WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 KANT, O SUPRA-SENSÍVEL E O SURREALISMO IMACULADA KANGUSSU Em carta, de 20-08-1954, `a conhecida escritora norte-americana, sua amiga Mary McCarthy, Hannah Arendt escreveu que o crucial, na filosofia de Kant, é que, para ele, a mais elevada das faculdades humanas é a de julgar (e não a de raciocinar, como em Descartes, ou a de estabelecer conclusões uma após a outra, como em Hegel). É sobre o ato de ajuizar que discorreremos neste texto, seguindo o desenrolar do pensamento kantiano para nos aproximarmos do surrealista. Conforme sabemos, ajuizar é ligar um sujeito a um predicado. Na Introdução da Crítica da razão pura (B 5),1 Kant assinala a existência de juízos a priori, necessários e universais. Juízos que, quanto ao conteúdo, podem ser (1) analíticos ou (2) sintéticos. (1) Juízos “analíticos” são sempre a priori, porque, nesse caso, o predicado atribuído ao sujeito já se encontra incluído no conceito desse sujeito. O exemplo dado é: “todos os corpos são extensos”, pois alguma extensão já é presente no conceito de corpo. Esses juízos são apenas explicativos e nada acrescentam ao conteúdo do conhecimento. (2) Os juízos são considerados “sintéticos” quando acrescentam ao sujeito um novo predicado não incluído no seu conceito. Como acontece na frase “alguns corpos são pesados”, onde o predicado é distinto do sujeito e é necessária a experiência empírica de pesagem para saber se alguma coisa é leve ou pesada. Esses juízos de origem empírica, dados através da experiência, são sempre sintéticos e, claro, a posteriori. Kant observa que existem também juízos sintéticos – que acrescentam novo predicado ao sujeito e aumentam nosso conhecimento sobre este – a priori. É instigante pensar a existência de juízos que, simultaneamemte, são dados a priori e, ainda assim, aumentam nosso conhecimento sobre o objeto ajuizado. É o caso dos juízos matemáticos: quando se diz que 938 mais 1045 é igual a 1983 percebe-se que o conceito da soma não inclui seu resultado, ainda que este já esteja garantido a priori, há necessidade de realizar o processo de acrescentar um número a outro. Conforme Kant, “nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito (Geist), das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade 1 KANT, Crítica da razão pura, citaremos, daqui em diante, abreviada como CRP, seguida do parágrafo onde se encontra o citado. WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 das impressões) e a segunda é a capacidade de conhecer um objeto mediante essas representações” (CRP, A 50, B 74). Como as fontes (sensibilidade e entendimento) são completamente heterogêneas entre si, será necessário encontrar um terceiro termo, mediador entre o sensível e o intelectual. A imaginação é a faculdade capaz de fazer a mediação e de realizar a conexão entre os fenômenos intuídos pela sensibilidade e os conceitos provenientes das categorias do entendimento, processo responsável pelo conhecimento, i.e, por fazer a ligação entre conceitos e intuições sensíveis. Função essencial posto que “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas”, e assim, continua o autor, “é tão necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las aos conceitos)” (CRP, A 51, B 75). Na “Analítica dos conceitos”, livro primeiro da “Analítica transcendental”, o juízo é definido como “o conhecimento mediato de um objeto, portanto a representação de uma representação desse objeto” (CRP, B 93). O juízo é a representação de uma representação. A primeira é a representação dos fenômenos, construídos pelo sujeito a partir das formas sensíveis de tempo e espaço, e a segunda é a representação pelos conceitos do entendimento, dos fenômenos assim construídos. Ao formular juízos, o entendimento utiliza conceitos referentes a diversas representações unificadas em uma representação comum. Assim, “todos os juízos são funções da unidade entre nossas representações”, julgar é unificar a diversidade do múltiplo sob a unidade do conceito, e “o entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar” (CRP, B 94). Os conceitos são os predicados possíveis dos objetos e “pensar é conhecer por conceitos” (CRP, B 94). No sistema kantiano, fica clara a anterioridade do pensamento em relação ao objeto (sobre a qual nos voltaremos no desenrolar do texto). Kant apresenta o objeto como “aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição dada” (CRP, B 137). Nesse arcabouço, o objeto é o resultado de uma operação transcendental, a razão descobre-se primeiro como conceito e depois encontra-se a si mesma como objeto. A consciência permite, a priori, ligar a multiplicidade das representações dadas, quer dizer acrescentar uma representação a outras e, ao longo desse processo de conhecer, perceber a identidade da consciência e a permanência dessa identidade; eu=eu+eu+eu... No processo do conhecimento, ao mesmo tempo, são dadas a consciência da síntese das WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 representações e a consciência sintética do eu. O eu instaura o mundo através de uma unidade sintética na qual está sempre presente, em um eterno agora, como em um presente continuado. A condição de possibilidade do conhecimento é que as representações sejam submetidas ao que Kant denomina “unidade sintética originária da apercepção”. Trata-se da unidade da consciência que reúne as representações de um objeto em uma síntese, convertendo-as em conhecimento, “sobre ela assenta, consequentemente, a própria possibilidade do entendimento” (CRP, B 137). Na “Analítica dos princípios”, livro segundo da “Analítica transcendental”, Kant apresenta as regras da faculdade de julgar, quer dizer, de aplicar conceitos aos fenômenos, de conhecer, e destaca que “a faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de maneira nenhuma ser ensinado, apenas exercido” (CRP, B 172). No sistema kantiano, conhecimento traduz-se em ligar conceitos a fenômenos, a faculdade de julgar é a capacidade de descobrir qual fenômeno está submetido a tal regra, o juízo é o ato da síntese. O modo encontrado de aplicar os conceitos ao mundo empírico é denominado “esquema” e “é sempre, em si mesmo, apenas um produto da imaginação” (CRP, A 140, B 179). Na Crítica da Razão Pura, o juízo onde é dada a regra que subsume o particular é um juízo determinante, enquanto na Terceira Crítica, onde é dado o particular para o qual é preciso encontrar a regra, o juízo é reflexivo: não é guiado por regras e busca a regra para o caso. Enquanto na Primeira Crítica, tratava-se de apresentar as condições de possibilidade do conhecimento, na Crítica da Faculdade de Julgar o objeto é o próprio juízo. E o paradigma do juízo reflexivo é o juízo estético, que apresentaremos brevemente. Na Crítica da Faculdade de Julgar, são julgadas belas as representações que provocam prazer, “belo é o que apraz universalmente sem conceito” (CJ, 9).2 A beleza nada dá a conhecer sobre o objeto e sim apenas o sentimento que ele provoca no sujeito. Nas palavras de Lebrun, “o juízo de gosto é um não-saber de onde parece jorrar um sentido”. 3 O problema enfrentado por Kant diz respeito ao fato de, por um lado, o juízo de gosto não estar fundado sobre conceitos, pois se assim o fosse poderia ser demonstrado conceitualmente, e, por outro lado, “a algum conceito o juízo de gosto tem que se referir, 2 KANT, Crítica da faculdade do juízo, citaremos, daqui em diante, abreviada como CJ, seguida do parágrafo onde se encontra o citado. 3 LEBRUN. Kant et la fin de la métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970; p.404. WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 pois do contrário ele não poderia reivindicar validade necessária para qualquer um” (CJ, 57). No primeiro caso, o gosto perderia sua liberdade, no segundo caso teríamos de concordar com o famigerado dito “gosto não se discute”. O filósofo considera que o fundamento do juízo de gosto é “a forma da conformidade a fins de um objeto (ou do seu modo de representação)” (CJ, 11). A beleza é definida como “a forma da conformidade a fins de um objeto, na medida em que ela (a conformidade a fins ik) é percebida nele sem representação de um fim” (CJ, 17). A expressão conformidade a fins fazia parte da terminologia usual nas poéticas do século XVIII e expressava a idéia de uma coordenação das partes que compunham um todo, quaisquer que fossem as razões dessa coordenação, esclarece Cassirer, “nesse sentido, a expressão vem a ser a transcrição alemã do mesmo conceito que Leibniz incorpora a seu sistema com o nome de „harmonia.” 4 A expressão costumava ser utilizada para referir-se a algo que apresenta uma composição ordenada como se segundo a algum princípio formal que não precisava ser explicitado, diferentemente de algo composto de elementos amontoadas de qualquer jeito. A impressão da conformidade a fins provocava prazer, o que não ocorre diante de algo que parece caótico. Um todo é considerado conforme a fins, por Kant, quando suas partes parecem entrelaçadas harmonicamente segundo algum propósito. Tal relação conformadora pode ser percebida na forma, independentemente de se saber a finalidade a qual se destina o objeto. Ampliando o olhar, percebemos que em Kant a conformidade a fins da natureza é um princípio transcendental pois representa a priori a condição universal sob a qual podemos conhecer, em outras palavras, seria impossível conhecer a natureza sem postular que ela possui um ordenamento, i.e, se a julgássemos completamente caótica, como se em um dia a bananeira produzisse pêssegos e no dia seguinte abacaxis, ou pepinos. Na filosofia kantiana, a faculdade de juízo pressupõe uma analogia entre a natureza e nossa faculdade de conhecimento. Como se a natureza fosse plasmada por um entendimento análogo ao nosso, e apenas “como se”, pois “para falar com rigor, a organização da natureza não tem nada de analógico com qualquer causalidade que conheçamos” (CJ, 65), percebe Kant. A conformidade a fins é o elemento subjetivo na representação do objeto, elemento transcendental que não pode ser parte do conhecimento. A faculdade de juízo estética contém então o princípio a priori da faculdade de juízo, representado pela conformidade a 4 CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. México: Fondo de la Cultura Económica, 1948; p.337. WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 fins, formal, da natureza. Formal porque não possui conteúdo. Se a natureza tivesse produzido suas formas para nosso prazer, poder-se-ia falar de uma conformidade a fins objetiva, trata-se, entretanto, de uma conformidade a fins subjetiva, do modo como a acolhemos, “há um favor no modo como acolhemos a natureza e não um favor que ela nos mostre” (CJ, 58). A conformidade a fins atribuída `a natureza, em referência a suas puras formas, a qualifica para associações abstratas e permite a passagem do fenômeno ao númeno, como quando o filósofo afirma, por exemplo, que “a cor branca dos lírios parece dispor o ânimo para idéias de inocência” (CJ, 42). O princípio determinante do juízo de gosto “talvez se situe no conceito daquilo que pode ser considerado como o substrato supra-sensível da humanidade” (CJ, 58). Por não haver nenhum princípio objetivo para o juízo de gosto, Kant considera que apenas um princípio subjetivo, em suas palavras, “a idéia indeterminada do supra-sensível [...] pode ser-nos indicada como a única chave para o deciframento desta faculdade oculta a nós próprios em suas fontes” (CJ, 57). Kant confessa que é a contragosto que se vê coagido a olhar para além do sensível, e a buscar no supra-sensível a convergência de nossas faculdades, contudo, “não resta nenhuma outra saída para fazer a razão concordar consigo mesma” (CJ, 57). Trata-se, portanto, de encontrar, aquilo que no sujeito é simples natureza e não pode ser captado sob regras ou conceitos, isto é, o substrato supra-sensível de todas as suas faculdades (o qual nenhum conceito do entendimento alcança), aquilo em referência ao qual o fim último dado pelo inteligível `a nossa natureza é tornar concordantes todas as nossas faculdades de conhecimento (CJ, 57). Segundo Kant, ele mesmo muito mais preocupado em estabelecer uma concordância entre as faculdades de conhecimento componentes de seu sistema do que com a arte, “é o inteligível que o gosto tem em mira” (CJ, 59), e o belo é considerado símbolo do moralmente bom. O filósofo observa que essa analogia é habitual e é comum o costume de ligar objetos belos a adjetivos que parecem carregar juízos morais: “chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, campos de risonhos e alegres, mesmo cores são chamadas de inocentes, modestas, ternas, porque elas suscitam sensações que contêm algo analógico a um estado de ânimo produzido por juízos morais” (CJ, 59). O juízo de gosto possibilita a passagem do prazer sensível ao sentimento moral “sem um salto demasiado violento”, assinala Kant, para quem “o gosto é no fundo uma faculdade de ajuizamento da WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 sensificação de idéias morais (mediante uma certa analogia de reflexão sobre ambas as coisas)” (CJ, 60). E no mesmo parágrafo, o filósofo vai adiante no enlace entre as faculdades da razão e afirma: “parece evidente que a verdadeira propedêutica para a fundação do gosto seja o desenvolvimento de idéias morais e a cultura do sentimento moral”. Mas como os lírios brancos não são relacionados a conceitos para provocar a idéia de inocência, e o sujeito pode simplesmente percebê-los como flor e cor, sem referi-los a idéias de pureza, ou a quaisquer outras idéias morais, fica evidente que a matéria só pode realizar o desejado trânsito entre fenômeno e númeno através da reflexão subjetiva. E essa capacidade de reflexão diante dos fenômenos parece ter sido abandonada, entrado em desuso, caído de moda, perdido sua força diante da voracidade das imagens produzidas pela indústria cultural na sociedade do espetáculo. Não há mais parâmetros estéticos que possam ser ditos universais. O que parece ter se perdido é a idéia da possibilidade de um acordo entre a interioridade do sujeito e a exterioridade do mundo a sua volta, ou entre liberdade e natureza; e também a possibilidade de um acordo entre as faculdades internas do sujeito, fundamental na doutrina kantiana. Acordo, pode-se dizer, “produzido” pela imaginação em sua liberdade. Contudo, talvez devido ao forte charme, a idéia da possibilidade desse acordo entre liberdade e natureza, entre interioridade e exterioridade não foi abandonada e é mesmo central, mais de um século depois de Kant, nas poéticas surrealistas. Ou na filosofia do surrealismo, se aceitarmos o ponto de vista de Ferdinand Alquié, segundo o qual “o surrealismo comporta uma verdadeira teoria do amor, da vida, da imaginação, das relações do homem e do mundo. Tudo isso supõe uma filosofia”. 5 Capacidade de abstrair imagens dadas, de criar outras novas, lugar do trânsito entre matéria e inteligibilidade, a imaginação é a faculdade mental que mais interessou aos surrealistas. E, dentre as faculdades mentais, a possuidora do maior teor de liberdade. Segundo André Breton, “reduzir a imaginação `a escravidão, mesmo que fosse `aquilo que, grosseiramente, se chama felicidade, é privar-se de tudo o que se encontra, no fundo de si, de justiça suprema. Somente a imaginação nos diz o que pode ser”. 6 A respeito dessa 5 6 ALQUIÉ, Ferdinand. La Philosophie du Surréalisme. Paris: Flammarion, 1977 (1955); p.8. BRETON, André. Les Manifestes du Surréalisme. Paris: Ed. Du Sagittaire, 1946; p.15. WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 passagem, Alquié escreveu: O que Breton condena é o pragmatismo, a busca calculada e calculadora de uma felicidade limitada e prudente, que pede a renúncia ao sonho e `as exigências essenciais do desejo. É para cuidar desta felicidade que a maior parte dos homens consente, precisamente, em separar a beleza de suas vidas, em tê-la por abstrata e formal, a pregá-la no muro para contemplá-la aos domingos, vivendo, durante a semana, como diz ainda Breton, “a vida dos cachorros”.7 Nos Manifestos do Surrealismo, Breton vai adiante e afirma bravamente que “não será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio-pau”, uma vez que “é verdadeiramente para nossa fantasia que vivemos”. 8 De modo que, segundo o surrealista francês, “deve-se dar graças `as descobertas de Freud. Na trilha de suas descobertas, esboça-se, enfim, uma corrente de opinião a favor da qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, autorizado que está a não levar em conta realidades sumárias. A imaginação talvez esteja prestes a reclamar seus direitos”. 9 Na perspectiva surrealista, “a razão adulta, social, cotidiana, não se contenta em oprimir o homem, ela o trai”, julga Alquié. 10 O acordo entre a interioridade do sujeito e a exterioridade do mundo a sua volta, entre liberdade e natureza, aparece como idéia central para o pensamento surrealista no conceito de “acaso objetivo”, desenvolvido por André Breton, que designa o ponto nodal onde as duas se encontram. Utilizando terminologia surpreendente próxima `a kantiana, Breton reconhece o acaso objetivo “como índice de uma reconciliação possível dos fins da natureza e dos fins dos homens, aos olhos deste último”. 11 E, conforme Kant, não da natureza. Curiosamente, nesta passagem, ele não se refere a Kant e sim a uma “esperança persistente na dialética (na de Heráclito, de Mestre Eckhardt, de Hegel) para a resolução das antinomias”. 12 O acaso objetivo nomeia coincidências contingentes, aleatórias, independentes de qualquer controle da consciência que apresentam uma estrutura e uma 7 ALQUIÉ, Ferdinand. La Philosophie du Surréalisme, p.19. BRETON, André. Les Manifestes du Surréalisme, p.16 e 37, respectivamente. 9 Ibidem, p.25. 10 ALQUIÉ, Ferdinand. Op. cit., p.117. 11 BRETON, André. La Clé des Champs. Paris : Jean-Jacques Pauvert, 1967; p.110. 12 Idem. Nesta mesma obra, em entrevista com Trotsky, Breton revela – sem referir-se `a fonte – que Engels já mencionara a noção de acaso objetivo. Cf. BRETON, André. “Visite a Leon Trotsky”, in La Clé des Champs, p.78. Encontrei a seguinte frase, atribuída a Engels sem mencionar fontes, no verbete “Breton” da Wikipédia, a 24/set/2010: “Não se pode compreender a causalidade senão em ligação com a categoria de acaso objetivo, forma de manifestação da necessidade”. 8 WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 coerência provocante que incita a percebê-las como sinais, como correspondências inesperadas com uma ordem anteriormente impensada. A diferença fundamental a ser apontada na analogia com Kant diz respeito ao fato de o filósofo considerar, em seu sistema (e nisso reside a chamada “revolução coopernicana”), uma anterioridade do pensamento em relação ao objeto que é por ele (pelo pensamento) posto.13 Se assim é, torna-se urgente estabelecer qual o grau de verdade desse objeto assim posto, que seria negativo no caso de a natureza ir para um lado e o pensamento para o outro, a analogia, postulada entre as duas ordens, é fundamental no sistema kantiano. Na filosofia surrealista, a analogia se revela no fenômeno do acaso objetivo e parece indicar a existência de uma ordenação que, diferentemente da postulada por Kant, não pré-existe mas é criada quando acontece o misterioso encontro entre a interioridade do sujeito e um fenômeno exterior. E uma possível união entre ambos se revela quando por acaso tocada (cantada, dançada), e essa revelação realiza correspondências randômicas, para além da lógica, correspondências “sintéticas”, se voltarmos `a linguagem kantiana. É como se o mundo fosse um criptograma e certos acasos construíssem a chave de seu sentido, ao configurarem acontecimentos que criam a desejada ressonância. Alquié define o acaso objetivo como o “encontro da causalidade externa com a finalidade interna”: tal encontro fortuito “aparece sob o signo de uma finalidade da qual sabemos bem que ela não presidiu a seu nascimento”.14 O encontro denominado pelos surrealistas de acaso objetivo deve ser diferenciado da “iluminação ontológica”: nesta última não haveria encontro e sim identidade; haveria homologia e não analogia. Para os surrealistas a criação precede o encontro da finalidade interna com a causalidade externa. “É importante, pois, não se inverter a ordem das etapas”15, adverte Alquié, que apresenta o acaso objetivo nos seguintes termos: Veja esses encontros que se explicam mal pelo simples recurso `a coincidência, e que, como os encontros da arte, engendram uma inquietação [emoi] que bem parece o sinal de uma finalidade objetiva, ou, pelo menos, a marca de um sentido do qual nós não somos os únicos criadores. Essa finalidade, esse sentido, supõe, no real, uma ordem que seja sua fonte.16 13 Cf. pagina 2, onde avisamos que retornaríamos ao assunto. ALQUIÉ, Ferdinand. Op. cit., p.114 e 107, respectivamente. 15 Ibidem, 114. 16 Ibidem, 141. De modo mais místico, Walter Benjamin, descreve fenômenos semelhantes: “Signos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas [...] Como 14 WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 As inquietantes coincidências chamadas de acaso objetivo provocam a idéia de que talvez exista uma ordenação em curso que nos escapa, cujo acesso nos é vedado. Sem sufocar as distinções, são audíveis os ecos do pensamento de Kant nas reflexões do filósofo francês sobre o surrealismo. Vale lembrar que La Philosophie du Surréalisme foi publicada pela primeira vez em 1955 e, no ano anterior, 1954, Alquié publicara a tradução francesa, por ele realizada, da Crítica da Razão Prática. Não é portanto de se estranhar – além da real afinidade presente entre as idéias provocadas pelo conceito de acaso objetivo e a proposta kantiana de se pensar a natureza como se ela seguisse uma ordenação produzida por um entendimento semelhante ao nosso – que a obra sobre o surrealismo apresente-se mergulhada em linguagem kantiana. “A concepção surrealista da beleza não pode ser separada da teoria platônica e mesmo das análises de Kant relativas ao julgamento estético e ao julgamento teleológico”, salienta Alquié, “há na beleza, tal como a concebeu Kant, um pressentimento de ontologia que não chega `a ontologia”. 17 Sobre a reflexão estética kantiana, Gerhardt escreveu algo aplicável também ao surrealismo: “as obras, traços de um não-saber irredutível, são colocadas dentro de um saber que pretende expor o inexponível [...] Elas não fazem mais que marcar o lugar do supra-sensível e a sua única significação é a de contornar o vazio”.18 O surrealismo deu nova figura `a beleza, ligada ao acaso, aos encontros fortuitos e, espichando um pouco o sentido, pode-se dizer, ao desinteresse. Enquanto o saber científico separa o sujeito e os fenômenos que ele constitui como objeto e, deste modo, a consciência visa um objeto do qual ela é consciência; os surrealistas percebem o caráter subjetivo na consciência do objeto: a beleza não é completamente outra em relação `a consciência que a apreende: “a beleza confunde-se, enquanto tal, com o sentimento do belo”, e fugir desse teor subjetivo significaria, “como faz Platão, dar, como correlativo `a consciência da Beleza, um mundo das Idéias, cuja realidade não é, ela própria, estética”. 19 O surrealismo recusa essa démarche, o correlativo da consciência surrealista é o surreal, que é para ela, raios ultra-violetas a lembrança mostra a cada um, no livro da vida, uma escrita que, invisível, na condição de profecia, glosava o texto.” BENJAMIN, Walter. “Madame Ariadne, segundo pátio `a esquerda”, in Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987; p.63-4. 17 ALQUIÉ, Ferdinand. Op. cit., p.152-153. 18 GERHARDT, Volker. Arte e vida, in Argumento, volume II, n.3/4; p.75 19 ALQUIÉ, Ferdinand. Op. cit., p.156. WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 formalmente e apenas formalmente, o que a objetividade física é para a consciência científica. O objeto da consciência é por ela mesma construído. Tudo depende da liberdade com a qual a imaginação se coloca em cena. E ela só coloca em cena a si mesma. A beleza surge da fagulha provocada pelo encontro casual de imagens díspares. 20 O acaso objetivo “indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios.”21 Ele manifesta ao sujeito, de modo muito misterioso, uma necessidade que lhe escapa. O mundo do sonho e o mundo da realidade não fazem senão um, julga Breton. Em suas palavras: “Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer”.22 Conforme observado, o pensador surrealista ressalta que essa analogia poética é fundamentalmente distinta da analogia mística por não postular, de forma alguma, um universo invisível capaz de se manifestar através da trama do mundo visível. “Ela é toda empírica em sua progressão, apenas o empirismo podendo assegurar-lhe a total liberdade de movimento ao salto que ela deve fornecer”.23 Na descrição do movimento criador por Breton: Uma vez vencidos todos os princípios lógicos, virão então a nosso encontro - se tiver valido a pena interrogá-las - as forças do acaso objetivo, que nada querem saber de verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende saber se encontra escrito nessa tela em letras fosforescentes, em letras de desejo [...] Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo, único rigor que o homem deve se impor? 24 Será o desejo o elemento de trânsito entre duas ordens diversas. O difícil encontro entre natureza e liberdade que a humanidade encarna, a arte apresenta, a filosofia tem como tema, os poetas surrealistas consideram um evento supra-real, na medida em que, na 20 Em exercício de liberdade radical, Isidore Ducasse, sob o nom de plume Conde de Lautréamont, apresenta, entre outras comparações, o „belo como um tratado sobre a curva descrita por um cão correndo atrás de seu dono, belo como o tremor as mãos no alcoolismo [...] a lei da reconstituição dos órgãos mutilados” e, na mais conhecida analogia, a beleza é “como o encontro fortuito de uma maquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação!” LAUTREAMONT. Cantos de Maldoror. São Paulo: Max Limonad, 1986; p.214, 211 e 249, respectivamente. 21 BRETON, Manifestos do Surrealismo, p. 154. 22 Ibidem, p. 38. 23 BRETON, Signe ascendant, coleção Poésie, Editions Gallimard, Paris, 1975, p. 9. 24 BRETON, O Amor Louco, p. 116. WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010 realidade, natureza e liberdade têm sido consideradas antagônicas. O que escapa `as regras e manifesta-se como cesura nas determinações do real – revelando-o como casca frágil e quebradiça – constitui o acesso a chamada supra-realidade. Acaso objetivo, sonhos, atos falhos, lapsos de linguagem, piadas, qualquer que seja o fenômeno capaz de apresentar-se como cesura no pensamento, e de produzir inquietude, pode provocar uma tensão que, pelo fato de aparecer, testemunha uma alteridade. Supra-realidade e substrato supra-sensível, a beleza parece ultrapassar a objetividade da consciência e apontar para a reflexão. E, nesse caso, onde está o lastro objetivo, o aval da verdade? Talvez no trânsito entre as esferas distintas. Trânsito cuja real existência é atestada pelo fato de alguns objetos da arte e da natureza possuírem a capacidade de afetar os mais íntimos sentimentos do ser humano. Como se fossem a objetivação da mais profunda interioridade. Considerando a pertença `a mesma espécie, ao mesmo mundo, pode-se pensar que, para além do princípios de individuação, o isolamento do ser pode ser descontínuo, e mediado por profundos sentimentos de comunidade. BIBLIOGRAFIA: ALQUIÉ, Ferdinand. La Philosophie du Surréalisme. Paris: Flammarion, 1977. BENJAMIN, Walter. “Madame Ariadne, segundo pátio `a esquerda”, in Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho et al. São Paulo: Brasiliense, 1987. BRETON, André. La Clé des Champs. Paris : Jean-Jacques Pauvert, 1967. _________. Les Manifestes du Surréalisme. Paris: Ed. Du Sagittaire, 1946. _________. Signe ascendant, coleção Poésie, Editions Gallimard, Paris, 1975. CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. México: Fondo de la Cultura Económica, 1948. GERHARDT, Volker. “Arte e vida”, in Argumento, vol. II, n.3/4. Lisboa, outubro, 1992. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e Antonio marques. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1993. _________. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1994. LAUTRÉAMONT. Cantos de Maldoror. São Paulo: Max Limonad, 1986. LEBRUN. Kant et la fin de la métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970. WWW.REVISTAEXAGIUM.COM .BR NÚMERO 8 2010