relato de caso - Associação Catarinense de Medicina

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Arquivos Catarinenses de Medicina
ISSN (impresso) 0004- 2773
ISSN (online) 1806-4280
RELATO DE CASO
Relato de caso de paciente com dermatomiosite paraneoplásica secundária a
carcinoma epidermóide uterino
A case report of a patient with paraneoplastic dermatomyositis secondary to
uterine squamous cell carcinoma
Camila Pereira1, Maria Alice Franzoi1, Osmar Silvério Ribeiro Jr1, Maria Eduarda Cardoso da Silva Meyer2,
Ivânio Alves Pereira3, Giovana Gomes Ribeiro4
Resumo
questões relevantes à doença, como a possível etiopatogênese da doença, os principais tipos de neoplasia
envolvidos e as novas ferramentas de laboratório e de
imagem úteis no diagnóstico precoce.
A Dermatomiosite (DM) é uma doença idiopática
de natureza auto-imune que afeta principalmente o
sistema músculo-esquelético e cutâneo, podendo acometer outros órgãos como o aparelho gastro-intestinal,
pulmonar e cardíaco. Caracteriza-se por fraqueza muscular, pelo surgimento de lesões cutâneas típicas, pela
elevação de enzimas musculares bem como por alterações histológicas e de eletroneuromiografia. A DM pode
estar associada a neoplasias. Relatamos o caso de paciente de 53 anos, do sexo feminino, queixando-se de
prurido e eritema cutâneo, acompanhados de fraqueza
muscular proximal. Apresentava também sangramento
vaginal espontâneo e emagrecimento. Ao exame físico apresentava fraqueza muscular, lesões de Gottron e
heliótropo. Exame de eletroneuromiografia dos quatro
membros foi compatível com padrão miopático. Ultrassonografia transvaginal, tomografia computadorizada
de pelve e biópsia endometrial corroboraram o diagnóstico de carcinoma epidermóide. Após melhora parcial
do quadro cutâneo-articular com uso de glicocorticoide
endovenoso e antiobioticoterapia, a paciente foi encaminhada ao Centro de Pesquisas Oncológicas (CEPON)
a fim de iniciar o tratamento da neoplasia. Em função
do grau de desdiferenciação celular e da extensão do
tumor observadas na análise histológica, foi indicado
tratamento com quimio e radioterapia. Meses depois a
paciente foi a óbito por septicemia decorrente de foco
cutâneo. Complementamos o relato de caso discutindo
Descritores: Dermatomiosite.
inflamatória.
Miopatia
Abstract
The dermatomyositis (DM) is an idiopathic disease
of autoimmune nature that primarily affects the musculoskeletal system and skin and can affect other organs such as the gastrointestinal tract, lung and heart.
It’s characterized by muscle weakness, by the appearance of skin lesions typical for the increase in muscle
enzymes as well as histological and electromyography.
The DM may be associated with malignancies. We report
a case of a 53-year-old female, complaining of itching
and rash, accompanied by proximal muscle weakness.
She also had spontaneous vaginal bleeding and weight
loss. Physical examination revealed muscle weakness,
heliotrope and Gottron lesions. EMG examination of the
four members was consistent with myopathic pattern.
Transvaginal ultrasonography, computed tomography
of the pelvis and endometrial biopsy corroborated the
diagnosis of squamous cell carcinoma. After partial improvement of the cutaneous-articular with use of steroids and intravenous antiobioticoterapia, the patient
was referred to the Oncology Research Center (CEPON) to initiate treatment of neoplasia. Depending on
the degree of cell dedifferentiation and tumor spread
observed in the histological analysis indicated treatment with chemotherapy and radiation. Months later
the patient died from septicemia due to focus skin. We
complement the case report discussing issues relevant
to the disease, such as the possible etiopathogenesis
of the disease, the main types of cancer involved and
1. Acadêmicos do curso de medicina pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
2. Médica assistente do Centro de Pesquisas Oncológicas (CEPON).
3. Chefe do Núcleo de Reumatologia do Hospital Universitário da Universidade
Federal de Santa Catarina (HU-UFSC) e professor da UNISUL, Med, PhD.
4. Médica assistente do Núcleo de Reumatologia do Hospital Universitário da
Universidade Federal de Santa Catarina (HU-UFSC) e Hospital Regional de
São José (HRSJ), PhD.
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Neoplasia.
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Relato de caso de paciente com dermatomiosite paraneoplásica secundária a carcinoma epidermóide uterino
Relato de caso
the new tools of laboratory and imaging useful in early
diagnosis.
Keywords:
myopathy.
Dermatomyositis.
Cancer.
S.R.B, 53 anos, sexo feminino, procedente de São
José – SC, consultou no ambulatório de reumatologia
do HU-UFSC, queixando-se de prurido e eritema cutâneo há seis meses, acompanhados de fraqueza muscular proximal, ulcerações nas superfícies articulares
extensoras e infecção secundária. Apresentava sangramento vaginal espontâneo há cinco meses. Relatava
emagrecimento de 45 kg. Negava outras co-morbidades
e antecedentes familiares.
Inflammatory
Introdução
A Dermatomiosite (DM) é uma doença idiopática de
natureza auto-imune que afeta principalmente o sistema músculo-esquelético e cutâneo, podendo acometer
outros órgãos como o aparelho gastro-intestinal, pulmonar e cardíaco1,2. A DM faz parte de um grupo heterogêneo de doenças conhecidas como miopatias inflamatórias idiopáticas, classicamente agrupadas segundo os
critérios definidos por Bohan & Peter3, levando em consideração características clínicas (fraqueza muscular, alterações cutâneas), laboratoriais (elevação de enzimas
musculares, presença de auto-anticorpos), histológicas
(infiltrado inflamatório) e de eletroneuromiografia (lesão de padrão miopático). Apresenta incidência de distribuição bimodal, com picos na infância e entre 50 e
70 anos de idade. O sexo feminino é o mais comumente
acometido e sua incidência é de aproximadamente 4 a
10 casos por milhão1,2.
Ao exame físico apresentava-se em regular estado
geral, aspecto emagrecido e discreta hipotrofia muscular. Foram observadas lesões cutâneas ulceradas e infectadas em região de cotovelos, joelhos, região sacral
e articulações metacarpofalangeanas - (Figura 1).
Em região de face a paciente apresentava edema
periorbital e erupção de coloração púrpura nas pálpebras. (Figura 2). Exames laboratoriais solicitados demostraram anemia e elevação provas inflamatórias - VHS 79 mm (<10)
e PCR 40 (<5.0). Enzimas musculares foram normais CPK 8 (10-170) e Aldolase 7 (1,0-7,6). A dosagem dos
auto-anticorpos (fator anti-nuclear, anti-Ro, anti-La,
anti- RNP, anti-Sm, fator reumatóide) e das frações do
complemento (C3, C4, CH50) foram normais. Por outro
lado, alguns dos marcadores tumorais apresentaram níveis elevados: CEA 16,4 ng/ml (<3,4), CA 19-9: 64,2 U/
ml (<37) e CA 125: 9,25 U/ml (<35).
Todos os pacientes com DM apresentam por definição manifestações cutâneas da doença, comumente
em áreas fotoexpostas. A manifestação muscular mais
comum é a fraqueza muscular proximal, alterações da
musculatura respiratória e disfagia. A doença também
pode acometer o pulmão manifestando-se através de
pneumopatia intersticial4. Além da elevação de enzimas
musculares, a identificação de anticorpos associados à
miosite (PM-Scl, RO, U1RNP) e anticorpos miosite específicos (JO-1, SRP, Mi2) tem sido utilizada cada vez mais
como auxílio no diagnóstico das miopatias inflamatórias2. Estudos recentes também ressaltam a importância
da histologia no diagnóstico, classificação e tratamento
das miopatias, sugerindo a necessidade de modificações na classificação atual, levando em consideração
o tipo de lesão muscular (necrose, atrofia ou regeneração), a resposta imune predominante (celular ou humoral) bem como sua localização anatômica (endomisial,
perimisial ou perivascular)5.
Ultrassonografia transvaginal, tomografia computadorizada (TC) de pelve e biópsia endometrial corroboraram o diagnóstico de carcinoma epidermóide com
invasão local em paramétrios, sem sinais de metástases. Endoscopia digestiva alta não demonstrou lesões
esofágicas. Exame de eletroneuromiografia apresentou
padrão miopático.
Houve melhora parcial do quadro articular e cutâneo com glicocorticóide endovenoso associado à antiobioticoterapia. A paciente foi encaminhada ao CEPON a
fim de iniciar quimio e radioterapia, no entanto, meses
depois foi a óbito por septicemia decorrente de foco
cutâneo.
Em relação ao tratamento, os glicocorticóides ainda
são a terapia mais utilizada. Casos refratários ou cortico-dependentes são manejados com outros imunossupressores1.
Discussão
A DM foi inicialmente associada à malignidade em
1916 após dois relatos de casos6,7. Desde então, a associação entre miosite e malignidade tem sido analisada
em inúmeros estudos epidemiológicos8,9,10. Segundo dados da literatura médica, a prevalência de miosite associada à neoplasia pode variar entre 3 a 60%11. Esta ampla variação pode decorrer dos diferentes desenhos de
As causas mais frequentes de óbito são septicemia,
infecção pulmonar e neoplasia maligna1.
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Relato de caso de paciente com dermatomiosite paraneoplásica secundária a carcinoma epidermóide uterino
nifica dizer que 93 em cada 100 pacientes com DM e
anti-p155 negativo não desenvolverão câncer e que
pacientes com DM e anti-p155 positivo tem 18 vezes
mais chance de ter câncer em comparação àqueles com
o anticorpo negativo17,19.
estudos epidemiológicos empregados, bem como dos
critérios de classificação utilizados. Tais estudos também demonstram que a relação entre miosite e neoplasia é mais comum na DM do que na Polimiosite (PM)8,10.
Em relação aos fatores de risco para neoplasia associada à DM destacam-se idade, acometimento cutâneo
grave (necrose e ulceração cutânea), resposta parcial ao
tratamento, ausência de anticorpos miosite-específicos
e elevação de marcadores tumorais10,12. Em relação às
enzimas musculares, estudos descrevem níveis menores de creatinofosfoquinase (CPK) em pacientes com
miosite associada à neoplasia do que naqueles sem tumor associado13,14, inclusive podendo indicar casos de
pior prognóstico14.
O caso relatado, com diversos fatores de risco para
DM associada à neoplasia (idade, manifestação cutânea
grave, resposta parcial ao tratamento, níveis normais de
CPK, ausência de anticorpos miosite-específicos e elevação de marcadores tumorais), possivelmente ter-se-ia beneficiado da pesquisa precoce do anticorpo anti-p155. Infelizmente este teste ainda não está disponível
comercialmente, permanecendo restrito a pesquisas.
Referências
Dentre as neoplasias mais comumente associadas à
miosite, destacam-se os tumores de ovário, útero, mama,
pulmão, estômago, intestino, pâncreas, linfoma12,15. Na
população asiática as neoplasias mais comuns são de
nasofaringe e pulmão10. A relação temporal entre malignidade e miosite é variável. No entanto, estudos apontam que o diagnóstico do câncer geralmente ocorre no
primeiro ano após o diagnóstico da miosite (60-70%
dos casos)1,12,15, o que reforça uma ligação etiopatogênica entre as duas entidades. Uma das explicações mais
aceitas para a associação entre miosite e neoplasia é de
uma resposta auto-imune contra antígenos de células
tumorais desenvolver uma resposta cruzada contra células musculares e cutâneas, levando à destruição muscular e ao quadro de DM10,11,16.
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A avaliação em busca de neoplasia oculta é um dos
maiores desafios. O tipo e extensão deste screening,
bem como o intervalo ideal entre as avaliações permanecem em debate. Destacamos a importância da
anamnese e exame físico cuidadosos, rotina laboratorial, marcadores tumorais, avaliação ginecológica em
pacientes do sexo feminino, exames de imagem apropriados para idade, sexo e etnia do paciente12,15. Recentemente, o PET/CT usando fluorodeoxyglicose (18F)
vem sido citado como uma das técnicas mais sensíveis
no diagnóstico de lesões malignas15. Estudo prospectivo multicêntrico avaliando o diagnóstico de neoplasia oculta em pacientes com DM/PM, utilizando o PET/
CT comparado ao screening convencional demonstrou
equivalência em termos de sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo e negativo entre as duas
abordagens17.
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neoplasias18. A análise de seis estudos demonstrou
especificidade de 89%, sensibilidade de 70%, valor
preditivo negativo de 93% e odds ratio de 18. Isso sigArq Catarin Med. 2014 out-dez; 43(4): 50-53
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B
Figura 1. A: Pápula de Gottron: lesões eritematosas sobre superficie
extensora das articulações metacarpofalangeanas. B: Sinal de Gottron.
Figura 2. Heliotropo: rash eritêmato violácio sobre as pálpebras em
paciente com dermatomiosite.
Endereço para correspondência:
Giovana Gomes Ribeiro, PhD
Reumatologista do Núcleo de Reumatologia da UFSC
Rua Alves de Brito, 346, Florianópolis - SC, Brasil
88015-440
E-mail: [email protected]
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