Kant, o supra-sensível e o surrealismo

Propaganda
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
KANT, O SUPRA-SENSÍVEL E O SURREALISMO
IMACULADA KANGUSSU
Em carta, de 20-08-1954, `a conhecida escritora norte-americana, sua amiga Mary
McCarthy, Hannah Arendt escreveu que o crucial, na filosofia de Kant, é que, para ele, a
mais elevada das faculdades humanas é a de julgar (e não a de raciocinar, como em
Descartes, ou a de estabelecer conclusões uma após a outra, como em Hegel). É sobre o ato
de ajuizar que discorreremos neste texto, seguindo o desenrolar do pensamento kantiano
para nos aproximarmos do surrealista.
Conforme sabemos, ajuizar é ligar um sujeito a um predicado. Na Introdução da
Crítica da razão pura (B 5),1 Kant assinala a existência de juízos a priori, necessários e
universais. Juízos que, quanto ao conteúdo, podem ser (1) analíticos ou (2) sintéticos. (1)
Juízos “analíticos” são sempre a priori, porque, nesse caso, o predicado atribuído ao sujeito
já se encontra incluído no conceito desse sujeito. O exemplo dado é: “todos os corpos são
extensos”, pois alguma extensão já é presente no conceito de corpo. Esses juízos são apenas
explicativos e nada acrescentam ao conteúdo do conhecimento. (2) Os juízos são
considerados “sintéticos” quando acrescentam ao sujeito um novo predicado não incluído
no seu conceito. Como acontece na frase “alguns corpos são pesados”, onde o predicado é
distinto do sujeito e é necessária a experiência empírica de pesagem para saber se alguma
coisa é leve ou pesada. Esses juízos de origem empírica, dados através da experiência, são
sempre sintéticos e, claro, a posteriori. Kant observa que existem também juízos sintéticos
– que acrescentam novo predicado ao sujeito e aumentam nosso conhecimento sobre este –
a priori. É instigante pensar a existência de juízos que, simultaneamemte, são dados a
priori e, ainda assim, aumentam nosso conhecimento sobre o objeto ajuizado. É o caso dos
juízos matemáticos: quando se diz que 938 mais 1045 é igual a 1983 percebe-se que o
conceito da soma não inclui seu resultado, ainda que este já esteja garantido a priori, há
necessidade de realizar o processo de acrescentar um número a outro.
Conforme Kant, “nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do
espírito (Geist), das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade
1
KANT, Crítica da razão pura, citaremos, daqui em diante, abreviada como CRP, seguida do
parágrafo onde se encontra o citado.
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
das impressões) e a segunda é a capacidade de conhecer um objeto mediante essas
representações” (CRP, A 50, B 74). Como as fontes (sensibilidade e entendimento) são
completamente heterogêneas entre si, será necessário encontrar um terceiro termo,
mediador entre o sensível e o intelectual. A imaginação é a faculdade capaz de fazer a
mediação e de realizar a conexão entre os fenômenos intuídos pela sensibilidade e os
conceitos provenientes das categorias do entendimento, processo responsável pelo
conhecimento, i.e, por fazer a ligação entre conceitos e intuições sensíveis. Função
essencial posto que “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são
cegas”, e assim, continua o autor, “é tão necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é,
acrescentar-lhes o objeto na intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é,
submetê-las aos conceitos)” (CRP, A 51, B 75).
Na “Analítica dos conceitos”, livro primeiro da “Analítica transcendental”, o juízo é
definido como “o conhecimento mediato de um objeto, portanto a representação de uma
representação desse objeto” (CRP, B 93). O juízo é a representação de uma representação.
A primeira é a representação dos fenômenos, construídos pelo sujeito a partir das formas
sensíveis de tempo e espaço, e a segunda é a representação pelos conceitos do
entendimento, dos fenômenos assim construídos. Ao formular juízos, o entendimento
utiliza conceitos referentes a diversas representações unificadas em uma representação
comum. Assim, “todos os juízos são funções da unidade entre nossas representações”,
julgar é unificar a diversidade do múltiplo sob a unidade do conceito, e “o entendimento em
geral pode ser representado como uma faculdade de julgar” (CRP, B 94). Os conceitos são
os predicados possíveis dos objetos e “pensar é conhecer por conceitos” (CRP, B 94). No
sistema kantiano, fica clara a anterioridade do pensamento em relação ao objeto (sobre a
qual nos voltaremos no desenrolar do texto). Kant apresenta o objeto como “aquilo em cujo
conceito está reunido o diverso de uma intuição dada” (CRP, B 137). Nesse arcabouço, o
objeto é o resultado de uma operação transcendental, a razão descobre-se primeiro como
conceito e depois encontra-se a si mesma como objeto.
A consciência permite, a priori, ligar a multiplicidade das representações dadas,
quer dizer acrescentar uma representação a outras e, ao longo desse processo de conhecer,
perceber a identidade da consciência e a permanência dessa identidade; eu=eu+eu+eu... No
processo do conhecimento, ao mesmo tempo, são dadas a consciência da síntese das
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
representações e a consciência sintética do eu. O eu instaura o mundo através de uma
unidade sintética na qual está sempre presente, em um eterno agora, como em um presente
continuado. A condição de possibilidade do conhecimento é que as representações sejam
submetidas ao que Kant denomina “unidade sintética originária da apercepção”. Trata-se da
unidade da consciência que reúne as representações de um objeto em uma síntese,
convertendo-as em conhecimento, “sobre ela assenta, consequentemente, a própria
possibilidade do entendimento” (CRP, B 137).
Na “Analítica dos princípios”, livro segundo da “Analítica transcendental”, Kant
apresenta as regras da faculdade de julgar, quer dizer, de aplicar conceitos aos fenômenos,
de conhecer, e destaca que “a faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de
maneira nenhuma ser ensinado, apenas exercido” (CRP, B 172). No sistema kantiano,
conhecimento traduz-se em ligar conceitos a fenômenos, a faculdade de julgar é a
capacidade de descobrir qual fenômeno está submetido a tal regra, o juízo é o ato da
síntese. O modo encontrado de aplicar os conceitos ao mundo empírico é denominado
“esquema” e “é sempre, em si mesmo, apenas um produto da imaginação” (CRP, A 140, B
179).
Na Crítica da Razão Pura, o juízo onde é dada a regra que subsume o particular é
um juízo determinante, enquanto na Terceira Crítica, onde é dado o particular para o qual é
preciso encontrar a regra, o juízo é reflexivo: não é guiado por regras e busca a regra para o
caso. Enquanto na Primeira Crítica, tratava-se de apresentar as condições de possibilidade
do conhecimento, na Crítica da Faculdade de Julgar o objeto é o próprio juízo. E o
paradigma do juízo reflexivo é o juízo estético, que apresentaremos brevemente.
Na Crítica da Faculdade de Julgar, são julgadas belas as representações que
provocam prazer, “belo é o que apraz universalmente sem conceito” (CJ, 9).2 A beleza nada
dá a conhecer sobre o objeto e sim apenas o sentimento que ele provoca no sujeito. Nas
palavras de Lebrun, “o juízo de gosto é um não-saber de onde parece jorrar um sentido”. 3 O
problema enfrentado por Kant diz respeito ao fato de, por um lado, o juízo de gosto não
estar fundado sobre conceitos, pois se assim o fosse poderia ser demonstrado
conceitualmente, e, por outro lado, “a algum conceito o juízo de gosto tem que se referir,
2
KANT, Crítica da faculdade do juízo, citaremos, daqui em diante, abreviada como CJ, seguida do
parágrafo onde se encontra o citado.
3
LEBRUN. Kant et la fin de la métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970; p.404.
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
pois do contrário ele não poderia reivindicar validade necessária para qualquer um” (CJ,
57). No primeiro caso, o gosto perderia sua liberdade, no segundo caso teríamos de
concordar com o famigerado dito “gosto não se discute”. O filósofo considera que o
fundamento do juízo de gosto é “a forma da conformidade a fins de um objeto (ou do seu
modo de representação)” (CJ, 11). A beleza é definida como “a forma da conformidade a
fins de um objeto, na medida em que ela (a conformidade a fins ik) é percebida nele sem
representação de um fim” (CJ, 17). A expressão conformidade a fins fazia parte da
terminologia usual nas poéticas do século XVIII e expressava a idéia de uma coordenação
das partes que compunham um todo, quaisquer que fossem as razões dessa coordenação,
esclarece Cassirer, “nesse sentido, a expressão vem a ser a transcrição alemã do mesmo
conceito que Leibniz incorpora a seu sistema com o nome de „harmonia.” 4 A expressão
costumava ser utilizada para referir-se a algo que apresenta uma composição ordenada
como se segundo a algum princípio formal que não precisava ser explicitado,
diferentemente de algo composto de elementos amontoadas de qualquer jeito. A impressão
da conformidade a fins provocava prazer, o que não ocorre diante de algo que parece
caótico. Um todo é considerado conforme a fins, por Kant, quando suas partes parecem
entrelaçadas harmonicamente segundo algum propósito. Tal relação conformadora pode ser
percebida na forma, independentemente de se saber a finalidade a qual se destina o objeto.
Ampliando o olhar, percebemos que em Kant a conformidade a fins da natureza é
um princípio transcendental pois representa a priori a condição universal sob a qual
podemos conhecer, em outras palavras, seria impossível conhecer a natureza sem postular
que ela possui um ordenamento, i.e, se a julgássemos completamente caótica, como se em
um dia a bananeira produzisse pêssegos e no dia seguinte abacaxis, ou pepinos. Na filosofia
kantiana, a faculdade de juízo pressupõe uma analogia entre a natureza e nossa faculdade
de conhecimento. Como se a natureza fosse plasmada por um entendimento análogo ao
nosso, e apenas “como se”, pois “para falar com rigor, a organização da natureza não tem
nada de analógico com qualquer causalidade que conheçamos” (CJ, 65), percebe Kant. A
conformidade a fins é o elemento subjetivo na representação do objeto, elemento
transcendental que não pode ser parte do conhecimento. A faculdade de juízo estética
contém então o princípio a priori da faculdade de juízo, representado pela conformidade a
4
CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. México: Fondo de la Cultura Económica, 1948; p.337.
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
fins, formal, da natureza. Formal porque não possui conteúdo. Se a natureza tivesse
produzido suas formas para nosso prazer, poder-se-ia falar de uma conformidade a fins
objetiva, trata-se, entretanto, de uma conformidade a fins subjetiva, do modo como a
acolhemos, “há um favor no modo como acolhemos a natureza e não um favor que ela nos
mostre” (CJ, 58). A conformidade a fins atribuída `a natureza, em referência a suas puras
formas, a qualifica para associações abstratas e permite a passagem do fenômeno ao
númeno, como quando o filósofo afirma, por exemplo, que “a cor branca dos lírios parece
dispor o ânimo para idéias de inocência” (CJ, 42).
O princípio determinante do juízo de gosto “talvez se situe no conceito daquilo que
pode ser considerado como o substrato supra-sensível da humanidade” (CJ, 58). Por não
haver nenhum princípio objetivo para o juízo de gosto, Kant considera que apenas um
princípio subjetivo, em suas palavras, “a idéia indeterminada do supra-sensível [...] pode
ser-nos indicada como a única chave para o deciframento desta faculdade oculta a nós
próprios em suas fontes” (CJ, 57). Kant confessa que é a contragosto que se vê coagido a
olhar para além do sensível, e a buscar no supra-sensível a convergência de nossas
faculdades, contudo, “não resta nenhuma outra saída para fazer a razão concordar consigo
mesma” (CJ, 57). Trata-se, portanto, de encontrar,
aquilo que no sujeito é simples natureza e não pode ser captado sob regras ou
conceitos, isto é, o substrato supra-sensível de todas as suas faculdades (o qual
nenhum conceito do entendimento alcança), aquilo em referência ao qual o
fim último dado pelo inteligível `a nossa natureza é tornar concordantes todas
as nossas faculdades de conhecimento (CJ, 57).
Segundo Kant, ele mesmo muito mais preocupado em estabelecer uma
concordância entre as faculdades de conhecimento componentes de seu sistema do que com
a arte, “é o inteligível que o gosto tem em mira” (CJ, 59), e o belo é considerado símbolo
do moralmente bom. O filósofo observa que essa analogia é habitual e é comum o costume
de ligar objetos belos a adjetivos que parecem carregar juízos morais: “chamamos edifícios
ou árvores de majestosos ou suntuosos, campos de risonhos e alegres, mesmo cores são
chamadas de inocentes, modestas, ternas, porque elas suscitam sensações que contêm algo
analógico a um estado de ânimo produzido por juízos morais” (CJ, 59). O juízo de gosto
possibilita a passagem do prazer sensível ao sentimento moral “sem um salto demasiado
violento”, assinala Kant, para quem “o gosto é no fundo uma faculdade de ajuizamento da
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
sensificação de idéias morais (mediante uma certa analogia de reflexão sobre ambas as
coisas)” (CJ, 60).
E no mesmo parágrafo, o filósofo vai adiante no enlace entre as
faculdades da razão e afirma: “parece evidente que a verdadeira propedêutica para a
fundação do gosto seja o desenvolvimento de idéias morais e a cultura do sentimento
moral”.
Mas como os lírios brancos não são relacionados a conceitos para provocar a idéia
de inocência, e o sujeito pode simplesmente percebê-los como flor e cor, sem referi-los a
idéias de pureza, ou a quaisquer outras idéias morais, fica evidente que a matéria só pode
realizar o desejado trânsito entre fenômeno e númeno através da reflexão subjetiva. E essa
capacidade de reflexão diante dos fenômenos parece ter sido abandonada, entrado em
desuso, caído de moda, perdido sua força diante da voracidade das imagens produzidas pela
indústria cultural na sociedade do espetáculo. Não há mais parâmetros estéticos que possam
ser ditos universais. O que parece ter se perdido é a idéia da possibilidade de um acordo
entre a interioridade do sujeito e a exterioridade do mundo a sua volta, ou entre liberdade e
natureza; e também a possibilidade de um acordo entre as faculdades internas do sujeito,
fundamental na doutrina kantiana. Acordo, pode-se dizer, “produzido” pela imaginação em
sua liberdade.
Contudo, talvez devido ao forte charme, a idéia da possibilidade desse acordo entre
liberdade e natureza, entre interioridade e exterioridade não foi abandonada e é mesmo
central, mais de um século depois de Kant, nas poéticas surrealistas. Ou na filosofia do
surrealismo, se aceitarmos o ponto de vista de Ferdinand Alquié, segundo o qual “o
surrealismo comporta uma verdadeira teoria do amor, da vida, da imaginação, das relações
do homem e do mundo. Tudo isso supõe uma filosofia”. 5
Capacidade de abstrair imagens dadas, de criar outras novas, lugar do trânsito entre
matéria e inteligibilidade, a imaginação é a faculdade mental que mais interessou aos
surrealistas. E, dentre as faculdades mentais, a possuidora do maior teor de liberdade.
Segundo André Breton, “reduzir a imaginação `a escravidão, mesmo que fosse `aquilo que,
grosseiramente, se chama felicidade, é privar-se de tudo o que se encontra, no fundo de si,
de justiça suprema. Somente a imaginação nos diz o que pode ser”. 6 A respeito dessa
5
6
ALQUIÉ, Ferdinand. La Philosophie du Surréalisme. Paris: Flammarion, 1977 (1955); p.8.
BRETON, André. Les Manifestes du Surréalisme. Paris: Ed. Du Sagittaire, 1946; p.15.
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
passagem, Alquié escreveu:
O que Breton condena é o pragmatismo, a busca calculada e calculadora de uma
felicidade limitada e prudente, que pede a renúncia ao sonho e `as exigências
essenciais do desejo. É para cuidar desta felicidade que a maior parte dos homens
consente, precisamente, em separar a beleza de suas vidas, em tê-la por abstrata e
formal, a pregá-la no muro para contemplá-la aos domingos, vivendo, durante a
semana, como diz ainda Breton, “a vida dos cachorros”.7
Nos Manifestos do Surrealismo, Breton vai adiante e afirma bravamente que “não
será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio-pau”,
uma vez que “é verdadeiramente para nossa fantasia que vivemos”. 8 De modo que, segundo
o surrealista francês, “deve-se dar graças `as descobertas de Freud. Na trilha de suas
descobertas, esboça-se, enfim, uma corrente de opinião a favor da qual o explorador
humano poderá levar mais longe suas investigações, autorizado que está a não levar em
conta realidades sumárias. A imaginação talvez esteja prestes a reclamar seus direitos”. 9 Na
perspectiva surrealista, “a razão adulta, social, cotidiana, não se contenta em oprimir o
homem, ela o trai”, julga Alquié. 10
O acordo entre a interioridade do sujeito e a exterioridade do mundo a sua volta,
entre liberdade e natureza, aparece como idéia central para o pensamento surrealista no
conceito de “acaso objetivo”, desenvolvido por André Breton, que designa o ponto nodal
onde as duas se encontram. Utilizando terminologia surpreendente próxima `a kantiana,
Breton reconhece o acaso objetivo “como índice de uma reconciliação possível dos fins da
natureza e dos fins dos homens, aos olhos deste último”. 11 E, conforme Kant, não da
natureza. Curiosamente, nesta passagem, ele não se refere a Kant e sim a uma “esperança
persistente na dialética (na de Heráclito, de Mestre Eckhardt, de Hegel) para a resolução
das antinomias”. 12 O acaso objetivo nomeia coincidências contingentes, aleatórias,
independentes de qualquer controle da consciência que apresentam uma estrutura e uma
7
ALQUIÉ, Ferdinand. La Philosophie du Surréalisme, p.19.
BRETON, André. Les Manifestes du Surréalisme, p.16 e 37, respectivamente.
9
Ibidem, p.25.
10
ALQUIÉ, Ferdinand. Op. cit., p.117.
11
BRETON, André. La Clé des Champs. Paris : Jean-Jacques Pauvert, 1967; p.110.
12
Idem. Nesta mesma obra, em entrevista com Trotsky, Breton revela – sem referir-se `a fonte – que
Engels já mencionara a noção de acaso objetivo. Cf. BRETON, André. “Visite a Leon Trotsky”, in La Clé des
Champs, p.78. Encontrei a seguinte frase, atribuída a Engels sem mencionar fontes, no verbete “Breton” da
Wikipédia, a 24/set/2010: “Não se pode compreender a causalidade senão em ligação com a categoria de
acaso objetivo, forma de manifestação da necessidade”.
8
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
coerência provocante que incita a percebê-las como sinais, como correspondências
inesperadas com uma ordem anteriormente impensada. A diferença fundamental a ser
apontada na analogia com Kant diz respeito ao fato de o filósofo considerar, em seu sistema
(e nisso reside a chamada “revolução coopernicana”), uma anterioridade do pensamento em
relação ao objeto que é por ele (pelo pensamento) posto.13 Se assim é, torna-se urgente
estabelecer qual o grau de verdade desse objeto assim posto, que seria negativo no caso de
a natureza ir para um lado e o pensamento para o outro, a analogia, postulada entre as duas
ordens, é fundamental no sistema kantiano. Na filosofia surrealista, a analogia se revela no
fenômeno do acaso objetivo e parece indicar a existência de uma ordenação que,
diferentemente da postulada por Kant, não pré-existe mas é criada quando acontece o
misterioso encontro entre a interioridade do sujeito e um fenômeno exterior. E uma possível
união entre ambos se revela quando por acaso tocada (cantada, dançada), e essa revelação
realiza correspondências randômicas, para além da lógica, correspondências “sintéticas”, se
voltarmos `a linguagem kantiana. É como se o mundo fosse um criptograma e certos acasos
construíssem a chave de seu sentido, ao configurarem acontecimentos que criam a desejada
ressonância.
Alquié define o acaso objetivo como o “encontro da causalidade externa com a
finalidade interna”: tal encontro fortuito “aparece sob o signo de uma finalidade da qual
sabemos bem que ela não presidiu a seu nascimento”.14 O encontro denominado pelos
surrealistas de acaso objetivo deve ser diferenciado da “iluminação ontológica”: nesta
última não haveria encontro e sim identidade; haveria homologia e não analogia. Para os
surrealistas a criação precede o encontro da finalidade interna com a causalidade externa.
“É importante, pois, não se inverter a ordem das etapas”15, adverte Alquié, que apresenta o
acaso objetivo nos seguintes termos:
Veja esses encontros que se explicam mal pelo simples recurso `a coincidência, e
que, como os encontros da arte, engendram uma inquietação [emoi] que bem parece
o sinal de uma finalidade objetiva, ou, pelo menos, a marca de um sentido do qual
nós não somos os únicos criadores. Essa finalidade, esse sentido, supõe, no real,
uma ordem que seja sua fonte.16
13
Cf. pagina 2, onde avisamos que retornaríamos ao assunto.
ALQUIÉ, Ferdinand. Op. cit., p.114 e 107, respectivamente.
15
Ibidem, 114.
16
Ibidem, 141. De modo mais místico, Walter Benjamin, descreve fenômenos semelhantes: “Signos
precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas [...] Como
14
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
As inquietantes coincidências chamadas de acaso objetivo provocam a idéia de que
talvez exista uma ordenação em curso que nos escapa, cujo acesso nos é vedado. Sem
sufocar as distinções, são audíveis os ecos do pensamento de Kant nas reflexões do filósofo
francês sobre o surrealismo. Vale lembrar que La Philosophie du Surréalisme foi publicada
pela primeira vez em 1955 e, no ano anterior, 1954, Alquié publicara a tradução francesa,
por ele realizada, da Crítica da Razão Prática. Não é portanto de se estranhar – além da
real afinidade presente entre as idéias provocadas pelo conceito de acaso objetivo e a
proposta kantiana de se pensar a natureza como se ela seguisse uma ordenação produzida
por um entendimento semelhante ao nosso – que a obra sobre o surrealismo apresente-se
mergulhada em linguagem kantiana. “A concepção surrealista da beleza não pode ser
separada da teoria platônica e mesmo das análises de Kant relativas ao julgamento estético
e ao julgamento teleológico”, salienta Alquié, “há na beleza, tal como a concebeu Kant, um
pressentimento de ontologia que não chega `a ontologia”. 17 Sobre a reflexão estética
kantiana, Gerhardt escreveu algo aplicável também ao surrealismo: “as obras, traços de um
não-saber irredutível, são colocadas dentro de um saber que pretende expor o inexponível
[...] Elas não fazem mais que marcar o lugar do supra-sensível e a sua única significação é a
de contornar o vazio”.18
O surrealismo deu nova figura `a beleza, ligada ao acaso, aos encontros fortuitos e,
espichando um pouco o sentido, pode-se dizer, ao desinteresse. Enquanto o saber científico
separa o sujeito e os fenômenos que ele constitui como objeto e, deste modo, a consciência
visa um objeto do qual ela é consciência; os surrealistas percebem o caráter subjetivo na
consciência do objeto: a beleza não é completamente outra em relação `a consciência que a
apreende: “a beleza confunde-se, enquanto tal, com o sentimento do belo”, e fugir desse
teor subjetivo significaria, “como faz Platão, dar, como correlativo `a consciência da
Beleza, um mundo das Idéias, cuja realidade não é, ela própria, estética”. 19 O surrealismo
recusa essa démarche, o correlativo da consciência surrealista é o surreal, que é para ela,
raios ultra-violetas a lembrança mostra a cada um, no livro da vida, uma escrita que, invisível, na condição de
profecia, glosava o texto.” BENJAMIN, Walter. “Madame Ariadne, segundo pátio `a esquerda”, in Rua de
mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987; p.63-4.
17
ALQUIÉ, Ferdinand. Op. cit., p.152-153.
18
GERHARDT, Volker. Arte e vida, in Argumento, volume II, n.3/4; p.75
19
ALQUIÉ, Ferdinand. Op. cit., p.156.
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
formalmente e apenas formalmente, o que a objetividade física é para a consciência
científica. O objeto da consciência é por ela mesma construído. Tudo depende da liberdade
com a qual a imaginação se coloca em cena. E ela só coloca em cena a si mesma. A beleza
surge da fagulha provocada pelo encontro casual de imagens díspares. 20
O acaso objetivo “indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e
morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o
baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios.”21 Ele manifesta ao sujeito, de modo
muito misterioso, uma necessidade que lhe escapa. O mundo do sonho e o mundo da
realidade não fazem senão um, julga Breton. Em suas palavras: “Acredito na resolução
futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa
espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer”.22 Conforme
observado, o pensador surrealista ressalta que essa analogia poética é fundamentalmente
distinta da analogia mística por não postular, de forma alguma, um universo invisível capaz
de se manifestar através da trama do mundo visível. “Ela é toda empírica em sua
progressão, apenas o empirismo podendo assegurar-lhe a total liberdade de movimento ao
salto que ela deve fornecer”.23 Na descrição do movimento criador por Breton:
Uma vez vencidos todos os princípios lógicos, virão então a nosso encontro - se
tiver valido a pena interrogá-las - as forças do acaso objetivo, que nada querem
saber de verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende saber se encontra escrito
nessa tela em letras fosforescentes, em letras de desejo [...] Onde poderei eu estar
melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador do
mundo, o desejo, único rigor que o homem deve se impor? 24
Será o desejo o elemento de trânsito entre duas ordens diversas. O difícil encontro
entre natureza e liberdade que a humanidade encarna, a arte apresenta, a filosofia tem como
tema, os poetas surrealistas consideram um evento supra-real, na medida em que, na
20
Em exercício de liberdade radical, Isidore Ducasse, sob o nom de plume Conde de Lautréamont,
apresenta, entre outras comparações, o „belo como um tratado sobre a curva descrita por um cão correndo
atrás de seu dono, belo como o tremor as mãos no alcoolismo [...] a lei da reconstituição dos órgãos
mutilados” e, na mais conhecida analogia, a beleza é “como o encontro fortuito de uma maquina de costura e
um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação!” LAUTREAMONT. Cantos de Maldoror. São Paulo: Max
Limonad, 1986; p.214, 211 e 249, respectivamente.
21
BRETON, Manifestos do Surrealismo, p. 154.
22
Ibidem, p. 38.
23
BRETON, Signe ascendant, coleção Poésie, Editions Gallimard, Paris, 1975, p. 9.
24
BRETON, O Amor Louco, p. 116.
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
realidade, natureza e liberdade têm sido consideradas antagônicas. O que escapa `as regras
e manifesta-se como cesura nas determinações do real – revelando-o como casca frágil e
quebradiça – constitui o acesso a chamada supra-realidade. Acaso objetivo, sonhos, atos
falhos, lapsos de linguagem, piadas, qualquer que seja o fenômeno capaz de apresentar-se
como cesura no pensamento, e de produzir inquietude, pode provocar uma tensão que, pelo
fato de aparecer, testemunha uma alteridade. Supra-realidade e substrato supra-sensível, a
beleza parece ultrapassar a objetividade da consciência e apontar para a reflexão. E, nesse
caso, onde está o lastro objetivo, o aval da verdade? Talvez no trânsito entre as esferas
distintas. Trânsito cuja real existência é atestada pelo fato de alguns objetos da arte e da
natureza possuírem a capacidade de afetar os mais íntimos sentimentos do ser humano.
Como se fossem a objetivação da mais profunda interioridade. Considerando a pertença `a
mesma espécie, ao mesmo mundo, pode-se pensar que, para além do princípios de
individuação, o isolamento do ser pode ser descontínuo, e mediado por profundos
sentimentos de comunidade.
BIBLIOGRAFIA:
ALQUIÉ, Ferdinand. La Philosophie du Surréalisme. Paris: Flammarion, 1977.
BENJAMIN, Walter. “Madame Ariadne, segundo pátio `a esquerda”, in Rua de mão única.
Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho et al. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BRETON, André. La Clé des Champs. Paris : Jean-Jacques Pauvert, 1967.
_________. Les Manifestes du Surréalisme. Paris: Ed. Du Sagittaire, 1946.
_________. Signe ascendant, coleção Poésie, Editions Gallimard, Paris, 1975.
CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. México: Fondo de la Cultura Económica, 1948.
GERHARDT, Volker. “Arte e vida”, in Argumento, vol. II, n.3/4. Lisboa, outubro, 1992.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e Antonio
marques. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1993.
_________. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1994.
LAUTRÉAMONT. Cantos de Maldoror. São Paulo: Max Limonad, 1986.
LEBRUN. Kant et la fin de la métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970.
WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR
NÚMERO 8
2010
Download