9 UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC CURSO DE DIREITO KEISER MADRID BORGES LOPES DIREITO: INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL (?) CRICIÚMA, 22 DE JUNHO DE 2009 KEISER MADRID BORGES LOPES DIREITO: INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL (?) Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do grau de Bacharel no curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense. Orientadora: Profa. Geralda Magella Faria CRICIÚMA, 22 DE JUNHO DE 2009 KEISER MADRID BORGES LOPES DIREITO: INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL (?) Trabalho de Conclusão de Curso aprovado pela Banca Examinadora para obtenção do Grau de Bacharel, no Curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Criciúma, 22 de junho de 2009. BANCA EXAMINADORA Profa. Geralda Magella Faria – UNESC - Orientadora Profa. MSc. Clélia Mara Fontanella Silveira – UNESC Prof. Dr. André Viana Custódio – UNESC AGRADECIMENTOS À professora Geralda Magella Faria, orientadora, que me proporcionou um desafio e aceitou me auxiliar neste trabalho. Sua paciência e atenção foram indispensáveis para a consecução do mesmo; Aos meus pais, Arino Borges e Deni Madrid Borges; À Sólon Eduardo Lopes, companheiro em todas as horas, que por tantas vezes tive que deixar de lado para dedicar-me à monografia; À Sandra, por todos os seus préstimos durante a elaboração da monografia, sem eles, com certeza, não seria possível esta monografia; Aos amigos (as) pelo incentivo, pelas palavras de apoio, pelos livros e carinho demonstrado; Aos meus sogros, Alzira e Valdir, parte integrante da minha vida e, portanto, merecedores de minha afeição e agradecimento. Por fim, não posso deixar registrar meu obrigado maior e admiração: à todos os professores que me acompanharam nesta jornada. “Aqueles que são diferentes de mim não me prejudicam, muito pelo contrário, eles me enriquecem. Nossa unidade se fundamenta em algo mais elevado do que nós mesmos – no ser humano... Pois ninguém quer ouvir seu próprio eco nem encontrar a própria imagem em um espelho.”(PILOTO DE GUERRA apud SAINT-EXUPÉRY, 2003, p. 23). RESUMO O presente trabalho monográfico pretende abordar a temática da pacificação social dos conflitos por meio do Direito. O paradoxo criado pelo Direito enquanto instrumento de resolução dos conflitos sociais propicia expectativas acima da efetividade proclamada. As respostas ofertadas são insatisfatórias, ante a fragmentação da realidade em opostos inconciliáveis. A dicotomia gerada pela atuação fragmentária do Direito impede a integração e favorece a crise. Crise de valores, de métodos, de técnicas, ineficazes diante da realidade social, complexa e mutante. Afinal, neste contexto, o Direito é um instrumento de pacificação social? Ou sua instrumentalização visa à manutenção do poder? Para compreender o Direito como instrumento de pacificação social, faz-se necessário observar as concepções teóricas responsáveis pela construção do Direito, enquanto sistema normativo, proveniente da ordem estatal. A problemática centraliza-se na atuação fragmentária do Direito enquanto manifestação estatal, sem que a pacificação social dos conflitos seja obtida. O primeiro capítulo traz as concepções do Direito como: jusnaturalismo, juspositivismo, neopositivismo, neoconstitucionalismo e Autopoeisis. O segundo capítulo expõe os sistemas de Direitos sob a classificação: Common Law, romanogermânico (Civil Law), e, outros sistemas de direitos como: chinês, japonês, africano e muçulmano e suas considerações de Direito sob o ângulo da pacificação dos conflitos. O último capítulo examina as formas de conflitos, os paradoxos do Direito e da pacificação social e os movimentos para obter-se a pacificação social sem a intervenção direta do Estado. O método empregado: dedutivo, baseado em ampla pesquisa bibliográfica, de caráter histórico, sociológico, filosófico e doutrinário. Portanto, o propósito principal é demonstrar que o Direito enquanto normatividade estatal não age como pacificador social e sim, acirra os conflitos. De modo diverso, o Direito pode ser concebido como instrumento de pacificação social se visualizado como manifestação social autopoiética. Palavras chaves: Pacificação social. Direito. Paradoxo. Conflito social. Crise SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 8 2 AS TEORIAS (RE) ESTRUTURANTES DO DIREITO........................................ 10 2.1 As perspectivas doutrinárias (con) formadoras do Direito ........................ 11 2.1.1 O idealismo jusnaturalista na visão do Homem e sua aplicabilidade .... 14 2.1.2 A concretização normatizadora do positivismo e a crise jurídica .......... 18 2.1.3 A proposta (não) transformadora do neopositivismo.............................. 24 3 OS SISTEMAS DE DIREITO: FAMÍLIA OU TRADIÇÃO (?) .............................. 34 3.1 O sistema Common Law: existe remédio para pacificação social ............ 41 3.2 O sistema romano-germânico – Civil Law: o (re) nascimento do homem sob o manto da paz (?)................................................................................................ 50 3.3 Outros sistemas de Direito: a busca pela pacificação continua................ 58 3.3.1 O sistema de Direito Japonês e Chinês e a ótica do consenso .............. 59 3.3.2 O sistema de Direito da África e o pluralismo jurídico ............................ 63 3.3.3 O sistema de Direito muçulmano............................................................... 66 4 O DIREITO E A PACIFICAÇÃO SOCIAL DOS CONFLITOS: UMA COMPREENSÃO A PARTIR DO CONFLITO ....................................................... 70 4.1 Os paradoxos da pacificação social............................................................. 74 4.1.1 O conflito na acepção do Direito: desmitificando a crise e a violência.. 77 4.2 O Direito: instrumento de pacificação social? ............................................ 84 4.3 O Direito, os direitos e as garantias: com quem, para quem e contra quem? ............................................................................................................................... 96 4.4 As novas perspectivas e a produção da normatividade: elas visam a pacificação social? ............................................................................................103 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................116 6 REFERÊNCIAS.................................................................................................119 8 1 INTRODUÇÃO As teorias que serão demonstradas acerca do Direito terão o propósito de aferir, se realmente, sua instrumentalização irá resultar em pacificação dos conflitos sociais. Neste aspecto, serão analisados os fundamentos teóricos responsáveis pelas formulações acerca das fontes e concepções de Direito. Serão retratadas em linhas gerais principais as construções teóricas sobre o Direito, sob o aspecto das correntes jusnaturalistas, juspositivistas, neopositivistas e autopoiéticas.. Portanto, se abordará o Direito, enquanto paradigma, em diversos momentos históricos, inclusive, anterior ao seu reconhecimento como ciência. O objetivo será salientar, inicialmente, as bases teóricas da ciência jurídica, as pretensões que embasaram o Direito como norma, disposta em um ordenamento jurídico de âmbito sistemático. Neste caso, se abordará alguns conceitos de sistema jurídico para que se possa adentrar os sistemas de Direito. Contudo, as constantes reestruturações que o Direito irá sofrer no transcorrer da evolução jurídica serão determinantes na criação de crises. Crises que envolverão uma necessidade inerente do ser humano de se aprimorar enquanto manifestação singular e inserida no meio social. Portanto, no capítulo primeiro se exporá as principais teorias construídas e reconstruídas que serão responsáveis pelo estabelecimento do monismo jurídico em oposição ao pluralismo existente, anterior a instituição do Estado. No segundo capítulo serão examinadas as sistematizações jurídicas que ultrapassam o simples ordenamento jurídico unitário e nacional. Serão abordados alguns dos sistemas de direitos existentes, e quais as influências provenientes das idealizações realizadas pelas correntes expostas no primeiro capítulo, na concepção e elaboração do Direito enquanto instrumento de pacificação social. Em contraponto aos sistemas de Direitos: Common Law e Romanogermânico, serão analisados os sistemas chinês, japonês, africano e muçulmano, no tocante à pacificação social dos conflitos pelo Direito. O Terceiro capítulo terá o propósito de aprofundar a pacificação social e os paradoxos produzidos pelo Direito e pelos conflitos sociais. Neste aspecto, os pontos abordados visarão esclarecer se o Direito, realmente cumpre seu papel 9 enquanto pacificador social e as fragmentações existentes acerca do Direito em Direitos. Portanto, o capitulo procurará explanar as motivações da crise de paradigma pelo qual passa o Direito, o uso da violência e da força para obter-se a pacificação social e principalmente, se pretenderá demonstrar a existência de um novo paradigma se formando no horizonte do Direito. Enfim, será apresentada a idéia da pacificação social e as repercussões no campo da resolução dos conflitos da crise que enfrentada pelo ente Estatal, enquanto criador e aplicador do Direito, vê-se diante de uma sociedade de características complexas para a qual o Direito oficial não possui todas as respostas, embora, persista nesta assertiva. Neste aspecto, a presente monografia se pautará sobre duas correntes: uma que concebe o Direito enquanto manifestação social e, portanto, de fonte difusa, não institucionalizada e, outra como fonte exclusivamente estatal e instrumento de pacificação social e de resolução dos conflitos sociais. 10 2 AS TEORIAS (RE) ESTRUTURANTES DO DIREITO Sob a perspectiva histórica, muitas teorias jurídicas foram aprovadas, comprovadas e depois descartadas. Todas, porém, aspiraram um objetivo comum: tornarem-se absolutas. Esse desejo pelo absoluto, por separar entre o que é bom ou ruim; moral e a razão; leis e de Deus (cosmo) e as leis dos homens; e, entre direito e justiça, criou embates inconciliáveis ao longo da história do Direito. O que é Direito? Segundo Fagúndez (2006, p.17), cada época foi pródiga em sua tentativa de compor um conceito, significar ou determinar uma origem para o Direito. Nesta busca, oras ele foi descrito como mensagem divina, em outras como um idealismo imanente combatido por um especifismo lógico, o qual renascido das cinzas sob a perspectiva humanística, enveredou na atualidade por uma sistemática autopoiética. Não faltaram, contudo, aqueles que o designaram como uma manifestação genuína da vontade do povo, em que a lei seria a manifestação do “espirito do povo”, ou que estaria “na vontade de todos”, elaborado por Rosseau. Contudo, para outros, o Direito representava uma ideologia de poder a serviço de uma classe social. O direito é um meio de dominação. Por ter uma forma específica, também é, ao mesmo tempo, instrumento de uma limitação (formal) dos objetivos e dos processos de dominação. Enquanto surgir, temática e procuderalmente como Direito, ou seja, nas formas especiais do direito, e enquanto tiver sido obrigado politicamente a surgir, esta limitação também já se encontra submetida a condições, transgressões e controles específicos.[...]. (MULLER, 2007, p.191-192). Todavia, indiferente aos embates teóricos e suas sistematizações, o Direito seguiu incólume, atravessou gerações, transformou-se em ondas, e criou dimensões, modificando e permitindo-se mutações para adequar-se aos apelos dos homens, às suas vontades e, talvez, as suas necessidades. Por este motivo, interroga-se: em que momento o Direito abandona sua faceta “metafísica” para concretizar-se numa norma, em um comando, de finalidade teleológica, sociológica ou puramente ordenadora da realidade? 11 E, o sumo questionamento: quem são os novos evangelistas (doutrinadores), responsáveis pela substituição da metafísica pela razão, sem entrever a dialética em seus discursos de superação? As respostas ofertadas pelo positivismo jurídico acerca do uso do Direito, podem ser resumidas na seguinte proposição: “o positivismo jurídico é, no limite, um antijuridismo: seu conceito de direito, a pretexto de neutralidade, nega o direito” e o reduz a uma dicotomia antitética, entre direito e não-direito. (GOYARD-FABRE, 2007, p. XXIX). Portanto, o positivismo jurídico não logrou êxito em sua proposta inovadora e, tampouco o Direito concebido sob esta matriz foi efetivo devido ao caráter reducionista e centralizado de suas emanações. Neste sentido, os aspectos mais proeminentes das teorias criadas pela ciência jurídica ao longo da história, descrita pelos homens delimitaram a totalidade do Direito. Logo, a compreensão do alcance das inferências redutoras de complexidade, envolve verificar em que momentos o Direito, dentro de uma perspectiva idealista jusnaturalista foi sobreposto por uma concretização juspositivista, que após reinventar-se por meio de uma lógica neopositivista e neoconstitucionalista resultou numa concepção paradoxal e autopoiética da realidade. 2.1 As perspectivas doutrinárias (con) formadoras do direito As mudanças não acontecem isoladamente. “Ondas” se formam denunciando que os movimentos revolucionário/históricos são dinâmicos, embora, apresentem-se de forma estático/rígida, assim não foram concebidos. Essa ótica permite uma visão expandida da realidade, denunciando que as mudanças sobrepõem-se umas às outras como “ondas”. Neste aspecto, o choque entre o padrão anterior com o novo - paradigma – produz tensões que irão gerar uma nova perspectiva. Entretanto, o novo modelo somente permanecerá válido até que haja outra “onda” que provoque novos choques e, consequentemente, mudanças. (TOFLER, 1980, p. 28-30). 12 Neste sentido, a concepção de Direito perpassou, nas considerações de Goyard-Fabre (2007, p.XXI), por três “ondas”, de cunho emancipatório. Em cada uma houve apreensão de um conteúdo teórico acerca do Direito que o expôs a um determinado prisma. Assim, verifica-se que a predominância de uma visão teológico/moralista manteve-se até ser justaposta por um ideal oposto, o de neutralidade axiológica, superada por uma lógica normativa sistematizante. Na primeira “onda” a intenção era libertar o Direito de suas amarras cosmológicas. O desejo de cientificidade permeou uma série de tentativas de tradução da origem deste Direito, calcado em fontes tanto divinas quanto humanas. A descoberta da razão negou a transcendência, sinalizando mudanças. Entretanto, ainda não existia uma oposição tão premente entre o antigo e novo paradigma. Por isso, o período de transição foi uma oscilação entre os parâmetros apresentados pela cultura humana e científica e os subjacentes. (GOYARD-FABRE, 2007, p.XXV). Cada “onda” significou uma modificação no paradigma vigente. Em todas, percebe-se que a instauração de um novo modelo não refletiu uma supressão da “onda” anterior, mas sim a complementação de um modelo por outro. A segunda “onda” trouxe uma ruptura, Direito e moral são definitivamente separados. Neste aspecto, o Direito passou a ser confundido com um corpo de regras específicas, sem conteúdo valorativo. Enquanto a moral, devido a sua subjetividade ficou restrita ao campo religioso. Embora, houvesse reconhecimento acerca das finalidades comuns, a definição de Direito em função da moral foi considerável inviável. (GOYARD-FABRE, 2007, p.XXV). Em seus movimentos estas “ondas” representaram não apenas reformas quanto às conceituações de Direito, estas também foram responsáveis por alterações profundas na estrutura política da sociedade. A estatização do Direito possibilitou maiores intervenções do poderes instituídos, no caso, o Estado sobre a sociedade com o propósito de conduzi-la. Por fim, com a terceira “onda”, mas não a última, houve a ascensão do positivismo. Todavia, todas as manifestações persistiam no duro combate a qualquer alusão metajurídica sobre a concepção de Direito. O Enaltecimento ao “legicentrismo estatal”, aliado a não menos famosa “neutralidade axiológica”, construiu uma teoria aonde interessava apenas “como” o Direito seria estabelecido. Neste aspecto, tal disposição reduziu o Direito a sua manifestação legal (lei), 13 desprovido de qualquer juízo de valor e sensibilidade. (GOYARD-FABRE, 2007, p.XXVIII). Embora, tenha ocorrido uma evolução em termos de técnica e instrumentalidade, a finalidade do Direito passou a ser meramente gerencial, sem compromisso com os seus reflexos sobre a realidade e a sociedade para a qual se dirigia. Neste aspecto, as formulações sobre a concepção e fonte do Direito alcançaram o seu ápice com o reconhecimento científico. Ressalta-se que, a fragmentação de Direito em Direitos, partiu da necessidade de positivar conquistas contra o arbítrio do poder soberano, quer este fosse um poder Real ou Estatal. Portanto, ao longo da história a concepção de Direito perpassou por formulações que o reconheceram como “geração”, “ondas”, ou ainda “dimensões”. Contudo, cada assertiva, sob um enfoque histórico/jurídico tinha por propósito descrever o conteúdo normativo que seria absorvido pela ordem jurídica vigente e que não poderia ser alterada, ante o seu caráter fundamental. (SARLET, 2007, p. 41-43). Contudo, tais fragmentações exprimiram parcialmente a realidade e restringiram o Direito a uma concepção meramente histórica. Todavia, o reconhecimento dessas acepções é de suma importância, pela ampliação normativa que houve na esfera estatal, ante as premissas do liberalismo. Neste contexto, as criticas ao termo “geração”, revelam a preocupação que o Direito pudesse vir a ser confundido com uma falsa premissa: aonde uma “geração” de Direitos, substituiria gradativamente outra, levando-se a conclusão que uma “geração” teria que morrer para que outra pudesse nascer, sem mínimos resquícios da “geração” anterior. (SALERT, 2007, p.43). Por outro lado, nem sempre o termo “geração” é associado a um reducionismo, sendo possível encontrar outras conotações aonde o termo “gerações” possui significado diferente, daquele exposto anteriormente. No caso, para Bonavides (2006, p. 563), a passagem de uma “geração” a outra, de maneira sucessiva, além de significar o desenvolvimento de um processo qualificado, não pela ruptura com a “geração” anterior, mas por representar uma cumulatividade favoreceu a substituição de conteúdos abstratos por materiais, assim como permitiu que houvesse o reconhecimento, não apenas três “gerações” de Direitos, mas de até quatro. 14 Logo, os ideais de transformação guardados nessas abordagens expõem que, independente do enfoque dado ao Direito, seja “gerações ou dimensões”, o objetivo primordial consistiu em agrupar, bem como enfatizar uma série de Direitos existentes, visando proporcionar um maior conhecimento e proteção dos sujeitos. Estas descrições acerca Direito e do seu reconhecimento no campo estatal, levou inúmeros doutrinadores a explicá-lo por meio de figuras ou representações como: “ondas”, ”gerações”, “dimensões”, ou “movimentos”. Contudo, as discrepâncias não impedem de verificar a importância e os resultados advindos para conhecimento do Direito. Tais disposições permitem avaliar sob um prisma panorâmico as influências, sociológicas, ideológicas e filosóficas e até contraditórias responsáveis pela construção e positivação de Direitos na ordem estatuída. 2.1.1 O idealismo jusnaturalista na visão do Homem e sua aplicabilidade O idealismo almejado no jusnaturalismo clássico sempre esteve ligado a um Direito vinculado ao ideal do justo, do bem maior e absoluto. Intimamente ligado ao princípio da equidade, o Direito era uma manifestação observada e extraída da natureza, por meio da percepção. Verifica-se que a necessidade de viver em sociedade instaurou um novo período e conduziu o homem a substituir o uso da força física pelo Direito. Isto equivale a dizer que, daquele momento em diante “o homem sentiu a existência do direito [...]”, mesmo que sob a forma de leis da natureza. (ALTAVILA, 1989, p. 13). Em épocas primitivas não havia, por parte do homem, um questionamento acerca da legalidade do que ocorria a sua volta. Este agia simplesmente como um ser integrante da natureza e submetia-se aos seus desígnios. A modificação, portanto, deste estado, decorreu de alguns fatores singulares. A modificação deste parâmetro pode ser explicitada por meio da transição ocorrida a partir do “mytos” para o “logos”. Ao procurar por essa porção do Direito, considerada imutável, o Homem por um determinado tempo chegou a crer que este poderia ser encontrado na natureza. (KAUFMANN, 2004, p. 32). Neste aspecto, nas primeiras sociedades, a coexistência entre seus membros decorria de regras oriundas da religião, natureza ou família, as quais 15 serviam para organização das relações sociais. Tal estrutura modificou-se a partir do sedentarismo do Homem, do surgimento das cidades e domínio da escrita. (GOYARD-FABRE, 2007, p. 7). No aspecto descrito, percebe-se que a relação próxima do homem com a natureza e sua relativa submissão às intempéries, influenciou na forma como as primeiras organizações sociais preconizaram o Direito. Sob o domínio da natureza, o Homem tornou-se um servo obediente de suas leis. Consideradas superiores estas leis se encontravam acima daquelas existentes, criadas para a convivência em sociedade. Neste sentido, encontramos no período pré-socrático o reconhecimento, por parte de alguns homens, de um poder superior agindo sobre todas as coisas e ao mesmo tempo ordenando a vida. Posteriormente, será esta diferenciação entre uma justiça - Direito – proveniente em parte de normas humana e em parte assimilada de uma ordem natural, responsável pelas construções teóricas acerca do Direito natural. (KAUFMANN, 2004, p. 35). Tal distinção, foi o marco inicial da delimitação entre o reconhecimento de um Direito de cunho natural em contraposição a outro de origem humana e positivado. Salienta-se, que a delimitação entre Direito natural e positivo foi uma construção posterior a esse fenômeno. Neste aspecto, Aristóteles (1992 apud BOBBIO, 1998, p. 33), observa que: ”Da justiça política, uma parte é natural, a outra legal. A natural tem em qualquer lugar a mesma eficácia, e não depende das nossas opiniões; a legal é, em sua origem, indiferente que se faça assim ou de outro modo; mas, uma vez estabelecido deixa de ser indiferente.” A oposição clássica entre jusnaturalismo e juspositivismo inexiste neste período. A justiça natural e a legal se complementam fornecendo um único Direito. O jusnaturalismo funciona como uma teoria moral, oferecendo o fundamento ético necessário ao Direito positivo, estruturado pelo homem. Portanto, presente na natureza benfazeja e racional - o parâmetro de justo, bom – apreensão do Direito dependeria simplesmente de que os homens se moldassem aos seus desígnios, para alcançar a harmonia social e equilíbrio. (BOBBIO, 1998, p. 8). De fato, o conhecimento aristotélico de ciência fundamenta-se exclusivamente em deduções provindas de princípios exatos. Afora isso, a dialética 16 é considerada o único meio mais efetivo para definir aquelas coisas que por sua própria natureza, são inexatas. (VILLEY, 2005, p. 55). Por esse motivo, o período clássico se caracteriza pela existência de um Direito natural desvinculado da idéia do conjunto de regras fixas ou de um “justo” alcançado por meio da lei expressa. Neste caso, o ideal jusnaturalista será inferido da natureza das coisas e aplicado na sociedade, reproduzindo-se a mesma harmonia. Neste aspecto, o Direito positivo será concebido desde que não contrarie o Direito natural. Verifica-se que, apenas um Direito pode ser considerado válido: o Direito natural, e será através dele que o Direito positivo se manifestará e terá sua validade configurada. (KELSEN, 2000, p. 243). Entretanto, a concepção clássica de Direito natural, baseado na natureza das coisas e proveniente de uma ordem divina regulatória passou por alterações que resultaram numa outra forma de conceber o Direito, a fonte de conhecimento do Direito deixou de ser a natureza para se voltar para a razão. Por influência dos ideais jusracionalistas houve a passagem de uma visão de cunho natural para uma ótica, de conteúdo racionalista, formal. Desta forma, deslocou-se a fonte de concepção do Direito da natureza das coisas para a natureza humana, negando-se que fosse possível criar o Direito a partir da natureza. (SILVEIRA, 1998, p.123). Essa passagem significou uma “desnaturalização do direito natural” e o questionamento do conhecimento anterior terminou por modificar o ponto de partida. O que jusnaturalismo moderno buscou foi estabelecer um novo padrão, privilegiando noções ignoradas até então de, “humanismo, individualismo e racionalismo”. (GOYARD-FABRE, 2007, p.39-43). Neste contexto, a transição entre Direito natural e o jusnaturalismo moderno sinalizou os primeiros movimentos tendentes a instaurar o positivismo sob as premissas do antropocentrismo. O desenvolvimento desta visão jusnaturalista moderna, inverteu a relação existente entre lei natural e civil. Neste caso, segundo a visão hobessiana, a lei natural não poderia ser obrigatória, em razão de aparente falta de coerção existente no vulgo “estado de natureza”, o qual não obriga ninguém a nada, a não ser a obedecer as suas próprias vontades. Frente a isso a obediência dependeria de uma regulação que somente a lei civil poderia dar. Em virtude da insegurança reinante, a 17 submissão absoluta da sociedade ao soberano e às suas leis surgia como meio mais efetivo e seguro para os homens reunidos em sociedade. (BOBBIO, 1998, p. 40-41). Neste aspecto, o jusnaturalismo moderno hobbesiano, pode ser apontado como o principal responsável pelas mudanças, mais significativas, ocorridas na concepção do Direito. Suas acepções lançaram as bases que se transformaram nos pressupostos do positivismo jurídico. Desta forma, conforme Fiztpatrick (2007, p. 110), o ideal hobbessiano criou uma ordem “avalassadora”, responsável pelo nascimento do positivismo legal e pela inserção de uma nova maneira de conceber o Direito. Com esta construção, a nova fonte de elaboração do Direito passar a ser o homem e, não Deus. Tal mudança será responsável, não apenas por determinar como a lei será criada, mas, também definirá a quem pertencerá o poder legiferante. (GOYARD-FABRE, 2007, p. 45-50). Verifica-se, que não são apenas as concepções ou as fontes de Direito se modificaram, o Estado tornar-se uma realidade cada vez mais concreta nas elaborações teóricas, envolvendo o jusnaturalismo moderno e o surgimento do positivismo. Para Locke, o estado de natureza surge como uma resposta encontrada para justificar a existência do Estado de Direito. Neste caso, a comunidade será resguardada e sua coexistência assegurada dentro dos limites do Direito positivo. (FIZTPATRICK, 2007, p. 118-120). O jusnaturalismo, de cunho racionalista e individualista, inseriu a lei natural como uma medida ao alcance da razão humana e passível de conhecimento geral. Neste aspecto, o homem guiado pela razão se conformaria aos ditames pelo conhecimento das leis e a fim de corroborar a unidade existente entre os homens, adotaria um pacto entre os membros da sociedade humana. (BOBBIO, 1998, p.149). O jusnaturalismo, de caráter racional, propunha uma nova matriz para a concepção do Direito: a razão. Neste aspecto, o conhecimento do Direito baseado no conceito de justo, bom e correto, seria uma conseqüência da apreensão que o homem faria por intermédio da razão. Historicamente o jusnaturalismo, de um modo geral, sempre intentou impedir o arbítrio do poder soberano e a lei natural foi durante muito tempo um limite imposto nesta atuação. (BOBBIO, 1998, p. 70). 18 Assim, a nova ordem avançou à medida que o individualismo e o convencionalismo eram usados como fatores determinantes de organização da nova sociedade. O estatismo passou a refletir a lei como um fator mediador para a ordem jurídica. Contudo, a ânsia objetivista, agindo em nome de uma nova premissa epistemológica excluiu a noção de valor do pensamento jurídico. A verdade deverá corresponder ao simples conhecimento dos fatos, nada além. (GOYARD-FABRE, 2007, p. 68-72). Desta forma, o jusnaturalismo racional inaugurou uma outra perspectiva, a legalidade tornou-se a expressão maior do pensamento jusracionalista. “Não se busque, portanto, a ordem, a legalidade, a ‘razão’ como uma regra ‘anterior’ aos fenômenos, concebível e exprimível a priori: que se demonstre a razão nos próprios fenômenos como forma de sua ligação interna e de seu encadeamento imanente.” (CASSIRER, 1995 apud FITZPATRICK, 2007, p. 79). Entre a passagem de uma concepção jusnaturalista à juspositivista do Direito, alcança-se a própria formação do Estado moderno, figura centralizadora da produção jurídica. O caminho, até então, percorrido foi determinante para instauração de uma nova concepção jurídica, a qual nem sempre foi isenta de discussões ou oposições. A unanimidade, embora perseguida, esteve, por vezes, bem longe de se concretizar. Verifica-se que as transformações apontadas no jusnaturalismo, indicam o juspositivismo como um caminho sem volta. Não há retorno. Resta avançar e enfrentar o “novo mundo”. 2.1.2 A concretização normatizadora do positivismo e a crise jurídica O ser humano transforma-se na sua própria medida. Neste aspecto, o advento do iluminismo evidencia o plano da “dessacralização” do Direito, havendo clara rejeição ao âmbito transcendental e conseqüente valorização do objeto como método de conhecimento e reconhecimento da realidade. O início do século XIX é marcado por uma crise gerada pela separação de poderes: seculares e religioso. A superação foi encontrada na instituição de uma nova religião: a ciência. Entretanto, reconstruir a sociedade sem um aliado dotado da força coesiva, seria uma tarefa demasiada pesada para a ciência, que 19 isoladamente nada conseguiria. Em virtude dessa necessidade e para abalizar um novo modelo jurídico, a “racionalidade moral-prática do direito” teve que se submeter à “racionalidade cognitivo-instrumental” da ciência. Esta união resultou na cientificização do Direito com conseqüente estatização de sua produção, tendo como proposta principal a ordenação política do “caos”. (SANTOS, 2000, p. 52-53). Desta forma, em nome de sociedade, a ciência do Direito foi despojada de qualquer vinculo com o aspecto transcendental do Homem. O Direito passou a ser concebido como produto máximo da razão e do aperfeiçoamento das ciências que floresciam e apontavam um novo futuro, aonde a ordem e a paz dariam lugar ao caos proveniente da Idade Média. Neste aspecto, o positivismo jurídico surgia como proposição de caráter essencialmente estatal. Ao Estado caberia, não apenas a criação, mas a instituição e aplicação do Direito. Adentrava-se na era monista, o pluralismo jurídico que caracterizou o período anterior recua ante a força conferida pelo Estado às emanações jurídicas por ele produzidas. Desta maneira, a modernidade, ao romper com a forma política medieval, e com o jusnaturalismo transcendente, enfrente, pela primeira vez, a problemática do controle das decisões. No caso, enfrenta a problemática das decisões jurídicas: as relações entre o tempo e o Direito. A forma característica da sociedade moderna é a diferenciação: separam-se indissoluvelmente as esferas do poder, do saber, da lei, da religião, do prazer implicando a necessidade constante de suas áreas de atuação. (ROCHA, 2005, p. 13). Verifica-se, no aspecto descrito, que diante dessa nova concepção o Direito perde seu caráter imutável e eterno, como requisito de validade e passa a ser definido a partir de si mesmo, ou seja, o Direito vale porque é Direito, não por obra da natureza ou somente da razão sem acuidade científica. A fim de esclarecer a origem do positivismo jurídico se discorrerá acerca das proposições que projetaram o Direito, não como produto da natureza, mas, sim exclusivamente posto sob ação do ente estatal. A denominação “positivismo jurídico” deveu-se em parte a grande influência do “positivismo filosófico”. Este “positivismo” partia de um conhecimento da realidade por intermédio da razão, apreendido pela experiência e pela demonstração. Embora, a metafísica fosse deixada de lado, não havia uma rejeição completa à ética e tampouco a religião, desde que, como fatos sociais estas pudessem servir para objeto de pesquisa. (COELHO, 1991, p.178). 20 Inicialmente, usado para indicar um método de estudo baseado nas ciências naturais exatas, o “positivismo” como arauto da nova ciência propunha-se a ser o responsável pela unívoca ordenação social e religiosa dos homens. August Comte adotou tal terminologia e passou a divulgar sua filosofia através dela. (ABBAGNANO, 2001, p.777). Primordialmente, o positivismo enquanto corrente ideológica não partiu do pressuposto adotado posteriormente, de negar toda influência religiosa em suas construções. No caso acima, o positivismo tinha na realidade um dado integral, esta era composta de vários elementos, dentre eles, o aspecto transcendental permanecia vivo. Entretanto, a proposição científica prevaleceu sobre a filosófica, e o positivismo, no aspecto jurídico e normativo, significou a separação definitiva entre ciência e religião, entre Direito e ordem eterna e imutável e válida para todos os homens. Contudo, verifica-se que as distinções contemporâneas que vigoram entre positivismo e jusnaturalismo, inexistiam antes do pleno estabelecimento do Estado e do positivismo jurídico como forma válida de produção normativa. Neste aspecto, o positivismo filosófico ofereceu as coordenadas que afastariam do âmbito da concepção do Direito, o Direito natural. Assim, a comum divisão existente entre direito natural e positivo inexistia até então. Tal diferenciação foi realizada a partir da propagação do positivismo filosófico que teve por finalidade imprimir força ao movimento e afastar de sua apreciação qualquer referência ao Direito natural. (BOBBIO, 1995, p. 26). Portanto, o espaço anteriormente ocupado pela religião foi substituído pela ciência e o racionalismo inseriu-se como premissa básica para qualquer construção jurídica e normativa. “A tônica principal das idéias racionais é a refutação do cosmo ou Deus como fundamento do direito, a responsabilidade da convivência em sociedade pertence exclusivamente ao homem.” (SABADELL, 2008, p. 28). Desta forma, através da ciência o homem transformar-se ao mesmo tempo em objeto e sujeito de Direito, criado por si e para si. A condução da sociedade torna-se o alvo principal do poder estatal, alcançado por meio do instrumento disposto para esse fim: o Direito positivado. Neste aspecto, o positivismo ao se restringir apenas a concepção de Direito positivado, deixou de abranger aquelas sociedades que, mesmo sendo 21 possuidoras de Direitos não estavam inseridas em uma ordem social. Somente o Direito compreendido dentro da sistemática de normas jurídicas vigentes mereceria ser analisado. (MULLER, 2007, p. 16). Através da negação do Direito natural e de seu conteúdo moral/metafísico o juspositivismo intentou a construção de um sistema auto-suficiente, em que qualquer verificação mais acurada das intenções do legislador ou das finalidades do Direito demonstrar-se-ia desnecessária, pois estaria limitado à observância dos requisitos formais para a produção da lei. O positivismo jurídico insiste no fato de que a finalidade própria do direito, contrariamente à moral e a política, não é a realização da justiça nem a busca do bem comum, e sim a segurança jurídica, garantida por uma ordem conhecida por todos. (PERELMAN, 2005, p. 422). Num sistema tido como perfeito, a objetividade de sua estrutura visa garantir sua aplicação lógica. Desta forma, o Direito positivo transforma-se o único objeto concreto, passível de apreciação e fundamentação, embora, a produção normativa se caracterize pela abstração e pela generalidade. Diferente do estado primitivo que deixava toda produção de normas a cargo da sociedade, a formação do Estado moderno implicou numa modificação em relação à estrutura anterior: todo Direito passa a emanar de um único órgão. Não obstante, a idealização de um corpo de normas postas exclusivamente pelo Estado ou ao menos reconhecidas como válidas por este órgão, prevalece ainda uma necessidade de legitimação, pois a simples imposição coercitiva não se traduz em obediência. (COELHO, 1991, p. 178). Assim, entre a passagem dualista do Direito para a monista, as mudanças operadas podem ser averiguadas tanto na produção, como no campo de aplicação do Direito. Por meios dos órgãos especializados o Estado passa a conduzir e regular as condutas na sociedade, tendo o Direito positivo como fonte principal e legitima dessa atuação. Neste aspecto, o surgimento um terceiro (magistrado ou árbitro), munido de poderes conferidos pelo Estado e restrito ao uso das fontes emanadas por este órgão, vai retratar uma nova sociedade em que o poder político, organizado, atua de maneira mínima nas relações intersubjetivas. Diverso da doutrina jusnaturalista que permitia ao magistrado um campo maior de atuação e aplicação do Direito, fazendo 22 uso de não apenas de regras preexistentes, mas também de princípios eqüitativos nas resoluções dos conflitos, agora estatizados. (BOBBIO, 1995, p. 28-29). Portanto, as mudanças ocorridas demonstram que a produção do Direito, exclusividade Estatal, é operacionalizada por meio da separação dos poderes, aonde um órgão específico aplica o Direito criado em outra esfera. Desta forma, a legitimação do Direito criado é realizada pela figura do juiz, no âmbito da resolução dos conflitos sociais. Observa-se que no juspositivismo a idéia de justiça proveniente do Direito natural é irrealizável. O entrave imposto ao poder legislativo de obediência à lei natural, confronta com um problema espinhoso: somente será considerado Direito o Direito que for justo. Ante a essa problemática, a questão de justiça é excluída de qualquer apreciação, ficando restrita ao campo da moral religiosa. Afinal, o juspositivismo obriga jurista ater-se somente ao que for conforme o direito. (PERELMAN, 2005, p. 422). Assim, percebe-se que o fortalecimento do positivismo jurídico representou bem mais do que a prevalência de uma corrente teórica por outra. Houve uma ruptura de paradigma, em vários níveis, para que a nova estrutura social idealizada pelo positivismo pudesse se acomodar as suas proposições. As influências jurídicas do passado restringem-se aos aspectos históricos, a construção do positivismo não se realizou sob a égide da tradição. À medida que a religião cedeu passagem à lei como a principal fonte de coesão social [...] as classes governantes não mais tentaram mediar suas pretensões com apelos à legitimidade. Elas apelaram unicamente à autoridade imediata do fato. [...] (LASCH, 1997 apud FIZTPATRICK, 2007, p. 206). Contudo, é possível perceber que o século XVIII não extirpou completamente alguns conceitos relativos ao jusnaturalismo como: estado de natureza, lei natural. Em face da concepção de um Estado erigido por meio de um contrato social, certos direitos naturais importaram numa regulação subsidiária da negada existência de lacunas nas leis. (BOBBIO, 1995, p. 42). Portanto, teoricamente o Direito natural foi sobrepujado pelo positivo. No entanto, alguns dos conceitos responsáveis pelo reconhecimento de Direitos naturais pertencentes ao homem que o Estado não poderia retirar permitiram a utilização de princípios quando a lei se mostrava incapaz de atender as 23 necessidades de complementação que surgiam, pela aplicação do Direito positivo. Em termos de cientificidade, a sistematização do Direito positivo foi imprescindível para que o Direito veiculasse, por meio da lei, os requisitos de segurança, neutralidade e certeza. Conquanto, houvesse uma estreita ligação entre ciência e sistema, verifica-se que, somente a partir da escola histórica, há a construção de um método sistemático. O reflexo dessa sistematização no positivismo jurídico pode ser compreendido pela ênfase dada à lei como meio de conferir legitimidade e segurança à sua ciência. (ROCHA, 1998, p. 56). Enfim, responsável pelo surgimento de doutrinas como a pandectistas e a exegese, a unificação entre a teoria e a sistematização da experiência jurídica resultou no chamado positivismo legal. Um sistema que almejou princípios e conceitos universais perfeitos, isentos de lacunas. (ROCHA, 1998, p. 57). Deste momento em diante, o positivismo irá se estabelecer como um sistema de Direito completo, aonde a lei proverá todas as necessidades da sociedade. Entretanto, a crise advinda desta concepção de Direito, como um sistema hermético, permitiu que se formassem correntes teóricas que em oposição ao paradigma dominante, puderam paulatinamente promover a evolução do sistema jurídico. Frente à crise que abateu o positivismo-legalista, expõe-se que cada época cunhou um significado próprio para suas crises, em alguns períodos ela não foi mais do que um sintoma do trânsito entre uma inferência antiga e uma nova. Um desprender-se de uma idéia para acolhimento de outra. Uma indefinição, uma procura por parâmetros absolutos, por polarizações, aonde a única maneira encontrada para explicar os acontecimentos é gerada a partir de antagonismos. (GASSET, 1989, p. 70-71). Deste modo, a crise não corresponderia a uma perda e, sim, um estado intermediário, aonde as velhas proposições se mantém em conjunção com as novas. Neste contexto, o paradigma de Direito dominante sofre um revés, o positivismo jurídico exacerbou em seus objetivos perante a sociedade, não cumprindo o papel para o qual se imbuiu, de conduzir a sociedade sob a égide da paz social e ordem. E será a partir desta perspectiva que, com base na fundamentação do Estado de direito, no século XIX surge a “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen 24 como uma resposta para a nova ciência que se pretendia instaurar. (KAUFMANN, 2004, p. 42). Portanto, a crise do positivismo jurídico também é uma crise da própria ciência que, engessada, teve que realizar concessões para manter-se como modelo legitimo de conhecimento. No aspecto jurídico, permaneceu a velha estrutura estatal, no entanto, sob um novo paradigma normativo em que lei cedeu espaço para a “norma fundamental” e abrindo as fronteiras do constitucionalismo. Assim, de crise em crise o Direito foi sendo alterado, transformado e modificado, sem que houvesse um rompimento total com a proposição inicial: regular condutas e pacificar os conflitos no interior sociedade. 2.1.3 A proposta (não) transformadora do neopositivismo O neopositivismo veio demonstrar o fôlego das construções doutrinárias que pretendiam manter o Direito encerrado na estrutura estatal e distante da sociedade para o qual foi concebido e para a qual devia se voltar. O sistema normativo criado pelo positivismo jurídico somente aceita como Direito o que estiver inserido no núcleo de informações absorvidas pelo Estado e expresso em termos de legalidade. Entretanto, os exageros causados pela estrita observância da lei culminaram na renovação do paradigma de Direito. Neste aspecto, os denominados neopositivistas ou positivista-lógicos construíram um ideal de ciência jurídica dando ênfase ao empirismo e ao logicismo. No plano empírico, apenas os dados referentes à experiência sensível teriam validade, todas as considerações restantes seriam descartadas. O logicismo, por sua vez, impunha um sistema de validade baseado na reprodução de qualquer enunciado científico por meio da linguagem lógica. (BERNARDES, 2003, p. 3). No empirismo lógico, o estudo desenvolvido pelos seus pensadores visava reduzir toda linguagem jurídica a uma linguagem científica. Para isso a metafísica foi descartada por de ser desprovida de sentido, além de difícil comprovação empírica. (ABBAGNANO, 2001, p. 328). Embora, os neopositivistas buscassem construir uma referência epistemológica, suas elaborações eram inconsistentes, porquanto privilegiavam 25 exclusivamente o discurso científico, criando assim, um pensamento fragmentário e por vezes contraditório acerca do Direito e de suas manifestações. A escolha por uma normatividade meramente objetiva fez com que positivistas e neopositivistas suprimissem o conteúdo relativo à justiça material ou a realidade da norma, sob alegação de independência dos sistemas sociológicos. Desprezou-se o âmbito prático-jurídico do Direito e reduzindo-o a uma investigação pautada somente na técnica metodológica. (MULLER, 2007, p. 21). O distanciamento provocado pela construção normativa que se interessava pela realidade apenas na medida em que esta pudesse ser traduzida como representação normativa, permitiu a conjecturação de normas desprovidas de correspondência com os sujeitos para o qual esta existia. Neste aspecto, a busca incessante pela ordem transformou-se em mera questão de ordenação lógica e disposição hierárquica. Ordem significa um meio regular estável para os nossos atos, um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídos ao acaso, mas arrumados numa hierarquia estrita – de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis, alguns virtualmente impossíveis [...]. (BAUMANN, 1988, p.15). Proveniente do circulo de Viena, Hans Kelsen elaborou uma “Teoria Pura do Direito”, visando, principalmente, determinar qual seria o verdadeiro objeto das ciências jurídicas. Seu intento foi excluir da apreciação qualquer influência que não estivesse relacionada com seu objeto de estudo. Embora, tenha escolhido um campo neutro, não ignorou as outras disciplinas, apenas afastou-as para melhor visualizar seu objeto e evitar o sincretismo. (KELSEN, 2000, p. 1). O positivismo legalista, vigente à época dispunha o Direito apenas em virtude da Lei. A nova proposta para a ciência do Direito quis encontrar seu verdadeiro objeto e, para tanto, o critério adotado nas investigações foi o rigor metodológico. O neopositivismo partiu da idéia de que somente um padrão de racionalidade rigoroso proporcionaria o conhecimento científico. Neste aspecto, o auge de toda a sistematização iniciado pelo positivismo jurídico foi alcançada por Hans Kelsen, com sua “Teoria Pura do Direito”, em que postulou uma ciência do direito alicerçado em proposições normativas que descreviam sistematicamente seu objeto. (ROCHA, 1998, p. 57). 26 Portanto, o aperfeiçoamento trazido para a concepção de Direito e de ordenamento foi constituído a partir das proposições apontadas por Hans Kelsen, que com sua “Teoria Pura do Direito”, revolucionou a ciência jurídica ao tentar encontrar o verdadeiro objeto das ciências jurídicas. A delimitação do objeto da ciência jurídica encontrou dificuldades quando analisado sob ângulo lingüístico. No entanto, a comparação entre os diversos ordenamentos sociais, provenientes de povos civilizados, foi exitosa ao expor a existência de uma ordem ou um sistema de normas, conferindo validade e unidade a toda estrutura. A partir dessas inferências, a idéia de norma fundamental tornou-se o principal objeto das ciências jurídicas. (KELSEN, 2000, p. 11). Desta forma, Constituição deixou de ser mero estatuto que compunha um ordenamento jurídico para se transformar em sinônimo de “norma fundamental”. Isto, após o conceito engendrado por Kelsen, no qual uma norma jurídica seria regulada por outra norma até que chegasse à “norma fundamental”, responsável pela validade do ordenamento jurídico. (ROCHA, 1998, p. 69). Com isto, após ser estabelecida a “norma fundamental”, delinearia a pluralidade de normas existentes em uma unidade e conferiria validade a todo sistema normativo existente, os quais seriam constituídos com base na hierarquia legal. (KELSEN, 2000, p. 224-225). O contexto, acima descrito, demonstra que a construção formulada pelo neopositivismo, sob a inspiração de Hans Kelsen, institui um novo paradigma para o Direito. A normatividade encontraria sua razão de existência na própria norma e em seu fundamento máximo: a Constituição. Em razão desta alteração paradigmática, direitos e princípios que antes se encontravam restritos à esfera constitucional, ultrapassaram os limites existentes alcançando àquelas regras que permaneciam fora de seu campo de influência. A mudança proporcionada por esta nova visão, redirecionou o fundamento epistemológico das ciências jurídicas. Neste contexto, o reconhecimento do sistema jurídico como um sistema ordenador autoreferencial, em que o Direito é criado a partir do próprio Direito, rompeu com as concepções anteriores instaurando um novo paradigma. Neste aspecto, na ótica de Khun (1997, p. 218-219) e dentre as muitas significações dadas, paradigma também representa “[...] aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em 27 homens que partilham um paradigma [...]”. Entretanto, esclarece-se que tal conceito representa apenas um, dos vários sentidos dado ao termo. Em alguns casos, o termo assumirá a conotação de valor ou crença existente no meio científico e “compartilhado entre os seus componentes” e em outros àquelas descrita acima, ou abaixo exposta. Um paradigma governa, em primeiro lugar, não um objeto de estudo, mas um grupo de praticantes da ciência. Qualquer estudo de pesquisas orientadas por paradigmas, ou que levem a destruição de paradigma, deve começar pela localização do grupo ou grupos responsáveis. (KHUN, 1997, 224). Portanto, embora, tais alterações tenham elevado a Constituição a uma condição superior àquela existente, verificou-se um descompasso entre a inovação e os direitos albergados em seu interior, os quais permaneceram irrealizáveis para a sociedade. Neste aspecto, a ordenação de todo o conjunto de regras existentes a partir da Constituição, fez do individuo humano um sujeito de Direito. Entretanto, a qualificação jurídica, “objetiva e abstrata”, foi insuficiente sob a ótica fundamental humanista. (GOYARD-FABRE, 2007, p. 112). Ressalta-se que, enquanto o neopositivismo significou a adoção de um método de estudo para ciências jurídicas, o neoconstitucionalismo conforme se verá abaixo, envolveu transformações bem mais profundas, ocasionadas pela corrente neopositivista. A denominação neoconstitucionalismo, gerada a partir da segunda metade do século XX, foi um reflexo do pós-positivismo. A mudança de paradigma permitiu uma expansão jurisdicional devido ao reconhecimento da força normativa da Constituição. (BARROSO, 2005, p. 1). Hespanha (2005, p. 371), aponta que a inflação legislativa ocorrida no século XX, corresponde a um período de crise solapada por necessidades sociais cada vez maiores que, códigos e leis não conseguiam diminuir e tampouco amainar. Neste caso, a busca por uma reformulação fez com que a Constituição florescesse como um repositório de valores. Neste aspecto, não foram apenas as necessidades sociais que impulsionaram as mudanças ocorridas, em termos de paradigma de Direito, as concepções também se modificaram diante de embates de fundo político, bem 28 pouco divulgado, mas igualmente importante para o desenvolvimento das teorias acerca do Direito. De outro lado, a evolução do paradigma que consagrou o neoconstitucionalismo, revela uma disputa interna entre poderes legislativos e judiciários, para determinar quem teria legitimidade de dizer o Direito. Neste contexto, tal construção foi resultado de uma “luta surda” entre políticos, representantes populares e juristas. (HESPANHA, 2005, p. 372-373). Na atualidade, uma série as inovações cientificas, tem proporcionado teorias que, criadas em campos distintos do mundo jurídico, foram adotadas pela sociologia jurídica e vem compondo um novo cenário para o Direito anunciando mudanças. (BARROSO, 2006, p. 2-3). Assim, o neoconstitucionalismo assinala a passagem para um novo momento criativo. O conceito de sociedade se amplia e conjuntamente o de Direito. Neste aspecto, as conceituações sobre Direito, a partir da proposta neopositivista e neoconstitucionalista, abrangem a sua inserção no plano dos sistemas autoreferentes ou autopoiéticos. Neste contexto, faz-se necessário evidenciar quais os movimentos que estão surgindo, em sede de ciências jurídicas, a partir do movimento iniciado pela “Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen e, o neopositivismo e neoconstitucionalismo. Verifica-se que a Autopoeisis - termo adotado pela “biologia e neuropsicologia” - surgiu com uma proposta diferenciada de conceituação acerca do ser vivo e da sua organização e estruturação. É, que, embora, “os seres vivos tenham estruturas distintas, organizam-se da mesma forma.” (MATURANA, 2007, p. 55). Tais estudos podem ser apontados pela influência causada, inicialmente, na sociologia e, posteriormente, no Direito. Neste aspecto, o neoconstitucionalismo tornou-se um campo aberto para o reconhecimento do Direito como um sistema autopoiético. No campo biológico, uma organização autopoiética será responsável pela tanto pela produção dos elementos como pela auto-reprodução dos meios necessários à própria manutenção. Embora, a estrutura seja fechada para o exterior, há certa permeabilidade entre exterior e interior, o que permite a conservação geral da unidade por meio de interações recíprocas. No caso, não há oposições e, sim, 29 mútuo apoio entre estrutura e organização. A autonomia da unidade simplesmente representa que ela “capaz de cria sua própria legalidade, dentro daquilo que lhe é próprio.” (MATURANA, 2007, p. 53-55). Será com bases nessas inferências que se constituirá uma corrente teórica acerca do Direito, no campo da reprodução e interação com o ambiente social. Neste caso, a premissa de que o Direito se auto-reproduz não significa isolamento do sistema. Este como unidade autônoma encontra-se articulado com outras esferas que o alimentam e retroalimentam, a partir das comunicações existentes com o meio externo, criando um sistema paradoxo, aonde sendo fechado é aberto ou vice-versa. (ARNAUD, 2004, p. 21-27). Percebe-se que no sistema autopoiético os elementos que o compõem são responsáveis tanto por sua organização e quanto geração. Devido à autonomia intrínseca, serão os elementos de sua própria organização que o definirão. (GUERRA FILHO, 1997, p. 116). Por fim, em linguagem sistêmica, a validade normativa será definida ante a própria perspectiva do sistema jurídico. O sentido normativo partirá de dentro do próprio sistema. O meio externo ao sistema jurídico não pode oferecer essa qualidade normativa, já que toda referência provém do próprio sistema. (ARNAUD 2004, p. 63). O contexto, acima exposto, visa traçar linhas gerais acerca das novas disposições teóricas do Direito, enquanto sistema autopoiético. Neste patamar, as inferências realizadas pela sociologia jurídica são de extrema importância para os novos estudos e redefinições sobre a concepção de Direito. Contemporaneamente, o Direito vive uma nova crise ante a complexidade social, sem que consiga dar respostas para expectativas criadas. Neste contexto, a teórica sistêmica visa proporcionar uma ótica diversa sobre sociedade, complexidade, Direito e crise. Assim, a nova perspectiva criada pela biologia, adotada pela sociologia jurídica, autopoeisis, vem sendo usada para retratar um sistema que por meio de interações e reconstruções se refaz constantemente, amoldando-se as contingências internas e não externas, como até então divulgadas, em que o ambiente influenciaria o meio. (NEVES, 2008, p. 128). 30 Enfim, o pós-positivismo ainda é um campo em aberto para novas proposições, pesquisas e realizações. Determinar quais serão as novas concepções adotadas para o Direito, assim como as perspectivas que influenciarão e serão lançadas como verdades, é um pouco prematuro. Neste aspecto, as construções doutrinárias acerca do direito trouxeram bem mais do que novas perspectivas, instauraram novas responsabilidades. E sob o manto do novo, tudo pode acontecer, avanços ou retrocessos, ápices ou declínios. O plano do equilíbrio tornou-se uma busca constante, e a experiência é concebida como uma aliada oportuna que tudo comprova. A vida do direito não foi lógica, foi experiência. As necessidades da época, a moral dominante e as teorias políticas, as instituições políticas confessadas ou inconscientes, até mesmo os preconceitos que os juízes partilham com seus concidadãos, representam papel muito mais importante que o silogismo na determinação de regras pelas quais seriam governados os homens. (RODRIGUES apud SARMENTO, 2003 p.205). A lógica que acolheu a experiência no Direito é a mesma que a negou, apenas os motivos que a fundamentam são diferentes. A inerente capacidade do homem de fazer-se representar ou ser reconhecido por meio de fórmulas e símbolos permitiu idealizar sociedades, papéis, pessoas e, principalmente, acreditar neles. A modernidade, através da experiência, somente percebeu o individuo após o advento do Iluminismo. Essa grande novidade tornou-se suporte para tantas outras teorias a respeito do Direito, alicerçadas a partir do homem, sujeito consciente e diverso da natureza. Entretanto, esse novo ser retirado do coletivo, exposto a luz do mundo, desenvolveu-se, segundo Roman (1996, p. 42), num paradoxo inconciliável quanto mais se individualizou maior passou a ser sua necessidade de regulação. Em Luhmann (1985, p. 55), esse paradoxo foi responsável pela transformação que o conhecimento decorrente do processo de produção trouxe ao Direito, este não mais se baseia somente na realidade externa, mas em torno e a partir de um observador. Neste sentido, as bases da comunicação e da teoria da ação foram renovadas pela perspectiva “sistêmica autopoiética”. Assim, as diferenças existentes entre o sistema e ambiente, entre realidade e observador, entre racionalidade e consenso, identidade e diversidade, permitiu a produção da diferença, da fragmentação e da singularidade, havendo a 31 criação de uma nova compreensão, bem como de uma mudança de rumo na Teoria do Direito, centrada “na problemática do risco e do paradoxo”. Neste passo, a concepção do Direito como: “estrutura de generalização congruente em três níveis: temporal, social – institucionalização - e prático ou objetivo – núcleo significativo” representou uma nova estruturação do Direito, no qual um sistema social se torna base para “generalização congruente de expectativas comportamentais normativas”. Logo, a dinâmica que desencadeia a evolução do Direito parte de sua necessidade de estrutura social redutora de complexidade de “ser-no-mundo”, ou seja, de atender a “dupla contingência” que compõe um sistema. (Rocha, 2005, p. 31). Logo, não há patamar seguro para o homem. Trilhar o caminho da liberdade significou reconhecer no outro sua própria limitação. A coexistência pacifica, necessidade vital e premente, desprovida de conflitos recriou um Direito ilusório e à margem das necessidades reais da sociedade. Desde os tempos imemoriais o homem busca sua parcela de imortalidade por meio de leis, de palavras, de idéias, dogmas ou de doutrinas. Entretanto, cada etapa da evolução do jurídico representa um novo choque de forças, uma ruptura com as regras anteriores, nas palavras de Toffler (1980, p. 26), esta adquire o seguinte teor: [...] somos a última geração de uma velha geração e a primeira geração de uma geração nova, e que muito da nossa confusão, angústia e desorientação pessoal pode nos levar diretamente ao conflito que existe dentro de nós e dentro das instituições políticas, entre a civilização moribunda da Segunda Onda e a nascente civilização da Terceira Onda, que se aproxima rugindo para tomar o seu lugar [...]. O inevitável conflito entre as velhas e as novas experiências fragmenta a realidade em dicotomias, os padrões veiculados são descritos a partir de antagonismos: jusnaturalismo versus juspositivismo, certo versus errado, bom versus mau, ontem versus hoje. As reconstruções desintegradoras não permitem avaliar a crise como uma proposta de mudança, centralizadoras elas convulsionam a sociedade oferecendo o caos. A visão apocalíptica não compreende o homem como parte integrante do conflito e da crise sem submetê-lo. A crise não conjuga ganhos, referencia perdas: de valores, de certezas, de segurança, de ética e de Direito. A cultura jurídica racionalista destituiu o homem do seu privilégio de ser multifacetado e o lançou num espaço jurídico exíguo e 32 sistematizado, dotado de um mínimo de igualdade e liberdade e, um máximo de certeza a garantir para poucos, o que faltou à sua maioria, o direito de ter Direito. Estas pretensões libertárias e igualitárias, segundo Fagúndez (2004, p. 110), despojaram a sociedade de sua pluralidade, em seu lugar ofereceram um monismo jurídico uniformizante e seguro, bem como uma justiça certa e inatingível. Civilizar o bárbaro, dessacralizar o direito, legislar, governar, oferecer justiça, igualdade e liberdade, tantas tarefas concentradas e separadas da realidade para a sociedade, que permanece plural e complexa. Neste contexto, as mudanças se tornaram inevitáveis, diante da constituição de teorias normativas que tentam em vão dotar o Direito certezas que se alternam entre nascer, morrer e ressuscitar. Entretanto, tais modificações decorreram de movimentos que gradualmente alteraram não apenas a concepção de Direito, mas, as formas adotadas de abordar os conflitos que surgiam no meio social. A idéia de um sistema de direito, capaz de responder de antemão a todas as questões que poderiam surgir, só pode nascer após uma longa evolução histórica, durante a qual se resolveu um grande de números de problemas e se elaboraram procedimentos e técnicas de solução. (PERELMAN, 2005, p. 421). Todavia, ruma-se para um novo conceito de sociedade, conflito e de sistema. Neste âmbito, o paradoxo tornou-se a base da estrutura social contemporânea, que oscila para além da lógica restrita e binária que caracterizou anteriormente as sociedades modernas. Contudo, questiona-se se caberia ao sistema atuar na produção normativa ou se estes são meros comunicadores das ordens que estão adstritos? Neste caso, sob o ângulo do sistema autopoiético, verifica-se a seguinte assertiva: A teoria da sociedade autopoiética procura explicar a sociedade como sistema social. É importante nesta matriz epistemológica demonstrar-se que certos elementos básicos tornam possíveis distintas formas, entre infinitas possibilidades, de interação social. Isto implica uma grande complexidade, que exige cada vez mais subsistemas, como o direito, a economia, a religião, etc., que por sua vez se diferenciam criando outros subsistemas e assim sucessivamente. (ROCHA, 2005, p. 38). Portanto, a sistematização do conflito social no interior de uma ordem jurídica é um fator de criação de paradoxos e contradição? 33 É bom lembrar que a evolução fornece tanto variação como conservação da organização. A evolução opera como um sistema de dois fluxos; um, mantém o sistema, e o outro o evolui. A contradição perde o significado clássico (o mesmo aconteceu com o caos) de “oposição”, “exclusão”, “patologia” ou “paradoxo”. [...] A contradição e o paradoxo não significam incongruência, mas um par de possibilidades ou de probabilidades que a Natureza apresenta. Uma recomendação útil é manter em mente que a complexidade é um novo sistema referencial. (MARTINS, 2006, p. 167). Neste contexto, a nova sistemática jurídica e as implicações decorrentes desta abordagem alteram as formulações de Direito, sociedade, complexidade, para instalar o paradoxo como meio de representação da realidade jurídica e social. Portanto, o choque entre as antigas concepções que ainda permanecem vivas e as novas que buscam se estabelecer criam a sensação de caos, contradição e paradoxo e induzem a sensação de desequilíbrio, a qual irrompe em crise. Cabe, reavaliar a contradição ou paradoxo com o sentido da exclusão ou da eliminação necessária entre duas vertentes opostas. Esta tem sido a ótica dominante: a eliminação da contradição como fator de sobrevivência. Entretanto, a nova perspectiva expõe que outros parâmetros são admissíveis, o outro também possui uma função de reequilíbrio que a ordem rejeita. 34 3 OS SISTEMAS DE DIREITO: FAMÍLIAS OU TRADIÇÕES (?) Análise proposta neste capítulo se deterá sobre os sistemas jurídicos (famílias ou tradições), classificados de acordo com a metodologia da ciência jurídica comparativa. O motivo que ensejou tal escolha tem sua premissa pautada na observação abaixo: Toda sociedade política possui seu próprio ordenamento jurídico. Nele há um conjunto de normas ditadas para ter vigência sobre essa determinada sociedade. Nem sempre, porém, a sociedade política juridicamente ordenada em Estado terá o mesmo ordenamento jurídico. (VENOSA, 2005, p. 99). Logo, o significado de sistema jurídico poderá ser conceituado a partir da premissa acima, tendo em vista que este é somente um conceito preliminar. Destarte, devemos considerar como ‘sistema jurídico’ um agrupamento de ordenamentos unidos por um conjunto de elementos comuns, tanto pelo regulamento da vida em sociedade, como pela existência de instituições jurídicas e administrativas semelhantes. Os vários tipos de ordenamentos podem ser reduzidos a certos tipos, certos sistemas. (VENOSA, 2005, p. 99). Ressalta-se que os sistemas jurídicos contemporâneos não possuem classificações unânimes, cada estudioso ou doutrinador opta por reconhecer alguns sistemas, deixando outros de lado. Neste caso, passa-se apresentar as divergências existentes para indicar qual será a linha adotada. O Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa (2009), concebe um rol de seis famílias compostas pelos sistemas jurídicos: Civil Law; Common Law; Consuetudinário; Muçulmano; Talmúdico; e, por último: o misto, este envolve uma combinação pautadas nos sistemas jurídicos disponíveis. Arminjon, Nolde e Wolff (apud VENOSA, 2005, p. 102), distinguem sete “sistemas-tronco” e “sistemas derivados”, no caso, reconhece-se a existência de “sete grupos ou famílias”, dividindo em: “francês, alemão, escandinavo, inglês, russo, islâmico e hindu”. De outra parte, Venosa (2005, p. 103), considera tal classificação excessiva por não abranger todos os elementos constitutivos, preferindo uma versão 35 mais enxuta como: o sistema Common Law, Romano-Germânico, Soviético, e outros sistemas de cunho filosófico e religioso. Embora, usualmente a terminologia adotada para agrupamento de ordenamentos nacionais seja a palavra “sistema”, alguns autores que preferem adotar o termo “família” por entenderem ser mais adequado aos estudos pretendidos nesta área. Outros ainda, usam o critério constitucional a fim de obter maior acuidade nas elaborações. Quanto ao termo tradição, este não é adotado para referenciar um sistema. David (1998, p.17-20), adota o termo “família” ao invés de “sistema” para referir-se aos agrupamentos de Direitos. Com isto, reduzem-se os tipos existentes para facilitar-se a compreensão. No caso, a classificação abrange a família romanogermânica, família da Common Law e família de direitos socialistas. Ainda, David (1998, p. 21-22), reconhece a existência de outros sistemas que devido as suas concepções de Direito e o fato de não terem aderirem integralmente ao modo ocidental, são denominados “não-ocidentais” em virtude de adotarem parcialmente os paradigmas ocidentais. É possível agrupá-los em dois seguimentos: um, o Direito possui um “valor eminente”, neste aspecto, sobressai-se o direito hindu, muçulmano e judaico. No outro grupamento realizado, o Direito é rejeitado e as soluções usadas para regular as relações sociais são visualizadas fora da esfera do Direito, de concepção estatal. Dentre os sistemas que adotam esses critérios elenca-se: os Direitos do Extremo-Oriente, África e de Madagascar. Por sua vez, Miranda (2007, p. 57-62), utiliza o critério constitucional para realizar os agrupamentos. Tal método examina o Direito no âmbito constitucional de um país e o insere em uma família constitucional que seja semelhante ou afim. Neste caso, são reconhecidas “quatro grandes famílias de Direito constitucional: a inglesa, a norte-americana, a francesa e a soviética”. Em continuidade, Miranda (2007, p. 122-138), complementa a classificação inserindo outros sistemas constitucionais que não pertencem a uma família constitucional específica como: “suíço, alemão e austríaco, dos regimes fascistas e fascizantes, dos Estados asiáticos e africanos”. Também são inclusos neste rol, povos cujo paradigma constitucional tem por base textos “sagrados” como é o caso do Irã, que adota o islamismo. 36 Portanto, exposição acima teve por propósito demonstrar a variedade de agrupamentos possíveis de sistemas de direitos e as divisões existentes, as quais variam conforme o enfoque pretendido. Tendo em vista que o foco principal, desta monografia, é uma investigação acerca dos critérios de pacificação social dos conflitos, sua abordagem se restringirá aos sistemas de direito: Romano-Germânico (Civil Law), Common Law, e, os sistemas japonês, chinês, africano e muçulmano, pela maneira particular como concebem o Direito e regulam as condutas sociais a fim de alcançar a pacificação social. As demais classificações são importantes, a título de conhecimento, por relevarem a complexidade do Direito e as diversas formas utilizadas pelo homem para compreendê-lo, concebê-lo e aplicá-lo. Neste aspecto, não será evidenciado se os métodos são corretos e incorretos, apenas se salientará seu caráter paradoxal. Antes de adentrar aos sistemas apontados, convêm algumas ponderações acerca das denominações utilizadas para designar como esse agrupamento de Direitos será reconhecido. No caso, pretende-se tecer considerações sobre a denominação “sistema”, “família” ou “tradições” e, o que elas encerram. Historicamente, verifica-se que em meados do século XIV surge a primeira idéia que engendrou o Direito como sistema. Embora, o propósito naquela época se restringisse apenas conferir certa unidade às múltiplas opiniões jurídicas, os dissabores advindo da falta de um método mais tarde vieram a privilegiar e associar Direito com sistema. (BARRETO, 2006, p. 760). Todavia, tal associação entre Direito e sistema trouxe inúmeras confusões, além de provocar associações impróprias. Devido ao grau elevado de generalidade da palavra sistema e das múltiplas interações com outros conceitos como: estrutura, organização e ordem, o Direito passou a ser identificado através dessas proposições, as quais ou ampliam demais o conceito de Direito ou o restringem. (SALDANHA, 2006, p. 212-213). Neste sentido, insere-se a critica de Bobbio (1995, p. 76), quanto ao uso da palavra sistema pelo Direito, o qual considera um termo de muitos significados que “cada um usa conforme suas próprias conveniências”, quer seja, de caráter ideológico, político, econômico, cultural ou social. 37 Embora, criticável o uso da palavra “sistema” para designar Direito enquanto ordenamento jurídico, não se verificou a existência de qualquer proposta que contivesse o objetivo de desfazer tal equivoco. As teorias acerca da concepção Direito optaram pelo uso terminologia “sistema” para explicar, seja um ordenamento jurídico unitário e nacional, como um conjunto de diversos ordenamentos jurídicos estruturados por alguns critérios comuns. Indiferentes às associações decorrentes do termo “sistema” com outras formas também sistemas como político, econômico, cultural etc., esta permanece usual. Convém, neste momento, apontar outras denominações para o agrupamento de Direitos, neste caso, temos a designação “família”. Cabe salientar que, “família de direitos” segundo Venosa (2005, p. 100), foi um termo empregado por René David, comparatista, para os agrupamentos de Direitos que envolvem diversos países, tendo em vista as similitudes que este possui. Quanto ao termo “sistema” empregado, este deveria ser aplicado apenas quando se estivesse examinando um ordenamento jurídico unitário. É possível, por isto, agrupar os diferentes direitos em “famílias”, da mesma maneira que nas outras ciências, deixando de parte as diferenças secundárias, se reconhece a existência de famílias em matéria de religião (cristianismo, islamismo, hinduísmo, etc.), de lingüística (línguas romanas, eslavas, semitas, nilóticas, etc.) ou de ciências naturais (mamíferos, répteis, pássaros, batráquios, etc.).O agrupamento dos direitos em famílias é o meio próprio para facilitar, reduzindo-os a um número restrito de tipos, a apresentação e a compreensão dos diferentes direitos do mundo contemporâneos[...]. (DAVID, 1998, p. 16-17). Assim, a opção entre uso do termo sistema ou família, revela a preocupação primordial de se proceder um estudo, de cunho empírico, dentro de um número razoável de variáveis que sejam compatíveis entre si. Por sua vez, Miranda (2007, p. 59-62), opta por percorre a mesma via e adere ao termo “família” para agrupar os Direitos existentes, em famílias constitucionais. Neste caso, ao examinar-se um determinado direito constitucional num país, por comparação este poderá ser destacado de uma a família constitucional na qual esteja inserido. Exemplificando, reconhece-se que tanto o direito chinês quanto o cubano podem ser investigados a partir da família constitucional soviética. 38 Portanto, a utilização da classificação “família” visa aprimorar os resultados obtidos e o conhecimento, bem como ressaltar determinadas características existentes em um determinado grupamento de ordenamentos. No tocante à tradição, esclarece-se que não há sistemas de direitos que estejam classificados por meio deste critério. Neste caso, observa-se que em alguns sistemas de Direitos, a evolução do Direito não foi um fator advindo das revoluções, das rupturas bruscas, suas construções ocorreram paulatinamente sem rechaces ao passado. Neste caso, o Direito torna-se um legado, modificável apenas por processos de evolução gradual. As revoluções, ao contrário, rompem com o passado e banalizam as conquistas. (HESPANHA, 2005, p. 353). Neste aspecto, a Alemanha romântica defendia esse caráter tradicional alegando a existência do “espirito do povo”, embora, o direito assentado sob a tradição dos letrados. Portanto, para a tradição as instituições, fatos e os arranjos concretos representam sua verdadeira constituição e Direito. (HESPANHA, 2005, p. 353-355). Portanto, a influência da tradição em um determinado sistema de direito é pouco comum, ante as inúmeras sociedades ou povos considerados sob aspecto da tradição. A fim de esclarecer, o significado de “sistema” e sua compreensão, que ora tanto pode servir para designar um sistema jurídico ou ordenamento (unitário), como remeter à idéia de vários ordenamentos, passa-se a examinar detidamente aspectos relevantes para o Direito. O método comparativo adotado pelas ciências jurídicas permitiu o fortalecimento e a expansão dos parâmetros científicos de pesquisa, inserindo o Direito enquanto ordenamento jurídico num contexto maior, aonde a sistematização recriou as fronteiras jurídicas para proporcionar maior integração entre os ordenamentos nacionais e aprimoramento do conhecimento jurídico tanto em nível nacional quanto internacional. (DAVID, 1998, p. 5-11) Contudo, estas integrações são realizadas com base em elementos ditados por um sistema de Direito dominante. Neste caso, a sobrevivência do Direito nacional passar a depender da manutenção dos valores que o sistema jurídico ou família agrega e emana sobre o conjunto de ordenamentos jurídicos. Embora, comum a prática que limita o estudo do Direito a uma determinada época, a fim de identificar a existência ou não de um sistema jurídico, para Losano (1978, p. 17), desde os primórdios os homens atuam guiados por um 39 sistema de regras, de maior ou menor grau de complexidade, em virtude de diferentes níveis de cultura e não menos importante de comércio existente. No mesmo sentido, Rouland (2003, p. 34), afirma que o Direito não começa com o surgimento da escrita, tampouco a idéia de sistematização. Independente da escrita verifica-se nas sociedades primitivas a existência um sistema jurídico compatível com os atuais. Portanto, não será o conteúdo científico que irá determinar se uma civilização arcaica ou tradicional possuiu um sistema jurídico. As afirmações acima demonstram a necessidade de se quebrar paradigmas e ideologias, concebidas com o propósito de auto-afirmação tanto para o Direito quanto para a ciência. Logo, reconhecer em outras sociedades, não reguladas cientificamente, sua capacidade de sistematização promove questionamentos acerca da nãosuperioridade tão amplamente divulgada pelas civilizações atuais em relação às civilizações primitivas. As explanações anteriores realçaram o Direito enquanto ordenamento jurídico fora dos parâmetros considerados pela ciência, neste caso, a sistematização somente é aventada após advento da modernidade. Portanto, embora, seja possível reconhecer a existência de sistematizações sem que estas obedeçam aos parâmetros científicos, há que se ressaltar que este conceito tem seu marco histórico definido. Neste sentido, cabe analisar em que momento histórico é possível evidenciar uma formulação teórica sobre a concepção de ordenamento jurídico, visualizado como um sistema. Em Ferraz Júnior (2003, p. 179), encontramos a seguinte descrição: A concepção do próprio ordenamento como sistema é consentânea com o aparecimento do Estado moderno e o desenvolvimento do capitalismo. [...] Não se pode precisar exatamente quando nasce a forma Estado, no sentido moderno. Em todo caso, dela faz parte, desde o início, uma organização administrativa própria [...]. Verifica-se, então que, no contexto jurídico, o positivismo inaugura um novo conhecimento com a sistematização do Direito sob um ordenamento de normas congruentes e coerentes criadas e positivadas pelo Estado. Somente neste momento admitisse a existência de um paradigma de Direito pelo prisma da sistematização. 40 Neste contexto, a sistematização é decorrente da evolução do Direito em face dos conflitos sociais que emergem na sociedade. Entretanto, isto apenas é observável a partir de um determinado período, que exigiu instituição de uma organização capacitada para dirimir os conflitos. “Quanto à própria idéia de um sistema de direito positivo, foi ela precedida pela publicação de obras teóricas, que desenvolviam sistemas de direito natural ou racional, concebidos sob a influência do racionalismo, a partir do modelo de sistemas de geometria.” (PERELMAN, 2005, p. 421-422). Pelo aspecto apresentado acima, somente se reconhece a existência de uma sistematização do Direito após advento da codificação e a centralização de sua produção pelo Estado, ocorridos em meados do século XIX. Antes disso, não se admite a existência de um sistema jurídico operante. Entretanto, contemporaneamente as sistematizações jurídicas enfrentam um novo desafio: os sistemas autopoiéticos e a produção autoreferencial do Direito, como novo paradigma, em termos de sistematização. Na era Pós-Moderna, ela pressupõe uma nova complexidade em torno da ‘cosmovisão sistêmica’ e acumula algumas novas características que são aqui propostas. Por exemplo, o sistema incorpora tudo, todas as formas, valores (significados), usos e funções. Ele incorpora o sistemático, o assistemático e o parassistemático. Nada pode ser abortado do sistema. Tudo é gerado pelo sistema, seja positivo ou negativo. E, sendo assim, o fundamento e a finalidade de todo sistema só pode ser um, universalantropocêntrico: o homem. Até mesmo no caso de comportamento destrutivamente anormal. (MARTINS, 2006, p. 198). Portanto, o pensamento sistêmico torna-se uma resposta para sistematizações até então realizadas com base num paradigma de Direito vertical e hierárquico, que apenas aprimora suas técnicas de regulação social e de resolução de conflitos. A sociedade complexa, não mais poderá ser reduzida à simplicidade e tampouco destituída dela. Ambos os paradoxos terão de ser assimilados no interior das sistematizações futuras. Enfim, sejam complexas ou enxutas, as classificações apresentadas demonstram que a sistematização do Direito ocasiona em uma escala maior um modelo redutor de compreensão das complexidades. Todavia, busca-se nas sistematizações realizadas, para além dos limites do ordenamento nacional, a compreensão e a pretensão de identificar o propósito do Direito, enquanto instrumento de pacificação social, veiculados nestes sistemas. 41 3.1 O Sistema Common Law: existe remédio para a pacificação social? O desconhecimento gera dúvidas, promove o isolamento, em lugar da abertura tem-se o inverso. A racionalidade permitiu ampliação do conhecimento jurídico para além das fronteiras geográficas de um país, a soberania ameaçada desenvolveu suas bases de defesa e o Direito tornou-se cânone máximo dessa pretensão. “[...] Há alguma norma, alguma racionalidade – permanente a orientar ação das pessoas envolvidas? Ou não será que é a situação, o caso, que, nas suas características irrepetíveis e irredutivelmente complexas, constrói os sujeitos da ação. [...]” (HESPANHA, 2005, p.81). Um Direito que não se construa sob a égide de leis e codificações, não será Direito? Haverá Direito fora do espaço legislativo? O questionamento do parágrafo anterior permite, sobretudo, evidenciar a relatividade do conhecimento e reconhecer as limitações que o abrangem. O Direito como instrumento do homem para o homem, age como mero veículo de suas crises, de suas dores, de suas insatisfações e suas alienações. Representa, portanto, não um Direito desprovido de concretude, mas, antes compromissado com a realidade dos sujeitos que o recriam sob as mais diversas manifestações. Portanto, a sistematização do Direito da Common Law, demonstra apenas uma faceta assumida pelo povo Inglês diante das vicissitudes. Não vigora o certo ou errado na maneira de construir um Direito, existe o diferente, o que se amolda aos caracteres específicos de uma sociedade, que não prescinde do Direito por entendêlo eficaz em seus propósitos. Para Scarman (1978, p. 14-19), não há como determinar o momento exato do nascimento da Common Law, basta afirmar, que esta é anterior ao Parlamento. Tampouco, este aponta um grupo responsável pela sua criação, apenas alega que seu desenvolvimento e organização foi obra de magistrados e advogados ingleses. A indeterminação no momento do nascimento da Common Law, no contexto acima, salienta uma característica inerente do Direito inglês, sua construção não foi idealizada por um Parlamento, logo, o Direito não deve seu nascimento à lei. Os grupos envolvidos em sua constituição, estes sim, juízes e 42 advogados foram os verdadeiros responsáveis por sua instituição. Através deles a Common Law assumiu a forma conhecida contemporaneamente, um Direito, de cunho jurisprudencial, baseado no estudo de questões concretas. David (1998, p. 286-287), quando analisa o nascimento da Common Law também opta por não realizar uma demarcação tão nítida, para ele seu estabelecimento marca uma passagem, a jurisdição local é sobreposta pela jurisdição Real, a Common Law se inicia a partir do momento que o direito costumeiro perde seu espaço e o sistema da Common Law assenta suas bases definitivas como um direito comum a todo reino inglês. Na formação da Common Law, não houve revoluções, nem dissoluções substantivas, os movimentos de transformação foram decorrentes de um apego à tradição. Esta permeou toda história acerca da Common Law. O termo mais corrente é a oposição, um poder se opõe ao outro até a completa instauração. As rupturas bruscas parecem contrárias ao bom senso inglês, que busca manter o que possui até que outra forma mais condizente com a realidade venha alterar os objetivos. Inicialmente, a atuação dos Tribunais Reais da Common Law ocorria em paralelo à justiça local, ofertada pelos barões e senhores feudais. Segundo David (1989, p. 287-288), o rei como fonte de justiça, só intervia em casos extremos, pois, em sua maioria os conflitos de ordem privada eram resolvidos por estas jurisdições existentes nos feudos e não diversas da Justiça Real. Convém salientar que será a autonomia de algumas organizações da Curia Regis que possibilitará a instituição dos Tribunais Reais e a conseqüente formação da Common Law. Entretanto, a concorrência com Poder Real, melhor equiparado, resultou num abandono das jurisdições senhoriais, que ofereciam um sistema de provas irracionais, baseado em ordálios, juízos, compurgação e duelo como forma de obter a resolução dos conflitos. A própria oferta do procedimento do júri pelas Cortes Reais, vai imprimir aos julgamentos critérios até então inexistentes, como: “racionalidade, previsibilidade, agilidade e segurança” (MARTEL, 2005, p.10-11). Verifica-se, pelo exposto, que não foram uso de ordálios ou juízos de Deus os responsáveis pelo oferecimento de uma nova forma de julgar os conflitos. Embora, o chamariz tenha sido uma opção menos desvantajosa, nem por isto significou uma preocupação com a forma como estes processos eram dirigidos pelos senhores feudais. A intervenção real era restrita, ao particular cabia o que existia, 43 uma justiça local que aplicava os costumes e estes variavam de um feudo para outro, inclusive na forma como os barões e senhores aplicavam. A pacificação social neste período dava-se pela formas existentes à disposição, pouco se percebe uma justiça constituída com propósitos de conduzir a sociedade. A Common Law não transparece outro compromisso para além daquele para qual se propõe, torna-se o Direito comum a toda Inglaterra e substituir os barões e senhores feudais em sua forma de promover a justiça, assumindo inteiramente o poder de ditar o Direito. Por este motivo, ausência da sociedade, que participa apenas como usuária das Cortes Common Law é incomoda e leva a indagar, afinal, para quem a justiça da Common Law e própria Common Law foram construídas? Seu surgimento, carregado de muitos significados históricos, talvez possa ser explicado pela subserviência, característica do regime monárquico e da sociedade feudal composta por estamentos. Logo, não se questionava os atos do soberano, se aceitava de bom grado todas as manifestações de bondade provindas do rei. Sem este, não haveria paz social. Portanto, perquirir pela forma como a pacificação dos conflitos vai será obtida, não caberia aos que se encontravam fora das esferas de poder na Inglaterra, em plena era medieval. A fim de evidenciar melhor o que foi exposto, transcrevem-se as seguintes observações realizadas acerca destas características tão inerentes aos ingleses, mas, que em certa medida foram responsáveis pela criação da Common Law: ‘Em todas as nossas lutas políticas, a voz dos ingleses nunca se ergueu para pedir afirmação de novos princípios, o estabelecimento de novas leis; o grito público foi sempre para reclamar uma melhor obediência às leis em vigor e para se repararem os males nascidos da sua corrupção ou do seu esquecimento. Até à Magna Carta ter sido arrancada ao Rei João, reclamaram-se as leis do bom Rei Eduardo; e, quando o tirano, contra a sua vontade, apôs o selo nesta obra capital, fundamento de todas as nossas leis posteriores, limitamo-nos a exigir o estrito acatamento de uma Carta que passava por não ser senão a Constituição de Eduardo sob uma forma nova. Fizemos mudanças de tempos em tempos. Mas estas mudanças foram simultaneamente um acto de conservação e de progresso: um acto de conservação porque eram um progresso; um progresso, porque conservavam’.(FREEMANN,1891 apud MIRANDA, 2007, p. 74). Portanto, não haveria como entender o significado da Common Law e seus objetivos divorciados da realidade histórica que a construiu, dos caracteres do 44 seu povo, do órgão judiciário responsável por criar o Direito. Sim, o Direito e não um condutor da sociedade, em termos tão declarados ou amplos, como ocorre no sistema da Civil Law. Uma análise mais detida pode revelar que a Common Law não nasceu destituída de coerção, afinal os tribunais reais precisaram dela para fazer valer suas decisões. Tampouco se pode afirmar, categoricamente, que não estivesse entre suas pretensões conduzir a sociedade, seria desproposital crer no contrário, afinal, a instrumentalização do Direito perpassa por avaliar o que será realmente importante para um sistema ou não. E, neste sentido, não há como escapar da sociedade, pois, provém dela toda a gama de conflitos que caberá ao judiciário e ao sistema Common Law resolver. Resta saber se a finalidade da Common Law, primordialmente, representou uma manifestação de poder frustrada, pois, a independência das Cortes Reais permitiu que estas pudessem controlar o próprio soberano e submetê-lo a Common Law, portanto, nesse caso o poder pertenceria aos juízes. Dessa forma, a limitação do soberano representa a confirmação do poder dos juízes e não da Common Law, uma vez que, o Direito é criado por estes com bases nos precedentes. Por fim, questiona-se se a busca por solução das questões concretas no sistema é simplesmente uma perspectiva adotada em face da praticidade processual ou se este contém em seu interior o germe da pacificação social? Outro ponto que cabe analisar, pela sua influência, nos sistemas jurídicos existentes refere-se às teorias jusnaturalistas e as transformações perpetradas decorrentes do Iluminismo na Common Law. Neste sentido, quanto à concepção racionalista que eclodia na Europa formando uma nova corrente de pensamento nos informa Bobbio (1995, p. 65): “[...] a concepção racionalista considerava a multiplicidade e a complicação do direito um fruto do arbítrio da história. As leis velhas deviam ser substituídas por um direito simples e unitário, que seria ditado pela ciência da legislação, uma nova ciência [...]”. Estas novas concepções preconizavam um Direito destituído de caráter imutável e universal. A nova diretriz seria a razão, a única capaz de guiar os homens e construir o Direito sob outros os princípios, diversos aqueles defendidos pelo jusnaturalismo e, no entanto, pouco diferentes em suas intenções. Enfim, não 45 bastava recria-lo, era necessário a instituições de novos fundamentos que somente a ciência seria capaz de dar. Entretanto, essas teorias responsáveis pela reestruturação da concepção do Direito causaram pouca ou nenhuma alteração na Inglaterra. Isto, segundo Bobbio (1995, p. 26-27), deveu-se ao modo como a Inglaterra medieval tratou o soberano, seu poder que se dividia em poder de governo e jurisdicional, devido à vinculação existente entre poder real e Common Law ficou limitado a esta. Portanto, a Common Law, antes de qualquer outra prerrogativa, foi um limite ao poder soberano. Outro ponto, ressaltado, está no fato de que a teoria da separação dos poderes, já havia sido desenvolvida na Inglaterra bem antes da sua eclosão no continente europeu, sem que para isso fosse necessária uma revolução. Ao se analisar os fundamentos da corrente racionalista e sua influência sobre a Inglaterra e a Common Law, percebe-se que esta não alterou praticamente muito a estruturação havida neste país. Pois, a forma particular como o Direito foi concebido, seu desenvolvimento não dependeu de uma luta interna contra as arbitrariedades do poder soberano, nem do envolvimento do Parlamento. A Common Law, nesse sentido, foi primordialmente um Direito construído para defender os indivíduos contra os abusos do poder. Logo, foi em nome da racionalidade que os tribunais reais foram constituídos, em nome desta nova forma de pensar o Direito, que estes puderam se sobrepor e atuar como um contrapeso. No entanto, todas essas evoluções se apresentaram de forma gradual, sem que houvesse rupturas drásticas com o Direito anterior. A Common Law se ajustou aos novos preceitos, flexibilizando-o no seu interior as novas proposições que o Iluminismo propagou. A vinculação entre poder e Direito durante o período de sedimentação da Common Law, demonstrada pela existência da multiplicidade de jurisdições, revela que os conflitos poderiam ser submetidos a qualquer uma delas. Contudo, não há como deixar de observar que a manutenção do poder em ascensão se deu enquanto este permitiu a continuidade das jurisdições locais para resolver os conflitos, mesmo sendo irracionais os instrumentos cotejados para dirimir os conflitos. Logo, concluí-se que ao poder não interessa os fins e sim, os objetivos, a racionalidade divulgada estava circunscrita aqueles que dela poderiam usufruir. Ou seja, é possível vislumbrar de maneira ainda incipiente os primeiros traços que mais 46 tarde irão resultar no liberalismo, aonde a igualdade e a liberdade existente são de cunho formal. O sistema Common Law não poderia existir se não contasse com a participação direta do juiz, o qual segundo Soares (2000, p. 38-39), é o responsável pela criação do Direito da Common Law. A discricionariedade que dispõe o juiz neste sistema permite-lhe buscar por meio dos precedentes jurisprudenciais as “soluções para questões concretas”. Sua atuação reafirma não apenas a própria tradição, na qual se funda a Common Law, mas o seu valor, pois, a principal finalidade descrita para sua existência esta em: “dar abrigo à sociedade, e pensar os seus ferimentos, representados em violações da paz social”. (SOARES, 2000, p. 54). Portanto, diverso do sistema Civil Law e sua ojeriza a qualquer interferência ou discricionariedade o sistema Common Law se desenvolveu, sem que sua atuação pudesse se manifestar em arbítrio ou em caos. Afinal, quando cria o Direito o juiz da Common Law torna-se responsável pela própria manutenção desse poder, qualquer desvio, arbitrariedades representa a morte do sistema e de toda tradição jurídica que o construiu. O fervor quase religioso que, a tradição exerce sobre a cultura jurídica inglesa, possui forte influência sobre o papel do juiz e de sua importante missão na manutenção da tradição e da Common Law. Nesse sentido, vejamos: Os Anglo-Saxões permaneceram fiéis à autêntica tradição clássica para a qual o juiz é o órgão essencial do Direito. Na verdade, definem o Direito através do juiz: é o Direito o que é aplicável pelo juiz. [...] No desempenho da sua missão o juiz anglo-saxônico é senhor de Direito; o que não aplica não é Direito. E, na verdade, ele é senhor da common law, por ser ele que a faz e continua a fazer mediante a sua jurisprudência. [...] (MIRANDA, 2007, p. 78). Logo, inegável o avanço que este novo tipo de jurisdição representa em oposição ao seu concorrente, eminentemente processual e sistemático as soluções serão encontradas a partir das particularidades que cada conflito comporta, o único Direito aplicado será a Common Law. Todavia, as distâncias anteriormente percebidas entre sociedade e Direito se aprofundam à medida que a Common Law se solidifica como sistema. O grau de formalismo extrapola e as novas exigências limitam os conflitos aos critérios estipulados para seu conhecimento. 47 O excesso zelo dos juízes e apego demasiado às regras processuais converteram o sistema Common Law num “conglomerado de processos”. A ênfase exagerada no processo, gerador de todo direito da Common Law, contribuiu para que houvesse um desvio, passou-se a valorizar os elementos processuais em detrimento da solução dos conflitos. Desse modo, obter o julgamento de uma causa pelo Tribunal Real depende em grande parte da concessão de um writ e adequação da causa aos writs disponíveis. (DAVID, 1998, p. 290-291). Não bastasse este formalismo exacerbado, a supressão das jurisdições tradicionais provocou uma explosão de demandas. Sem conseguir atender, cada vez mais insatisfeitos os usuários passam a procurar o rei para obter um novo julgamento e, assim por meio da atuação do Chanceler surgem os tribunais da Equity. Estes, inicialmente, de opositores são posteriormente transformados em aliados e suas regras adotadas pelos tribunais reais, após a união de ambos os tribunais. Salienta-se que toda embate envolvendo Equity e Common Law deveu-se a pretensão absolutista dos soberanos à época, os quais sequiosos de ampliar seus poderes tentavam instituir um sistema concorrente. (DAVID, 1998, p. 295-297). Este excesso de formalismo demonstrou claramente no que havia se transformado a Common Law, um mero distribuidor de direitos, despreocupado com qualquer substantividade que os cercasse, aonde cada processo deveria se adequar aos writs. O descompromisso com a solução do conflito era patente. Ansiava não pela solução do caso e sim em ajustar o processo como se fosse um relógio, exato, perfeito, no entanto, desprovido de sensibilidade ou humanidade. Em sua manifestação processual, o Direito torna-se estéril e desintegrador. A burocratização desvia a Common Law dos objetivos já citados, pois como é possível dar “abrigo à sociedade”, se o sistema vive à margem dela, isolado dentro das minúcias processuais que envolvem um determinado caso? E, como será possível atender esta sociedade se as “violações da paz social” continuam a se proliferar em seu seio, como feridas abertas que não cicatrizam, por serem solenemente ignoradas. A Equity, que não se confunde com equidade, foi uma solução encontrada pela sociedade para refrear as insuficiências da Common Law. Entretanto, verificase que os movimentos da sociedade tendem a acontecer em torno dos detentores do poder judicial, são eles os responsáveis pelas alterações do status quo, são eles os seus protetores, o Direito, neste caso o Direito é um mero instrumento, que 48 poderá defender ou negligenciar, incluir ou excluir. Esclarece-se que estes detentores do poder, no caso, são aqueles que possuem o poder de oferecer a justiça, de dirimir o litígio ou pacificar os conflitos. No âmbito das promulgações, o Parlamento teve seu limite delineado pelo próprio sistema Common Law, segundo Scarman (1978, p.17-18) “o Parlamento não codifica” e, portanto, o statute law funciona apenas como exceção, correção ou enxerto ao customary law. A desnecessidade de um código ou legislação se dá em virtude da diretriz adotada pela Common Law, pois, crê-se qualquer construção se dará dentro dos limites Common Law. Embora, contemporaneamente a proliferação de statutes seja crescente, o fato do sistema não se encontrar codificado delimita sua atuação aos espaços reservados pela Common Law. Essa rejeição se deve a forma como os statutes são estruturados, o emprego de termos amplos ou gerais demais, inibe sua proliferação em um sistema que não comporta fiel obediência à palavra do Parlamento. (SCARMAN, 1978, p. 18-29). O espírito do positivismo, embora, tenha significado uma explosão legislativa na Europa, novamente, não atingiu o sistema da Common Law nas mesmas proporções. Não que, na própria Inglaterra, não existisse vozes dissonantes apoiando a codificação do Direito, entretanto, a Common Law mantevese fiel às suas tradições. Segundo a concepção dominante nos séculos XVIII e XIX, a legislação não ocupa senão o segundo lugar entre as fontes do direito inglês, depois da jurisprudência; os acts ou statutes (leis) são apenas considerados como exceções em relação ao common law; os juízes interpretam-nos duma maneira restritiva respeitando mais a letra que o espírito. [...] extensão crescente da atividade dos legisladores em decorrência do divórcio [...] crescente entre o tradicional common law, de espírito liberal, e a legislação cada vez mais abundante de inspiração social, ou mesmo socializante, tendente a assegurar a intervenção do Estado nos domínios econômicos e sociais no welfare-state. (GILISSEN, 1995, p. 215). De qualquer forma, percebe-se, que a lei deverá se ater especificamente aos limites delineados pelo Common Law, mesmo uma crescente atuação do Parlamento na geração de novas leis contém esse critério. A própria interpretação da lei no interior do processo sempre se desenvolverá como submissão. Os novos desafios, apontados por uma legislação cada vez maior em torno de outros direitos (sociais) e domínios, aponta dois caminhos obriga a 49 Common Law consistente na sua abertura ou fechamento. Tudo dependerá de como as novas políticas adotadas pelo Estado serão administradas pela Common Law. Ampliação de seus compromissos demonstra que as tradições, responsáveis pela sua manutenção, mostraram insuficientes no caso em concreto. Não bastou ser guardião de direitos, faz necessário realizá-los concretamente. As prerrogativas do Welfare State trouxeram novos desafios ao sistema Common Law, as questões sociais deixadas até então ao encargo dos órgãos administrativos, passaram a exigir uma mudança de postura, cabia a Common Law assumir novos compromissos e abandonar os preceitos, até então defendidos, qual seja, “[...] sua preocupação primordial tem sido a de defender a propriedade privada e distribuir a justiça entre os indivíduos nas disputas entre si.” (SCARMAN, 1978, p.52). Neste sentido, não há saídas óbvias ou fáceis, a crise que vem assolando o mundo contemporâneo deixa poucas opções, e para um Direito construído basicamente sobre a tradição, seus efeitos são ainda duramente sentido. Durante um largo espaço de tempo a Common Law pode ser assentar sobre as diretrizes básicas de um Direito dotado de grande força, apoiada em sua luta pelos direitos individuais. Entretanto, os fatores que hoje empurram o mundo para a globalização, também passam a considerar obsoleto e a descartar tudo que não se submeta aos padrões divulgados. Embora, o sistema Common Law não possua todos os “remédios” às violações de Direito, infere-se do exposto, que a sobrevivência do sistema foi decorrente da flexibilidade adotada, ante os desafios. Neste sentido, tal característica foi empregada com o propósito de assimilar os conflitos que se desenvolveram fora das perspectivas projetadas pela Common Law, permitindo aos juízes uma adaptação aos desafios surgidos. Cabe, portanto, deduzir que tendo em vistas as peculiaridades do sistema da Common Law, sua maneira diversa de conceber e aplicar o Direito, mais casuística, permite uma prática diferenciada com possibilidades de resolução de conflitos mais próxima da realidade dos sujeitos envolvidos na contenda. 50 3.2 O Sistema Romano-Germânico - Civil Law: O (re) nascimento do homem sob o manto da paz (?) Em grande parte as teorias existentes acerca do Direito destacam o homem pensado como ser humano após o advento do iluminismo. E o sistema romano-germânico, dentre os sistemas existentes, ocupou-se, primordialmente, em definir as relações individuais e para isso aprimorou seus institutos, definiu direitos e obrigações. O (re) nascimento do homem, apoiado em princípios e valores emanados a partir da liberdade e da igualdade, advindos do seu reconhecimento como ser humano, portador de interioridade e individualidade, segundo Roman (1996, p. 40), alterou os espaços psíquico e físico, até então inexistentes, para o individuo. Há, neste momento o que Ferraz Jr. (2003, p. 65-66), identificou com a dessacralização do Direito, neste aspecto, a técnica - em sua ânsia por (re) afirmação - se sobrepôs à ética e inseriu o Direito num novo paradigma, aonde os sistemas normativos existentes passam ser concebidos sem a interferência do sagrado em seu conteúdo. Nesta eclosão, o homem tornou-se portador da liberdade aventada pelo liberalismo ante o seu reconhecimento como individuo. Ao Estado moderno coube garantir a existência deste ser idealizado e oferecer-lhe um novo olhar, assim como um novo Direito, partindo-se da superação do direito natural. Será dentro desse cenário de mudanças propagadas pelas grandes transformações e, fomentadas pelas ciências naturais que florescerá no continente Europeu um sistema de Direito, denominado Romano-Germânico. Contudo, a fim de explicitar as premissas que o regem tal sistema, se abordará alguns aspectos relativos a sua origem. Verifica-se que, a produção jurídica romana, anterior à sistematização ocasionada pelas universidades latinas e germânicas, foi impulsionada em face do desenvolvimento e do progresso. A grande explosão comercial à época resultou num intenso movimento de capitais, em conseqüência a cultura jurídica alterou-se para adequar-se às novas exigências. (KASER, 1999, p. 35). Contudo, outro fator preponderante refere-se a praticidade jurídica dos romanos e sua constante busca pela realização de princípios, os quais baseados na equidade e na organização social foram determinantes para elaboração de um 51 processo alicerçado sob as premissas da utilidade e da eficácia. Seu principal objetivo consistia na manutenção da ordem e da paz em Roma. Tal praticidade romana via na atividade jurisdicional uma finalidade: a construção de um direito justo e, isto, somente seria obtido na medida em que estivessem presentes os princípios da equidade e do equilíbrio (VILLEY, 1991, p. 56, 78-79). Foram estas características, acima descritas, que permitiram o desenvolvimento jurídico do Direito romano e sua sobrevivência e renascimento. Entretanto, nada disso seria possível sem que houvesse uma estruturação condizente do Direito. Afinal, a expansão do Império romano não teria ocorrido se este dependesse apenas do uso da força, provenientes de suas legiões. Somente uma base jurídica forte poderia manter a ordem e a paz romana. Cabe esclarecer, que o sentido usado para paz nos moldes daquela civilização somente é possível pela ausência de guerra. Neste caso, a paz social romana não provém de um exercício jurisdicional ou da aplicação do direito como instrumento de pacificação social de conflitos na sociedade. Por conseguinte, a maneira como essas regras processuais foram elaboradas e a preocupação com a hipótese de realização de um Direito “justo”, demonstram a raízes do sistema romano-germânico e sua constante busca pela justiça como valor supremo. Desta forma, o critério de justo e do equilíbrio entre as partes, bem como a distribuição de justiça, sua finalidade primordial. Convém, relembra que o Direito romano existia apenas para os cidadãos romanos. Era, portanto, um direito de romanos para os romanos. Afora desse círculo funcionavam outros direitos que, o Império romano optou por manter em nome da manutenção do seu poder. O declínio do Império romano e o conseqüente início da Idade Média modificaram completamente as feições do Direito romano, conhecer suas regras neste período tornou-se inútil, pois, diante dos “juízos de Deus” não havia autoridade que conseguisse o cumprimento de uma sentença. Contudo, apesar do seu quase desaparecimento é possível vislumbra-lo influenciando algumas leis bárbaras. Este período é marcado pela lei do mais forte que vigora entre os particulares ou grupos sociais. Devido a exaltação à fraternidade e a caridade provenientes da justiça divina a procura pelos tribunais era desincentivada. (DAVID, 1998, p. 29-31). O período feudal descrito representa o quase desaparecimento do Direito romano em face do esfacelamento do Império e das freqüentes invasões bárbaras. 52 E, contra a lei do mais do forte, pouca ou nenhuma eficácia tinha o direito romano. Afinal, sem um poder centralizado não havia como manter o Direito no meio de tantas outras manifestações, algumas baseadas em costumes trazidos por estes povos invasores e outras existentes durante o período de dominação romana, mas de aplicação restrita. Assim, o direito romano tornou-se dentre os vários modos possíveis de resolução de conflitos na sociedade, apenas mais um. O renascimento do direito romano ocorreu independente da ação de um poder centralizado ou político, a intenção primordial era construir um novo modelo de sociedade e lançar as bases da ciência jurídica Européia, além de proporcionar aos juristas “um vocabulário e métodos para orientá-los na procura de soluções de justiça.” (DAVID, 1998, p.35). Este ressurgimento, obra das universidades latinas e germânicas deveuse ao pluralismo jurídico medieval, aonde um “sistema pesado, complexo, caótico e arbitrário”, o qual submetia as pessoas à diversos ordenamentos, sem que houvesse mecanismos que limitassem a incidência destes ao mesmo tempo. (SANTOS, 2000, p.121). Do conteúdo acima, extrai-se algumas observações: inicialmente, o renascimento do direito romano quis por fim ao caos e instaurar a ordem, pois, o pluralismo jurídico existente oferecia um ambiente desordenado e complexo demais para servir de base para regular a sociedade. Sob tal pretexto, a codificação foi idealizada como um projeto ordenador, aonde as leis transformariam o complexo em simples e o caótico em ordenado e, finalmente, o bárbaro em um ser civilizado. As pretensões, entretanto, restringiram-se a um modelo ideal de sociedade, já que, na reconstrução do direito romano, o estudo e o resgate foram baseados nos textos que haviam sobrevivido após a queda do Império. Neste caso, a sociedade era fator secundário que deveriam se amoldar às regras descritas como perfeitas para retirarem o homem do caos e da desordem. Estes movimentos de renovação, segundo Hespanha (2005, p. 329), demonstram que a fixação do Direito por meio de da codificação visava à reconstrução do direito romano sob novas bases. O código representava bem mais que um repositório de vontades humanas, tendo por base o direito natural, de caráter imutável e universal, intentava-se por meio dele instaurar uma época de “paz perpétua” entre os homens. 53 Desta forma, tem-se que: “/ A constituição republicana, além da pureza da sua origem, isto é, de ter promanado da pura fonte do conceito de direito, tem ainda em vista o resultado desejado, a saber, paz perpétua; daquela é esta o fundamento [...]” (KANT, 1995, p. 129). A codificação partiu de construções doutrinárias existentes, à época, que reconheciam a existência de uma ordem superior governando os homens. A fixação desta ordem, num texto simples e ordenado, permitiria regular a sociedade através do conhecimento exato do seu conteúdo e obter a paz e a harmonia. Portanto, os valores veiculados por este primeiro código se alicerçavam na edificação de uma sociedade justa, livre da desordem e da multiplicidade de regulações que desviavam o homem da sua plena realização. Somente um Direito sob as bases da imutabilidade e universalidade poderia regular a sociedade e conferir-lhe segurança. A sistematização do direito romano entre os séculos XII e XIII, objetivava assegurar o desenvolvimento das cidades e do comércio que renasciam e impunha novas exigências. Neste aspecto, livre das influências morais, religiosas, e, constituído sob as bases da razão, o Direito romano-germânico oferecia os critérios reclamados por essa nova sociedade. Salienta-se que, o renascimento do direito como regulador das relações sociais partiu de uma exigência de juristas e filósofos. (DAVID, 1998, p. 31). O sistema romano-germânico apresenta duplo aspecto em seu nascedouro, por um lado o Direito afirmar-se a partir da regulação das relações sociais, por outro essa sociedade é representada por uma parcela de indivíduos que não se enquadram na totalidade, mas, que pela sua influência passam a exigir mudanças que atendam aos seus interesses. Em nome do desenvolvimento e do progresso do comércio, bem como das cidades, filósofos e juristas serão os produtores e aplicadores, enquanto comerciantes e adjacências seus consumidores. A incapacidade de regulação da sociedade, por meio da religião e da moral, trouxe uma crise de valores e possibilitou ascensão do Direito como um instrumento capaz oferecer a coexistência pacífica entre os indivíduos dentro de um quadro de regras mais racionais, menos sobrenaturais e, portanto, mais seguras e menos arbitrárias. Diante de tal panorama não coube a sociedade (re) clamar por seus direitos, devendo se submeter ao Direito que renascia. 54 Portentoso em suas aspirações, este Direito desenvolveu-se sob as premissas do Direito natural até que correntes teóricas contrárias às concepções dominantes e sequiosas por ocupar seu espaço passaram a contestá-lo. Nesta esteira o direito romano-germânico vai alcançar sua plena sistematização a partir do século XVIII, com o advento do Iluminismo, o desenvolvimento das ciências e a superação dos jusnaturalismo pelo juspositivismo. O advento da modernidade representou a substituição de uma de religião por outra, neste sentido, a ciência com sua proposta inovadora e libertadora transformou-se no novo deus, graças ao “apoio subordinado, mas central, do direito moderno”. (SANTOS, 2000, p. 52). A crise gerada pela superação de paradigmas atuou como uma proposta de inovação em todos os campos, embora, o contexto acima esteja reduzido, os acontecimentos representaram mudanças drásticas, onde todos os âmbitos do conhecimento passaram foram contestados. O espaço era de inovação, de recriação, e para firmar novas bases só havia um meio, descartar o velho paradigma para que o novo pudesse se restabelecer. Esse novo espaço de liberdade, oferecido ao homem configurou-se ideologicamente ilimitado e juridicamente limitado. Aliança com a ciência ampliou a proposta reguladora do Direito sob novos (velhos) propósitos, entrementes, a sistematização românico-germânica visou garantir ascensão da ideologia do liberalismo, solidificando na figura do Estado todas as aspirações, sociais, políticas e jurídicas. O novo modelo jurídico emanado pelo Estado proporcionou um ideal de liberdade ilusório. Neste aspecto, leis discriminatórias foram criadas a fim de restringir liberdades daqueles indivíduos considerados inapto ou incapazes de atender aos ideais difundidos pelo Estado. A consequentemente a limitação da capacidade de “Mulheres, nativos, não-proprietários”, bem como outra série de interdições foram realizadas objetivando a exclusão social de “loucos, pródigos e menores”. O capitalismo emergente exigia uma classe considerada ativa e normal para sua expansão. (HESPANHA, 2005, p. 343-344). No contexto descrito, verifica-se que a nova concepção do Direito que teve nos códigos sua maior expressão representou bem mais que uma privação de liberdade. O poder de criação do Direito é retirado da sociedade e conferido a um órgão do Estado específico, responsável exclusivo por originá-lo e aplicá-lo. 55 Embora, homem se constitua, neste momento, um ser pleno de liberdades apenas para uma parcela da sociedade dispõe esse atributo, as limitações ocasionadas àqueles que não pertencem às classes dominantes são feitas com base na concepção de Direito, representado por um legislativo democrático. Grotius, Hobbes, Locke, Rousseau, todos os teóricos do contrato social preparam e consagram a eliminação de Deus antes que, mais tarde, outros filósofos proclamem sua morte. Forjam um novo mito, o de indivíduos livres no estado de natureza, que para proteger melhor sua liberdade, se reúnem em sociedade e, conforme à razão, definem por um contrato de leis e liberdade às quais renunciam, e as que conservam a título de direitos subjetivos. (ROULAND, 2003, p. 61). Neste aspecto, assegurada a criação de normas menos arbitrárias, o Direito revestiu-se de critérios segurança e certeza para que a lei, e não o costume, fosse fonte de criação do Direito. No entanto, as estruturações decorrentes de exclusões sociais perpetradas, sufocaram a sociedade multipluralista pelo dogma monista. A pacificação social identificou-se com a ordenação do caos e a paz social transformou-se numa conseqüência direta da ação do Direito sobre as condutas humanas. Uma crise pode ser desencadeada por diversos fatores, mas sua presença pode significar tanto uma ausência, como um excesso. Neste contexto, as mudanças iniciadas em plena era das luzes se caracterizaram pela ausência: de certeza, de segurança, de paz social e de um Direito que assegurasse determinados Direitos. O Estado moderno, por sua vez, insere-se numa outra crise: àquela caracterizada por excessos. Neste âmbito, o positivismo jurídico extrapola ao resumir o Direito à estrita legalidade, no afã de conduzir a sociedade. Neste contexto, neopositivismo representa uma mudança de paradigma de Direito. Por outro lado, o Direito passa por uma crise. A preocupação essencial, outrora era com a justiça comutativa; a idéia de justiça distributiva passou atualmente para o primeiro plano e, por conseqüência a ênfase, antes colocada nas relações entre os particulares e sobre o direito privado, é colocada atualmente sobre o direito público, sendo atribuído um papel primordial à administração e ao Estado, para fazer reinar um novo tipo de justiça em uma sociedade renovada. Neste aspecto, concepções e técnicas jurídicas consideradas satisfatórias, tornam-se obsoletas ante a nova demanda de conflitos. (DAVID, 1989, p. 55). 56 O Direito sob a perspectiva descrita, possui um novo desafio: adaptar-se às rápidas mudanças, sem que haja rompimento do sistema. As estruturas que permitiram sua sedimentação vergam desgastadas e os valores anteriormente defendidos esmorecem. A sociedade, antes mero objeto de validação do Direito e do Estado, se expande e concomitante os conflitos sociais. Segundo Hespanha (2005, p. 371), a demanda legislativa do século XX é uma resposta dada à crise solapada pelas necessidades sociais emergentes. Leis e códigos são insuficientes para consecução da estabilidade social e o apaziguamento de ânimos. Neste contexto, a Constituição, mero estatuto, foi alçada a uma condição superior, transformando-se num repositório de valores sociais. O neopositivismo traduziu a concretização desta idealização, ocorrida em torno da Constituição, bem como sua instituição de “Lei fundamental” do Estado. Desta forma, o legislativo não mais deterá o monopólio absoluto e irrestrito da lei pelo. Adequação da Lei aos ditames constitucionais imprime uma nova perspectiva, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade e invalidade das leis que promulgar. Todavia, a pacificação dos conflitos sociais sob a constitucionalização de direitos provocou uma abertura para novos direitos fundamentais - alimentados por uma Constituição considerada símbolo de um Estado de Democrático de Direito promoveu também o surgimentos de novos dissensos ante o desajustamento existente entre a nova contextualização de Direitos e os meios disponibilizados para efetivá-los. Neste contexto, o sistema romano-germânico para adaptar-se às diversas influências teóricas e as crises, alterou-se e promoveu o reconhecimento de Direitos, ampliando liberdades e atribuições sempre foram realizadas dentro de um parâmetro controlável pelo Direito. Segundo David (1998, p. 58), a revolução socialista - de caráter não apenas econômico, mas, social, político e, principalmente jurídico - representou para o sistema romano-germânico uma grande ameaça a sua unidade, ante ao número de países que migravam para um sistema que negava qualquer concepção de Direito de origem burguesa. Dentre todas as crises ocorridas, o impacto socialista representou para o sistema de direitos romano-germânico uma possibilidade de esfacelamento, ante os inúmeros países do Leste Europeu que migravam ou ameaçavam migrar para o regime socialista. Neste aspecto, vários países, fora do sistema passaram a integrar 57 o sistema socialista que impunham não apenas a negação de todo sistema de Direito, mas inclusive do próprio sistema econômico capitalista. No sistema jurídico romano-germânico, o Direito como “técnica específica social” foi constituído para normatizar condutas e resolver os conflitos com o propósito de conseguir a “paz” e trazer à razão aos homens para livrá-los dos julgamentos arbitrários. “O Direito, com certeza, é um ordenamento para promoção da paz, no sentido que proíbe o uso da força em relações entre os membros da comunidade”. (KELSEN, 2001, p. 231). Neste sentido, as intenções que o sistema jurídico romano-germânico evidencia como principais, tornam-se secundárias. A efetividade é comprometida ante uma concepção de Direito que somente reconhece como Direito o que for reconhecido pela estrutura estatal como sendo Direito, sendo positivado no ordenamento normativo. Conforme Hespanha (2005, p. 486-488), a pós-modernidade caracteriza-se por uma reação contra os ideais generalizantes e racionalizadores da modernidade. Há uma oposição geral contra os conceitos normativos como abstrato e geral. Tais críticas pretendem a desconstrução de valores pautados na universalização e, que portanto, ignoram o pluralismo e multiculturalismo. Dentre as críticas apontadas, a pós-modernidade, desconstroem as estruturas erigidas pelo Direito vigente, para expor as idiosincrassias do meio social e os reflexos desta criação e aplicação destoante dos sujeitos conflitantes. Portanto, o sistema jurídico romano-germânico não se constitui com base na tradição - como àquela adotada pelo sistema Common Law - sua distinção básica reside no fato de que este se forjou em meio às crises e as revoluções, indiretamente responsáveis por sua evolução e mantença. Há que se ressaltar a importância de seu conhecimento, tendo em vista a influência dessa sistematização sobre o ordenamento jurídico brasileiro. Reconhecer que a crise que se instala - questionando a eficiência do poder jurisdicional em encontrar soluções menos morosas, mais céleres e mais próximas da realidade social dos sujeitos - não é uma particularidade de um ordenamento jurídico nacional, mas que envolve a todos que façam parte desta sistemática e adotem suas práticas. 58 3.3 Os outros sistemas de direitos: a busca pela pacificação continua Dentre os sistemas jurídicos existentes, optou-se por evidenciar os sistemas jurídicos Common Law e romano-germânica (Civil Law). Contudo, as menções feitas na abertura deste capítulo cingiram-se a expor outras formas apenas a titulo de informação. O recorte neste item perpassará os sistemas que devido a sua concepção diferenciada de Direito influencia sobre a forma adotada e encontrada para (re) solver os conflitos sociais. O homem sempre buscou no passado respostas para suas dúvidas, sem atentar-se para o fato de que não somos a totalidade ou unanimidade, que o Direito, ao menos em boa parte da humanidade não funciona na forma preconizada pelos sistemas ocidentais. Neste sentido, expõe a seguinte assertiva: A maior parte da humanidade não compartilha a visão ocidental do direito e sua sanção. O recurso aos advogados e aos juízes para solucionar um conflito é tão natural para um americano quanto parece incongruente a um chinês; o muçulmano junta o direito à religião com tanta resolução quanto ocidental tem de afastá-lo dela. (ROULAND, 2003, p. 31). Ao examinar-se um sistema de direito, as diferenças que os envolve demonstram que as concepções: Oriente e Ocidente, vão além das distinções geográficas ou de cunho social, filosófico e político. Neste sentido, as concepções ocidentais e orientais são diferentes, sobretudo acerca do Direito. O ocidente tende atribuir ao Direito um valor e visualizá-lo como um fator preponderante de ordenação social. No Oriente, as soluções dos conflitos são buscadas fora do Direito, pois para os povos do Extremo Oriente o Direito representa um “instrumento do arbítrio, um fator de desordem”. Nestes países o valor dado à conciliação é inestimável, assim como a busca pela paz e harmonia. (DAVID, 1998, p. 24). [...] o mundo encontra sua coerência na conjunção dos contrários (o que lembra o pensamento africano): não se pode pensar a matéria sem o espírito, o racional sem o sensível, a ordem sem a desordem, o bem sem o mal, o yin sem o yan. Dentro desse universo de pensamento, o direito não está excluído, mas constitui um modo extremamente rudimentar de regulação social. É, de fato, bom para os bárbaros: os estrangeiros, os criminosos incorrigíveis (o direito chinês é acima de tudo penal). Isso explica a pouca estima que gozam juristas. [...] Ao direito e ao julgamento, preferese de longe o acordo e a conciliação. Cumpre mais suprimir do que resolver contestações, o que juristas correm o risco de impedir se se recorre a eles. (ROULAND, 2003, p. 81). 59 A maneira particular como os conflitos são resolvidos no mundo oriental demonstra que embora, o Direito esteja formalizado à maneira ocidental, a preferência pela coexistência harmoniosa entre os homens faz com que a conciliação e o acordo despontem como método primordial. Neste aspecto, aplicação fracional do Direito não promove a união, não aproxima, pelo contrário cria distâncias, individualiza. Dessa forma, os padrões ocidentais não encontram parâmetros acessíveis numa cultura que julga o Direito como um desordenador social, que imprime nos indivíduos uma necessidade de manifestação constante de vontade. As regras, neste caso, não apaziguam, elas eliminam o diálogo, impedem o entendimento, logo, geram mais conflitos do que resoluções. 3.3.1 O sistema de Direito japonês e chinês: a ótica do consenso Atuação das filosofias orientais sobre o modo de vida japonês e chinês, não se restringe ao âmbito doméstico. Neste aspecto, a maneira particular como os conflitos sociais são solucionados, reflete o âmbito dessas filosofias. Ao contrário das práticas ocidentais que privilegiam o litígio, nessas culturas o consenso e a conciliação são ferramentas indispensáveis para regular a vida social, pois a consideração de cada indivíduo detém sobre o conflito baseia-se na responsabilidade deste pela construção da harmonia nas relações sociais. Para o jurista japonês o acordo ao invés do julgamento, bem como a preponderância de deveres acima do Direito, desfaz qualquer idéia de direitos individuais. No plano concreto serão as relações particulares entre os indivíduos que definirão a forma como os conflitos serão (re) solvidos. ”Noutras palavras, o direito não se impõe aos homens, eles o criam segundo suas necessidades [...].” (ROULAND, 2003, p. 277). Desta forma, tem-se uma cultura voltada para práticas em que o Direito não é considerado um meio eficaz de se obter, o que somente a consciência poderá fornecer a solução de um conflito. Aliado a esta questão verifica-se que, as filosofias orientais transcendentais têm papel preponderante sobre as condutas sociais. Neste aspecto, o homem é visto como o começo, meio e fim do que o cerca, dito de outra forma, sob o ângulo das relações sociais, os conflitos começam com ele e terminam 60 por meio de sua ação. Portanto, a busca pela harmonia social é um trabalho individual. Embora, existam códigos publicados no Japão, estes em geral são preteridos, a meta principal é o desenvolvimento de técnicas de conciliação, que visem dispensar o uso do Direito positivado e codificado. Tal comportamento revela a concepção dos orientais quanto ao uso Direito para conduzir as relações sociais, o qual poderá ser resumido em uma frase: “[...] todo extremo oriente conserva a idéia de que o direito é bom para os bárbaros.” (DAVID, 1998, p.24). Contudo, é possível encontrar opiniões que, pautadas na visão ocidental de Direito legalista/individualista e indiferente às peculiaridades sociais orientais, defendam a idéia de que o progresso e o desenvolvimento somente foram alcançados após adoção de um paradigma de Direito semelhante àquele existente no plano ocidente. Neste aspecto, para Venosa (2005, p. 113), a transformação ocorrida no Japão deu-se em face da ocidentalização do Direito japonês, que promoveu a substituição do Estado feudal pelo Estado democrático, sob a matriz do sistema romano-germânico. Embora, essa seja a realidade jurídica do Japão, a maneira como estes buscam resolver seus conflitos, independente da estrutura normativa existente, revela-nos que a pacificação social pode ser obtida sem que haja intervenção estatal direta sobre o dissenso. Neste caso, os próprios indivíduos encontram no contexto social as respostas necessárias para alcançar a melhor solução, a mais adequada e que melhor atenda aos propósitos de harmonia social. De outra parte, no sistema de Direito chinês, a idéia que este fazem de universo recai sobre sua atitude perante o uso do Direito. Para o chinês universo é infinito e sua origem ocorreu independente da intervenção de um deus criador. Neste caso, princípio e fim são considerados movimentos cíclicos que se alternam constantemente, cabendo ao homem adaptar-se às mudanças, adotando uma postura de “governar a si mesmo, respeitando a harmonia do universo.” (ROULAND, 2003, p. 80). Quanto ao Direito chinês, sua concepção é bastante diferente do direito ocidental. No entendimento desse Direito, tal ciência apenas desempenha função secundária. A promulgação de leis para os chineses não é um procedimento normal para assegurar o funcionamento da sociedade. A filosofia tradicional chinesa considera a promulgação de leis como algo mau em si mesmo, porque os indivíduos, ao conhecerem essas leis, passam a 61 entender-se com direitos e tendem a prevalecer-se dos mesmos, abandonando as normas tradicionais de honestidade e moral que são as únicas que devem orientar sua conduta. (VENOSA, 2005, p. 112). Do exposto, percebe-se que o espaço reserva ao Direito é totalmente diverso daquele aplicado no plano jurídico ocidental que considera o Direito fonte de toda a justiça, democracia e realização do progresso. Inimaginável, portanto, sob essa ótica que haja outra forma mais satisfatória de conduzir e regular a sociedade. Neste aspecto, ao analisar-se sob a ótica da pacificação social, verifica-se que ambas as culturas adotam posturas diferentes para obtê-la. Enquanto um sistema de Direito, no caso, ocidental considera que somente o Direito poderá conduzir a sociedade, no âmbito oriental, o sistema chinês privilegia a conciliação em todos os seus aspectos e formas. Procura-se ao máximo evitar o processo, quando este é inevitável, sua execução é protelada ou caso seja realizada, ocorre sob a forma mais branda e menos prejudicial possível. Neste contexto, nem mesmo a codificação ocorrida na China, na década de 1930 e o advento comunista, foram capazes de suplantar a convicção chinesa. Esta permaneceu inalterada quanto à desnecessidade do Direito como fator de ordenação ou de resolução dos conflitos. (VENOSA, 2005, p.112113). Desta forma, torna-se inevitável o choque entre a cultura ocidental e oriental, pois enquanto se verifica uma continuidade do conflito social sob as formalidades de um processo judicial, de outro lado, temos uma construção que atendendo às tradições que permeiam sua sociedade tendem ao uso restrito do Direito estatuído. Neste contexto, a educação para conciliação é um fator primordial. O ocidental tem muita dificuldade em conceber que concretamente as coisas possam funcionar assim. Isso é esquecer a importância da educação e dos ritos. A conciliação é facilitada pelo fato de que a educação habitua cada qual a perguntar-se se os conflitos nos quais se encontra envolvido não se originaram por culpa sua. [...] o aprendizado do acordo e da conciliação é, pois, tão exigente quanto o das normas jurídicas. (ROULAND, 2003, p. 81). Logo, essa noção de consciência e responsabilidade provém de uma cultura educação voltada para conciliação. Ocidente desconhece tal prática, pois a noção de individualidade fortemente apregoada pelas correntes políticas liberais e neoliberais, imprime uma conduta competidora e, portanto, dispersiva. Cada qual 62 busca o seu Direito e ao Estado cabe ser guardião e criador dos Direitos que seus cidadãos possuem, tanto individuais quanto coletivos. Este tipo de exigência é diverso na tradição chinesa, a busca constante por uma conduta que privilegie a coexistência pacífica com o outro, impede que o Direito seja acatado integralmente e aplicado como um meio eficiente para se alcançar a pacificação social. Os valores que permeiam a cultura Oriental são perenes, a ocidentalização não conseguiu ofuscá-los com seu apelo ao consumismo e acúmulo de bens. Os princípios filosóficos que conduzem as relações humanas baseados na “paz e na mansidão”, apenas são possíveis na medida em que o homem busca a si mesmo e desiste de se encontrar em coisas. (FAGÚNDEZ, 2004, p. 128). O Direito para o sistema oriental chinês é um ente apartado de toda e qualquer pretensão harmoniosa. Desintegrador ele não serve aos propósitos orientais que assentam a convivência em outros princípios. Princípios que não se coadunam com a lógica que permite a disputa entre os indivíduos sem que haja uma reflexão acerca da responsabilidade de cada um pelos seus atos. Portanto, qualquer método adotado que não seja esteja previsto e legitimado pelo Direito, entendido como manifestação estatal, não oferece a segurança e a certeza que promove o progresso e o desenvolvimento econômico, sendo visto com extrema desconfiança e como fator de desordem e aculturação pelo ocidente. Para Fagúndez (2004, p.132), o Taoísmo oferece ao Direito o desenvolvimento de uma nova concepção, de caráter complementar, entre filosofia e ciência. Tal abertura, inserida no plano intermediário entre a ciência e a religião, oportunizaria o crescimento das relações sociais humanas, revertendo-se num desejo profundo de autoconhecimento sobre si e outro. A sugestão proposta, logo acima, intenta uma concepção de Direito fora dos parâmetros meramente normatizador de condutas ou sacionador. Almeja-se uma nova consciência, integradora, aberta ao diálogo e a uma nova forma de conceber e aplicar o Direito. Restrito ao ambiente judicial e aos seus agentes detentores de todo conhecimento jurídico - gera ignorância, medo e desconfiança. Tal idéia tem por objetivo divulgar um novo pensar sobre o Direito, sobre suas formas de representação da realidade, assimétricas e desintegradoras. 63 As visões até então apresentadas, sob a perspectiva do sistema de direito oriental, com ênfase nos países Japão e China, permitem reavaliar todos os pressupostos manifestados pelo ocidente acerca Direito, sua estruturação, validação e principalmente, forma de agir sob os conflitos sociais. Neste sentido, a tarefa empreendida pelo positivismo jurídico que só considera Direito o que for produzido pelo Estado, induz a reafirmar que somente o Direito aplicado por seus agentes é válido, bem como qualquer técnica que vise a pacificação social estará adstrita aos moldes ditados pelo sistema jurídico ocidental. Portanto, apresentação retro procurou desfazer tal equivoco, tendo em vista que os países orientais citados, embora tenham estruturado o Direito sob o paradigma ocidental, não suprimiram totalmente suas práticas e o seu “direito”, de cunho tradicional, para resolver àqueles conflitos sociais para os quais o Direito ocidental torna-se inútil. 3.3.2 O sistema de direitos da África e o pluralismo jurídico A tarefa será expor outro sistema de direitos, por sua vez, diverso daquele adotada no plano oriental. Situado no âmbito ocidental, a cultura africana privilegia outros matizes em suas relações sociais e estas influenciam enormemente a concepção e aplicação do Direito. Ocidente define as relações sociais a partir do Direito, esquecendo-se que em outros espaços geográficos, no caso, a África, o pluralismo jurídico é a fonte primordial das relações. (ROULAND, 2003, p. 194). Segundo Wolkmer (2001, p. 186), o monismo jurídico intentou sobreporse ao pluralismo, criando o “mito” da unidade social através de um sistema jurídico, qual seja, a legitimação do Direito derivaria de sua produção exclusivamente estatal, independente dos movimentos sociais existentes na sociedade, capazes de estabelecer normatividade própria. Entretanto, diferentemente, o Direito concebido neste país, não possui semelhança com aqueles anteriormente explanados. O culto aos antepassados demonstra a estreita ligação existente entre o costume e o respeito ao mundo sobrenatural. As tradições são mantidas intencionando perpetuar a condição previamente estabelecida, qualquer modificação desta realidade é desprezada por 64 não atender aos critérios sociais de unidade pré-estabelecidos. A coesão e o grupo social para o africano encontra-se acima de qualquer individualidade, pertencer a uma “tribo, casta, aldeia ou linhagem” é bem mais importante do que pleitear direitos subjetivos. (DAVID, 1998, p. 500-501). Embora, África esteja situada no plano geográfico ocidental e tenha recebido forte carga de influência na área política, social e jurídica - devido as colonizações européia inglesa, francesa – nota-se que, a concepção comunitária de sociedade, dividida em classes e indivíduos, é diferente em muitos aspectos. Tal distinção tem importância pela forma como o Direito passará a ser concebido e, principalmente, a valorização, sobretudo dos costumes, da tradição e da religião africana, acima do Direito oficial. A individualidade não é um aspecto rejeitado na cultura africana, entretanto, está atrelada ao senso de comunidade e pertença a um grupo social determinado. Neste sentido, as ofensas jamais serão dirigidas ao indivíduo – aspecto comum na sistemática ocidental - estas envolverão todo o grupo, no qual o indivíduo encontra-se inserido. A fim de melhor esclarecer essa relação entre indivíduo e grupo, convém expor as inferências realizadas por Rouland (2003, p.75): ”[...] nas cosmogonias africanas, diferenciação contínua e coerência da criação vão de par: as diferenças tornam solidárias, a divisão social é concebida em termos de complementaridade. Ferreiros, caçadores, guerreiros ou feiticeiros, vivem uns pelos outros [...] ninguém pode exercer o poder sem o apoio do outro [...].” Portanto, a noção de complementaridade fornecida pelo “outro” produz laços de solidariedade baseados numa acepção de integralidade. Desta forma, somente o conhecimento desta peculiaridade, existente no mundo africano e, do seu significado, poderá evidenciar o pluralismo jurídico existente na África. A existência de vários ordenamentos normativos vigendo em paralelo ao ordenamento jurídico oficial – “importado do continente Europeu” - segundo David (1998, p. 501), possibilitou a instauração uma justiça que tem sua função limitada a apontar o órgão responsável pela conciliação. Objetiva-se assegurar a harmonia entre os membros do grupo, evitando-se aprofundar os dissensos ou ampliar o já existente. 65 Complementando o dito acima: Do ponto de vista de comunidades restritas, como o são todas as comunidade da África e de Madagascar na era pré-colonial, ou do ponto de vista de comunidades vastas, como o são os nossos Estados da Europa, o direito e a justiça são inevitavelmente encarados de maneiras diferentes. A justiça indígena apresenta-se como uma instituição de paz, porquanto ela não visa, em primeira linha, a aplicação de um direito estrito; ela propõe-se, acima de tudo, reconciliar as partes e restaurar a harmonia na comunidade [...] (DAVID, 1998, p. 502) Portanto, o caminho adotado pela África tem um sentido de preservação ao máximo da comunidade. Tal idéia torna-se responsável pela prevalência do costume sobre o Direito codificado e pela reconstituição da harmonia entre os membros de uma comunidade, como um meio de resolver as discórdias. Em nome da tradição e dos costumes, o Direito é concebido conforme o entendimento de cada tribo, castas ou linhagem em paralelo ao Direito oficial. Segundo Rouland (2003, p. 78), aplicação do Direito oficial será preterida sempre que aplicação de suas regras puder danos causar danos irreparáveis. Neste contexto, a conciliação sobrepõe-se ao julgamento. No plano de produção normativa, essas sociedades ignoram as “legislações uniformizantes” preferem compor seus próprios estatutos sem provocar desagregações fazendo uso de alianças, a maioria de caráter matrimonial. O Direito, no aspecto sublinhado acima, possui várias fontes, sem que uma prevaleça. É certo que o Direito oficial mantém como referência nacional frente a outros países. Mas, faz-se necessário sublinhar que muitas manifestações violentas são oriundas da colonização havida nestas regiões, que imprimiram uma maneira totalmente diversa de compreender o mundo ao redor, por meio do Direito. Segundo Hespanha (2005, p. 504), durante o período de colonização a necessidade de manutenção de domínio sobre o povo existente, permitiu que estes continuassem utilizando o seu Direito, desde que houvesse uma supervisão da colônia. Contudo, a emancipação do jugo colonial não representou um retorno ao Direito anterior ao evento colonial e sim, a modificação e utilização do modelo preconizado sob as bases da centralização da produção do Direito, bem como sua codificação. O resultado da adoção de um sistema jurídico diverso da cultural local e semelhante da cultura jurídica européia somente fomentou problemas, tanto no 66 plano da normação e quanto naquele referente a resolução de conflitos por uma justiça oficial. Neste aspecto, observa-se que: Os atuais surtos fundamentalistas de certas culturas não européias – durante décadas submetidas a processos intensivos de modernização – aí estão a provar os resultados (não imaginados e muito menos queridos) de se perder de vista a especificidade, alteridade e a resistência dos modelos culturais próprios de cada sociedade. (HESPANHA, 2005, p.504). Do exposto, a África evidencia-se pela distinção que faz entre o Direito concebido e preservado através dos costumes e aquele positivado por uma ordem considerada civilizada. São peculiaridades, influenciadas por uma cultura, que tem larga influência sobre o modo como os conflitos sociais são dirimidos juridicamente. A breve explanação realizada acerca do Direito existente na África objetivou a complementação das informações discorridas até então. Salienta-se que, o reconhecimento de um sistema de Direito pautado na resolução do conflito fora da esfera normativa, legitimada para tanto, ainda é visto com certa desconfiança. O monismo jurídico permanece como um “mito”, segundo Wolkmer (2001, p. 186), responsável pela crença de que somente o Estado possui meios de garantir, a ordem, a paz social. Por outro lado, há que se salientar que a colonização ocorrida na África, autora das miscigenações de sistemas jurídicos - havendo oras construções e concepções baseadas no sistema Common Law, ora o no romano-germânico (Civil Law) - não foi suficiente para provocar a perda da identidade africana e do multiculturalismo. 3.3.3 O sistema de direito muçulmano Dentre os sistemas de Direito existentes, e visto até o momento, o Direito muçulmano constitui um sistema diverso, pela forma como foi estruturado. Neste caso, é necessário esquecer a cisão ocorrida no mundo ocidental entre direito e religião. No contexto deste sistema, a religião e não o Direito fixa as diretrizes que serão seguidas pelos homens. 67 O char’ ou châ’ia, isto, é o ‘o caminho a seguir’, constitui o que se chama o direito muçulmano. Esta ciência indica ao muçulmano como deve, segundo a religião, comporta-se sem que se distinguam, em princípio, as obrigações que ele tem para com os seus semelhantes (obrigações civis, esmola) e as que têm para com Deus que incumbem ao homem, não sobre a dos direitos que ele poderia ter. [...] o direito muçulmano quase sempre preocupa-se pouco, por esta razão, com a sanção das regras que prescreve. A mesma razão explica que o direito muçulmano seja aplicável unicamente nas relações entre muçulmanos [...] (DAVID, 1998, p. 409). No aspecto apresentado, evidencia-se uma concepção também diversa daquelas anteriormente apresentadas pelos sistemas orientais e africanos. Desta forma, enquanto houve em outros sistemas, principalmente, romano-germânico uma negação da religião por considerar negativa sua influência sobre a concepção do Direito, há no sistema aqui abrangido o caminho inverso. Entretanto, antes de adentrar no Direito muçulmano faz-se necessário realizar algumas observações sobre a questão que mescla religiosidade e Direito. Para Saco (2001, p.231), a idéia da existência de um poder superior guiando os homens, é inerente. Neste caso, o Direito veio a substituir a crença antes ocupada pela religião, sem que se abandonasse a necessidade de um poder superior para fornecer diretrizes. Neste aspecto, a interferência do Estado sobre os conflitos sociais, por meio do Direito, evidencia àquela crença de que somente um poder superior será capaz de manter a sociedade. Percebe-se que, antropologicamente, o ser humano não conseguiu desvincular-se da idéia de um ente superior, seja ele metafísico ou não. A religião, em análise, quando contraposta aos sistemas jurídicos laicos é considerada uma presença indesejável. Nesse sentido, os sistemas de Direito ao negarem a religião como fator de ordenação social e normatizador de condutas - remontam à cisão havida no passado entre ciência e religião. Cisão esta, responsável pela ascensão do antropocentrismo e da ideologia laica. O teocentrismo, neste contexto, foi configurado como um fator de alienação e dominação, contraposto ao ideal de libertação e reconhecimento do homem proposto pela ciência. Contemporaneamente a manutenção de um sistema de direitos sob a égide religiosa representa um retrocesso dos ideais que pretenderam, ao menos em nível ocidental, libertar o homem do jugo religioso. 68 Dentro desta perspectiva, vejamos: A razão impõe a regra da liberdade religiosa, estendida no século XVIII à liberdade de consciência. O pluralismo religioso tem com conseqüência a secularização do Estado, que propõe como finalidade do direito o estabelecimento de uma ordem social que assegure aos membros da comunidade política uma coexistência pacífica, sejam quais forem suas concepções religiosas. Numa sociedade pluralista, um certo consenso estabelecerá, para garantir a liberdade de religião, uma tolerância recíproca, que redundará, nos Estados Unidos da América, na completa separação do Estado e da religião. (PERELMAN, 2005, p. 315). A necessidade de separação entre religião e Direito não ocorreu no sistema muçulmano. Neste caso, a religião é visualizada como fator preponderante de ordenação social e de conquista da paz social. Somente à obediência aos desígnios divinos, que são considerados perfeitos e acima dos homens, pode proporcionar a conquista de um Direito justo e equânime. Conforme Rouland (2003, p. 63), inclusive os próprios detentores do poder são submissos à Lei – neste aspecto, a Lei é proveniente de Deus - Sua origem é considerada uma manifestação sagrada que não admite o reconhecimento de outra autoridade além da própria divindade. Neste aspecto, todo Direito encontra-se presente na Lei Divina, representação da perfeição que submete a todos, seja homem comum ou autoridade. Portanto, será a religião que ditará a forma como o Direito será aplicado e o seu alcance. Dentre os sistemas de direitos, o Direito muçulmano, é considerado o mais importante. Nele vigora um Direito em que os Estados encontram-se vinculados pela religião, neste sentido, ao funcionar como uma fonte difusora da crença islâmica, a religião se sobrepõe ao Direito. O Estado só tem fundamento pela obediência ao Alcorão, principal fonte do direito muçulmano. (VENOSA, 2005, p.111). Por este motivo, a lei no sistema de direito muçulmano é inviolável para os homens, pois ditada pelo legislador divino não admite contestações, no máximo interpretação dos doutos. Logo, toda e qualquer forma de resolução dos conflitos, pacificação social se encontrará vinculada a forma prescrita no Alcorão, considerado a manifestação da palavra divina feita aos homens pelo Profeta Maomé. Sob tal disposição o sistema de direitos muçulmano diferencia-se dos demais sistemas, pela influência de sua concepção religiosa sobre a origem do 69 Direito. Desta forma, verifica-se que: “Os governos, nos Estados muçulmanos, não têm poder de criar o Direito e de legislar; só podem elaborar regulamentos administrativos dentro dos limites consentidos pelo direito muçulmano, sem entra em conflito com ele.“ (DAVID, 1998, p. 414). Desta forma, a concepção, aplicação e, até forma de legislar o Direito são totalmente permeadas pela religião. Nada escapa a sua influência, que num primeiro momento, significou a preservação da cultura e da própria identificação como povo. Mas, por outro, o isolamento e o escudo da religião impediram que houvesse um alinhamento com posturas no âmbito social que não estivessem integradas à religião. Enfim, as inferências realizadas em cada sistema de Direito teve por propósito demonstrar que a realidade jurídica ao ser ampliada permite conferir ao Direito tantos significados quantos forem possíveis. Entretanto, dependendo do sistema de Direitos adotado, cada novo enfoque desconstrói as certezas e estabelece um novo parâmetro. . 70 4 O DIREITO E A PACIFICAÇÃO SOCIAL DOS CONFLITOS: UMA COMPREENSÃO A PARTIR DOS CONFLITOS O mundo contemporâneo anseia pela paz. Paz que não significa somente uma ausência de guerra, de conflitos entre Estados, mas, paz social, que por sua vez, também não se caracteriza por inexistência de conflito interpessoal. Essa condição intermediária permite aos indivíduos uma coexistência harmoniosa aonde o conflito não possui finalidade exclusivamente desagregadora e sim, também reflexiva, acerca das condições que o envolve. [...] conviver em Paz não significa eliminar as diferenças ou subordinar um indivíduo à vontade do outro. Paz é um desejo social. Mas atingir o social não pode significar eliminar o individual. As diferenças entre todos os indivíduos são essenciais para dar continuidade à espécie e para a sua evolução, e, portanto, devem ser mantidas. Esse é o grande dilema da individualidade e alteridade, que não são contraditórios, mas sim complementares [...]. (D’AMBRÓSIO, 2006, p. 165). Neste sentido, encontramos o seguinte significado e as implicações que envolvem a finalidade reflexiva, proporcionada pelo conflito, sem, no entanto, instaurar o caos ou desordem absoluta. [...] A consciência do conflito com fenômeno inerente à condição humana é muito importante. Sem essa consciência tendemos a demonizá-lo ou a fazer de conta que não existe. Quando compreendemos a inevitabilidade do conflito, somos capazes de desenvolver soluções autocompositivas. Quando demonizamos ou não o encaramos com responsabilidade, a tendência é que ele se converta em confronto e violência. (VASCONCELOS, 2008, p. 20). A pacificação social almejada visaria à compreensão dos comportamentos subjetivos, sem abdicar da harmonia e da instauração da paz como proposta de convivência social. Como parte integrante do comportamento humano, os conflitos revelam uma intensa busca por harmonia, por coesão, que não se realiza quando estes extrapolam os limites necessários para uma vivência pacífica. Não se postula um ideal de paz absoluta e sim, àquele voltado para uma consciência que não privilegie ou estimule o conflito para além do seu objetivo primordial: ser um meio que proporcione através das divergências o crescimento e o 71 desenvolvimento de idéias que atendam a complexidade, sem esquecer da individualidade. O conflito, portanto, não seria um fenômeno negativo e sim reafirmaria que a paz é uma busca constante e a pacificação social uma proposta de mudança para alcançá-la. Tradicionalmente, se concebia o conflito como algo a ser suprimido, eliminado da vida social. E que a paz seria fruto da ausência do conflito. Não é assim que se concebe atualmente. A paz é um bem precariamente conquistado por pessoas e sociedades que aprendem a lidar com o conflito. O conflito, quando bem conduzido, pode resultar em mudanças positivas e novas oportunidades de ganho mútuo. (VASCONCELOS, 2008, p. 21). A paz também pode ter outras conotações, sua obtenção não seria decorrente de uma avaliação reflexiva acerca do conflito, mas, caracterizar-se-ia pela atuação do Direito. Neste aspecto, a paz é garantida a partir do monopólio conferido ao Direito para usar a força em sua consecução. A paz é uma condição em que a força não é usada. Nesse sentido, o Direito provê apenas a paz relativa, não absoluta – ele priva o indivíduo do direito de empregar a força, mas reserva-o à comunidade enquanto ente Estatal. A paz do Direito não se configura como ausência absoluta de força ou um estado de anarquia; é uma condição de um monopólio de força da comunidade (KELSEN, 2001, p. 232). Na resposta acima, a paz ofertada pelo Direito é condicional. Limitado em sua ação o indivíduo desaparece para surgir como um integrante da comunidade que acima dos particulares exige a paz social. A concessão feita por cada um dos seus membros teria o propósito de evitar o caos. Essa paz que o Direito e, somente ele, pode oferecer - no caso explicitado - seria aquela idealizada por Rosseau, aonde cada um cederia em nome de um bem maior sua parcela de liberdade. Nesta construção, a paz social é o resultado de uma perda e não um ganho. Um ganho poderia ser descrito pela conquista de uma paz que enseja a resolução do conflito sem recorrer-se ao recurso da força e da violência. Nas palavras de D’ambrósio (2006, p. 154), possui o seguinte significado: “ Paz é a resolução de divergências e conflitos sem o confronto de forças, sem violência e sem recursos à neutralização do diferente.” Diante disto, observa-se que as opções disponíveis continuam a sujeitar os indivíduos às soluções polarizantes: ou estão certos ou errados, ou serão 72 vencedores ou vencidos. A proposta de pacificação social destoa dessa unilateridade por situar-se no centro e, ter como escopo a integração, a união, e principalmente, o diálogo. Educar para consciência do diálogo e conseqüente pacificação dos conflitos, será este o real objetivo do Direito? Será possível reconstruir a realidade e sem perder de vista seu conteúdo? A pacificação social e o Direito possuem a mesma convergência? Considerada utopia por uns, realidade possível para outros e promessa de alguns, a pacificação social em sua vertente jurídica expõe um Direito que alimenta esta última proposta e se oferece como um instrumento ideal, neutro e racional, porém, nem sempre tão eficaz em atender as demandas existentes. Afinal, sob qual base a pacificação social foi idealizada pelo Direito? Quais suas vantagens e, principalmente, a quem interessou tal finalidade? Neste aspecto, as opiniões se dividem acerca do Direito, para alguns este Direito - criado pela sociedade e em seu próprio benefício – garante a pacificação social. A jurisdição estatal seria uma mera manifestação desse Direito que traz em seu bojo a integração, a igualdade e a liberdade. Para Fagúndez (2004, p. 246), a integridade corresponde à interação, ou seja, o Direito não pode prescindir do conhecimento existente em outras áreas. Esta integridade teria por objetivo uma interpretação sistêmica do Direito, contrária ao pensamento newtoniano-cartesiano que permeou as construções jurídicas. Em Dworkin (1999, p. 260-261), a integridade é um princípio que tem por propósito evidenciar o compromisso geral assumido perante a comunidade, além de servir de fundamento às normas que dela provém. No caso, a integridade insere-se tanto como um princípio político que rege a comunidade como num desdobramento na esfera jurídica, aonde se torna imprescindível para evitar decisões incoerentes. Inicialmente, o Direito será exposto como um instrumento de realização da proposta pacificadora. [...] a função jurisdicional e a legislação estão ligadas pela unidade do escopo fundamental de ambas: a paz social. Mesmo quem postule a distinção funcional muito nítida e marcada entre os dois planos do ordenamento jurídico (teoria dualista) há de aceitar que direito e processo compõem um só sistema voltado à pacificação de conflitos[..]. (DINARMARCO, 2000, p. 158-159). 73 No mesmo sentido, temos Dallari (1996, p. 5), que afirma: “[...] o Direito sempre renasce como solução normal para os conflitos que são inerentes à vida social, pois só ele proporciona ordem, segurança e progresso sem afrontar a dignidade.” Para ambos os autores o propósito da pacificação é inerente ao Direito, somente através dele a sociedade terá seus direitos garantidos. Pela perspectiva exposta, apenas Direito é hábil em impor fim aos conflitos e conduzir a sociedade. Neste caso, a pacificação social se traduz pela redução de todo Direito à manifestação estatal, ignorando-se a normatividade presente no interior da sociedade. No campo oposto, o Direito é descrito como um instrumento de dominação apoiado sobre um discurso vazio, que tenta encobrir seus propósitos nada pacificadores e controversos. [...] a ideologia liberal, desde o iluminismo, vai ainda um pouco mais à frente, ao formular como tese a liberdade dos indivíduos. Para haver coexistência harmoniosa dos potenciais de liberdade de tantos indivíduos faz-se mister contrapor-lhes – Kant não era o único a pensar assim – coerção organizada como contrapeso necessário, como antítese benéfica [...] (MULLER, 2007, p. 187). No contexto acima, a coexistência harmoniosa sem sacrifícios é uma utopia. O individuo deverá ceder sua parcela ilimitada de liberdade em nome de uma convivência pacifica na sociedade. E, para isto o Direito agirá ao mesmo tempo como um limitador de toda liberdade e um promotor da pacificação. Embora, o Direito se afirme como um poder que a todos submete e domina, a necessidade de legitimação para se auto-afirmar é perseguida e obtida com oferecimento de concessões parciais ou de subterfúgios ideologicamente arquitetados, visando encobrir os verdadeiros propósitos. Por fim, numa outra hipótese, contrária às demais, a pacificação dos conflitos não se realiza, o descrédito provém do fato de que pouco importa o método: conflito jamais deixará de existir e, portanto, não alcançará a pacificação total. Neste sentido, transcreve-se: “[...] seja qual for o método empregado para suprimir o conflito entre crenças e interesses e estabelecer um acordo entre eles, 74 quase sempre acontece... que a harmonia resultante cria uma nova variedade de antagonismo.” (TARDE apud MARSHALL, 2008, p. 86). A proposição acima descarta qualquer método e conduz a assertiva de que os conflitos existirão independentes dos esforços empreendidos, ou seja, não há como extirpá-los da sociedade, eles fazem parte dela e das relações sociais. O Direito, portanto, encerra duplo aspecto: ao mesmo tempo é crise e renovação, promove e encerra conflitos, sem que, no entanto, por conta desta contradição ser visualizado como não-Direito. 4.1 – Os paradoxos da pacificação social Se o Direito atua como um pacificador social por meio de instrumentos qualificados para este fim, seu traço distintivo reside que longe das tensões e das paixões que permeiam um conflito ele se apresenta, não apenas como a melhor proposta, mas como a mais segura e eficaz para pacificar. Indo mais longe, talvez a única (?) Portanto, a sociedade somente reencontra sua harmonia através de sua ação. Contudo, o Direito produtor de todo o conhecimento que envolve relações sociais - sua ciência desenvolveu-se resolvendo conflitos - não os pacifica pela sua atividade, potencialmente fragmentada. Reconstruída, nem sempre a realidade descrita corresponde às suas origens. Neste sentido, como evitar um novo conflito se a realidade analisada destoa e se os sujeitos não encontram a pacificação oferecida e, sim, a criação ou ampliação do seu conflito? Não há como existir superação sem o confronto. O antagonismo sem a dialética inibe a reformulação de conceitos e convições, impede o reconhecimento de limites e de sua transposição. Segundo Fagúndez (2004, p. 77), apenas a dialética pode proporcionar uma visão mais exata das implicações que o Direito causa no dia-a-dia, sem ela o equilíbrio das relações fica comprometido ante as distorções geradas por uma visão unilateral, nesse sentido há perda da noção do que efetivamente se conquistou ou dos obstáculos que precisam ser transpostos. Portanto, a reavaliação do Direito por meio da dialética proporciona um reconhecimento acerca de sua realidade e de seus condicionamentos. 75 Neste contexto, a ética atua como instrumento de reconciliação entre o “Direito e Antidireito”, logo abaixo descrito. Quando falamos em Direito e Antidireito, obviamente não nos referimos a duas entidades abstratas e, sim, ao processo dialético do Direito, em que suas negações objetivadas em normas, constituem um elo do processo mesmo e abrem campo à síntese, à superação, no itinerário progressivo. O grande equívoco dos jusnaturalistas é, precisamente, oscilar entre a rendição ao ‘direito positivo’ (a título de ‘particularizado dos preceitos naturais’) e a oposição irresolúvel entre ‘direito natural’ e ‘direito positivo’, como se fossem duas coisas separadas: o Direito (que eles não conseguem fundamentar, pois arrancam esse ‘ideal’ para fora do processo) e a multiplicidade dos conjuntos de normas jurídicas (que não sabem ver como parte do processo de realização dialética do Direito). (LYRA FILHO, 1982, p. 74) O pensamento dialético é contrário a cisão do Direito em correntes equivocadamente antagonistas. O Direito é uno, suas manifestações objetivas podem divergir em significado e representações conforme a época e os homens, mas não podem jamais ser negada. A dialética se propõe a reconduzir essas construções opostas e obter uma superação delas em benefício do Direito. Portanto, como método reflexivo a dialética permite avançar sem que haja rompimentos radicais ou a reconstrução total de uma corrente de pensamento por outra ou ainda, inibe a mitificação do Direito. Reconhecer a essencialidade do paradoxo para formulação do Direito implica numa revisão de concepção, aonde a existência de opostos a função excludente se sobrepõe à complementar. Campbell (1991, p. 58) acentua que: “Todas as coisas, na esfera do tempo são pares de opostos. Assim, é essa mudança de consciência, da consciência da identidade para consciência de participação na dualidade.” O paradoxo insere o conflito como fator de evolução e de oposição para a própria manutenção da pacificação social. Assim, embora, extremamente desejável, a pacificação social torna-se indesejável ao possibilitar ao indivíduo uma sociedade sem um mínimo de controvérsias, nas relações intersubjetivas individuais ou coletivas. O conflito não é algo que ser encarado negativamente. È impossível uma relação interpessoal plenamente consensual. Cada pessoa é dotada de uma originalidade única, com experiências e circunstâncias existenciais personalíssimas. Por mais afinidade e afeto que exista em determinada relação interpessoal algum dissenso, algum conflito, estará presente. (VASCONCELOS, 2008, p. 20). 76 Logo, suprimir da sociedade essa característica, possivelmente não ensejará a pacificação social, e sim, o acirramento das condições que envolvem o conflito. O Direito, neste aspecto, não ofertará uma pacificação social absoluta ou tampouco um método capaz de eliminar todas as divergências, estas sempre estarão presentes, ante a dificuldade de conciliação de interesses individuais numa sociedade pluralista. Por este prisma, a pacificação social é um projeto que visa o reequilíbrio e o retorno da harmonia entre as partes para alcançar o todo. Desconsiderar o aspecto dual do conflito apenas reforça a mitificação do Direito, anteriormente citada. Afinal, não há como situar a pacificação social dentro de limites excludentes do vencedor ou perdedor. Segundo Perelman (2005, p. 8-9), uma “paz justa”, pensada a partir da eliminação do adversário, somente viria a revelar as distorções que cercam o sentido conferido por cada indivíduo à noção de “justo ou injusto”. À pacificação social não interessa a eliminação do adversário e, sim a reflexão que o conflito proporciona. Será apenas através da reflexão que a sociedade poderá exercitar a pacificação social sem os idealismos uniformizantes baseados em concepções de justo ou injusto. Portanto, o caminho traçado pela sociedade em busca da pacificação social envolve reconsiderar a significação do conflito. Neste contexto, reavaliar o aspecto transformador reservado ao Direito permitirá um amadurecimento da visão que continua a utilizar o Direito como um instrumento divisor entre o certo e o errado, entre o bom e o ruim, sem abrir-se às influências que permitam sua reconstrução e evolução em acordo com as necessidades dos homens. Considerar que pacificação social se obtém através de um paradoxo, insere o conflito em outra perspectiva e permite reconhecer na crise e na violência uma manifestação diferente da usual. Para isto, torna-se necessário rever quais os valores que advindos da crise, bem como da violência podem influenciar na reconstrução do Direito e, por conseguinte, da sociedade. 77 4.1.1 – O conflito na acepção do Direito: desmitificando a crise e a violência Os paradoxos do Direito abriram portas que asseguraram a criação de mitos, estes carregados de ideologias refletiram meras suposições como verdades absolutas. No campo da violência o conflito mitifica o Direito e eleva-o à categoria de um deus restaurador da harmonia e repressor da violência social. Segundo Campbell (1991, p. 22), o mito na sociedade funciona como um elemento de coesão e de criação de “ethos”, sem este a tendência será pela busca de um mito que supra essa necessidade perdida. Sem um mito para guiar a convivência entre pessoas diferentes e de culturas diversas a sociedade tende a utilizar as leis para mantê-los unidos. Dessa forma, desmitificar o Direito incluí reconhecer sua mitificação pelos homens, que fizeram dele uma manifestação de suas fragilidades e de suas expectativas. O contexto acima expõe as particularidades de uma sociedade em busca de sua identidade e, que em meio a crise vê no Direito uma proposta de união, de promoção de harmonia. Portanto, esse é um processo oposto àquele que veiculado pela dialética, pois, imprime uma visão unilateral, não permitindo questionamentos ou construções que ultrapassassem os limites projetados ou idealizados pela sociedade. Na assertiva de Moreal (1988, p. 172), o mito que envolveu as instituições e os conceitos de Direito contribuiu para que fosse atribuída uma perfeição, que não corresponde aos anseios da sociedade para o qual este é dirigido. No contexto exposto, a mitificação impede o reconhecimento das insuficiências do Direito e facilita a negação da violência, sem, no entanto, impedir que ela seja usada como um meio para se obter a coesão e ordem na sociedade. Da mesma forma, a visão negativa sobre o conflito tende a ressaltar seu aspecto desagregador e desordenador da sociedade. Em função disto, a sociedade somente se mantém aonde atue um Direito que, além de pacificador social, será o garantidor primordial da paz social que somente ele pode oferecer. Entretanto, obter a paz e, conseqüente, paz social requer uma construção diferente de mito. Envolve bem mais do que o apelo existente na cultura atual pelo benefício imediato. Almeja-se uma cultura de paz, aonde o mito proporcione uma alternativa à cultura individualista e competitiva. 78 Uma cultura de paz depende do desenvolvimento de uma mitologia que dê importância à ligação das pessoas com suas comunidades, bem como a sustentabilidade do ambiente. Mitos antagônicos, ao contrário enfatizam os dois extremos. Por um lado, existe o mito da Grande Narrativa do Progresso, com a tecnologia e a competição como temas. Por outro, há vários mitos milenares, alguns utópicos e outros antiutópicos. (KRIPPNER, 2006, p. 71). Neste aspecto, a violência e o conflito, mitificaram o uso do Direito como resposta preponderante para a violência gerada por outros conflitos, sem no entanto, promover a pacificação social. Inicialmente, verifica-se que nem sempre a violência é tão facilmente visualizada, oculta sob o manto da civilização, a sociedade que tende a negá-la é a mesma que estimula a expansão de um de Direito mais hábil em controlar, reprimir e punir por meio da violência os violentos. “[...] o homem moderno vive num mundo marcado por constantes apelos à violência, sob várias formas. A violência política, a violência econômica, a violência armada provocam e aumentam as injustiças e os conflitos sociais. [...]” (DALLARI, 1996, p. IX). E, será neste mundo que o Direito tanto atuará como o pacificador por excelência, quanto lhe será negado tal papel. A superação deste paradoxo se dará pela crise que o alimenta. Convém apontar que, a violência não é característica de uma sociedade específica. Embora, seja comum associar sua existência a partir do nível cultural, veremos que independente da sociedade analisada: arcaica, tradicional ou contemporânea, todas sem exceção, em algum momento tiveram que lidar com a violência e superá-la para coexistir e assim sobreviver. Portanto, a crença de que as sociedades tradicionais são mantidas apenas pelo uso e valorização da violência afasta do conhecimento a existência de outras sociedades também tradicionais que fazem da paz um ideal de vida e uma justificativa para sua existência. (ROULAND, 2003, p. 112-113). Da mesma forma, dizer que as sociedades primitivas em comparação com as contemporâneas são mais violentas, em face dos métodos empregados para resolver os conflitos, é esquecer que a “violência faz parte da natureza humana”, independente de sua localização seja no passado ou no presente. A variante no caso será a maneira como ela se apresentará, se mais explicita ou mais sutil. (FAGÚNDEZ, 2004, p.115-116). 79 A explanação acima desmitifica o pressuposto de que a violência é atributo das sociedades arcaicas, assim como propõe uma outra visão acerca sociedades tradicionais quando se tem em vista a violência. Nesse contexto, a violência não seria uma manifestação exclusiva das sociedades arcaicas, pois as civilizadas não prescindem dela. Quanto às sociedades tradicionais, é necessário ter em mente que o senso comum cria distorções que nem sempre correspondem à realidade. Portanto, ao se analisar a violência faz-se necessário não reduzi-la a mero fator social ou cultural, passível de determinação no tempo e espaço, e, sim reavaliar quais as condições que levaram a sociedade a extrapolar seus os próprios limites, colocando em risco sua sobrevivência e bem-estar. Uma hipótese a ser considerada - quanto à exacerbação da violência poderia ser inferida a partir da existência de conflitos na sociedade não absorvidos pelos meios disponíveis para sua resolução. No caso, haveria uma gama de necessidades não supridas reclamando uma solução, o acúmulo destas insatisfações geraria novos conflitos e alimentariam a violência - sem que o Direito conseguisse alcança-los - em virtude dos métodos utilizados não serem adequados ou suficientes. Segundo Santos (2000, p.167), as contradições quando de pequena monta são facilmente absorvidas pelo sistema jurídico. Neste caso, haveria uma intelectualização dos conflitos e das tensões com auxilio dos recursos institucionais e organizacionais disponíveis. Porém, quando uma transição de paradigma rompe os limites projetados, as contradições e os conflitos existentes em cada nível ou subnível, inevitavelmente, eclodem. Embora, o Direito configure-se como apto a pacificar, sua aplicabilidade depende da limitação gerada pela realidade acolhida em seu interior e pela forma escolhida para sua manifestação. O recurso da intelectualização tende a desviar atenção para questões formais, enquanto a realidade do conflito é afastada para um segundo plano. Neste aspecto, quando a escala de conflitos é superior à capacidade institucional, a intelectualização se mostra inútil e os recursos inaptos. Desta forma, a insuficiência ou inadequação das medidas usadas para pacificação social podem gerar crises e o conseqüente uso da violência para obterse o Direito negado. Um sistema jurídico necessitaria de um mínimo de indeterminação presente em seus comandos normativos a fim de proporcionar a 80 releitura do conflito por um aspecto menos rígido e informal. Portanto, toda pacificação social envolve a realização de interpretações divergentes, longe da “solução objetiva e impessoal” disposta pelo Direito. Logo, a importância dessa indeterminação normativa, visa a descontinuidade dos conflitos, evitando-se o caminho da violência vindicativa. (PERELMAN, 2005, p. 424). Outra hipótese acerca da violência implica em reconhecê-la como um método usado pelo aparelho estatal. Neste aspecto, a obtenção ou a consecução de um determinado fim – que pode envolver a pacificação social - validaria seu uso explicito ou implícito através do Direito e de sua aplicação pelos órgãos estatais, os quais estariam legitimados, tanto para usá-la quanto para afastá-la. A violência autêntica é, entretanto, mantida no background. Quanto mais isso é feito, mais o funcionamento da maquinaria legal se processa com regularidade e sem perturbações. A esse respeito, muitos Estados modernos têm sido sucedidos ao ponto de parecer quase um milagre, considerando a natureza do homem. Sob condições adequadas, o uso da violência, no sentido correto, está de tal modo reduzido que passa quase desapercebido. Um tal estado de coisa é suscetível de criar a crença em que a violência é estranha à lei ou de importância secundária. Isso, porém, constitui uma ilusão fatal. Uma condição essencial para reduzir a aplicação da violência em considerável medida é que se disponha de uma força organizada de irresistível poder, em comparado com a de quaisquer adversários possíveis. Esse é geralmente o objetivo de todo Estado organizado em linhas modernas. Portanto, a resistência será reconhecidamente inútil. Aqueles que estão incumbidos da aplicação da força em questões penais e civis do tipo corrente são numericamente poucos, é verdade, mas estão totalmente organizados e, em cada caso, têm de haver-se apenas com um único indivíduo ou com poucos indivíduos. (OLIVERCRONA apud LLOYD, 1998, p.43-44). Pela análise acima, a violência estatal perfeita não salta aos olhos, tampouco é palpável, pois tem sua existência maquiada por uma organização eficiente em encobrir sua ação. Tal aspecto não permite reconhecê-la de imediato, a habilidade com que é negada cria uma falsa ilusão acerca de sua prescindibilidade. Entretanto, tal recurso surge explicitamente apenas em casos extremos, evitando assim uma associação com a violência. O uso da violência para assegurar Direitos e, ao mesmo tempo restringilos, representa uma das facetas que àquela pode assumir para dissimular suas prática antagônicas, sob a égide do Direito. Desta forma, Direito e violência veiculam o mesmo propósito, porém de maneiras diferentes. No caso, a violência adentra para assegurar o Direito e permanece dando o sentido de força para suas 81 execuções que podem ser promovidas tanto para pacificar quanto para aprofundar uma série de crises, iniciadas fora da esfera jurídica. Neste sentido, o uso da violência como suporte estratégico desvirtua o Direito. A pacificação social pela força é um arremedo que não se coaduna com valores propagados pelo Direito. Afinal, que valores são consagrados quando a violência é o meio de comunicação disponível? Será possível encontrar uma outra opção para que o Direito realize a pacificação social sem o uso da força? A resposta abaixo talvez elucide alguns pontos dessas indagações. Uma sociedade consensual, em que a parte do dirigismo estatal diminuiria, constituiria um terreno favorável à ordem negociada, e nesse sentido as experiências das sociedades tradicionais ficariam atuais. Mostram-nos de fato que o direito pode existir sem o Estado, e que este não de modo algum o único garantidor da paz: tanto para uma sociedade como um indivíduo [...] (ROULAND, 2003, p. 152). Como contraponto à violência estatal - em seu aspecto mais exacerbado mas, igualmente encoberto, tem-se àquela perpetrada por um Estado totalitário visando (re) construir uma (ir) realidade com auxílio ideologia. Arendt (1989, p. 508), expõe que o totalitarismo ignora completamente a individualidade, o extremismo leva a considerar o homem como objeto supérfluo. O domínio, neste caso, não se manifesta pelo do simples desejo despótico de submissão. Os regimes totalitários extremos têm por objetivo destituir o homem da sua condição humana e transformá-lo em algo menos do que um animal, sem importância, embora, o realizem afirmando exatamente o contrário. A promessa do regime totalitário baseado na “lei da justiça na terra” confere através da legalidade a legitimidade necessário para sua construção. O propósito da “Lei” está em oferecer estabilidade aos homens, mutáveis por natureza, entretanto, o regime totalitário distorce esse quadro em sua busca pela realização de uma “Lei” que se movimenta independente da ação dos homens. (ARENDT, 1989, p. 514). São muitos os caminhos que a violência pode percorrer, suas manifestações abarcam tanto a violência explicita construída sob um ideal de sociedade superior quanto à violência que escamoteia sua atuação através do fator de ordenação, promoção de segurança jurídica e certeza do Direito. 82 Verifica-se que, nos regimes totalitários, a sociedade é conduzida acreditando na possibilidade do alcance de um estágio superior somente pela eliminação dos obstáculos que prejudicam sua edificação. Neste sentido, o Homem torna-se o principal obstáculo para consecução do fim almejado. Portanto, a negação funciona no Estado totalitário como suporte ideológico e estratégico para uso indiscriminado da violência, sob as vestes de uma depuração de ideais. “Uma ideologia é bem o que seu nome indica: é a lógica de uma idéia. O seu objeto de estudo é a história, à qual a “idéia” é aplicada; o resultado dessa aplicação não é um conjunto de postulados acerca de algo que é, mas a revelação de um processo que está em constante mudança [...]” (ARENDT, 1989, p. 521). A ideologia, portanto, revela-se um instrumento de grande importância na aplicação da violência. Os Estados que exacerbam os mecanismos de violência o fazem com base no fim prometido: a previsibilidade e ordenação total de todos os movimentos dos homens, este, visto como principal obstáculo à criação de um novo Homem e conseqüente de um novo Direito. Como fenômeno histórico, a violência tende alternar-se conforme a ideologia e a cultura dominante em cada época. Contudo, considerada um componente inerente ao homem - estimulada pela cultura - tem o poder de transformar o Direito, não apenas num objeto de luta tendente a construção da cidadania, mas, numa atitude que prioriza a violência como fator de externalização do próprio homem. (FAGÚNDEZ, 2006, p. 204). A violência não é um fator exógeno à sociedade, advindo de outras culturas, camadas sociais ou que exista apenas em outras sociedades. Ela está inserida em todos os níveis sociais sem que seja possível determinar-lhe a origem e influência sob o Direito, o qual poderá oscilar entre a perspectiva pacificadora quanto poderá fomentar o conflito e a violência ante o descompasso de suas normas com a realidade social. Neste sentido, Fagúndez (2006, p. 211) indaga: “Por que a sociedade é atingida pela moléstia da violência?” Para logo em seguida afirmar: “Para que possa crescer, amadurecer e construir novos caminhos.” Sem este pressuposto, a violência torna-se um elemento indesejável, pois, favorece o acirramento dos conflitos, retrai as relações sociais e implanta a desconfiança entre os homens. O aspecto salientado, neste caso, está inserido num 83 contexto maior, no qual a violência também funciona como parte da dinâmica que envolve o desenvolvimento do Direito, que impulsiona à reflexão e revisão dos paradigmas adotados em determinadas épocas e insuscetíveis de continuar válidos em um momento posterior. Embora, a violência necessite do Direito para corrigir-lhe os desvios, apenas uma visão multidimensional acerca dos conflitos e seus efeitos permitirão ao Direito administrar a violência, sem, no entanto, com ela se coadunar ou estimular. Todos os seres integram a mesma malha, fazem parte da mesma grande teia universal. O Direito é apenas parte de uma grande construção teórica que envolve tudo e todos. Quer o sistema normativo apreender vida em toda sua complexidade. Mas o que sabe a técnica da vida? Afinal, sabe a técnica de si mesmo? Enfim, o que sabe o direito da dinamicidade da vida? (FAGÚNDEZ, 2006, p. 210) Portanto, nem a violência ou os conflitos gerado por ela serão passíveis de pacificação social pelo Direito enquanto sua concepção apresentar-se fragmentada da realidade que o compõe. Nesta perspectiva, ao Direito caberá fornecer um caminho viável - não o único em sentido absoluto - sem desconsiderar a dinamicidade da sociedade e dos homens que a compõe, bem como sua inerente mutabilidade de valores. Neste aspecto, a crise que se manifesta em diversos setores das ciências, não deixa dúvidas: vive-se, atualmente, segundo Wolkmer (2002, p.13), uma ruptura de paradigmas, aonde as inquietações avultam sem respostas satisfatórias para a sociedade. Os modelos racionalistas, de ordem cultural ou de organização social, desmantelam-se diante da complexidade dos conflitos. Estes exigem não apenas respostas seguras, mas científicas. Diante tal situação o Direito parece convulsionar e os critérios científicos esvaziam-se na heterogeneidade socioeconômica de um sistema que não mais consegue manter as promessas feitas. À medida que a sociedade é vista como um sistema necessariamente conflituoso, tenso e em permanente transformação, toda e qualquer análise passa a ser considerada válida apenas se for capaz de identificar os fatores de mudança responsáveis pela contínua inadequação dos modelos culturais tradicionais – entre eles, o Direito. (FARIA, 1988, p. 24). 84 Logo, toda e qualquer crise envolve questionamentos e indagações acerca dos métodos empregados para resolvê-los. A virtude do conflito está em proporcionar discussões e reavaliações de critérios, quer seja para construir uma ordem jurídica e almejar a pacificação social dos conflitos existentes, quer seja para demonstrar que as soluções adotadas nem sempre alcançam o almejado e, portanto, necessitam de adequação para ser implantado. 4.2 - Direito: instrumento de pacificação social? A partir de que momento histórico é possível identificar a origem dessa associação entre Direito e pacificação social? Desde os primórdios o homem tem usado o Direito para encontrar soluções para suas controvérsias. Neste contexto, o Direito possibilitou a criação de meios hábeis para se obter a solução do conflito em determinado meio social. Verifica-se que indiferente à época, o povo ou a tradição, o Direito foi instrumentalizado como meio ou técnica específica de condução social e apaziguamento de conflitos interpessoais. Neste sentido, insere-se a observação abaixo transcrita. [...] a solução de um litígio, o apaziguamento de um conflito: fazer a paz reinar entre os homens é a finalidade suprema do direito e as pacificações, as conciliações, as transações pertencem ao direito, bem mais do que tantas normas ambiciosas [...] o direito pode precisar da força. Não pode ser reduzido a ela. (CARBONIER, 1988 apud ROULAND, 2003, p. 15). E, será dentro desta proposta que se erguerão diversas correntes doutrinárias ao longo da história do Direito, para fundamentá-lo como instrumento necessário e imprescindível à realização do homem enquanto ser social. A força é afirmada no contexto acima como um atributo inerente ao Direito. Dentre as sistematizações jurídicas aventadas no capítulo anterior, o romano-germânico destaca-se pelo o seu caráter regulador da sociedade, através do Direito. Nos outros sistemas, embora, o Direito regule as relações e conflitos sociais, não se evidencia um propósito tão explicito. Neste sentido, David (1998, p. 33), expõe que a sistematização do Direito romano-germânico realizado pelas universidades latinas e germânicas, trouxe 85 mudanças significativas para o Direito. Pela primeira vez surgiu a idéia de uma sociedade guiada pelo Direito, na qual o fim da arbitrariedade e da desordem dependeria de sua atuação. Portanto, a sistematização do Direito romanogermânico, além de oportunizar um conhecimento maior do Direito, também ampliou o campo de aplicação, possibilitando um domínio técnico – cientifico inexistente até então. Logo, a transformação do Direito em um instrumento e, consequentemente em instrumento de pacificação social, não contradiz seu objetivo maior: a de organização da sociedade e a identificação desta sociedade a partir do Direito. [...] a teoria instaura-se para o estabelecimento da paz, a paz do bem-estar social, a qual não consiste apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível [...] a partir deste ponto o direito é visto pelo seu caráter instrumental, advindo do caráter genérico e informal da lei que permite maior liberdade dos cidadãos. (FERRAZ JR., 2003, p. 69). Afirmação acima, a construção idealizada da sociedade pelo Direito romano-germânico visou o restabelecimento das relações sociais, no qual o principal instrumento de realização de coesão e harmonia social seria o Direito. Portanto, em sua sistematização as normas adquiriram um caráter eminentemente regulador da conduta humana e conseqüente da sociedade. Neste aspecto, não se verifica uma preocupação com a realidade a ser regulada, pois, a consecução da paz social e pacificação social serão asseguradas por meio do Direito. No entanto, ao confrontar Direito e realidade, percebe-se que o aspecto disciplinador sobrepõe-se à intenção de busca de equilíbrio nas relações humanas. Embora, tal busca, esteja presente na intervenção feita pelo Direito na realidade, seu caráter secundário provoca uma ruptura entre ambos, como se os princípios que regem a vida não tivessem qualquer repercussão no mundo Direito. (FAGÚNDEZ, 2004, p. 73). Pelo exposto, se infere que em nome da harmonia, da coesão e do equilíbrio social, houve sobrevalorização do caráter disciplinador do Direito. Acreditou-se que somente através dele o objetivo delineado seria conquistado. Esse distanciamento entre Direito e realidade provocou rupturas inconciliáveis na estrutura da sociedade que passou a ser idealizada sob o parâmetro do Direito. 86 Evidentemente, como instrumento de pacificação social o Direito não prescinde de Princípios que fomentem a harmonia e a coesão. Porém, é necessário um Direito que promova a libertação e não somente a regulação, do contrário sacrificar-se-ia a solidariedade, fator primordial na busca pela pacificação social, em nome da ordenação pura e simples da sociedade. O conhecimento valorizou a regulação em lugar do conhecimento emancipatório alicerçado na solidariedade, aonde o outro é reconhecido como também um produtor de conhecimento. Entretanto, a regulação prevaleceu sobre a solidariedade tornado-a dispensável, afinal de contas “os corpos dóceis não precisam de solidariedade e os corpos estranhos não a merecem”. (SANTOS, 2000, p. 245-246). A fim de complementar o exposto e, ao contrário do idealizado, o Direito foi transformado num instrumento onde o estimulo à solidariedade é incipiente. Neste caso, a pacificação social somente se realiza por meio de um controle de condutas, de liberdades, de métodos e, de conhecimentos, aptos a conduzir a sociedade. O Direito tem-se constituído no instrumento de aprisionamento, ao invés de operar a libertação. Preconiza a solidão, em detrimento da solidariedade. Não estimula condutas positivas, de construção, apenas pune aquelas que reputa contrárias aos interesses das classes dominantes. É certo que avanços democráticos existem e foram inseridos nas Constituições dos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Porém, há uma distância muito grande entre a regra abstrata, que consta do ordenamento e a vontade política dos governantes de torná-las realidades concretas. (FAGÚNDEZ, 2004, p. 74). Percebe-se pelo exposto, que o espaço reservado à solidariedade foi suprimido, em seu lugar ofereceu-se um Direito repressor de condutas e a serviço de uma parcela da sociedade que não corresponde à sua integralidade. Em nome da liberdade de alguns, promoveu-se o aprisionamento de outros. Mais uma vez, cinge-se a sociedade em realidade opostas, de um lado os protegidos e de outro se encontram os responsáveis pela desordem e desarmonia desta sociedade. Contudo, embora os avanços em termos de democracia e o crescimento de garantias existam, o Direito em sua abstração legal continua obedecendo à fragmentação da realidade, visando separar o bom e o ruim, o feio e o belo. Desta forma, não se pretende negar os avanços históricos ocorridos, mas, sim, salientar que a pacificação social tornou-se um ideal irrealizável pelo Direito, pois foram 87 desconsiderados elementos primordiais para sua realização: a realidade social dos sujeitos. A era moderna estabeleceu uma nova visão acerca do próprio homem, o antropocentrismo trouxe em seu bojo uma nova significação, não apenas de caráter libertário, mas também de objetivação do homem. Tal perspectiva inseriu um novo atributo às relações: “meio/fim”, resultando numa instrumentalização onde o valor estaria inserido naquilo que o homem produz. Neste novo mundo, portanto, tudo é passível de instrumentalização. Nesta sociedade, na sociedade dominada pela idéia de troca, o direito passa a ser considerado como um bem que se produz. [...] O bem produzido por meio de edição de normas constitui um objeto de uso, algo que se tem, que se protege, que se adquire, que pode ser cedido, enfim, que tem valor de troca. [...] mero instrumento de atuação do homem sobre outro homem [...]. (FERRAZ JR. 2003, p. 25-26). Assim, idealizado como um bem passível de troca, elaborado com o propósito instrumental de atender aos homens em suas necessidades, as atividades em torno do Direito visam apreendê-lo como um bem passível instrumentalização devido a sua utilidade para alcançar o fim almejado: a pacificação social, a harmonia e a coesão social, os quais permitirão o pleno desenvolvimento do homem e conseqüente do Direito. Logo, o fortalecimento do Estado repercutiu na apreensão da atividade denominada jurisdição como meio de pôr fim aos conflitos. Neste contexto, a autotutela foi banida, cabendo ao juiz por meio do processo e de uma decisão impor fim aos conflitos. (CINTRA, 1999, p. 26-27). Indaga-se, então, qual o propósito do surgimento do Direito na sociedade e o seu objetivo? Teria o Direito como função primordial apaziguar conflitos sociais? Neste contexto menciona-se que: “[...] afirmam os juristas que o Direito existe desde os primórdios da humanidade, de que não há sociedade sem Direito e nem Direito sem sociedade. O fenômeno jurídico seria nos primeiros tempos a necessidade de estabelecer limites nos conflitos entre os seres então existentes.” (FAGÚNDEZ, 2004, p. 106). O contexto acima permite outro questionamento: qual o significado deste “limite” para os conflitos sociais e obtenção da pacificação social? 88 Afinal, regular um limite não implica necessariamente na pacificação social que os adversários desejam. Parte-se, então de uma perspectiva de pacificação social voltada apenas para controle dos conflitos, a fim de permitir a coexistência em relativa harmonia entre os homens. O Direito, neste caso, não corresponderia à pacificação social, mas, sua obtenção seria mera conseqüência da atuação do Direito sob a realidade. Neste sentido, alude-se e conhece-se um Direito de feições eminentemente pacificadoras, mas de práticas insatisfatórias. Mormente no Ocidente, o Direito ganhou grande relevância como instrumento de controle social construído e mantido pelo Estado. A ciência jurídica tem a preocupação com o comportamento dos indivíduos. Quer contê-los, disciplina-los, enfim, aplicar-lhes as penalidades cabíveis, se ocorrerem as violações legais. O Direito aplica sanções aos desvios de conduta [...] O que isso gera em essência? Mais violência, pois, havendo aplicação de uma sanção, extinguiu-se a atuação do Estado no caso concreto. [...] O Direito tem por objetivo única e tão-somente combater as condutas negativas, em vez de estimular as positivas [...]. (FAGÚNDEZ, 2004, p.133-134). A exposição supra, evidencia um paradigma de Direito que devido a sistematização romano-germânico intentou não apenas conduzir o homem, mas também corrigi-lo em seus desvios. Neste aspecto, a prática apresenta um Direito instrumentalizado sob o aspecto da pacificação social, mas adepto da violência - que em seu aspecto negativo - quer por meio de sanções alcançar a paz social. Neste sentido, conforme Foucault (2003, p. 56), o Direito de origem germânica, anterior ao renascimento do Direito romano, privilegiava a continuidade da luta entre os indivíduos (vítima e agressor) sem atentar-se para os ideais de justiça e paz. Após ser estatuído e normatizado o Direito não deixou de estimular a guerra e os atos vingança entre os adversários, apenas formalizou-os sob formas mais racionais e aceitáveis. O Oriente possui uma visão diferente acerca do Direito, como este não é visto como um instrumento eficaz de controle social ignora-se seu uso para aprimorarem-se outras técnicas como a conciliação dos conflitos ao invés de se recorrer à justiça. É que nestas sociedades, embora, tenha ocorrido uma ocidentalização e o sistema jurídico adotado tenha por modelo o sistema ocidental, não foram abandonadas as tradições que privilegiam a busca pela harmonia entre os indivíduos. (FAGÚNDEZ, 2004, p. 120-121). O paradigma adotado pelo ocidente para manifestar o Direito não possui conteúdo universalizante, pois, a complexidade humana impede adoção de um 89 modelo único e exclusivo. Com isto, percebe-se que o Direito ocidental, embora, considerado um meio hábil para obtenção da pacificação social, encontra resistência naquelas sociedades que o consideram um instrumento que incentiva os conflitos sociais. Assim, tanto no oriente, como em algumas regiões da África, conforme já exposto, o Direito oficial vige ao lado de outras formas acolhidas pela sociedade como ideais para a construção da harmonia e para resolução dos conflitos que surgem no meio social. Portanto, adota-se no oriente uma postura diversa daquela adotada pelo ocidente, aonde o Direito é considerado meio preponderante de ordenação e harmonia social, sem que isto implique num estado de felicidade para sociedade. O Direito pode ser instrumento de promoção de felicidade, ou tem contribuído para a infelicitação da sociedade? Há relevância do Direito no controle social, ou se poderia viver em harmonia, sem as regras de conduta imposta pelo Direito? Muitos homens ignoram o Direito, têm apenas uma noção da sua existência ou do papel que ele desempenha em suas vidas [...]. (FAGÙNDEZ, 2004, p. 175). A indagação exposta permite inferir que a crença depositada no uso Direito como instrumento de promoção de felicidade funciona como uma ideologia à manutenção do Direito institucionalizado. Afinal, a obtenção da pacificação social dependeria exclusivamente da atuação do Direito positivado? Ou se estará diante de um novo paradigma? Neste caso, a crise enfrentada pelo Direito na atualidade, seria uma conseqüência do emprego do Direito como a única opção viável, dotada de força suficiente, para impor fim aos conflitos sociais e, restabelecer a ordem e a paz social. A fragmentação impede a integração, facilita o conflito, os desajustes impedem a pacificação, pois “não se quer um direito que se preocupe única e exclusivamente em proibir, mas em contribuir para a vida em sociedade, estimulando condutas positivas”. (FAGÚNDEZ, 2006, p. 46). O resultado dessa fragmentação é o isolamento dos personagens que compõem o conflito, limitados pelo Direito tem suas verdades reescritas e apresentadas formalmente perante um tribunal isento e (im) parcial. Comparativamente, percebe-se que nas sociedades denominadas primitivas, as resoluções de conflitos ocorriam independentes da existência de um 90 Direito positivado ou de um órgão centralizado para dirimir as controvérsias que surgiam. Por outro lado, embora, aponte-se tal método como superior àquele primitivo, verifica-se que muitos conflitos sociais são resolvidos no próprio meio social sem interferência do Direito institucionalizado. Neste caso, a sociedade tornou-se refém da hipótese do caos - da desordem, da arbitrariedade, bem como da propagação da desarmonia - caso a resolução dos conflitos não se dê pelos meio preconizados para este fim, ou seja, pelo poder judiciário. As sociedades primitivas desconheciam o Direito enquanto instituição e, no entanto, sobreviviam graças a autocomposição ou, ainda, com a supremacia do mais forte. Hoje, acredita-se que a maioria dos conflitos intersubjetivos sequer chega ao conhecimento do Poder Judiciário e, no entanto, não se tem uma sociedade caracterizada pela desarmonia e pelo conflito. Porque os conflitos não chegam ao conhecimento do Judiciário? (FAGÚNDEZ, 2004, p. 176). Portanto, contemporaneamente, vive-se uma crise no Direito - positivado e institucionalizado – resultado do descompasso entre as necessidades da sociedade e as limitações ideológicas e instrumentais que permitiram a construção de uma normatividade assumidamente contraditória, como pressuposto de validade para o Direito ali posto. Neste sentido, os paradoxos criados obrigam a uma revisão do paradigma de Direito adotado e, do conteúdo formalizado com vistas assegurar a pacificação social. O Direito, assim, de um lado, nos protege do poder arbitrário, exercido à margem de toda regulamentação, nos salva da maioria caótica e do tirano ditatorial, dá a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os desfavorecidos, Por outro lado, é também um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação que, pela sua complexidade, é acessível apenas a uns poucos especialistas. (FERRAZ JR. 2003, p. 31). Desta forma, a crise representa uma ruptura de paradigmas, na qual as inquietações avultam e não há respostas satisfatórias para a sociedade. Os modelos racionalistas, de ordem cultural ou de organização social, desmantelam-se diante da complexidade dos conflitos. Estes exigem não apenas respostas seguras, mas científicas. Diante tal situação o Direito parece convulsionar e os critérios científicos esvaziam-se na heterogeneidade socioeconômica de um sistema que não mais consegue manter as promessas feitas. (WOLKMER, 2002, p. 13). 91 Deste modo, as racionalizações feitas sobre o paradigma vigente em momentos de crises tendem a realçar características antagônicas e indesejáveis do Direito quanto a sua função. Neste convulsionar de conhecimentos, o assentamento de um novo parâmetro é permeado de resistência, permitindo a convivência de estruturas opostas. O critério científico, pilar absoluto, rompe-se diante da complexidade que envolve o conviver humano. Não basta, portanto, criar soluções jurídicas para os conflitos, se o Direito tende a ignorar a singularidade do homem e a complexidade social na qual este se insere e, o substituem por um ideal simplificado baseado num modelo de Direito de aspecto uniformizador e igualitário de desigualdades. A explanação abaixo reconhece tanto os avanços advindos do entrelaçamento das ciências com o Direito, como a necessidade de revisão dos conhecimentos adquiridos até então. Salienta-se que as alterações substanciais enfrentadas pelo homem em termos de cultura, conhecimento, economia, política e sociedade, exigem uma nova postura em termos de normatividade. [...] sejam indiscutíveis os avanços do conhecimento, os grandes sistemas explicativos não cumpriram todas as suas promessas. Há uma dissolução das certezas criadas, a insustentabilidade gerada e o esgotamento das ideologias levam a uma espécie de fim da linha, o todo cultural tende a sobrepor ao econômico e ao político. (ROULAND, 2003, p.19). Depreende-se do contexto aludido que a pacificação social, enquanto proposição principal do Direito representa um compromisso acima das condições inicialmente imaginadas. A complexidade dos conflitos sociais demonstra que os meios disponíveis para resolução de conflitos não mais se adaptam a nova realidade, provocando um exaurimento do modelo de Direito sob a perspectiva da pacificação social. O instrumento do qual se vale o Poder Judiciário – o Direito – tem como objetivo disciplinar o comportamento do homem em sociedade, prevenindo e resolvendo conflitos. Todavia, a partir da idade moderna, o faz por meio de um sistema de coação organizada em leis que imputam essencialmente deveres à conduta humana, limitando sua liberdade. Dito de outra forma, o Direito é a técnica de resolução de conflito que utiliza regras impostas (leis), derivadas de outros (p.ex. legisladores), que não dos contendores, e que se lhes impõem quando buscam uma solução judicial. (GROSSI apud MULLER, 2005, p. 145). A solução judicial, descrita acima, ampara somente os conflitos que adentram o Poder Judiciário, enquanto um gama permanece insolúvel seja por uma 92 questão de dificuldade de acesso aos meios ofertados, seja pela morosidade que retarda uma solução, que ao final não pacifica nem aos contendores e nem aos aplicadores. Neste aspecto, o Direito transforma-se em um instrumento que não previne ou resolve conflitos, apenas adia a resolução. Entretanto, esta concepção de Direito como um instrumento de pacificação social - voltado para uma sociedade ideal - visando a evolução e progresso somente seria alcançado pela eliminação dos conflitos sociais. Elimina-se não apenas o conflito social, mas também perspectivas que permitiriam (re) discutir o paradigma existente e seu alcance de suas transformações no interior da sociedade. Neste sentido, cabe apresentar um argumento que irá complementar o exposto, embora, o realce seja dado acerca de direitos humanos, este se presta aos objetivos pretendidos neste momento. Talvez precisemos falar dos direitos humanos com o direito à permanência dos conflitos, como o direito a impedir que as revoltas sejam negadas nos subterfúgios de uma harmonia de leis e saberes que, no fundo satisfazem o desejo de servidão. A democracia como sentido de uma forma de sociedade é sempre produto de conflitos sociais e de resistências à produção institucional de uma subjetividade que nos marca e nos anula, insistindo nas representações de certeza e na redução da ordem política à relações de poder.(WARAT, 1997, p. 87-88). Portanto, ao Direito não caberá apenas intentar a pacificação social dos conflitos, sua atuação sobre a realidade tenderá a evidenciar novos conflitos e causar tantos outros, até que as adequações sejam realizadas. Percebe-se, no entanto, que esta é uma cadeia interminável entre o resolver e o surgir de novos conflitos, sem que a pacificação social seja alcançada em caráter perpétuo. De maneira diversa, abaixo, um argumento para o qual a paz social, ou a “paz perpétua” somente poderá ser conseguida e mantida por meio do paradigma do Direito. O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre, no entanto, uma ameaça constante. Deve, portanto, instaurar-se o estado de paz; pois a omissão de hostilidades não é ainda a garantia de paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro (o que só pode acontecer num estado legal), cada um pode considerar como inimigo a quem lhe exigiu tal segurança. (KANT. 1995, p. 126) 93 Neste aspecto, o Direito não apenas intenta a pacificação dos conflitos, mas assegura sua consecução. Somente por meio da instituição do Estado e respectiva centralização da produção e aplicação do Direito, poderão, enfim, proporcionar um estado de paz para os homens. Esta paz, portanto, é um resultado da racionalidade prática que se sobrepõem acima das animosidades existentes entre homens. Embora, essas animosidades não ocorram em grau suficiente para deflagrar uma guerra permanente, serão vivenciadas como uma ameaça constante à realização da paz social. A importância dessas teorizações - de fundo jusnaturalistas - permitiu a construção de um ideário, no qual a jurisdição por lidar diretamente com o conflito teria a responsabilidade - por meio do processo – de intentar a pacificação entre os conflitantes e realizar a pacificação social. Segundo Marinoni (2006, p. 108), tal afirmação repousa na assertiva que crer na pacificação social como “mera conseqüência de um poder de resolução dos conflitos que se sobreponha sobre seus subordinados”. Neste aspecto, a pacificação social através da jurisdição impediria o uso de soluções privadas ou arbitrárias, bem como o agravamento dos conflitos. Estes seriam dirimidos pela atuação jurisdicional que impediria aos litigantes insistirem em sua manutenção após a decisão final. Contrário a esta disposição, Marinoni (2006, p. 109), afirma que: “a jurisdição tem por objetivo editar norma jurídica capaz de dar conta de necessidades de direito material e, apenas por conseqüência, tal missão vai gerar pacificação social”. Pelo descrito, infere-se que a pacificação social não seria uma atribuição perseguida pelo poder jurisdicional, sua função resumir-se-ia a manutenção da paz social e o desenvolvimento da sociedade. Neste aspecto, evidencia-se um Direito aplicado e voltado para buscar o equilíbrio nas relações intersubjetivas e para atender as necessidades daqueles que adentram o poder judiciário, intentando dirimir suas controvérsias. Portanto, a pacificação social poderá ou não ser alcançada, cabendo à jurisdição atuar como um instrumento que proporcione condições para solucionar ou impor limites aos conflitos. O instrumentalismo, segundo Hespanha (2005, p. 498), tem a pretensão de um Direito modificador da realidade, esquecendo-se que há uma relação entre o refletido e o cotidiano, aqui o Direito refletido seria o oficial. Ao atuar como um modelo para a sociedade, será a partir do Direito oficial que a sociedade vai obter 94 suas próprias imagens. Ao regulá-la, mesmo que indiretamente, haverá influência nas construções acerca daquilo que somos: homens, mulheres, ou seja, os valores aspergidos pelo Direito seriam absorvidos pela sociedade por meio do senso comum. Neste aspecto, observa-se um outro tipo de influência do Direito sobre a realidade - não apenas como mero instrumento de pacificação social - mas, como um instrumento que por meio de suas prescrições normativas determina quem são os sujeitos de direito reconhecidos pelo Direito positivado. Neste caso, o próprio conflito sofrerá uma releitura ao adentrar o âmbito jurisdicional e sendo adequado aos ditames normativos, os quais estabelecerão conceitos teóricos para identificar homens, mulheres, de igualdade, liberdade, obrigações e deveres. A crise vivenciada pelo Direito expõe a fragilidade de uma estrutura em sua tentativa infrutífera de integração, aonde globalização não significa atenção aos aspectos sociais relevantes como complexidade e pluralidade, mas, sim uniformização por meio de políticas econômicas. Portanto, é necessário haver interação entre os aspectos que envolvem Direito, política e sociedade, salientandose que, o consenso existente acerca dessa necessidade, não impede ausência de praticidade para se obter o efeito pretendido. (ROCHA, 2005, p. 15). Logo, superar a crise implica em reconstruir interações ultrapassando o isolamento fragmentador da realidade em termos de política, Direito e sociedade e, recriar novas bases teóricas para o Direito sob a perspectiva normativa autopoiética. Na verdade, a eficácia criadora (poiética) do direito é muito maior. Ele não cria apenas a paz e a segurança. Cria, também, em boa medida os próprios valores sobre os quais essa paz e segurança se estabelecem. Neste sentido, o direito constitui uma actividade cultural e socialmente tão criativa como a arte, a ideologia, ou a organização da produção econômica. (HESPANHA, 2005, p. 100). Esta crise, portanto, não discute apenas as elaborações teóricas sedimentadas. Sua proposta tem por objetivo a construção de um novo modelo de normatividade, comprometido com a busca de coerência e contingência que permeiam a sistemática social. Neste aspecto, o Direito positivado, embora, seja um meio de se obter o desenvolvimento das relações sociais, assim como de novas formas de interações, não se caracterizará como a única formulação capaz de atender a necessidade da pacificação social, amplia-se seu papel para além do paradigma estabelecido. 95 O Direito proposto para este novo tipo de organização teria que prescindir de generalidade e da abstração, ser produzido localmente, nas periferias que se encontram mais em contato com suas situações a regular. Este modelo proposto de “justiça adjucatória”, afastada dos critérios de afetividade perde em intento compositivo. No caso, a composição amigável seria um meio de garantir a solução mais adequada à realidade concreta do conflito. (HESPANHA, 2005, p.501). Portanto, as mudanças sociais e o Direito positivo nem sempre percorrem as mesmas sendas. O descompasso entre as proposições sociais inseridas pelo Direito e a realidade social são díspares. O Direito encontra-se sob um paradoxo, nem todo Direito usado no meio social para dirimir conflitos corresponde ao Direito considerado oficial. [...] o principal núcleo para o qual converge o pluralismo jurídico é a negação de que o Estado seja a fonte única e exclusiva de todo o Direito. Trata-se de uma visão antidogmática e interdisciplinar que advoga a supremacia de fundamentos ético-sociológicos sobre critérios tecnoformais. Assim, minimiza-se ou exclui-se a legislação formal do Estado e prioriza-se a produção normativa multiforme de conteúdo concreto gerada por instâncias, corpos ou movimentos organizados semi-autonômos que compõe a vida social. (WOLKMER, 2001, p. 183) Neste aspecto, tem-se a pesquisa realizada por Santos (2003, p. 175176), no qual identifica no Brasil, em um estudo realizado nas favelas do Rio de Janeiro, na década de 70, a existência de um Direito não oficial e profissionalizado, emanado pela associação dos moradores visando a resolução dos conflitos longe da esfera dos tribunais. Demonstrando que, embora, o Direito estatal seja dominante, não detém o monopólio da produção e distribuição do Direito. A correlação entre mudança social e Direito positivo, além de questionável, suscita ocasiões em que será possível observar uma mudança no Direito positivo sem que a sociedade tenha contribuído para sua ocorrência. Da mesma forma, algumas mudanças sociais não são contextualizadas, de imediato, no interior da ordem jurídica, permanecendo em estado latente no meio social, até que sejam absorvidas pelo Direito. (LUHMANN, 1985, p. 117). Portanto, Direito e sociedade mantém apartadas, separadas, se comunicando apenas em caso de conflito, sem, no entanto, se comunicarem efetivamente. Neste aspecto, visão autopoiética do Direito tem objetivo resgata-lo em sua dimensão integral e, não apenas estatal. 96 4.3 - Direito e direitos e as garantias: com quem, para quem e contra quem? Em que momento o Direito se fragmentou em outras proposições para atender as necessidades da sociedade? A ruptura ocasionada pelo Renascimento foi responsável pela estruturação da sociedade sobre uma nova base, um “Estado de direito” se contrapôs a um “Estado de força”. Essa transição que substituiu tanto os chefes espirituais e quanto o Direito costumeiro, por aquele positivado e interferiu diretamente n a forma como os conflitos seriam ritualizados. (RUSSO, 2004, p. 247248). Desta forma, o Estado de Direito tornou-se uma concepção derivada do controle do poder político por meio do Direito. No caso, o Estado transformou-se em um protetor do Direito ao retirar da esfera de disponibilidade político-administrativa os direitos subjetivos. A conseqüente independência do poder judiciário, bem como o desenvolvimento e organização processual tiveram por propósito atender a esta nova perspectiva. (LUHMANN, 1985, p. 54). Logo, não bastou declarar a existência de um Direito, mas protegê-lo em suas inúmeras manifestações subjetivas. Nesse sentido, o Estado de Direito possibilitou o desenvolvimento e o reconhecimento de uma esfera de Direitos bem maiores do que aquelas até então conhecidas. O desenvolvimento do Estado foi limitado pelo Direito, permitindo-se assimilação de Direitos intrinsecamente vinculados a esfera de defesa da vida, propriedade e liberdade. Segundo Cappelleti (1993, p. 56-58), a revolução industrial trouxe inúmeras modificações aos conflitos sociais, estes ganharam um caráter coletivo a partir do momento que um ato em separado contivesse violações que ultrapassasse a esfera individual. Assim, os conflitos estabeleceram novas demandas e o nascimento de tutelas que passaram a exigir a construção de um novo Estado, chamado Welfare State. Portanto, o advento da modernidade promoveu o nascimento de novos Direitos e liberdades, os quais trouxeram maiores responsabilidades não apenas ao Estado, mas para a própria sociedade. Logo, o Direito não se transformou em Direitos, apenas assumiu novas manifestações perante o Estado. A complexidade social com a qual se deparou o Estado fez com que este montasse, por sua vez, um complexo jurídico capaz de adequar-se às novas 97 atribuições, que na atualidade não inserem o Direito apenas em sua função garantidora e repressora. (FAGÚNDEZ, 2004, p. 78). Não bastava apenas defender direitos subjetivos e individuais, era necessário ir além. Fazia-se necessário reestruturar o Estado para atender outras demandas que aportavam no âmbito jurisdicional, sem que isso significasse apenas obter a pacificação social por meio da repressão. Neste sentido, o Direito foi conformado para atender às novas exigências, sem, no entanto, alterar-se seu objetivo principal: conduzir a sociedade. [...] o direito, como fenômeno marcadamente repressivo, se modifica, tornando-se também e, sobretudo um mecanismo de controle premunitivo: ao invés de disciplinar sanções em caso de indisciplina, dá maior ênfase a normas de organização, de condicionamentos que antecipam os comportamentos desejados, sem atribuir o caráter de punição às “sanções” estabelecidas [...]. (FERRAZ JR. 2003, p. 86). Esta transição de paradigma, entretanto, não significou uma abertura por parte do Direito positivado, a ênfase modificou-se para melhor atender a própria legitimação do Direito, emanado a partir do Estado. Houve uma modificação sem que houvesse uma transformação. Neste sentido, o Direito positivou uma nova gama de Direitos por uma necessidade de manutenção do próprio Estado emergente, que necessitava se legitimar e só poderia fazê-lo por meio do reconhecimento dos movimentos sociais. O assentamento dos Direitos individuais representou segundo Dantas (2008, p. 90), uma preocupação essencial quanto ao relacionamento envolvendo Estado versus indivíduo. Neste aspecto, o reconhecimento dos direitos do Homem possuiu a capacidade de limitar atuação e interferência do poder político sobre os mesmos. Desta forma, objetivou-se proteger e garantir Direitos, não adquiridos, mas inerentes à espécie humana ante o poder de Imperium do Estado, por meio de freios que somente o Direito poderia impor. Complementando o dito, expõe-se que: “se, de um lado, o Estado tem consigo instrumentos eficazes de controle social, de outro, os indivíduos são titulares de direitos públicos subjetivos que servem para limitar o abuso de poder”. (DANTAS, 2008, p. 91). O nascedouro desses Direitos não consistiu em um reconhecimento na esfera social, mas em uma defesa, uma garantia na esfera jurídica de que não haveria usurpações dos mesmos pelo poder estabelecido. Portanto, não bastou um 98 Estado erigido sob as bases do Direito, foi necessário haver um reconhecimento interno, de que tais direitos não seriam passíveis de abusos pelo ente político e ou de modificações tendentes a extingui-los, sob pena de reverterem-se contra o próprio Estado. Assim, a modificação havida sob a perspectiva de criação de novos Direitos - a fim de garantir a estabilidade do sistema jurídico - conferiu uma possibilidade de (re) estruturação às novas demandas e a (re) organização da abordagem dos novos conflitos que surgiam não apenas sob a ótica intersubjetiva, mas também coletiva. Desta forma, a manutenção de poder nos sistemas jurídicos ocidentais ocorreu por meio de concessões que permitiram a construção do paradigma do Direito a partir dos novos conflitos sociais. Em um Direito de solidariedade social, destinado a regular a vida social dos homens, que não somente reclamam seus direitos, se não que estão dispostos, também, a cumprir, cabalmente, os deveres para com a comunidade, há uma exigência maior. Não basta, apenas, não transgredir à lei ou não lesionar direito concretos de outros indivíduos, aspiração máxima do Direito individualista: é necessário que cada qual ponha tudo de lado para que a vida social se desenvolva de maneira mais favorável à liberação e plena evolução humana de cada um de seus membros. (MONREAL, 1988, p. 159). No sentido disposto, não basta um Direito imbuído de características sociais, faz-se necessário que o alcance de seu conteúdo seja o mais amplo possível. Assim, a solidariedade torna-se o distintivo básico entre um Direito de cunho eminentemente individualista e um Direito social. Portanto, a solidariedade torna-se uma matriz essencial para construção de garantias. “O Direito Social pressupõe uma mais profunda socialização da pessoa e a realização de valores morais mais substanciais, mediante a inserção de todos os homens na comunidade organizada sob o signo da solidariedade humana.” (MONREAL, 1988, p. 117). Segundo Dantas (2008, p. 87), as transformações ocorridas com as Constituições: mexicana de 1917; russa em 1918-1923, 1925; e, de 1936; e, de Weimar, de 1919, merecem - dentre todas aquelas que poderiam ser evidenciadas destaque pela importância que tiveram na introdução e reconhecimento dos Direitos Sociais como Direitos fundamentais, representando um núcleo indisponível para modificações pelo Estado. 99 A caminhada empreendida, pelo reconhecimento a partir da era moderna dos direitos individuais, no contexto jurídico, resultou numa evolução aonde não havia mais como recuar, ou a ordem jurídica vigente e o Direito enquanto produção normativa estatuída, incorporavam tais paradigmas ou teriam que lidar com as conseqüências deste ato. No aspecto histórico, as Constituições supracitadas inovaram no campo jurídico. Novas demandas tiveram que ser incorporadas em virtude da crescente onda socialista que se abateu sobre boa parte da Europa, deflagrada pela República Russa. Portanto, mais do que o assentamento de Direitos, percebe-se uma conotação política influenciando um novo modelo político jurídico e a percepção de Direitos até então ignorados. De outra parte, convém relembrar a extensão do fator “guerra mundial” que atribuiu uma nova visão de Homem - não apenas como objeto de normatização - mas como sujeito de Direitos. Para Capella (1998, p. 109), houve uma conquista de Direitos, mas não de poderes sociais. Em sua ótica, essa conquista reverteu-se em simples serviço disponibilizado pelo Estado para a sociedade, ou seja, representou um programa estratégico voltado à manutenção do poder existente, sem que realmente tivesse havido uma “constituição de poderes para as populações”. Neste contexto, a definição de Direito social dada por Capella (1998, p. 109) permite uma avaliação mais extensa: “[...] uma atribuição ao Estado – aos funcionários do Estado – da tarefa de gerir determinados interesses reconhecidos juridicamente dos sujeitos sociais [...].” Tal realidade - em relação ao contexto da paz e da conquista da pacificação social por meio de implemento de políticas sociais através do Direito poderia ser resumida em uma frase, utilizada por D’ambrósio (2006, p. 165): “saborear migalhas dá a sensação de se estar participando de um banquete”. Desta forma, o que o Direito pode proporcionar é pouco frente às necessidades sociais - dependentes das decisões políticas - para que houvesse atuação dos órgãos do Estado no sentido de que tais Direitos fossem mais do que meras garantias constitucionais. Logo, não há incongruência na proposta que visa eliminar das Constituições os Direitos Sociais, permitindo - ao contrário da liberdade amplamente divulgada - a instalação do arbítrio. Contudo, ainda é possível crer no Estado 100 democrático de Direito como um forte empecilho ao autoritarismo que em nome da segurança jurídica e da globalização intenta desconsiderar as conquistas existentes em termos de Direitos sociais. (FAGÚNDEZ, 2004, p. 248-249). Estar-se-ia, portanto, realizando o trajeto inverso e não apenas retirandose Direitos, mas negando-se o próprio Direito que, não se consubstancia apenas na manifestação estatal. O avanço de um Estado globalizado incentivaria violações, até então combatidas, em nome da manutenção de um Direito fundado em parâmetros de caráter meramente econômicos, sob a égide do neoliberalismo. Embora, os avanços contidos na positivação de Direitos subjetivos e sociais sejam imensuráveis, a normatização demonstra-se incipiente quando observados os sistemas de auto-regulação sociais, funcionando à margem do Direito positivado pelo Estado. Neste sentido, o pluralismo jurídico, responsável primordial por revelar a existência de uma normatividade constituída por àqueles que vivenciam o Direito, independente do paradigma predominante, o qual ultrapassado o Direito constituído no campo legislativo e confirmado na seara judiciária. O pluralismo jurídico, não foi obra do pós-modernismo, na verdade, sua origem está ligada à Escola Histórica. A antropologia cultural, por sua vez, expôs os vários indicativos acerca da existência de um Direito de múltiplos conceitos e diversificados conteúdos em culturas consideradas fora das européias. A observação desta pluralidade de sistemas culturais, baseados em práticas humanas, associadas à valores locais, se subdividem em tantos níveis quanto possíveis para atender as diferenciações de fundo social, cultural, étnico. (HESPANHA, 2005, p. 504). Portanto, dentro da perspectiva explanada, não se verifica apenas uma fonte responsável pela emanação do Direito, as fontes são diversas, assim como as formas preconizadas para resolver os conflitos sociais passam a considerar os valores que permeiam a sociedade e não aqueles emanados e positivados por uma ordem completamente adversa daquela que os sujeitos vivenciam. [...] para superar a crise do modelo jurídico tradicional de regulamentação social (Direito produzido e monopolizado pelo Estado moderno centralizador), é necessário optar por processo estratégicos pluralistas de médio (‘reformismo compartilhado’) e longo prazo (‘ruptura compartilhadas’). O pluralismo jurídico a médio prazo, que está relacionado à ‘reprodução’ e às ‘reformas’ legais, tenta utilizar, retrabalhar e ampliar certos procedimentos paralegais e extrajudiciais na esfera do próprio sistema 101 jurídico oficial. Além de remodelar e alargar conquistas normativas do velho paradigma, pauta-se por Direito mais justo, mas sem abdicar da presença do aparelho estatal, ainda que seja a de um Estado democrático e controlado pelas maiorias. (WOLKMER, 2001, p. 306). Esta pluralidade de dimensões levou a construção dos sistemas autoreferenciais, estes definem sua identidade por oposição ao exterior, suas regras são aqueles provenientes das relações: sistema e meio ambiente e seus ciclos obedecem ao ritmo próprio. Neste caso, nos sistemas autopoiéticos sua prática reside na contínua comunicação dentro da diversidade, não é uma comunicação uniformizante, os sistemas interagem em um padrão não-comum. (HESPANHA, 2005, p. 510). Há, portanto, um novo paradigma buscando reconhecer a complexidade que envolve a sociedade e o Direito, bem como as dificuldades de diálogo que há aonde vivencia uma sociedade em constante transformação e portadora de uma complexidade que o Direito não consegue alcançar e tampouco proporcionar a pacificação social ofertada. Nos marcos da crise dos valores e do desajuste institucional das sociedades periféricas de massa, da estruturação das novas formas racionais de legitimação da produção capitalista globalizada e de saturamento do modelo liberal de representação política e do esgotamento do instrumental jurídico estatal, nada mais correto do que empreender o esforço para alcançar outro paradigma de fundamentação para a cultura política e jurídica. [...] Percebe-se, assim que a crise do modelo normativo estatizante propicia, gradualmente, amplas possibilidades para o surgimento de orientações ‘prático-teóricas’ insurgentes e paralelas que questionam e superam o reducionismo dogmático-positivista representado pela ideologia monista centralizadora. Por conseqüência, repensar a questão do ‘pluralismo’ nada mais é do que a tentativa de busca em outra direção ou outro referencial epistemológico que atenda à modernidade na virada do século XX e nos primórdios do novo milênio [...] (WOLKMER, 2001, p. 170). Em conformidade com o dito: “[...] tem-se hoje em plena forma de sociedade globalizada ainda uma teoria jurídica originária da modernidade presa à noção de Estado e norma jurídica. [...]” (ROCHA, 2005, p. 14). Logo, a crise do Direito consiste na conservação de uma estrutura fragmentadora acima da realidade social/complexa, que caminha para novas formas de resolução de conflitos sob a égide de uma nova visão do Direito. Morin (2005, p. 181), aponta para um campo aonde a complexidade se encaminha para um princípio denominado hologramático, baseado no holograma. 102 Holograma é a imagem física cujas qualidades de relevo, de cor e de presença são devidas ao fato de cada um dos seus pontos incluírem quase toda a informação do conjunto que ele representa. [...] Neste sentido, podemos dizer que não só a parte está no todo, mas também o todo está na parte. [...] Isso quer dizer que não podemos mais considerar um sistema complexo segundo alternativa do reducionismo (que quer compreender o todo partindo só das qualidades das partes) ou do ‘holismo’, que não é menos simplificador e que negligencia as partes para compreender o todo. Em complemento a exposição do princípio descrito, com suas implicações no campo jurídico, descreve-se como se dará essa confluência entre Direito e princípio hologramático: É exatamente dessa maneira holográmatica que deve ser compreendida a norma jurídica: ela é parte que encerra dentro de si o todo do ordenamento jurídico, seus valores, princípios e fundamentos, bem como o todo do ordenamento encerra em si cada norma jurídica. Há indissociabilidade entre normas e direito, de forma que não se pode falar em ordenamento jurídico sem norma, da mesma forma que não se pode falar em norma jurídica sem o ordenamento. Daí por que, quando se aplica uma norma, na verdade está sendo aplicado todo o Direito, por isso, esta aplicação não poder antijurídica, ou seja, violar o direito a que a norma carrega consigo. (BARRETO, 2000, p. 233). Para os autores acima, as novas perspectivas para o Direito - a partir da compreensão da inferência do complexo na realidade - envolve não apenas sociedade, mas a forma como o Direito será concebido, para enfrentar a crise numa era em que a globalização é antítese da integralidade (representada pelo princípio hologramático). Neste sentido, o Direito não poderá prescindir de Direitos, pois ambos são um só. As garantias não são exclusividades de uma classe ou categoria, tampouco se constitui num escudo que vise proteger alguns em detrimentos de outros. Tal paradigma apresenta o Direito apenas sob a ótica de um instrumento de defesa e confirmação das normas positivadas. O mundo contemporâneo demonstra que estas perspectivas desintegradoras não alcançaram os propósitos para qual o Direito existe, promover a paz social e a pacificação social, ou seja, um instrumento de paz e, não de combate de uns contra outros. Neste contexto, o Direito positivado favorece aos sujeitos comportarem-se como inimigos em campos opostos, numa batalha, em que o palco da disputa pelo Direito que cada um julga ter, se dará defronte a um juiz imparcial, neutro e desprovido de sentimentos e com uma compreensão parcial da realidade social (re) escrita e (re) editada pelo processo. 103 4.4 As novas perspectivas e a produção de normatividade: elas visam a pacificação social? Dentro do cenário jurídico desponta uma nova perspectiva, pois, juntamente com a crise da ciência jurídicas, houve também uma crise quanto às formas que manifestam a normatividade por meio de comandos que não alcançam a pacificação social. Neste sentido, a normatividade se inclina para um reconhecimento do pensamento sistemático, que revela a complexidade do conflito e seus inúmeros desdobramentos. Não há mais um único campo de emanação normativa, concomitante ação do Estado outros grupos desenvolvem suas própria maneira de resolver os conflitos sociais. Com efeito, as sociedades modernas, centrais, ou mesmo as periféricas, foram incorporando a consciência de uma complexidade crescente e atenuando os códigos do poder hierárquico, na medida em que se afirmam diferenciações funcionais. Em substituição ao modelo hierárquico unilateral, em sentido único ‘do poder para o direito’ e do ‘do soberano para o súdito’, passou-se progressivamente a construir uma circularidade instável entre poder, direito, estado e cidadania, sob a dinâmica de uma moral pósconvencional. Isto, a nosso ver, em decorrência das novas tecnologias da informação, que possibilitaram o acesso ao conhecimento pela grande massa populacional, pois, a exemplo da tripartição do poder formal em executivo, legislativo e judiciário, consolida-se uma tripartição do poder material entre Estado, Mercado e Sociedade Civil Organizada/pluralista. (VASCONCELOS, 2008, p. 26). Neste aspecto, o Estado social democrático de Direito rendeu-se a uma realidade que não mais conseguiu controlar: que a normatividade caminha para o aventado pluralismo jurídico. A proposta monista foi cumprida durante um período em que era possível controlar todas as variáveis. Entretanto, na atualidade devido ao alto grau de complexidade da sociedade e o nível cada vez maior de informações houve um aumento descontrolado de dissensos sem que houvesse uma resposta a altura. Neste sentido, o aumento do número de direito reconhecidos não impediu um influxo maior de conflitos sociais. Segundo Cappelletti (1993, p. 46), a crise contemporânea trouxe como resultado um crescimento exagerado do legislativo visando intervir de forma mais abrangente no meio social, sem, no entanto, conseguir alcançar seu intento. Por outro lado, esse aumento refletiu numa maior responsabilidade na esfera judicial, não basta mais resolver conflitos sociais, é necessário controlar a 104 constitucionalidade das leis que legislativo promulga. Neste aspecto, o judiciário se encontra numa encruzilhada ou se restringe a uma atividade meramente protetora e repressiva dos conflitos ou se transforma no “terceiro gigante” ao lado dos outros poderes e passa a interferir também na esfera política. O Direito, no aspecto descrito, vivencia um novo paradigma científico enquanto as perspectivas teóricas permanecem obscuras e conflitivas. Assumir a nova faceta implicará num aumento de responsabilidades e, consequentemente, em um aprofundamento da crise do poder judiciário. Logo, qualquer solução adotada demonstrar-se-ia provisória para um problema permanente, uma vez que, os conflitos sociais podem ser extintos no âmbito processual, não ocorrendo o mesmo na esfera social. Neste aspecto, as observações acerca da crise e a sua relação com estabelecimento de um novo paradigma, segundo Khun (1997, p. 95), retratam: “[...] a emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal.” E, será durante esse período de transição, em que não houve adesão integral ao novo paradigma que a produção científica se expandirá em múltiplas correntes, na tentativa de conferir ordem ao caos instalado. Neste caso, “[...] as diversas teorias existentes acerca de um dado experimento científico em que nenhuma consegue explicar totalmente o ‘quebra-cabeça’ evidencia uma das características da crise, que possivelmente corroe o paradigma”. (KHUN, 1997, p. 99). Dito de outra forma, o paradigma se insere num espaço aonde, por vezes, a incerteza é a única certeza palpável. O paradigma também é alguma coisa que não resulta das observações. De alguma forma, o paradigma é aquilo que está no princípio da construção das teorias, é o núcleo obscuro que orienta os discursos teóricos neste ou naquele sentido. [...] Às vezes, basta uma simples mudança, uma simples troca, como a troca entre o Sol e a Terra, para derrubar toda a concepção do mundo [...]. (MORIN, 2005, p. 45). Esse estado de insegurança, no contexto acima, estabelece um novo patamar acerca do seja Direito e de suas funções, as quais ultrapassam a simples tarefa de pacificar os conflitos. A necessidade de reconstrução só advém com os enfrentamentos, o paradigma, portanto, tem a função de evidenciar novas 105 proposições para concepção que já não possuem o mesmo peso e tampouco alcançam os mesmos objetivos. Neste aspecto, a positivação não conferiu ao Direito um espaço de atuação livre de problemas, quer estes fossem de ordem conceitual ou institucional. O ponto de partida, da construção teórica, envolvendo a positivação partiu de conceitos já existentes. (LUHMANN, 1985, 54-55). Embora, conforme Dinarmarco (1999, p. 157), haja uma tendência ao “abandono de fórmulas exclusivamente jurídicas” para obter a resolução dos conflitos, percebe-se que no ocidente a jurisdição ainda exerce uma forte influência, principalmente para evitar restrições de liberdade, por parte do ente estatal, no confronto entre indivíduo e Estado. Por outro lado, contemporaneamente esta atuação estatal inova ao surgir concomitamente aliada a um “dever” por parte do Estado - quando intervier na sociedade – de visar a promoção da “paz social”. Todavia, conforme Alvim (2007, p. 175): “modernamente, é universal a tendência de se entender como sendo Direito unicamente, aquele emanado do Estado. O Direito seria, por assim dizer a própria expressão do Estado, que é fonte única do Direito.” Desprezando-se dessa forma qualquer outra fonte que não tenha sua origem no órgão estatal legitimado para produção e aplicação. Entretanto, as formulações práticas e teóricas acerca das contradições do Direito, apontam para uma ruptura de paradigma. Neste contexto, a cultural ocidental, por não controlar todas as variáveis num conflito - desde sua origem até resolução - favoreceu o crescimento de alternativas para os dissensos, fora do alcance do aparelho, leia-se poder judiciário. Portanto, ao analisar-se o Direito - enquanto produção de normatividade exclusivamente estatal – verifica-se uma crise no campo de aplicação. O uso de velhas formas de resolução de conflitos denota uma contradição da práxis com os processos de mudanças ocorrentes na esfera cultural, social, política e informativa. Por outro lado, a simplificação da complexidade do conflito que - separa os homens entre vencidos e vencedores - estimula uma prática desintegradora, não reconhecedora da realidade do dissenso no âmbito processual. Os princípios ocultos da redução-disjunção que esclareceram a investigação na ciência clássica são os mesmos que nos tornam cegos para a natureza ao mesmo tempo social e política da ciência, para a natureza ao mesmo tempo física, biológica, cultural, social histórica de tudo o que é humano. Foram eles que estabeleceram e são eles que mantêm grande 106 disjunção natureza-cultura, objeto-sujeito. São eles que, em toda parte, não vêem mais do que aparências ingênuas na realidade complexa dos nossos seres, das nossas vidas, do nosso universo. (MORIN, 2005, p. 30-31) Da reflexão acima, extrai-se que, a influência do saber científico sobre a realidade transformou a todos, ora em objetos, ora em instrumentos. Sob a égide do modelo newtoniano-cartesiano, o Direito converteu-se tanto em objeto de estudo, quanto instrumento de ação. Porém, como um instrumento privado de sensibilidade passou a valorizar a simplicidade científica, em detrimento da complexidade. Neste aspecto, em muitos casos, a intervenção do Direito institucionalizado por meio do Judiciário, tende agravar os conflitos em face de sua ritualística. Os métodos demonstram-se discrepantes ao intentar resolver a contenda indiferente à realidade emocional presente em muitas das controvérsias que adentram os tribunais. Efetivamente, levando-se ao Judiciário uma disputa entre vizinhos, não se esperará que eles nutram a partir dessa disputa quaisquer sentimentos de respeito e amizade. Ao contrário, os problemas de relacionamento tendem a se agravar e repercutirem na família e no entorno social mais próximo, dificultando o convívio. E se isso acontece num conflito cuja base é palpável e concreta, naquelas cujas emoções são fatores preponderantes, a situação tende a ser vivida com sofrimento e raiva. (MULLER, 2005, p. 146). Desta forma, nem sempre o oferecido corresponde às intenções dos demandantes. O Direito - sob um paradigma neopositivista - tem sua base normativa alicerçada num conjunto de proposições na qual a resolução dos conflitos sociais não ocorre de maneira satisfatória para as partes. Embora, a decisão - legitime o Direito – não alcança a transformação esperada. Por outro lado, o Direito exigido neste novo tipo de organização social contemporânea, requer uma alteração de conteúdo. Ao invés de assimilar apenas critérios normativos dotados de generalidade e abstração, valorizar a produção local de normatividade oriunda das periferias e, portanto, mais próximas das situações a regular. O novo modelo - baseado numa composição amigável - teria por base informações formuladas no próprio meio social, garantindo assim uma solução adequada e de acordo com realidade concreta do conflito. (Hespanha, 2005, p. 501). Portanto, a fim de complementar a exposição realizada até então, serão abordadas as etapas pela qual perpassou a resolução dos conflitos, antes do movimento centralizador, ocasionado pela formação do Estado. 107 Alves, (1995, p. 203-204), evidencia quatro etapas na evolução na resolução dos conflitos. Num primeiro momento: os particulares se enfrentam sem a interferência do Estado, ocorrendo apenas em disputas que versem sobre questões de fundo religioso. O costume define quais as regras para o uso da violência, como e quando poderá ser usada e, portanto considerada legitima ou ultrapasse o limite e seja configurada como ilegítima. No segundo momento, o arbitramento facultativo substituiu a vingança individual ou coletiva. Neste caso, cabe ao ofensor optar pelo acordo ou permitir que um terceiro fixe as regras. Em determinado momento, o arbitramento deixou de ser facultativo para torna-se obrigatório. O facultativo foi restringido ao pacto entre partes. Entretanto, por não haver cessação da violência coube ao Estado intervir. Instaurou-se uma terceira etapa: o Estado, além de indicar o responsável para dirimir o conflito, será responsável - por meios de seus agentes – por garantir a execução da decisão pronunciada. A última etapa representa a centralização do poder de decidir os conflitos sociais pelo Estado, por meio do poder judiciário e de seus funcionários. Neste aspecto, o uso da força permanece como um meio necessário para obtenção da execução das sentenças. Neste contexto, o processo apresenta-se como um meio com maiores probabilidades para alcançar a resolução pacifica dos conflitos. Entretanto, a complexidade cada vez maior que envolve os dissensos, promove uma crise nos meios disponíveis e na forma existente de resolução. Neste aspecto, as alternativas oscilam entre uma justiça de caráter público para outras, as quais se inserem no campo extrajudicial. Segundo Santos (2007, p. 28-29), observa-se um desenvolvimento de processos “desjudicializantes” na contracorrente ao implemento de políticas que visam favorecer o acesso aos tribunais, na forma preconizada pelo acesso à justiça. Entretanto, independente do acesso à tutela jurisdicional, a ocorrência de uma “demanda suprimida” - aonde sujeitos conscientes de seus Direito optam pela não reivindicação - revela o descrédito diante do sistema jurídico e dos instrumentos disponíveis, os quais não correspondem às expectivas destes estes sujeitos. (SANTOS, 2007, p. 31). 108 Para compreender melhor o desenvolvimento dessas novas perspectivas e o vislumbre de um possível novo paradigma - que envolve a forma como será produzido o Direito (fora da esfera legislativa e judiciária) quanto sua aplicação na sociedade – se examinará a estrutura social existente e os seus conflitos. Tudo se passa como se a sociedade se baseasse numa espécie de simbiose de duas fontes absolutamente diferentes. Uma é a inclusão numa comunidade em que todos os membros se sentem absolutamente solidários em relação as agressões exteriores; [...] Mas, ao mesmo tempo, no interior dessa sociedade vê-se o jogo dos conflitos e das rivalidades. Então, a sociedade é bipolarizada: num pólo está o conflito, a concorrência; no outro, a comunidade; e, a partir dessa bipolarização, a sociedade reoganizar-se e produz-se incessamente. As sociedades humanas vivem essa formidável dualidade [...].(MORIN, 2005, p. 113). Portanto, o novo olhar consiste em examinar a própria sociedade e seus paradoxos. E, a partir deles repensar o conflito e as formas de resoluções, que poderão ser encontradas fora do Estado e dentro do Direito. Na atualidade, segundo Warat (2001, p. 252), temos uma “cultura de informatização” exacerbada, a minimização da capacidade de valoração do ser humano deteriorou as relações, em nome de um crescimento econômico desmedido. As sociedades mostram-se carentes de valores ante uma realidade construída virtualmente para transformar homens em “escravos de tecnologias”, as quais empobrecem a experiência e banalizam o sentido de satisfação e felicidade. Indaga-se, o Direito possuirá meios de adequar-se às novas exigências, ou “dimensões” de direitos, que podem também ser configuradas como “gerações” que ainda estão nascendo ou ainda, serão “ondas” de direitos que arrebatarão a sociedade ? As expectativas tornam-se cada vez maiores em relação aos instrumentos oferecidos pelo Direito para conduzir a sociedade. Entretanto, alguns movimentos persistem na idéia de que somente Direito criado pelo legislativo e confirmado nas decisões judiciais realiza a pacificação social. Neste sentido, algumas alternativas despontam como meio de consecução da pacificação social, sem que haja intervenção estatal direta no dissenso. Em função da insuficiência do modelo litigioso (ação judicial), quer pela obstrução e morosidade do Judiciário, quer porque o paradigma da litigiosidade está se exaurindo, como foi destacado anteriormente, outras maneiras de solução dos conflitos surgiram e se mostram opção à 109 sistemática inflexível, ritualística e generalizante da justiça estatal, denominadas de MARC (métodos alternativos de Resolução de Conflitos). O fato de serem alternativos ao Poder em questão, eles se diferenciam substancialmente no quanto ao modo de chegar ao entendimento entre as partes [...]. (MULLER, 2005, p. 147). As alternativas mais conhecidas são: mediação, a conciliação. No caso em exame, a abordagem não terá por objetivo explanar as diferenças existentes ou caracteres históricos e, sim evidenciar outras alternativas para a resolução dos conflitos fora da esfera judicial. Segundo Warat (2001, p.76-77), a mediação visa a reconstrução das relações com outro. Tal reconstrução envolve o ser humano sob várias perspectivas, seja ela “simbólica, imaginária e sensível”, portanto, quer-se reconhecer quais os fatores responsáveis pelo acontecimento do conflito. O objetivo da “autocomposição” é auxiliar as partes envolvidas a encontrar um ponto que recomponha por meio do acordo as relações desfeitas. Neste aspecto, em sua função o mediador atuará como um auxiliar, estimulando as pessoas a encontrarem em conjunto o caminho para resolução do dissenso. Logo, a mediação tem o propósito de compreender o conflito a partir de suas próprias raízes, criadas pelos indivíduos conflitantes. Não se busca em outro espaço (externo) a solução, esta provém dos próprios envolvidos, que com auxílio de um terceiro, alheio à contenda, tenta encontrar uma solução mais de acordo com as reais necessidades dos indivíduos. Pelo exposto, abre-se uma perspectiva diferenciada: visa-se a pacificação sem que se recorram as instrumentalizações objetivadas pelo Direito - que qualificam os contendores a partir da uma ótica externa e enquadram o conflito dentro do âmbito previamente delineado - neste contexto, ignoram-se sentimentos, angústias, medos, pois, no ambiente jurídico tudo é formalmente (re)escrito sob o ângulo da neutralidade e da racionalidade. A mediação em comparação com outras formas existentes, como conciliação e arbitragem, tem como distintivo o fato de que a transformação é operada levando-se em conta os sentimentos que envolvem o conflito. No caso, o envolvimento do terceiro é circunscrito ao de facilitador, visando auxiliar os sujeitos envolvidos a reexaminar e reavaliar as condições que provocaram o conflito e as possíveis soluções, sem desconsiderar que os conflitos podem ter origem nos mais 110 variados tipos de choque, sejam eles de ordem cultural e social. (WARAT, 2001, p. 79-80). Quando os juristas falam de conflito o reduzem à figura do litígio, o que não é a mesma coisa. Quando se decide judicialmente, por meio de um litígio, considera-se normativamente os efeitos (principalmente sobre os interesses em disputa); desse modo, o conflito pode ficar hibernando, retornando agravado em qualquer momento futuro. Os juristas, quando intervêm em um conflito, apelam ao imaginário jurídico, que denomino de senso comum teórico do direito. (WARAT, 2005, p. 81). Infere-se, da afirmação acima, que a negação de qualquer sentimento, ou dito de outra forma, a racionalização tornou a emoção um fator de desordem para resolução dos conflitos, consequentemente, obtém-se uma pacificação nos moldes considerados racionais. No aspecto trazido em relevo, a instrumentalização faz com que o Direito se manifeste como um mantenedor de conflitos, resolvendo parcialmente as questões apresentadas, mas indiferente às conseqüências oriundas pela forma como estes são resolvidos pelos meios disponibilizados. Portanto, desponta um novo tipo de normatividade que visa regular os conflitos, mediando as emoções, acomodando-as as expectativas que cada parte tem quando conflitua. Desta forma, a mediação quer resgatar a dimensão complexa do ser, esquecida pela simplificação e exaurida num paradigma causador de frustrações. O que se busca, portanto, é um Direito comprometido com outras práticas também pacificadoras, além daquelas disponibilizadas pelo poder judiciário. Neste sentido, a intenção não é apenas buscar a resolução do conflito social ou a sua pacificação social, intenta-se mais, em conformidade com a assertiva de Muller (2005, p.149) que expõe: “A prática da mediação contemporânea expandiu-se, em parte pelo reconhecimento que seu método aumenta a possibilidade de as partes continuarem a se relacionar pacificamente [...]”. A prática diverge daquela proposta pelo Estado, através do poder judiciário, neste caso, a funcionalidade da mediação vincula-se muito mais a uma práxis que se propõe a buscar uma solução adequada aos conflitos, partindo dos próprios envolvidos e, distante da intervenção estatal. Segundo Rouland (2003, p. 130), ausência de Estado intervindo nos conflitos, jamais impediu que os mesmos fossem pacificados de outras formas pelas 111 sociedades tradicionais, afinal tanto as sociedade atuais quanto as tradicionais partem do mesmo método, buscam a colaboração das partes, fazendo uso da conciliação ao invés de aplicarem estritamente o Direito estabelecido. De outro lado, temos também a conciliação, que como método alternativo obtém melhores resultados na solução dos conflitos, principalmente, quando entre as partes existe algum vínculo emocional. Neste aspecto, o julgamento por mais pacifico que pareça, não deixa de representar uma violência ritualizada, “um tipo de guerra, em todo caso um combate”. (ROULAND, 2003, p.123). Neste caso, não há uma diferença maior entre mediação e conciliação, ambas funcionam como métodos alternativos à resolução de conflitos, com o objetivo reconstruir as relações a partir dos próprios sujeitos e conseguir a pacificação social. Entretanto, na análise de Warat (2001, p. 79), a conciliação não adentra o conflito em si, este é completamente ignorado por ela. O que se tem é um método que evita o encontro das partes consigo própria, que somente o conflito pode proporcionar. Neste aspecto, a conciliação não funciona para se obter o crescimento das partes e consequentemente realmente solucionar o conflito. Contudo, é possível identificar duas formas de conciliação: uma inserida no âmbito judiciário ou administrativo, em que o terceiro não apenas conduz o conflito, mas ao final decide; e, outra baseada num modelo em que o terceiro apenas contribui para que a solução seja alcançada, sem imposições às partes, esta é denominada mediação. Neste sentido, a conciliação poderá ser encarada como uma espécie do gênero mediação. (VASCONCELOS, 2008, p. 79). Entretanto, a conciliação como método utilizado na esfera judicial teve sua aplicação, no âmbito da Justiça do Trabalho, retirada mediante a Emenda Constitucional 45/04. Alteração ocorrida no “caput”, do artigo 114, da Constituição Federal de 1988, suprimiu o termo “conciliação” 1. ____________ 1.Redação Anterior: Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas. Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (Redação da EC nº 45/04) disponível em http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=118, acessado em 27/05/09. 112 Por outro lado, percebe-se, na atualidade, um movimento no qual o Poder Judiciário, por meio do II PACTO REPUBLICANO (2009), tem entre seus compromissos ligados ao acesso à justiça, estimular e fortalecer os métodos autocompositivos como a mediação e a conciliação. Tal compromisso tem por objetivo favorecer as resoluções dos conflitos sob menor judicialização e maior pacificação social. Salienta-se também a intenção de se constituir Câmaras de Conciliação para atender a proposta objetivada. O contexto acima expõe as propostas alternativas para resolução dos conflitos sociais, por meio da admissão da mediação e da conciliação como meio para se obter a pacificação social. Entretanto, tais práticas, consideradas desjudicializantes, somente estão sendo aventadas ante a crise que assola o poder judiciário. Crise esta que devido à morosidade da prestação jurisdicional, compromete a realização da pacificação social dos conflitos, apenas por meio do poder instituído para dizer e aplicar o Direito. A criação de um novo senso comum para orientar a modernidade ocidental se assentaria sobre o “Princípio da comunidade”, da solidariedade e da participação. Solidariedade que reconhecida através da ética significaria, em plena era tecnológica, um comprometimento o princípio da responsabilidade. Por este princípio entende-se, uma proteção e cuidado que ultrapasse o próprio sujeito da ação, sua localização deverá colocar o homem como ser responsável pelo outro, seja ele outro homem, grupamento ou natureza. ”A nova ética não é antropocêntrica, nem individualista, nem busca apenas a responsabilidade pelas conseqüências imediatas. É uma responsabilidade pelo futuro.” (SANTOS, 2000, p. 111-112). Neste aspecto, encontramos práticas que optam por outros métodos para mediar e conciliar o conflito social. Tal metodologia volta-se para a reorganização do ser humano enquanto individuo e reconstrução das relações cingidas pelo conflito, as quais o Direito não mais alcança devido ao formalismo. A Escuta Compassiva não é sobre resolver diretamente o conflito. É sobre ajudar os envolvidos num conflito a verem uns aos outros como humanos, o que cria um novo espaço mental e emocional no qual as resoluções podem emergir. A esse respeito, a Escuta Compassiva representa o próximo passo além da ‘barganha baseada em interesses’. As resoluções de conflitos baseadas somente em interesses, mesmo em interesses de todas as partes do conflito, são vulneráveis de falhar tão logo mude alguma circunstância material de alguém. O que é preciso é que os envolvidos no conflito sejam 113 capazes de se identificar com as alegrias e tristezas do outro, para se sentirem bastante conectados ao outro para fazer da paz um valor duradouro. (RIVERS, 2006, p. 1) Alinhada com o indivíduo, a escuta compassiva requer uma atitude completamente diferente, exige que as concepções jurídicas baseadas em distinções prescritas como certas ou erradas sejam deixadas de lado. O caminho envolve reconsiderar o conflito a partir dos seus fatores endógenos e exógenos. O “Todo” passa a ser mais relevante para resolução do conflito, ao invés da parte. Portanto, mais do que um método, a escuta compassiva, funciona como uma filosofia buscando reconciliar no lugar de solucionar. Há, portanto, na escuta compassiva um movimento diferente: a busca de reconciliação. “A reconciliação é o mais difícil num processo de paz porque requer a reassunção de relacionamento entre aqueles que estão em conflito. Isso significa a chegada juntos em harmonia, daqueles que se separaram.” (HOFFMANN, 2006, p. 2). Por outro lado, desponta no cenário jurídico atual - principalmente, na área penal - um modelo denominado “Justiça Restaurativa” em contraposição à justiça distributiva. Tal modelo visa encontrar soluções para questões ainda insolúveis como: o aumento de violência e insegurança. Neste aspecto, a “Justiça Restaurativa” surgiu a partir da difusão de práticas restaurativas de conflitos empreendidas em alguns países como: Brasil, Argentina, Colômbia, África do Sul, Nova Zelândia, Austrália, Canadá e Estados Unidos. (SLAKMON, 2005, p. 16). No Brasil, a prática da “Justiça Restaurativa” ainda é incipiente. Baseada em trabalho voluntário, esta envolve ação de mediadores e facilitadores, visando fora do cenário jurídico a consecução restaurativa dos conflitos. Os métodos variam - a conciliação, a mediação, ou transação - desde que o objetivo pretendido seja alcançado: “lograr a integração social da vítima e do infrator”. (PINTO, 2005, p. 20). Neste caso, não se quer apenas realizar uma conciliação, busca-se ir além dos modelos oferecidos pela justiça, em termos de juizados especiais. Intentase, uma convivência pacífica entre vítima e ofensor, principalmente quando há certa proximidade, devido ao ambiente em que convivem. Percebe-se, na atualidade, não apenas um movimento, mas vários. E, tendendo a encontrar uma saída para a situação atual, aonde o Direito estatal 114 demonstra-se exaurido quando em contato com a realidade e insuficiente na realização de práticas seja, reconciliadoras, restaurativas. A “Justiça Restaurativa”, no caso, insere-se num campo mais delicado da contenda, aonde os conflitos trazem uma carga maior de emoção devido ao fator violência. Não se pretende realizar maiores comentários acerca deste método, apenas elenca-los dentre as opções existentes. Em termos de justiça alternativa encontramos os Estados Unidos, que em virtude da competitividade, a sociedade tornou-se extremamente conflituosa e “hiperjudiciarizada”. Os meios adotados buscam a realização de uma justiça mais social e o uso de um Direito menos formalista, tudo isto, visando a recuperação da paz social. Entretanto, a adesão das partes torna-se imprescindível para sua aplicação. Seus agentes são designados pelo termo soft justices e atuam em pequenos litígios comunitários, tendo a disposição leis instituidoras do serviço de mediação. (ROULAND, 2003, p.132). Finaliza-se, pontuando que as formas de Resoluções Alternativas de Conflitos, que atualmente são reconhecidas pela sigla RAC, representam o desenvolvimento de uma nova abordagem sobre o conflito, em vários países a pacificação social dos conflitos tem sido intentada, sem que haja necessária intervenção estatal. Neste aspecto, cita-se a experiência francesa, aonde a atuação dos chamados “Os Mediadores da Paz”, realizam um trabalho denominado “Provenção” de conflito. Neste caso, uso do termo prevenção é preterido, devido a sua carga de contenção. Trabalhando em pares os mediadores buscam promover condições melhores para coexistência entre os indivíduos e para isto, a participação destes no meio social é de suma importância, pois ao vivenciarem a realidade e os problemas estão mais aptos atuar nos conflitos sociais pela confiabilidade que despertam. (MARTINS, 2006, p. 337-338). Outro modelo existente de justiça tratada de maneira alternativa é o chamado Tribunal de Las Águas – Tribunal das Águas de Valência. Não se realizará uma descrição detalhada acerca de seu funcionamento, apenas se elencará os pontos principais do seu funcionamento enquanto instituição aplicadora de justiça, fora do modelo estatal. Dentre algumas características do Tribunal de Valência está o fato de que as audiências ocorrem “todas as quintas-feiras do ano, do lado direito da Porta 115 Gótica dos Apóstolos da Catedral de Valência”. Presidido por uma comissão de juízes leigos, mas conhecedores das leis que devem aplicar, estes comandam a sessão sentados em cadeiras dispostas, no local citado, totalmente aberto ao público passante. (MARTINS, 2006, p. 383). A funcionalidade do Tribunal pode ser inferida pela concentração dos procedimentos legais e a adoção da oralidade que acompanha todo o desenrolar da sessão, desde a instrução até a sentença. A publicidade se dá no sentido informal do termo, já que as audiências não ocorrem em local reservado. Um outro ponto, relevante é a ausência de custos. (MARTINS, 2006, p. 379-396). Tendo em vista o caráter meramente exemplificativo, não se tecerá maiores comentários, tal explanação visou apontar as disposições existentes, em outros locais acerca da concepção do Direito e de como este pode ser realizado, quer por meios formalísticos ou não. Neste caso, o Tribunal de Lãs Águas insere uma nova forma de conceber aplicação do Direito, porém, não a única. Salienta-se que tais experiências são resultados de uma cultura, voltada para uma realização da pacificação social. Neste contexto, insere-se o fato de que a cultura jurídica permanece restrita apenas alguns círculos de conhecimento. Entretanto, romper com essas disposições e reconhecer que o Direito é plural e não monista requer uma renovação acerca de suas fontes. Dentre as sugestões existentes para ampliação do conhecimento jurídico cientifico fora do âmbito acadêmico, encontra-se a seguinte proposta: a realizações de extensões ao contrário, qual seja, não se demonstra o conhecimento que se tem realizando sua aplicação prática em comunidades e, sim, busca-se este conhecimento fora dos ambientes universitário, chamada de “epistemologia jurídica dos excluídos” (SANTOS, 2007, p. 96). Desta forma, as propostas apresentadas e veiculadas, neste capitulo quiseram apontar alguns dos principais aspectos que permeiam o paradigma do Direito e suas manifestações na sociedade e a busca constante do ser humano pela realização da pacificação social. Portanto, indiferente à cultura, ao período histórico, as formas existentes, observadas em cada formulação realizada para concretizar o Direito, seja oriental ou ocidental, um objetivo se sobrepõe na sociedade: a paz social. Embora, a “paz social” figure como objetivo máximo, os conflitos sociais pertencem ao ser humano, assim como o Direito. 116 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A litigiosidade estimulada a partir das considerações do paradigma de Direito estatal e positivado, demonstraram que este se encontra aquém das expectativas sociais imaginadas. Vive-se um período aonde, ainda são utilizadas velhas fórmulas para novas concepções acerca da realidade, construídas por uma sociedade multipluralista e multiculturalista. Neste aspecto, os descompassos havidos entre a teoria e a efetividade prática do Direito impediu o reconhecimento da crise, proveniente da fragmentação realizada sobre o Direito. Em busca de respostas, o homem intentou explicar a realidade e sua complexidade por meio de racionalizações e reduções. Neste espaço, a singularidade do homem foi sobreposta a sua própria complexidade, instaurou-se então a crise, não apenas de valores, mas de reconhecimento de si próprio e de outro. O isolamento proporcionado pela crise criou oposto que não foram superados pela manutenção da ordem sobre o caos. Neste aspecto, as respostas para a indagação inicial: O Direito é instrumento de pacificação social (?), envolveu reconsiderar todas as informações provindas do senso comum e àquelas oriundas do conhecimento intelectual sobre a função do Direito enquanto instrumento para pacificação social. O senso comum social apontou para o Direito como um instrumento de força e poder, o único apto a obter a consecução e execução de um determinado Direito. Somente sua consideração sobre o conflito teria o condão de extinguir as controvérsias. Entretanto, a pacificação social permaneceu mera conseqüência da aplicação do Direito, não se modificando ante a continuidade do dissenso após ter havido uma decisão. O argumento acerca do fim do conflito social, por influência exclusiva do Direito, foi baseado em teorias que erigiram uma estrutura conceituada como perfeita, acabada e completa, ou seja, o Direito positivado, emanado através da jurisdição, de criação estatal foi idealizado como um instrumento isento de lacunas e, portanto, acima de contestações. Neste aspecto, ressurgiram teorias aventando o renascimento do jusnaturalismo, em alusão àqueles princípios inerentes que possuía o homem, os quais não podiam ser ignorados por nenhum governo ou forma de organização 117 social. Por outro lado, as acepções contemporâneas introduziram um novo paradigma: não cabe ao Direito apenas conduzir, prever e sancionar condutas, é preciso ir além. Neste contexto, a complexidade social crescente exigiu uma nova postura ante o multiculturalismo e o pluralismo jurídico, bem como a reconsideração de que a produção normativa deixou de ser exclusividade Estatal. Multifacetada a sociedade rompeu com as proposições ritualizadas e formais de Direito estatal, positivado, codificado e, disseminado, para evidenciar que este Direito é apenas uma opção dentre as muitas existentes, para se alcançar a pacificação social. Porém, tal reconhecimento demonstrou-se insuficiente, neste caso, foi necessário examinar outros sistemas de Direitos, e verificar quais eram suas concepções de Direito. E, principalmente, questionar se sob a perspectiva de outros povos ou sociedades, a pacificação social era possível fora do contexto estatal. Portanto, a investigação dos sistemas de Direitos: Common Law, romano-germânico e outros sistemas: chinês, japonês, africano e muçulmano teve o propósito de expor as peculiaridades existentes e de servir como contraponto as concepções situadas no âmbito oriental. Embora, haja uma tendência à globalização, alguns sistemas de direitos mantém-se fiéis aos valores que lhes são próprios, que os diferenciam como comunidade política, religiosa e humana, sem quedar-se diante de argumentos totalizantes e uniformizantes que outros sistemas ofertam para gerir o caos. Neste aspecto, ficou evidente haver uma grande diferença, não apenas em nível interno, de ordenamento jurídico nacional, mas em um panorama mais amplo, oferecido pelos sistemas de Direitos. Embora, o Direito seja concebido e estruturado à maneira dita ocidental, aplicação quase sempre obedece primordialmente a um Direito que não está inserido e tampouco é proveniente da esfera estatal. No caso, em exame, foi a religião, a filosofia ou tradição que ditou a forma como se obteria a pacificação social dos conflitos e quais os valores que seriam preservados. Portanto, o pensamento sistêmico exposto pela corrente autopoiética teve por propósito evidenciar que o Direito, inicialmente, criação adaptada ao gosto dos homens, transformou-se num paradoxo responsável pela diferenciação, expondo uma sociedade complexa, que não pode ser fragmentada e desconhecida em suas particularidades. 118 Somente, desta forma, foi possível conceber um paradoxo acerca da pacificação social e da necessidade do conflito como meio evolutivo para o Direito. Sem o conflito, haveria estagnação do Direito ou estaríamos diante de uma nova era. Portanto, percepção que foi exposta, envolvendo caos e conflito social versus ordem e Direito quis realçar o fato de que como seres integrais, o caos e a crise são imprescindíveis. Neste aspecto, o Direito possui dupla função, ser um instrumento de pacificação social e ao mesmo tempo ser um instrumento que permita a existência de espaços vazios na teia dos conflitos sociais para possibilitar sua própria evolução. As práticas encontradas para solucionar os conflitos sociais, sem intervenção estatal foram expostas com fito de evidenciar a existência de múltiplos movimentos, não apenas de caráter nacional, mas internacional visando a promoção da pacificação social dos conflitos para num plano posterior obter a paz social, fazendo uso de uma nova abordagem, a qual busca a reconciliação entre os indivíduos. Nestas novas perspectivas, evidenciou-se a aptidão do ser humano para encontrar soluções viáveis, compensatórias e satisfatórias para ambos os adversários, sem a intervenção do poder jurisdicional, permitindo a reconstrução das relações e da comunicação desfeita pelo dissenso. Neste contexto, as práticas litigiosas reconstroem o conflito e os indivíduos, isolando-o, contrapondo-os e, esperando que depois de subconscientemente estimulados a digladiarem-se estes se considerem pacificados pela decisão judicial ofertada à controvérsia. Portanto, o novo paradigma de Direito apontado, a partir das teorias sistêmicas e dos sistemas autopoiéticos, trouxe uma necessidade de reestruturação não apenas em nível teórico do Direito, mas em nível de prática e efetividade. Neste aspecto, a crise no ambiente jurídico irrompeu para demonstrar que as bases anteriores precisavam ser repensadas e reformuladas e que o Direito, até poderia ser um instrumento de pacificação social, desde que houvesse o reconhecimento do Direito para além daquele estatuído, codificado, escrito e dominado por poucos para uso e condução de muitos. 119 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1970. ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 10 ed. rev. e acresc. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1995. ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria Geral do Processo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. ALTAVILLA, Jayme. Origem dos povos. 7. ed. 1989. ARAÚJO, Vandyck Nóbrega de. Idéia de sistema e de ordenamento no direito. 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