IDIOMA 21 - Instituto de Letras

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IDIOMA 21
A reprodução deste artigo só está autorizada com a indicação completa da fonte:
Idioma, 21. Rio de Janeiro: Centro Filológico Clóvis Monteiro – UERJ, 2001
(http://www.institutodeletras.uerj.br/revidioma/21/idioma21_a06.pdf), p. 40-8.
ENSINO DE LÍNGUA MATERNA:
FINALIDADES E PRÁTICAS DISCURSIVAS
Marísia Teixeira Carneiro (UERJ)
Cada um de nós adquiriu espontaneamente a língua que ouviu desde os primeiros
dias de vida. Língua de nosso meio familiar, estamos tratando da língua materna. Sua
aquisição intuitiva e espontânea, sem mestre, é evidência de que nascemos
predeterminados a aprender qualquer língua, desde que estejamos expostos à fala daqueles
que nos cercam, experimentando juntos os mesmos modos de viver. A língua materna nos
auxilia na comunicação interpessoal, na representação das imagens, que construímos, do
mundo conhecido, compartilhado, e também, na expressão de emoções e sentimentos mais
autênticos. Usamos, portanto, essa língua para representar imagens e conceitos
decorrentes do conhecimento de mundo e da necessidade de partilhá-lo. A partir da
percepção da realidade, produzimos imagens e formamos conceitos quando inserimos os
objetos em um contexto prático de uso (cf. Moreno, 1995: 49). Tecemos, dessa maneira, a
trama das relações comunicativas, nos diversos cenários de práticas sociais da linguagem.
Quando a diversidade e a complexidade do mundo cultural exigem que entremos
pelas sendas da educação formal, que nos é transmitida pelas instituições escolares, já
somos efetivamente usuários de uma língua, cujas estruturas dominamos como falantes
nativos. Em nosso caso, somos depositários da gramática natural da língua portuguesa. É
uma gramática que internalizamos ao longo de todo o processo de aquisição e
desenvolvimento da linguagem, a partir dos primeiros dias de vida. Dominamos o léxico e as
estruturas fonológica, morfológica e sintática, , sem saber descrevê-las e explicá-las,
desconhecendo a metalinguagem. A prática sem teoria caracteriza o uso da língua materna
pelos falantes não iniciados na escola.
Aplicamos as palavras em situações de interlocução, produzindo diferentes tipos de
textos, orais e escritos, onde, segundo Halliday (in Bernstein, 1973), cada função
(instrumental, heurística, interpessoal, pessoal , imaginativa, interacional, etc) se torna
predominante em relação às outras. Falamos para ser atendidos nas nossas necessidades
imediatas do dia-a-dia (“Me dê um copo d’água”), para declarar o que sabemos (“Uma
alimentação adequada pode nos ajudar a curar certas doenças”), para transformar o mundo
conhecido através de imagens subjetivas (“O Flamengo vai à guerra”) , para estabelecer
relações com o interlocutor (“Aproxime-se, amigo”) , para expressar emoções sentimentos
(“Que bom, ele vai chegar amanhã!”). Usamos a língua em todas as suas funções, porque
isso também adquirimos espontaneamente. Na escola, vamos lidar com abordagens dessas
funções e do material lingüístico que lhes serve como suporte. Ouviremos muito sobre o que
já sabemos, através da metalinguagem que aos poucos nos vai ficando clara, mas sempre
mantendo um certo estranhamento em relação ao nosso saber natural por causa do modo
eventualmente inadequado. Ali, não obstante, os professores nos oferecem também
novidades interessantes que dão vida ao mundo da escrita: a leitura e a produção de texto.
O que a escrita nos traz é vantajoso porque representa a fala que por sua vez
representa o mundo. A escrita constitui uma atividade metalingüística (cf. Olson & Torrance,
1995: 13). Através dela podemos refletir sobre a própria fala. Eis o seu caráter de
Ensino de língua materna: finalidades e práticas discursivas; por Marísia Teixeira Carneiro; IDIOMA 21; p. 40-48
instrumento epistemológico da fala. Através da escrita percebemos múltiplos universos,
onde coexistem mundos de fenômenos, de seres e objetos surpreendentes, mundos de
sonhos e personagens misteriosos, fantásticos, e humanizados: a ciência e a literatura. E
tudo isso encontramos nos livros. A leitura é, portanto, necessária. E a escritura também. É
o que vamos aprender na escola: leitura e escrita. E a nossa língua materna reveste-se,
assim, de uma nova função: a de língua de cultura. Com ela vamos adquirir novos
conhecimentos e aprender a pensar criticamente a realidade. Estaremos, desse modo,
construindo nossa educação, inacabada e transformadora.
Compreendemos a função cultural da língua materna, ao pensar que somos diferentes
dos demais animais porque desenvolvemos, na prática da vida social, a consciência de
nossa natureza e do mundo em que vivemos: “as origens da consciência humana não se
buscam nem nas profundidades da alma, nem nos mecanismos cerebrais, mas sim na
relação do homem com a realidade, em sua história social, estreitamente ligada com o
trabalho e a linguagem.” (Luria,1987:.23).
E essa relação é motivada, sobretudo, pela curiosidade (cf. Popper & Eccles, 1992:
37), que nos torna capazes de observar a natureza exterior ao nosso ser inacabado.
Portanto, a nossa busca é constante; desejamos sempre ir além. Assumimos, então, o papel
de sujeitos de nossa própria educação. Nessa busca, a linguagem, dos gestos e das
palavras, é instrumento imprescindível. E a língua materna impõe-se como nossa
companheira, porque o caminho é a comunicação com os outros. Nesse processo estamos
sempre sentindo a necessidade de nos superar: o conhecimento traz respostas, mas muito
mais perguntas, o que nos torna cada vez mais humildes, porque tomamos contato com a
realidade de nossa ignorância.
Assim, nos humanizamos. Alunos e professores, todos aprendizes, solidários,
entendemos, que não pode ser educador quem não é capaz de amar seres inacabados (cf.
Freire, 1979: 29). Somos, ao mesmo tempo, sujeito e objeto cognoscentes. Transformamos
e recriamos a realidade, produzindo cultura com a nossa língua portuguesa, nossa língua
materna. Em razão disso, a comunicação pedagógica se orienta para buscar o efetivo
desenvolvimento da leitura crítica do mundo, que se manifesta nas práticas orais e escritas.
Na escola se instaura o confronto entre o que é e o que deve ser, ou o que pode ser.
Não entramos para escola para nos adaptar, adverte Paulo Freire (idem: 31). Ali a
nossa esperança é alimentada a cada momento pela confiança que desenvolvemos em
nossa capacidade de criar. A palavra não nos serve se estiver aprisionada pelo passado,
que explica o presente, mas tem as costas voltadas para o futuro. A palavra tem que estar
viva, servindo ao nosso modo de viver, ajudando-nos a buscar a liberdade de ser. É na sala
de aula que experimentamos esta realidade: a palavra viva que aproxima, integra e acima
de tudo abre janelas para universos desconhecidos, que animam a curiosidade e a
necessidade de fazer algo, de construir o futuro porque aprendemos até mesmo a querer. E
não há dúvida de que somos capazes. Querer é poder.
No âmbito geral da educação, a língua portuguesa, entre nós, tem uma função
primordial: é o instrumento que nos auxilia na conquista de um saber que não se limita ao
mundo exterior, mas que nos ajuda a ir além do dizível, fazendo-nos compreender o silêncio
pleno de sentido, no plano das emoções e dos sentimentos verdadeiros. O processo de
educar só tem princípio, mas não tem fim. Nele a escola funciona como um momento. O
encontro dos grupos, nas classes, nos pátios, enfim, em todas as práticas escolares, se faz
para que compreendamos que a busca é de todos, e que por isso mesmo é necessário
compartilhar saberes, sentimentos, idéias, dúvidas.
Nesse período que se estende por oito anos, ou mais, tornemos para nós bem claras
as finalidades do ensinar e do aprender a língua portuguesa. Está evidente que ela coopera
no processo de transformação do homem e da sociedade. Reconhecer as metas principais
do ensino de Língua Portuguesa no curso fundamental e compreender as razões que as
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justificam são requisitos para a escolha da metodologia de ensino adequada. Que esta seja
eficaz, quanto aos resultados, e eficiente, quanto à aplicação de estratégias, à seleção do
conteúdo, e ao aproveitamento do tempo e dos recursos disponíveis. Para que tudo isso se
concretize, importa definir e explicar as finalidades do ensino de língua portuguesa no curso
fundamental e, também, o quanto é relevante reconhecer as práticas discursivas que lhe
servem de suporte.
Como atividade básica da educação formal, a língua portuguesa se envolve em todas
as práticas escolares, como instrumento de comunicação, que lhes dá vida, e
simultaneamente serve de apoio aos processos cognitivos, atuando e cooperando, dessa
maneira, na transformação do homem e da sociedade. A língua materna, construindo o
homem, é , também, ação pedagógica e educadora: facilita-nos a consciência da falta de
objetos que ela busca realizar ou alcançar. Por isso ela se inclui complexa dinâmica da
aprendizagem e da produção de conhecimento.
Constamos, portanto, que são muitas as necessidades de aprendizagem a serem
atendidas. Estas necessidades nos mostram o caminho da definição das finalidades do
ensino de Língua Portuguesa, as quais têm de ser consideradas no planejamento didático.
Na verdade, essas finalidades são intenções provenientes de ideologias e dos modos de
organização das instituições sociais e da sociedade como um todo, o que se reflete nas
práticas escolares. Estas servem de elo entre o sistema social, onde se cria a realidade do
aluno, e a escola. Eis o que considero como principais finalidades do ensino de Língua
Portuguesa:
a) consolidação da língua nacional, como língua oficial do país, atendendo à
necessidade de se manter a unidade política alcançada por uma língua comum, dentre
outros meios; nosso país tem um vasto território onde muitas cidades são separadas por
enormes distâncias, e todos felizmente falam a mesma língua. Para que fatores
extralingüísticos não ameacem essa unidade, que é um bem para nós brasileiros, a escola
tem de estar presente, levando a todos a escrita; desenvolvendo as habilidades de leitura e
de produção de texto;
b) difusão da língua-padrão como variante de prestígio político-cultural; fixando-se na
escrita as normas de uso da língua nas práticas sociais tidas como atividades discursivas
restritas a situações protocolares e oficiais, e reproduzindo-se na modalidade oral. Despertase, desse maneira, a consciência da heterogeneidade intrínseca a toda língua natural e
difunde-se a aceitação dos fatos da variação lingüística, condicionados por fatores externos
e internos à língua;
c) acesso à cultura dominante nas suas vertentes técnica, científica, artística e política
a fim de evitar que outra língua nos seja imposta como língua de cultura, e a língua
portuguesa se restrinja a “mero instrumento de comunicação elementar entre os seus
usuários" (cf. Cunha, 1981: 24);
d) assunção da atividade lingüística como um meio de manifestação do pensamento e
de interação social, o que alcançamos quando agimos ativamente para compreender os
processos que organizam o mundo conhecido e para transformar os seus efeitos que se
contrapõem ao que desejamos, isto é, a humanização das nossas relações com o outro;
e) acesso ao letramento, buscando-se transformar o falante, inicialmente usuário da
modalidade oral da língua, em agente da leitura crítica e da produção de texto , integrando
os atos de recepção e de emissão das mensagens transpostas para o meio escrito. Dessa
maneira se constróem sujeitos cooperativos que têm objetivos comuns nas relações
interlocutivas em que uma ou outra modalidade é aplicada;
f) consciência das estruturas, ou seja, das formas do sistema lingüístico, descrito e
explicado na metalinguagem produzida pelos teóricos da linguagem verbal.
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Além dessas, consideramos relevantes, as finalidades decorrentes de dois fatosproblema, um social, outro lingüístico, característicos de nossa realidade. São fatos que
complicam o processo ensino-aprendizagem e comprometem o envolvimento que
professores e alunos devem ter com a meta principal da educação: a humanização da
sociedade. Ei-los:
l. a desumana desigualdade social resultante da perversa distribuição de renda e de
bens culturais no país, o que causa a marginalização da maioria da população, restrita aos
guetos da escassez, das privações;
2. a variedade de dialetos (ou falares) praticados nas cinco extensas regiões do país,
redesenhando a prática da língua portuguesa em todo o território nacional, onde fatores
condicionantes lingüísticos e extralingüísticos, como dissemos acima, explicam as diversas
maneiras de expressão, sem afetar, porém, a unidade lingüística nacional. No Brasil, como
em toda a comunidade lusofônica, a língua manifesta os traços da sua heterogeneidade,
quais sejam as variações sociais, regionais e funcionais, cujas características de distribuição
se devem em parte a aspectos socioeconômicos da realidade.
Por conseqüência, urge que no ensino da Língua Portuguesa se considerem como
finalidades mais gerais , tão prioritárias quanto as citadas anteriormente:
- a compreensão da língua como instrumento de conscientização político-social,
visando ao resgate das injustiças sociais, através da conquista e do exercício da cidadania;
- a consciência da língua como atividade individual e social que se submete ao
usuário, livre em suas intenções e escolhas, mas capaz de reconhecer as restrições do
sistema e do contexto comunicativo, passando a usar conscientemente a língua materna em
seus registros formal e informal.
O quadro socioeconômico adverso que marca a população brasileira impõe à escola a
assunção do papel de co-agente da democratização da cultura dominante da promoção do
indivíduo a patamares superiores de profissionalização. O papel da língua portuguesa nessa
transformação é o de servir de instrumento de difusão cultural, sem se restringir, entretanto,
às determinações de setores preconceituosos da sociedade que, ao estigmatizarem certos
falares, ainda insistem em retirar do falante a liberdade de usar a sua própria língua
(Bechara, 1985). Entre nós, a língua materna deve ser a língua de cultura, vencendo a força
do prestígio do inglês que se intromete sem qualquer restrição em todos os espaços em que
a cultura brasileira deve prevalecer. Essa preocupação mobilizou, em l986, os membros da
Comissão Nacional para o Aperfeiçoamento do ensino-aprendizagem da Língua Materna,
que aborda, em seu relatório, esse fenômeno da realidade lingüística e do ensino da língua
portuguesa no Brasil:
Os estudos e pesquisas acerca das variantes lingüísticas e das diferenças
entre variedades social e culturalmente privilegiadas e variedades social e
culturalmente estigmatizadas não são recentes. No entanto, esses estudos e
pesquisas ainda não beneficiaram o ensino da língua, que tem desconhecido
a existência e legitimidade das variedades lingüísticas, e não tem sabido
reconhecer que seu objetivo último é proporcionar às novas camadas sociais,
hoje presentes na escola, a aquisição da língua de cultura, cujo domínio se
soma ao domínio das variedades naturalmente adquiridas. Sem esse domínio
da língua de cultura pelas camadas social e economicamente desfavorecidas
torna-se impossível a democratização do acesso aos bens cultuais e da
participação política. A comissão entende, pois, que é tarefa fundamental do
ensino da língua, na escola, conduzir os alunos ao domínio da língua de
cultura. (Diretrizes para o ensino-aprendizagem da língua portuguesa. MEC,
1986: 2.)
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A lei 5692/71 (1) trouxe novidades, nesse aspecto, que ficarão indeléveis no ensino da
língua portuguesa: no art. 4. parágrafo 2 destaca a "língua nacional (língua nativa, falada em
todo o território brasileiro – parêntese nosso) como instrumento de comunicação e como
expressão da cultura brasileira". Isto significa que ficam oficialmente abonadas as
realizações dos dialetos sociais e regionais praticados pelos usuários da língua portuguesa
no Brasil. O parecer 853/71 dessa lei recomenda a consideração das modalidades oral e
escrita, o que foi um avanço em relação ao ensino tradicional que se centrava
exclusivamente na escrita (leitura e produção de textos), e também recomenda que se dê ao
ensino da língua portuguesa um indispensável sentido de "expressão da Cultura Brasileira."
Mais que instrumento, porém, a língua é atividade de interação social. Ela não existe
separada do homem, porque este é linguagem. Enquanto atividade social, a língua é antes
de tudo ação; é atividade identificada com o fazer do homem, quer transformando a
realidade exterior, quer refletindo sobre ela. A língua é, pois, reflexão também.
Produtivamente, construindo e reconstruindo as expressões lingüísticas que
concretizam os discursos, em situações variadas da interação comunicativa, o usuário tem
liberdade de criar e recriar, subjugando a palavra, tornando-a cúmplice de seus propósitos
comunicativos, sem ignorar as restrições formais que , em certos níveis, limitam o uso. Ele
tem direito de expressar-se e comunicar-se através da língua materna, aplicando os
parâmetros do sistema verbal e da realidade que o cerca, coerente com o sistema social e
com a cultura nativa. A língua materna é manifestação de um sistema comum à sociedade
como um todo e destinado a comunicar as normas, os valores e as crenças que orientam (e
ideologicamente manipulam) o comportamento social e a cultura.
Conservando essas orientações, a atual LDB, lei nº 9 394, sancionada em 20 de
dezembro de 1996, apresenta-as de modo implícito quando promove o professor ao
desempenho de orientador da educação enquanto processo formativo, descaracterizando o
ensino como atividade basicamente instrucional, salientando que a aprendizagem “é uma
reconstrução permanente, devendo usar de todos os espaços e tempos que a favoreçam,
não podendo, por isso, limitar-se a paradigmas rígidos presenciais ou não-presenciais,
formais ou não-formais,...”, e finalmente centralizando a aprendizagem no “processo
reconstrutivo do aluno” (cf. Demo 1997: 45). Não são necessárias explicações adicionais
para entendermos que a nova Lei de Diretrizes e Bases reforça e mantém a função
essencial da língua portuguesa na aprendizagem escolar: instrumento da cooperação
necessária entre os parceiros da comunicação pedagógica.
A política educacional do Governo atual, ao direcionar-se para as questões
metodológicas de ensino, recomenda a leitura e a produção de texto, como práticas que
direcionam as atividades de linguagem para os discursos produzidos pelas práticas sociais e
culturais, trazendo temas diversificados aos debates e discussões em sala de aula.
Incentiva-se, deste modo, o ensino de línguas enraizado no contexto. Evidentemente, esse
procedimento, por si só, não resgata a cidadania, dos efeitos da opressão econômica em
que nosso país vive hoje, mas não deixa de ser alguma chance para os cidadãos tomarem
consciência de sua realidade.
Por conseguinte, a língua portuguesa, sendo, também, língua de cultura, possibilita o
intercâmbio de conhecimentos que fundamentam a reflexão crítica da realidade, reflexão
necessária para tornar o aluno um cidadão consciente das relações de produção e das
formas de organização do trabalho na sociedade capitalista caracterizada, hoje, de modo
acerbado, pela competitividade. Esse é o aspecto mais saliente do intercâmbio dos agentes
institucionais do atual sistema social, o que exige a redefinição crítica das finalidades e
objetivos educacionais e nos motiva a renovar as metodologias. Superamos, dessa maneira,
dificuldades decorrentes do distanciamento entre a escola e os interesses da comunidade
discente.
Alem disso, são, também, causas das dificuldades enfrentadas durante a
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aprendizagem, quando, sobretudo na escola pública, se reúnem alunos procedentes das
classes populares, filhos de trabalhadores despossuídos de tudo, até mesmo de capital
cultural que lhes dêem condições de interagir com indivíduos das classes dominantes.
Sobre esse papel da escola na formação da cidadania, a compreensão das relações de
trabalho é um tema imprescindível nas salas de aula. Conforme Franco (1987) o ensino da
língua portuguesa deve tentar desmistificar a propalada qualificação para o trabalho como
um dos objetivos gerais do ensino fundamental, já que sabemos que o capitalismo
monopolista fragmenta o trabalho à medida que controla a mão-de-obra e o cérebro do
trabalhador. Assim, as intenções democráticas que possam predominar numa sociedade
sugerem um professor não identificado com o capitalista, que distribui desigualmente o
saber.
Por tudo isso, salientamos que o ensino de Língua Portuguesa visa, antes de tudo, ao
domínio da língua de cultura para que auxilie o aluno do ensino fundamental, na sua
preparação, sem ilusões, para o mercado de trabalho, no autoconhecimento e no
amadurecimento da consciência social, o que o tornará apto a exercitar sua cidadania, com
direito a beneficiar-se da tecnologia, da ciência e da arte.
De fato estamos muito longe dessa utopia, mas ela serve para nos fazer avançar, nem
que seja um pouco mais, apesar dos que são indiferentes ao bem-estar dos menos
aquinhoados em razão do sistema econômico que domina esta nação. Mas acreditemos na
educação e, sobretudo, na necessidade de o aluno dominar a variedade culta, cabendo ao
professor o dever de agir em proveito da democratização do saber, sem discriminar nem
reprimir os demais usos da língua, nem os seus usuários.
A questão que agora se impõe em conseqüência do que foi explanado é saber de que
maneira o ensino tem de ser conduzido a fim de que aquelas finalidades permaneçam
concretizadas. Vale relembrar que todas as finalidades que expusemos aqui, investem-se da
mesma dinâmica das práticas sociais, quando vistas como manifestações de
comportamentos esperados. Os aprendizes, afinal, ingressam na escola para aprender a
desempenar-se como cidadãos, socialmente produtivos, capazes de assumir seus direitos e
obrigações, usando a língua como instrumento de construção de sua identidade individual e
coletiva. Ele deve saber falar com adequação, ao atuar numa reunião de condomínio, numa
negociação de compra e venda, numa entrevista com uma pessoa íntima, numa entrevista
com seu subordinados, no trabalho.
O indivíduo se constrói na e pela linguagem. Por isso concordamos que a linguagem,
mais que representação é determinação porque o discurso de cada um de nós vem do
entrecruzar de várias vozes, de cuja experiência construímos nossos objetos comunicativos.
Nossos textos nunca são originais, eles se tecem de outros textos. Em razão disso, Geraldi
(1993) destaca o texto como o espaço onde tem origem a aprendizagem da língua:
“Considero que produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de
chegada) de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua” (cf. Geraldi, 1993: 135).
O texto do aluno é, sem dúvida, o espelho de suas dificuldades e conquistas. Para se
dedicarem às atividades de produção escrita, aplicando-se à composição de textos em que
se exercitem os gêneros, necessários às diversas práticas sociais (descrever, explicar,
informar, julgar, aprovar, persuadir, agradecer, felicitar), o aluno fará, também leituras
orientadas, receberá orientações do professor. Este o motivará para querer dizer o que é
condição para o estudo interessado do vocabulário, das estruturas, e das idéias. Todo texto
se espraia de outros textos; a intertextualidade é um dos inevitáveis padrões textuais.
Portanto é preciso aplicar esses conhecimentos aprendidos da leituras sem, no entanto,
confinar-se à prisão de modelos.
Nos dias atuais, o quotidiano do estudante é esvaziado de experiências de escrita.
Portanto, o intervalo entre o texto inicial e o texto final do aluno será preenchido por leituras,
muitas leituras, de textos de gêneros diversos, que na semiolingüística (2) de Patrick
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Charaudeau são considerados modos de organização do discurso: atos comunicativos que
fundamentam a linguagem de acordo com contratos de fala. São quatro esses modos
conforme o predomínio do enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo (cf.
Charaudeau). A sua prática deve dominar, em grande parte, o tempo de aula disponível, na
instância da produção de textos, em seus diversos tipos, segundo as diferentes instâncias
sociais (bilhete, carta, rótulos de produtos, “slogans, textos publicitários, informes, bulas,
receitas, preces, atas, relatórios, resenhas, etc), na reescritura desses textos, nas diversas
atividades de leitura, nos comentários de textos produzidos por alunos e por autores
renomados e em outros momentos em que o texto for tomado como ponto de partida e de
chegada para o desenvolvimento da escrita.
Há muitos detalhes dessa gramática do sentido e da expressão proposta por
Charaudeau, os quais não cabe dar relevo no espaço deste trabalho. Mas, lembremo-nos de
que é atitude pedagógica essencial à eficácia do ensino de língua portuguesa a abertura em
direção à prática da leitura e da escrita, tomadas como as duas habilidades mais
importantes exigidas dos que se encontram em pleno processo de aprendizagem da escrita.
Escolhemos a proposta de Charaudeau para a aplicação pedagógica das bases dos
modos de organização do discurso porque o modelo incorpora os elementos semióticos da
produção do sentido: os componentes da situação (enunciador/destinatário; espaço/tempo).
Além disso ele propõe correlacionar estruturalmente as categorias da língua às categorias
do discurso, por exemplo, ao conceituar e caracterizar as propriedades do modo
argumentativo ele recorre à noção de causalidade e mostra que essa propriedade lógica do
pensamento, se encontra manifestada na organização do discurso e, no texto, pelo uso de
outros conectores além dos de conseqüência e de causa. Podemos, então, trilhar um
caminho bem delimitado de produção de discurso e de texto no sentido de assumir a ”
atividade lingüística”, como dissemos anteriormente, como meio de “manifestação do
pensamento e de interação social.”
Em síntese brevíssima, o modo enunciativo é uma “categoria de discurso que deixa
clara a maneira pela qual o falante interfere na ação comunicativa, deixando claro o seu
ponto de vista. É o ‘gênero” da expressão opinião, da expressão do EU locutor. O modo
descritivo é um processo em que se nomeia, se localiza-situa e se qualifica um ser. O modo
narrativo é uma seqüência de ações e de processos em que os personagens estão
envolvidos na busca de algo que lhe falta. O modo argumentativo reúne duas atitudes do
sujeito argumentante: a busca do verdadeiro e a busca de persuadir o outro a compartilhar
dessa verdade, que comprova a maneira pela qual o falante age sobre a encenação do ato
de comunicação. Nas atividades de sala de aula, as abordagens desses modos, não são,
em termos gerais, distintas da distinção tradicional dos gêneros (narrativo, descritivo,
dissertativo), porém há certas categorias e princípios desse método que abrem espaço para
que o professor tenha melhor desempenho. É evidente que não propomos aqui aulas de
teoria do discurso, mas tão somente idéias que ficarão por trás do professor, orientado o seu
próprio método.
Esses modos aparecem combinados em todos os tipos de texto, que se mostram
diariamente aos olhos dos alunos e caracterizam o texto como narrativo, enunciativo,
argumentativo e descritivo, ou narrativo-descritivo, descritivo-argumentativo, e assim por
diante, na medida em que um deles predomina. Por exemplo: nas citações de trechos da
Bíblia, divulgados em volantes e folhetos, distribuídos nas ruas por seguidores das diversas
seitas evangélicas; nos receituários ; nos “outdoors”. Na bula de remédio ele é basicamente
descritivo-argumentativo: “DILENA comprimidos é uma preparação hormonal bifásica
contendo 11 comprimidos brancos + 10 comprimidos azuis que apresenta como princípios
ativos o Valerato de Estradior e Acetato de Medroxiprogesterona, para uso oral.” Embora as
bulas sejam caracteristicamente descritivas, contêm enunciados em que se manifesta a
intenção argumentativa: “ Se esquecer de tomar 1 comprimido, o mesmo deve ser tomado
na mesma hora que perceber o esquecimento. “. A sala de aula é um espaço onde nunca se
deve perder a oportunidade de tratar os elementos da língua, relacionando-os à situação do
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discurso, considerando-se que o ato de linguagem incorpora elementos que assumem um
contrato de fala.
A quem se destina a bula de remédio? Por que se faz acompanhar o remédio da bula?
No contrato de fala se envolvem o sujeito comunicante, o que quer dizer algo, e um sujeito
interpretante, o que quer receber algo. Ambos efetivamente aceitam cooperar em atos de
troca de mensagens.
Nenhuma das finalidades que expusemos aqui dispensa o texto como ponto de partida
para que se chegue às condições de produção de sentido e se revelem, na leitura, o
universo de conhecimento e de experiência que o leitor - aluno pode trazer ao efetivar a
leitura necessariamente produtiva. Desta maneira vão-se redescobrindo os fios invisíveis
que constituem a propriedade da intertextualidade, necessária a todo texto, porque este não
existe em estado “puro”, isto é, sem vínculos com outros textos. Citando Roland Barthes
(1974) :
O texto redistribui a língua. Uma das vias desta desconstrução é permutar
textos, farrapos de textos que existiram ou existem em volta do texto
considerado e finalmente dentro dele; todo o texto é um intertexto; outros
textos estão presentes nele, em diversos níveis, sob formas mais ou menos
reconhecíveis. (Apud Vigner in: Charlotte et alii, 1997: 32)
Vistas essas sugestões metodológicas, voltemos às considerações a respeito das
finalidades do ensino de Língua Portuguesa. Elas exigem a reflexão do professor sobre a
realidade, no nível social e ideológico mais amplo e no nível imediato da sala de aula.
Assim, ele deve assumir a tarefa de planejamento como exigência do seu compromisso com
o processo de aprendizagem, com seus atores e com a necessidade sugerida pelas
condições em que esse processo se dá. Não existem modelos que possam ser copiados e
estendidos indistintamente a qualquer classe, em detrimento da realidade vivida em sala de
aula, a cada dia. A situação de interação pedagógica é que nos mostra os objetivos a
orientar o planejamento do professor., tendo em vista as finalidades que expusemos no
início deste trabalho. Além disso, os movimentos que têm ocorrido nas escolas em busca de
compreender e adaptar a cada realidade as sugestões dos Parâmetros curriculares do MEC,
produzidos por equipes de especialistas em cada disciplina, têm produzido mudanças
metodológicas nas aulas de Língua Portuguesa, a tal ponto que o ensino produtivo deverá
assumir definitivamente a sua relevância.
Quanto às finalidades do ensino centradas na busca da formação do cidadão brasileiro
consciente deverão estar orientado todo tipo de planejamento de ensino. Não faz sentido
considerar as finalidades sem assumi-las conscientemente. Não faz sentido orientar-se por
modelos de discurso sem matizar as suas propriedades e sem submeter seus modos de
organização às intenções e necessidades do aluno/locutor. Lembremo-nos de que ensino de
Língua Portuguesa tem finalidades que só podem ser alcançadas através dos
desdobramentos das práticas discursivas em sala de aula, tendo em vista as nossas
diferenças dentro da unidade política e lingüística de nosso país.
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GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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Garcia et alii. Campinas & Brasília: Papirus & Editora da UnB, 1992.
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NOTAS:
(1) A nova LDB (Lei nº 9 394), conhecida como Lei Darcy Ribeiro, foi sancionada em
20/12/1996.
(2) SEMIOLINGÜÍSTICA: Método de abordagem da gramática da língua e da organização
do discurso desenvolvido por Patrick Charaudeau em Grammaire du sens et de l’expression.
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