitido de geração em geração. Na Idade Média, seu saber se intensifica e aprofunda. As mulheres camponesas pobres não tinham como cuidar da saúde, a não ser com outras mulheres tão camponesas e tão pobres quanto elas. As curadoras eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram também as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e as médicas populares para todas as doenças. Assim sendo, percebe se que a feitiçaria no começo da Idade Moderna desempenhava, entre inúmeros outros, um papel terapêutico, através das formas populares de cura exercidas em sua grande maioria por mulheres. E sobretudo, percebe-se que as curandeiras – feiticeiras, eram pessoas que estavam presentes no meio social, e integravam significativamente o cotidiano daquela sociedade. Para Monteiro, o curandeiro é uma confluência entre médico e religioso popular, na maioria das evidências. Atende a necessidades físico-espirituais com medicamentos caseiros, mas também pode utilizar elementos místicos para a cura, pois esta pode ter uma causa sobrenatural, que muitas vezes para a população, a medicina oficial não averigua. Neste caso, a linguagem simbólica do ritual do curandeiro é muito mais eficiente do que a linguagem médico científica. 22 Thomas destaca a relutância obstinada dos setores mais baixos da população em renunciar aos seus curandeiros. Eles percebem que as pessoas morriam mesmo nos hospitais, e que os europeus não tinham praticamente nenhum remédio para problemas como esterilidade e impotência. Portanto, aferram-se aos seus remédios tradicionais, alguns dos quais dão certo alívio e reconforto psicológico que não se encontra no medicamento ocidental. Um remédio indolor parecia atraente ao lado da perspectiva de uma cirurgia ou uma dieta de purgantes e vomitórios 23. Assim, verificamos que as práticas mágicas de cura eram uma constante nos meios sociais populares europeus da Primeira Modernidade. As camadas sociais populares que as utilizavam atribuíam-nas credibilidade e eficácia. Já os meios eruditos atribuíam a essas práticas o caráter de crime e as tratavam com repressão. Isso demonstra a rivalidade na imposição de um novo discurso de saber, o avanço do saber médico, como também a rivalidade dessas curandeiras com a Igreja. A diferença entre os religiosos e os mágicos residia não tanto nos efeitos que alegavam alcançar, e sim em sua posição social e na autoridade em que se fundavam suas respectivas pretensões 24 . Thomas argumenta que a ciência e a tecnologia tornam a magia redundante, quanto mais forte é o controle do homem sobre o ambiente, menos ele recorre aos remédios mágicos. Os propósitos pelos quais a maioria dos homens recorria a feitiços ou aos curandeiros eram precisamente aqueles para os quais faltava uma técnica alternativa adequada 25 . Os autores do Malleus Maleficarum destacavam a natureza criminosa das práticas mágicas de cura, e não questionavam sua utilidade ou eficácia, mostrando que essas práticas eram tidas como eficazes até mesmo nos meios eruditos. 21 Ibid., p. 14. MONTEIRO, Paula. Magia e pensamento mágico. São Paulo, Editora Atica, 1990. p. 63. 23 THOMAS, op. cit., p. 178. 24 Ibid., p. 53. 25 Ibid., p. 528. 22 6 Verificamos com a análise da fonte, que não existia uma forma da mulher ser curandeira sem ter feito pacto com o diabo. E os que a essas mulheres recorriam também eram acusados de detratarem a Fé Cristã. Thomas 26 explica que a crença nas bruxas também ajudava a encobrir as insuficiências dos profissionais médicos da época. Não faltam casos bem documentados em que um diagnóstico de bruxaria era sugerido ou confirmado por médicos da época. Embora algumas autoridades sugerissem que as bruxas podiam infligir doenças naturais, a posição mais comum era dizer que a ausência de uma causa natural identificável para uma doença era sinal de bruxaria. Era opinião geral que a incapacidade de um médico douto em identificar a causa dos sofrimentos de um paciente era uma forte indicação de bruxaria 27 . Dessa forma Thomas explica que a crença na possibilidade da bruxaria cumpria a útil função de fornecer à vítima de um infortúnio uma explicação, quando não havia outra. Ela suplementava as deficiências da técnica contemporânea, em especial da técnica medica 28 . Como a medicina era impotente perante a maioria dos riscos à saúde, as pessoas recorriam às feiticeiras para serem curadas e receberem alivio para suas aflições de saúde. Havia uma profissão médica em organização, mas com pouco a oferecer. No geral, a medicina baseava-se na proposta galênica, na qual a doença era resultado do desequilíbrio entre os quatro humores corporais, o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra. Os remédios consistiam em sangrias, purgantes ou vomitórios. Thomas informa que a incapacidade dos médicos contemporâneos em oferecer terapia não importava para a maioria da população, pois esse serviço estava fora de seu alcance. Com essas circunstâncias precárias de saúde, as pessoas utilizavam a medicina caseira, na qual toda mulher tinha seu repertório de remédios próprios. A cura ritual e a feitiçaria também serviam ao propósito da cura29 . Natalie Zemon Davis analisa a linhagem de livros sobre “erros populares” sobre a medicina e a saúde, originada em 1578 com Laurent Joubert, chanceler da Faculdade de Medicina da Universidade de Montpellier 30 . Davis informa-nos que Joubert queria usar a imprensa como um modo de controle da prática médica e do povo – “conter o povo dentro dos limites de sua profissão” como disse um de seus seguidores. Planejava registrar e corrigir os erros populares sobre a saúde e a medicina. Seu livro era uma espécie de diálogo no qual cada capítulo começava com um ditado ou costume popular, depois documentado e discutido a partir de seus vários anos de prática. Ele era um compilador atento: como poderia ele convencer as pessoas a mudarem sua maneira de ser se ele não fosse preciso a respeito do que é que estava errado no que faziam? 31 As características que Joubert atribuía à cultura popular eram perpassadas pela noção de que eles viviam em erro e ignorância. Via o povo como desprovido de consciência, os educados tinham de explicar-lhe o significado de seu comportamento 32 . Pode–se observar que o cristianismo oficial e a ciência, em especial, a ciência médica, encontravam-se em conflito com a religiosidade e crenças populares, que permaneciam ativas mesmo com a repressão exercida pelos meios de controle daquela sociedade. Portanto, em finais do século XV, as feiticeiras aparecem no Malleus 26 Ibid., p. 433. Ibid. , p. 434. 28 Ibid. , p. 435. 29 Ibid. , p. 24. 30 DAVIS, N.Z. Culturas do Povo : sociedade e cultura no início da França moderna; tradução de Mariza Corrêa/ Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1990. pp 210-211. 31 Ibid., p. 212. 32 Ibid., p. 212. 27 7 Maleficarum como agentes sociais perigosos, que mantinham e disseminavam as crenças não permitidas pela Igreja. É evidente que ampla historiografia reitera essa questão. Nos escritos eruditos analisados por Natalie Z. Davis, por exemplo, os curandeiros e curandeiras, ainda em finais do século XVI, são considerados perigosos à saúde da população, pois seriam detentores de crenças “ignorantes e erradas”. A existência da repressão às práticas mágicas curativas demonstra que os indivíduos que as exerciam rivalizavam com as pessoas legitimadas pela Igreja para o objetivo de evangelizar e fortalecer a crença cristã oficial. Assim, acreditamos que as práticas mágicas de cura eram necessárias às pessoas que a elas recorriam, pois não tinham alternativa disponível ou viável, às que as praticavam, como também às elites cultas dirigentes que atribuíam, a bruxaria de um modo geral, uma explicação para seus mistérios ou temores. A repressão exercida tinha a intenção de consolidar a supremacia da Igreja sobre a humanidade e também, dessa forma, possuir o controle dos males a que esta exposta, através da extinção do Diabo na esfera terrestre e das heresias. As práticas mágicas de cura demonstram aspectos da religiosidade popular que sobreviviam em meio à repressão e à condenação inerente ao período estudado. Observou-se a rivalidade, por parte das autoridades eclesiásticas com relação a essas feiticeiras, tanto por seu poder não reconhecido, por sua ameaça aos poderes da Igreja e pela incompatibilidade de pensamento em meio ao novo discurso científico que então se estabelecia.