1 FUNDAMENTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DA EDUCAÇÃO ERENILDO JOÃO CARLOS 2 PALAVRAS INICIAIS A educação é uma atividade humana, isto é, histórica e social. Nesse sentido, a História e a Sociologia, enquanto áreas de conhecimento peculiares, permitem conhecer e entender, a um só tempo, a particularidade da educação como uma espécie de evento próprio e sua relação com a organização societária. A disciplina Fundamentos sócio-históricos da Educação transita entre esses dois campos disciplinares. A fim de situar a educação no complexo de relações sociais vigentes em uma dada sociedade, no nosso caso, a capitalista e brasileira, essa disciplina oferece aos educadores, em geral, e aos professores e pedagogos, em particular, um leque de ferramentas teórico-metodológicas que potencializam o seu pensar reflexivo e crítico sobre a problemática da educação e seu fazer intencionado, em suas múltiplas formas sociais, a exemplo de seu modo de existência escolar. Objetivando a formação de um educador comprometido ética e politicamente com a produção e circulação do conhecimento e com a configuração de um formato de educação articulado à feitura de relações sociais orientadas pelo pressuposto da cidadania e da democracia, sugerimos cinco referências bibliográficas que poderão servir como fonte de consulta e de estudo, necessárias ao processo formativo dos alunos do Curso de Letras. Para isso, fixamos três objetivos gerais: a) Propiciar ao estudante do Curso de Letras o acesso e a aquisição de conhecimentos sobre os fundamentos sociais e históricos da educação; b) Analisar a educação como um acontecimento assentado no tempo, no espaço e na rede complexa das relações sociais que tecem a história das sociedades humanas; e c) Problematizar o currículo escolar, enquanto uma produção social e histórica marcada pelo jogo de interesses ideológicos, políticos e econômicos que pautam as lutas de diferentes atores e segmentos sociais e as políticas educacionais do Estado brasileiro. Quanto ao conteúdo programático, a disciplina está organizada em três unidades. Na primeira, veremos algumas noções preliminares sobre dois assuntos: o problema dos fundamentos e a emergência da sociedade como objeto de estudo. Na segunda, discutiremos sobre a educação como um fenômeno social particular. Para tanto, estudaremos a educação como objeto de estudo das ciências sociais e os fundamentos epistemológicos da educação. Na terceira, adentraremos na relação entre educação, escola e currículo na sociedade brasileira. Nessa perspectiva, analisaremos a educação escolar como direito subjetivo, a relação entre linguagem, discurso e escola e, por fim, discutiremos três eixos articuladores do currículo escolar: o do trabalho, o da cultura e o da cidadania. Enfim, desejamos que todos vocês possam ler e estudar os textos propostos, dialogar com os colegas, com o professor e com os tutores, realizar as atividades didáticas, postas neste material impresso e na página do moodle, a fim de que se apropriem dos conhecimentos mobilizados e organizados nas fronteiras de nossa disciplina, necessários ao pensar-fazer pedagógico competente e conseqüente. UNIDADE I NOÇÕES PRELIMINARES O conteúdo dos dois tópicos que compõem a Unidade 1 objetiva situar o estudante no debate sobre os fundamentos sociais, históricos e epistemológicos que propiciaram o aparecimento da sociedade como objeto de estudo. Entretanto, vale assinalar que a série de problemas que levantaremos não deve ser encarada como se estivéssemos estudando disciplinas como a Sociologia, a História ou, mesmo, a Filosofia das Ciências, o que exigiria maior rigor e profundidade no trato do assunto. Não temos tal pretensão. Nosso objetivo é mais singelo. Queremos simplesmente provocar uma reflexão inicial sobre a noção de fundamentos e sobre o desenvolvimento da sociedade enquanto objeto das preocupações da ciência. Com efeito, começamos o nosso curso com uma reflexão e discussão que não têm um fim em si mesmo, ao contrário, a referência ao assunto é apenas um ponto de partida para discutirmos sobre educação, pois estudar a educação sem antes entender a própria noção de fundamentos, o conteúdo concreto e o epistemológico, que propiciaram a constituição da educação, pode acarretar alguns vazios cognitivos que dificultarão o entendimento desse tema. No contexto dessa disciplina, a palavra fundamento é um conceito-chave para o exercício da nossa reflexão, análise, estudo e investigação sobre as coisas, em geral, que pretendemos conhecer e explicar e, em particular, sobre a educação. Ou seja, para a compreensão de um dado fenômeno, necessitamos reconhecer sua existência e conhecer os seus fundamentos, isto é, as condições concretas que possibilitaram o seu aparecimento e a sua constituição particular. 1. O PROBLEMA DA NOÇÃO DE FUNDAMENTO 1 Neste tópico, refletiremos sobre a importância do termo fundamento como um conceito-chave para o entendimento do mundo concreto e do pensamento, da realidade social e histórica e de algumas formas de conhecimento produzido sobre ela, do processo de socialização do indivíduo, em geral, e da educação, em particular. Cabe, logo de início, uma breve observação acerca do termo ‘problema’, contido no enunciado que intitula esse ponto. No contexto de nossa discussão, ele não tem um caráter negativo. Por isso procurem não vê-lo como sinônimo de dificuldade, de obstáculo, ou como um conteúdo semântico associado a algo ruim, indesejado, mas sim, como um ente 2 transformado em objeto do conhecimento. 1 É possível que, a primeira vista, suscitar uma conversa sobre o termo “fundamento” seja algo desnecessário quer pela alegação pragmático-pedagógica de alguns, acerca do pouco tempo disponível que temos para tratar o programa da disciplina, o que exigiria do professor a seleção de alguns conteúdos, considerados mais relevantes do que outros, assim como sua adequação à carga horária fixada, quer pela argumentação epistémica de outros sobre a “crise dos fundamentos” e sua impertinência argumentativa e teórica, o que testemunharia a falta de necessidade de retomar a questão, bastando, portanto, remeter ao estudante à leitura de alguns artigos e livros que tratem sobre a matéria. 2 “O que é, em qualquer dos significados existenciais de ser. (...) É tudo aquilo de que falamos, aquilo a que, de um modo ou de outro, nos referimos. (ABBAGNAMO, 1998, P. 334.). 3 Quando faço uso do enunciado ‘o problema é um ente transformado em objeto’, quero dizer que uma coisa é o ente ‘em si’; outra é o ente ‘para mim’. Quando fazemos de um ente qualquer (ente em si) o foco de nossa atenção, convertemo-lo em um objeto (ente para mim), isto é, objetivamos o ente, que poderá ser visto como um objeto do desejo, do conhecimento, do sentimento, do trabalho etc. O processo de conversão do ente em objeto exige que o indivíduo assuma uma posição de sujeito que estabelece uma relação de não-indiferença com o ente. Caso contrário, ele continuará existindo como ente, integrado ao mundo concreto da natureza ou da história, mas não existirá, para o indivíduo, como objeto de sua consciência. No caso da conversão do ente em objeto cognoscível, isto é, em objeto do conhecimento, o processo de modificação da visão de indiferença que se tem ou se tinha sobre ele, para uma visão não-indiferente, que reconhece sua existência e ocupa-se em conhecê-la, exige a intencionalidade da consciência, assumindo uma posição reflexiva, questionadora, ou seja, um estado de espírito que faz do ente um objeto do pensamento: algo a ser investigado, estudado, analisado, classificado, descrito, interpretado e conhecido. Assim, é com o olhar da não-indiferença que dirigimos nossa atenção para a ‘noção de fundamento’. Situando-nos no lugar de quem reflete, questiona, de quem se posiciona intencionalmente frente a ela, desejamos adentrar nas fronteiras do universo semântico, semiótico, epistêmico e discursivo dessa noção. Com esse intuito, utilizamos uma história, contada por Sérgio Lessa em seu livro Para compreender a ontologia de Lukács (2007), como o ponto de partida, como a matéria-prima de nossa conversa. Como qualquer texto, 3 seja ele escrito ou audiovisual, a narrativa de Ikursk é rica de possibilidades semânticas, semiológicas e enunciativas. Cada um de nós pode extrair do seu conteúdo e de sua forma ou produzir, a partir deles, uma variedade de significados, de sentidos, de discursos, de verdades, de valores, de ideologias etc. Aqui, conforme já o dissemos, desejamos tão-somente ressaltar alguns aspectos pertinentes à idéia contida no universo conceitual da palavra fundamento. Segundo a narrativa, a tribo de Ikursk encontrava-se em uma situação real, concreta, objetiva, não imaginária. Os acontecimentos não são o relato delirante de um guerreiro medroso e covarde nem uma explicação mítica, resultante do consenso enlouquecido firmado entre as lideranças da tribo ou da criatividade de algum membro, como estratégia de explicação dos acontecimentos. Ao contrário, o sentimento de incerteza, de medo e de ameaça à vida dos membros da tribo era real: “um enorme tigre dente-de-sabre rondava a aldeia por aquela época, matando as criações e atacando as pessoas”. Os acontecimentos dramáticos e o estado de insegurança da tribo exigiam uma resposta imediata: matar o tigre, o que implicava a mobilização de todos os guerreiros e uma ação coletiva. Embora isso tivesse ocorrido, todas as iniciativas e empreendimentos pensados e efetivados não tiveram êxito: “vários dos mais bravos dos guerreiros já haviam se proposto a matá-lo, mas os resultados foram sempre trágicos: seus corpos foram encontrados devorados pelo felino”. 3 4 A propósito da noção de texto, ver: CARLOS, Erenildo João. O texto em questão: re-significação conceitual e implicações pedagógicas. Revista Conceitos, João Pessoa, v. 5, n.8, p. 61-73, jul./dez. 2002. Envolto nesse clima de medo coletivo, Ikursk temia ser a próxima vítima. Ele rejeitava a idéia de ser mais um guerreiro devorado pelo tigre dente-de-sabre. Sua recusa a caçar era um indício de que não tinha a intenção de se tornar um herói. Seu objetivo era mais modesto, orgânico, singular e pessoal: continuar vivo. Por isso lhe agradava muito mais a idéia de que “vale mais um covarde vivo, do que um herói morto”. Em lugar da honra, cultivava o valor da vida, razão por que se esquivara de procurar o feroz e temido felino. Nessas condições, não caçar era uma garantia da continuidade da vida. Essa visão e essa posição colocavam para Ikursk outro problema: como justificar para o grupo sua não adesão à luta? Se, de um lado, conservar sua vida singular implicava não caçar, de outro, sua aceitação no grupo exigia uma justificativa razoável que convencesse os chefes da tribo sobre a impossibilidade de sua participação no feito. Possivelmente, por sua posição de caçador, sua resposta ao problema não foi argumentativa, foi concreta: quebrou o seu machado. Uma conclusão óbvia para um guerreiro, trabalhador ou caçador: não se luta sem armas, não se trabalha sem ferramenta, não se caça sem machado. Mas um instrumento quebrado, como acontece com qualquer outra ferramenta destruída, perdida ou gasta com o uso e com o tempo, tende sempre a ser substituída por outra que cumpra a mesma função. Consciente disso, não bastava quebrar o instrumento existente, era necessário construir outro, porém sem as qualidades adequadas ao fim proposto, isto é, um machado que não servisse para caçar: grande e pesado. Foi o que fez: construiu um machado tão grande e pesado que, além de não servir para caça, demandou um longo tempo, suficiente para se livrar do feito heróico exigido pelo momento e almejado pelo grupo. Da mesma maneira que a situação concreta de insegurança vivenciada pela tribo e a resposta do grupo frente à situação, decidindo caçar e matar o tigre, foram apreendidas e entendidas de forma singular por Ikursk, também a sua posição desagradou ao grupo, instaurando-se, no seio da organização societária da tribo, um conflito entre ele e sua tribo, um problema de relação social: o que fazer para que Ikursk se adequasse às normas existentes e às decisões coletivas deliberadas pelo grupo? Certamente, a tribo primitiva estava diante de um problema pertinente às condições objetivas da vida em grupo, do existir em sociedade. Vale dizer que um conjunto de indivíduos dispersos (ou aglomerados num mesmo espaço), seguindo suas próprias orientações, interesses e desejos, não constitui um agrupamento humano que pode ser designado de grupo, ou, no caso, de tribo. Toda tribo tem suas regras e interesses comuns. A dissidência ou não cumprimento do que é consenso e tradição, geralmente, implica a adoção de procedimentos e práticas de reintegração ou de exclusão dos dissidentes. Por essa razão, a posição de Ikursk não foi vista com bons olhos. Ao constatar a sua conduta, a tribo decidiu por duas estratégias de ação: uma que visava convencê-lo a mudar de idéia e posição, e outra que definiria uma punição para ele, caso resolvesse manter o seu ato de desobediência. No primeiro caso, Ikursk foi convidado para conversar com o pajé. No diálogo, o pajé falou da insatisfação da tribo com relação ao seu comportamento. Visando persuadi-lo à mudança de posição, o pajé lançou mão de um mito compartilhado pela tribo: a lenda de Batolau, segundo a qual, a alma de um guerreiro que se recusasse a ir para a guerra ficava vagando sem rumo entre as estrelas após a sua morte. Além dessa narrativa 5 tradicional, como forma de demonstração da mudança de comportamento, o pajé pediu que ele queimasse o machado. Depois de ter escutado o pajé, Ikursk saiu silenciosamente da tenda. No dia seguinte, continuou a feitura do machado, como se a conversa não tivesse acontecido. Com esse comportamento, ratificava-se o ato de desobediência de Ikursk, evidenciando a incompatibilidade de sua posição com o padrão vigente de conduta esperado pelo grupo. Em face disso, foi efetivada a estratégia da punição, que consistiu na realização de uma tarefa típica das mulheres da tribo, a quebra do coco. Comparativamente, quebrar coco parecia ser uma atividade inferior à do guerreiro, pois, além de não exigir conhecimentos e habilidades socialmente sem prestígio – como a de um pajé ou de um guerreiro - era desprovida da possibilidade de, no seu exercício, produzir um ato heróico. Ora, o que, do ponto de vista da tribo, foi considerado uma punição, visando corrigir sua conduta indesejada, afirmando a prevalência dos interesses do grupo em relação aos individuais, na ótica de Ikursk, consubstanciava uma espécie de vitória, materializava o sucesso das alternativas que escolheu, isto é, a afirmação de suas necessidades vitais com relação às sociais. Parece que, na ordem de prioridade de Ikursk, predominava a conservação de sua vida. Pode-se dizer que, para ele, o estar vivo era a condição fundamental de sua existência social e histórica. Quero, ainda, chamar a atenção para outro aspecto da narrativa em exame: o fato óbvio de que não temos consciência de tudo o que acontece em torno de nós e de que os acontecimentos cotidianos e históricos não são simplesmente conseqüências de nossas intenções e atos individuais ou coletivos. Nossa existência é muito mais do que a consciência que temos dela. Os acontecimentos históricos são muito mais do que o resultado da soma de nossa atuação individual. Cada evento, por mais simples que aparente ser, é uma síntese complexa de múltiplas determinações. A complexidade da situação vivida coloca, no seu devido lugar, a consciência da obviedade destes fatos: a série de intenções e de ações tanto da tribo quanto de Ikursk, visando responder ao problema concreto em que se encontravam, era, de várias maneiras, posta em xeque. No caso da tribo, pensemos na insegurança gerada pela presença repentina de um tigre dente-de-sabre matando suas criações e membros; na incerteza da correção das decisões tomadas provocadas pela falta de êxito na execução dos objetivos traçados pelo grupo (caça e morte do tigre, perda de guerreiros, impotências dos mitos tradicionais em convencer os dissidentes); no conflito social produzido pela ruptura do padrão cultural vigente desencadeada pelo ato de desobediência ao cumprimento das normas e das decisões da tribo (posição singular e individual de Ikursk). No caso específico de Ikursk, pensemos no imprevisível encontro com o tigre, no desconhecimento de que o machado, construído para fugir do animal, foi a arma que, de fato, iria matá-lo e o motivo de sua repreensão e punição tornou-se o motivo de sua exaltação, honra e glória. Quantas inconsciências e intencionalidades marcam a vida de Ikursk e de sua tribo! Acerca da casualidade dos acontecimentos relacionados a Ikursk, Lessa assinala o seguinte: 6 1) Ilkursk foi nomeado chefe da tribo, pois ele se revelara, indiscutivelmente, o mais valioso dos guerreiros; 2) O machado foi reconhecido como detentor de poderes, pois apenas um instrumento com poderes divinos poderia transformar o medroso Ikursk no mais corajoso dos guerreiros; 3) A partir de então, a posse do machado determinaria quem seria o chefe da tribo. Foi assim que Ikursk pôde, ao deixar como herança ao seu filho o machado, tornar o reinado hereditário, inaugurando a dinastia dos Ikursks. Depreende-se de tudo o que dissemos que nossa existência individual e social, nosso cotidiano e história, cultura e formação societária são produzidos por uma série de acontecimentos, processos, relações, significados, sentidos, símbolos, práticas, normas, condutas etc. que, na maioria das vezes, escapam a nossa consciência. Esses dois fatos - o das condições reais da existência de algo e o do seu desconhecimento - não devem ser confundidos, pois a ausência da consciência de algo não significa a sua inexistência. Em outros termos, um determinado ente não existe ou passa a existir tão somente porque o conhecemos. Ao contrário, somente podemos conhecê-lo porque ele existe. Assim, pode-se dizer que o que funda a possibilidade do conhecimento é a existência daquilo que se pretende conhecer. Embora a consciência e a existência possam se relacionar, não comportam o mesmo significado, não são sinônimos. Estamos diante de um problema clássico, não somente da filosofia e da ciência, mas também da existência humana: o problema do fundamento. Vamos, então, pensar um pouco mais sobre o campo conceitual da palavra fundamento. Se observarmos detalhadamente a estória de Ikursk, notaremos que a palavra fundamento se associa a uma idéia central: algo somente acontece em função de certas condições. Isso significa dizer, em primeiro lugar, que elas precisam estar postas, isto é, ser anteriores ao evento em questão. Pensemos em alguns acontecimentos produzidos antes do feito heróico de Ikursk: a presença de um enorme tigre dente-de-sabre rondando a aldeia, a morte de vários guerreiros da tribo, a quebra do machado, a advertência sofrida, a punição sofrida etc. Essa série de ocorrências, além de outras, constituíram o cenário que produziu o ato principal da história: a morte do tigre. Assim sendo, pode ser dito que um dos atributos do conceito é a anterioridade das condições necessárias ao surgimento do evento. Isso quer dizer que nem todos os acontecimentos anteriores ao evento vinculamse diretamente a ele. Em outras palavras, nem tudo o que aconteceu antes da existência de um ente tem a ver, necessariamente, com a produção de sua existência. Pensemos em alguns fatos anteriores ao evento da morte do tigre, como por exemplo, na tradição do mito de Batolau, na divisão matinal das tarefas das mulheres relativas à quebra do coco, na morte ocasional de guerreiros, durante a atividade da caça, no uso do machado como arma de caça e ferramenta de trabalho, na prática argumentativa do pajé, no respeito às normas de conduta da tribo por parte de seus membros etc. Será que o conhecimento da anterioridade desses fatos nos permite dizer que eles estão atrelados especificamente ao ato heróico de Ikursk? É evidente que não. Obviamente, isso significa que somente os fatos anteriores ligados especificamente à rede complexa dos acontecimentos que viabilizaram o seu surgimento e que integram a sua constituição devem ser considerados como elementos fundadores de seu aparecimento. Em resumo, pode-se dizer que o campo conceitual do significante fundamento é constituído, basicamente, por uma série de três elementos enunciativos: a) condições postas; 7 b) anterioridade das condições; e c) feixe determinado de acontecimentos anteriores que se relacionam com a especificidade do evento. Entenda-se, portanto, por fundamento um conceito-chave que nos remete a uma série de condições anteriores e específicas, sem as quais um ente não pode existir. Uma implicação desse entendimento encontra-se na rejeição de algumas idéias associadas ao significante ‘fundamento’, como por exemplo: base, causa e princípio. Esses sentidos são geralmente expressos quando perguntamos aos nossos estudantes do Curso de Pedagogia e das licenciaturas o que eles entendem por fundamento. As respostas tendem a apresentar como correlato a idéia de base, de alicerce. Base ou alicerce nos faz lembrar uma construção: casa, edifício. Quem não conhece a metáfora bíblica da casa edificada sobre a rocha? Segundo a Bíblia, Jesus dizia que aquele que escuta a palavra de Deus e a observa assemelha-se a um homem que edificou sua casa sobre a rocha. Aquele, porém, que a ouve e não a pratica é semelhante ao homem que constrói sua casa sobre a areia. Quando vem a tempestade, a casa desmorona. Também é comum o uso da metáfora do edifício para descrever a organização da sociedade: a economia ou a produção constitui a base da sociedade; a ciência, a filosofia, a religião, o direito, a ideologia e a educação, por exemplo, a super-estrutura. Seja num caso ou no outro, o sentido dominante é o de base, alicerce, como algo sólido, firme, durável. Por isso, qualificado para sustentar algo, construir uma casa, um edifício, uma sociedade, uma nação, uma empresa, uma fé, uma argumentação, um discurso, um sentido ou uma verdade. Por sua vez, a noção de fundamento associada ao sentido de causa contém a idéia de relação linear e unívoca entre dois ou mais acontecimentos. Sobre isso, Abbagnano (1998, p. 124) afirma que a causalidade é, “em seu significado mais geral, a conexão entre duas coisas, em virtude da qual a segunda é univocamente previsível a partir da primeira”. Acrescenta, ainda: Historicamente, esta noção assumiu duas formas fundamentais: 1ª A forma de conexão racional, pela qual a causa é a razão do seu efeito e este, por isso, é a dedutível dela. Nessa concepção, a ação da causa é freqüentemente descrita como a de uma força que gera ou produz indefectivelmente o efeito. 2ª A forma de uma conexão empírica ou temporal, pela qual o efeito não é dedutível da causa, mas é previsível com base nela pela constância e uniformidade da relação de sucessão. Essa concepção elimina a idéia de força da relação causal. A ambas essas formas são comuns às noções de previsibilidade unívoca, infalível, do efeito a partir da causa e, portanto, também a de necessidade a relação causal. Nota-se que a idéia de causa reduz os fundamentos à unicidade de um aspecto das condições de existência de um dado ente. Isso faz com que se perca de vista a diversidade e complexidade de elementos em jogo que integram o feixe de relações envolvidas na produção do evento e se precarize o conhecimento que se tenha dele. Por último, outro sentido recorrente é o de fundamento como princípio ou origem. A recorrência dessa idéia geralmente vem carregada de uma semiótica construída na experiência cotidiana. Nesse sentido, são comuns alguns exemplos. O nascimento de um ser vivo qualquer demonstra que isso não aconteceria sem a existência de outros que o precedem e o fecundaram: os pais. Eles seriam a origem dos filhos, seu princípio. 8 Argumentação similar é constatada quando se tenta explicar a origem da vida ou da natureza. Como, no caso anterior, uma coisa não existe por si mesma. A natureza ou a vida no planeta tem o seu princípio em Deus. Há, na elaboração da idéia de fundamentos como princípio, uma presença muito forte do conteúdo religioso, ilustrada através de metáforas bíblicas, tais como: a mulher originou-se da costela do homem; o homem veio do pó e ao pó retornará; se toda obra tem um criador, Deus é o arquiteto do universo. Mas, além da associação como origem, o termo princípio também aciona um sentido de natureza epistemológica: o de fundamento como axioma, pressuposto, paradigma ou teoria. Geralmente, esse significado é ilustrado com exemplos da prática política, ideológica, pedagógica ou científica. Nesse sentido, é comum o uso de expressões do tipo: fundamentos da prática pedagógica; fundamentos da concepção de mundo socialista ou neoliberal; fundamentos teórico-metodológicos da pesquisa etc. Como se vê, estamos diante de um conceito-chave que nos permite indagar sobre uma diversidade de coisas e estabelecer uma variedade de significações. Outra implicação consiste em estabelecermos a distinção e a relação entre dois tipos de fundamentos: a série de condições concretas, reais, objetivas que possibilitam a existência de algo, independente de nossa consciência individual, e a série de condições subjetivas que visam justificar, explicar ou dar sentido a algo existente. Voltemos à estória de Ikursk e ilustremos a distinção e a relação entre esses dois tipos de fundamento. A realidade objetivamente posta, seja ela natural ou social, que préexiste e contempla as condições que viabilizam a existência de um dado ente ou evento, é algo independente da consciência subjetiva do indivíduo e exterior a ela. Na estória de Ikursk, são exemplos da realidade objetivamente posta: a pedra, o machado, o tigre, a selva, a morte dos guerreiros, a presença do pajé, a lenda de Batolau, o padrão de conduta socialmente aceito pelo grupo, a divisão social de trabalho entre homens e mulheres e as relações hierárquicas existentes na tribo. Sendo que há, nesse exemplo, duas dimensões da realidade que necessitamos distinguir: a natural, constituída pela pedra, o tigre, a selva, a morte e os próprios seres humanos integrantes da tribo; e a social, ilustrada por elementos como o machado, o guerreiro, o pajé, a divisão de trabalho, a hierarquia social, a lenda de Batolau e as normas de conduta. Diferentemente, o movimento do pensamento, que incide sobre a diversidade de faces e interfaces do complexo do mundo posto e sobre as escolhas que o sujeito faz para construir justificativas, explicações e sentidos, depende, de um lado, do acúmulo de experiências, práticas, conhecimentos e crenças produzidos pelo grupo e, de outro, da apropriação e do uso concreto que os indivíduos singulares fazem desse legado cultural no contexto das relações sociais em que vivem. Na perspectiva do grupo, parecem-me emblemáticas as razões que conduziram a tribo a enviar os guerreiros à selva e o estilo de argumentação utilizado pelo pajé para convencer Ikursk a lutar. A procura ao tigre indicava a existência de um saber acumulado que permitia ao grupo sobreviver por meio de outras vias de obtenção do alimento, além da coleta de frutos e raízes, ou seja, de que a tribo desenvolvera os saberes e as habilidades necessárias ao exercício da caça, o que implicava a existência de membros treinados e qualificados (os guerreiros), de instrumentos adequados (o machado), da ação planejada e coletiva 9 (trabalho coletivo), mas também do espírito corajoso e da adoção de uma consciência (ideologia) alimentada pelo sentido de responsabilidade social. O aspecto da ideologia, enquanto formadora da consciência individual e coletiva, ganha visibilidade na figura do pajé, na autoridade que exerce e no uso que fez da lenda de Batolau, como estratégia argumentativa para convencer Ikursk a “cooperar com o esforço coletivo para matar o tigre”. Na tradicional lenda de Batolau, o guerreiro aparece como a figura central. A mensagem contém um tom de intimidação, ao mesmo tempo em que apresenta uma razão mística, uma espécie de consolo celeste após a morte: o de ser acolhido pelos deuses em sua morada eterna. Destino pós-morte que não teriam aqueles membros da tribo que se negassem a guerrear. Diferentemente, o destino da alma do desertor seria o de ser abandonado pelos deuses e de ter uma alma sem tribo. Tornar-se-ia uma espécie de vagabundo celeste: alma que vagaria eternamente entre as estrelas. De que maneira, então, a interiorização da ideologia da tribo, acionada pela autoridade do pajé, por meio da tradicional lenda de Batolau, deveria ser demonstrada por Ikursk ao grupo? Como o pajé verificaria os efeitos da interpelação ideológica sofrida por Ikursk? Mediante um ato concreto, visível de arrependimento: ‘queimar o machado que ele estava construindo’. Expectativa que não se realizou, pois, depois de ter ouvido atentamente o pajé, Ikursk não contra-argumentou, contestando ou fazendo sua defesa, simplesmente ‘saiu da tenda do pajé sem nada responder e, para a consternação de todos, no dia seguinte, continuou a trabalhar no seu machado com o mesmo empenho de antes’. A ideologia não funcionou em sua tarefa de convencimento. Como vimos, na ótica de Ikursk, o fundamental era manter-se vivo: a conservação da própria vida predominou sobre o interesse coletivo. Sua decisão implicou em desobedecer às orientações gerais do grupo e em descobrir alternativas que pudessem justificar sua posição: quebrar o seu machado, construir outro sem a mínima possibilidade de uso para a caça, não se intimidar pelo poder de convencimento do pajé, manter-se firme em seu propósito, demorar o máximo a conclusão de sua obra. A escolha da luta pela continuidade de sua existência, como membro singular da tribo, resultou, de um lado, em um relativo domínio da arte de fazer machado e, de outro, em muita determinação, inteligência e conhecimento sobre as relações sociais vigentes entre os membros de sua tribo. Caso não dispusesse subjetivamente dessas condições, possivelmente teria grandes dificuldades para lidar com o conflito societário gerado ou mesmo não atingido sua meta. A posição de Ikursk nos permite assinalar dois tipos de conhecimentos constitutivos das condições subjetivas necessárias à efetiva realização de sua decisão: um sobre a natureza e outro sobre a sociedade. O primeiro se relacionava às propriedades da pedra e da madeira, onde conseguir tais matérias-primas etc. Qual a pedra e a madeira mais adequadas para construir um machado grande e pesado? O segundo consistia na forma de organização da tribo, suas normas de conduta, estratégias de tratamento de conflitos, mitos e crenças. Quais as possíveis reações das lideranças da tribo com relação ao seu ato de desobediência? Que punições poderia receber? Sem esses prévios saberes e habilidades, parece-me que o plano de Ikursk não poderia ser levado a cabo. Se as 10 normas fossem tão rigorosas, provavelmente ele teria sido expulso da tribo, fato que não ocorreu. Uma observação que me parece pertinente diz respeito ao fato de que esses dois tipos de conhecimentos, apropriados e utilizados inteligentemente por Ikursk, faziam parte do legado da tribo. Assim como ele, todos os demais membros da tribo poderiam acessar e utilizar esse patrimônio cultural, acumulado e transmitido de uma geração a outra, necessários à sobrevivência da tribo e à manutenção da ordem social do grupo. Isso significa dizer que eles não foram inventados pela mente brilhante do desobediente Ikursk. Com efeito, a consciência de que existe um mundo objetivo, exterior e independente da nossa subjetividade individual e de que ele pode ser conhecido acompanha o ser humano durante sua trajetória histórica e existencial. Entretanto, lembra-nos Pinto (1979) que, somente com a ciência, o conhecimento da realidade natural e social alcança um nível mais profundo, tanto com relação aos entes investigados quanto ao método a ser utilizado. No curso de nossa história, podemos observar que o alçar do pensamento humano ao plano da ciência gerou um ponto de inflexão e ruptura em relação aos fundamentos da consciência mítica e filosófica sobre o mundo. Isso foi ganhando visibilidade em vários escritos que emergiram no nascedouro da modernidade, a exemplo do Novo Organum, de Francis Bacon; do Método, de René Descarte, e do Curso de Filosofia Positiva, de Auguste Conte, fundamentais para a emergência e consolidação do pensamento científico, em geral, e para as ciências humanas, em particular. Sob o ponto de vista da filosofia, sobretudo a de cunho idealista, a discussão sobre os fundamentos tende a priorizar a consciência, o cogito. Já na ótica da ciência, é ponto pacífico o reconhecimento de que não se produz conhecimento sobre aquilo que não existe, isto é, o primado da existência das coisas, de sua realidade é condição sine qua non do conhecimento. Não obstante o pêndulo do debate sobre os fundamentos na história da filosofia e de a ciência tender ora para um lado, ora para o outro, o fato é que a existência precede a consciência, e o problema do fundamento permanece, inclusive nomeando, até hoje, disciplinas e departamentos 4 e suscitando, em diferentes campos de conhecimento, inúmeras discussões sobre sua crise ou pertinência epistemológica. Para aprofundarmos o assunto tratado, sugerimos a leitura da estória de Ikursk que aqui analisamos. UM RESULTADO INESPERADO Numa tribo primitiva, antes da descoberta dos metais, vivia Ikursk. Ikursk era, acima de tudo, um medroso. Um enorme tigre dente-de-sabre rondava a aldeia por aquela época, matando as criações e atacando as pessoas. Vários dos mais bravos dos guerreiros já haviam se proposto a matá-lo, mas os resultados foram sempre trágicos: seus corpos foram encontrados devorados pelo felino. Com o tigre à solta, entrar na selva era um ato de extrema coragem, e nosso heróico Ikursk resolveu se proteger de tal eventualidade. Para tanto, 4 Lembremo-nos de algumas disciplinas que integram o currículo deste curso: Fundamentos de Lingüística, Fundamentos Antropofilosóficos da Educação, Fundamentos Socio-históricos da Educação, Fundamentos Psicológicos da Educação e outras que, embora não tragam no seu título o significante “fundamento”, demarcam as fronteiras do seu conteúdo com o significado da palavra. A respeito dos departamentos, exemplificamos com o caso do Departamento de Fundamentação da Educação do Centro de Educação da UFPB. 11 quebrou seu machado e passou vários dias construindo um outro, enorme, tão grande e pesado que seria impossível carregá-lo por uma distância maior que umas poucas dezenas de metros. Tal arma, descomunal no peso e no tamanho, seria um forte argumento, esperava Ikursk, para que a tribo não o enviasse à floresta, posto que o herói seria presa fácil à agilidade do tigre. Quando o machado estava tomando a sua forma final e todos na tribo se deram conta de que Ikursk decidira não cooperar com o esforço coletivo para matar o tigre, o pajé chamou-o para uma conversa ao pé da fogueira. Contou a Ikursk a tradicional lenda de Batolau, o guerreiro que se negou a ir para a guerra junto com sua tribo, por isso, após a morte, abandonado pelos deuses, ficou vagando entre as estrelas. O pajé disse a Ikursk que seu comportamento desagradava aos deuses e que ele deveria queimar o machado que estava construindo. Ikursk saiu da tenda do pajé sem nada responder e, para consternação de todos, no dia seguinte, continuou a trabalhar no seu machado com o mesmo empenho de antes. De posse do novo machado, com o passar do tempo, Ikursk se sentia cada vez mais seguro. Durante meses, na divisão matinal das tarefas cotidianas, coube a Ikursk acompanhar as mulheres aos coqueirais para auxiliar, com o seu enorme machado, na quebra dos cocos. Assim, dia após dia, a decisão de Ikursk quebrar seu machado e substituí-lo por um outro, descomunal, alcançou o resultado almejado: nosso herói não foi enviado à selva. Algo inesperado, no entanto, aconteceu. Era um belo final de tarde. O sol se punha no horizonte, e uma brisa espantava o calor. Ikursk, já cansado, quebrava os últimos cocos do dia quando, ao levantar o machado, escutou uma respiração e sentiu no cangote um bafo que não era humano. Seu coração parou, e seu sangue congelou nas veias: era o terrível tigre que o atacava pelas costas. O pavor tomou conta do seu ser, o joelho fraquejou, a vista escureceu e um urro horrível, um misto de ai! e mãe!, que apenas os covardes sabem dar, ecoou pela aldeia. Nesse transe de pavor, sabendo que iria morrer nas garras do tigre, seu corpo se contraiu na antecipação da dor, e Ikursk caiu de costas. Sua hora havia chegado; não, contudo, com o conteúdo mortal que imaginara. Na contramão espasmódica que terminou por derrubar Ikursk, o machado, por mero acaso, descreveu uma trajetória que terminou na cabeça do tigre, matando-o. O nosso covarde herói, com seu descomunal machado construído propositadamente para ser o mais inadequado possível para lutar contra o tigre, realizara a proeza de que nenhum dos mais valentes e habilidosos guerreiros da tribo fora capaz. O felino estava morto, e sua ameaça, finda. A floresta voltava a ser um espaço pouco ameaçador, a aldeia poderia viver em paz com as suas criações. (LESSA, Sérgio. Para compreender a ontologia de Lukács. Ijuí: Editora UNIJUI, 2007. p. 19-21) REFLEXÃO: Revisitando o conteúdo lido. 12 Considerando a discussão empreendida sobre a noção de fundamentos, leia e reflita um pouco mais sobre a história de Ikursk. Após isso, redija um pequeno texto que contemple algum aspecto da estória e a noção de fundamentos. Em seguida, disponibilize o texto no fórum que abriremos na página do moodle para conversarmos sobre esse primeiro assunto da disciplina. 2. A SOCIEDADE COMO OBJETO DE ESTUDO Neste tópico, discutiremos, resumidamente, o aparecimento da sociedade como objeto de estudo das ciências sociais. Para tanto, faremos um percurso que começará com as contribuições de Francis Bacon e de Augusto Comte, passando por Emile Durkheim e Max Weber, e terminando com Karl Marx e Friedrich Engels. A adoção de caminho e escolha desses estudiosos foi apenas uma alternativa, uma escolha pessoal dentre outras. Não pretendemos discutir as idéias e investigações de cada um deles, mas simplesmente assinalar como o legado que deixaram participa do processo de desenvolvimento do campo de estudo da sociedade. Ao dialogar com os autores mencionados, destacamos algumas das idéias que eles enunciaram e selecionamos uma série de fragmentos de textos que escreveram a fim de que o conteúdo comentado e a discussão empreendida pudessem ser ampliados. É evidente que o estudo da sociedade não se restringe aos autores escolhidos e, muito menos, aos enunciados postos em cena neste tópico. Por isso considerem a discussão apenas como um ponto de partida para outras reflexões, estudos e aprofundamentos. FRANCIS BACON E O ESPÍRITO CIENTÍFICO Demarcando as fronteiras de uma nova concepção de mundo, Bacon 5 (1998, p.13) começa o Livro I com o seguinte aforismo: “o homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode saber mais”. O que diz esse enunciado? Evidentemente, muito. Destaquemos algumas idéias que ele registra como indícios do desenho do espírito científico emergente. Em primeiro lugar, o conhecimento humano a respeito da natureza das coisas é resultado da atividade que o homem realiza sobre ela. Aqui, sinaliza-se o abandono da idéia do conhecimento como um bem inscrito na alma ou adquirido por meio da revelação de um ser superior. Desencantam-se o conhecimento e seu processo. Destrona o deus grego, Hermes; erige o homem como o intérprete da natureza. Em segundo lugar, abandona a visão do conhecimento como o simples fruto da experiência empírica. O enunciado registra o descrédito de uma compreensão epistêmica que assenta o conhecimento como algo similar a uma fruta que se colhe de uma árvore ou a uma quantidade de água que se pega em um rio, isto é, o conhecimento não é visto como algo dado pela natureza. Bacon também rejeita o conhecimento como o produto da genialidade de uma mente brilhante que, pelo domínio da arte da criatividade imaginativa ou especulativa, faz com que o indivíduo transite no campo da lógica e da dialética argumentativa, capturando o movimento do real, sua racionalidade intrínseca e sua configuração concreta. Mero exercício reflexivo e especulativo, por meio do qual o sujeito contempla suas próprias idéias no mundo mental do movimento cognitivo do conceito. 5 Sobre a vida e a obra de Bacon, ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Francis_Bacon_(fil%C3%B3sofo). 13 14 Nada disto: nem experiência empírica, nem puramente intelectiva. O conhecimento ascende do chão da realidade para o pensamento, por isso é uma construção que se efetiva mediante a observação rigorosa dos fatos. Contudo, acrescenta no Aforismo II: “nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares de que dependem com igual medida tanto o intelecto quanto as mãos”. Ou seja, a observação eficaz dos fatos se faz pela mediação do uso adequado de instrumentos apropriados que potencializam a mente humana na apreensão e na compreensão do real. Pautado nesse horizonte, Bacon chama a atenção para alguns cuidados que se devem ter com relação à produção do conhecimento. Os cuidados são representados por meio da metáfora dos ídolos da tribo, da caverna, do foro e do teatro. Segundo ele, os ídolos impedem a mente humana de interpretar, de conhecer e de falar adequadamente sobre a realidade existente. Cada ídolo desenha um campo que abrange uma variedade de possíveis interferências e obstáculos ao conhecimento acerca do mundo existente. Daí porque argumenta em torno da urgência de desalojar os ídolos que provêm de alguma disposição predominante no estudo: excesso, zelo, magnitude ou pequenez dos objetos, predileção, interesses, competências e habilidades individuais, escolhas pessoais de certos aspectos em detrimento de outros, entusiasmos, educação, formação e experiência individual. De modo geral, o cuidado com o intelecto, representado na metáfora em exame, sinaliza o desejo de constituir um conhecimento que corresponda, o máximo possível, à objetividade dos fatos estudados. O que justificaria o nível elevado de exigência com o método e com a precisão do que se pensa e se diz a respeito dos entes investigados. Certo disso, Bacon não mede esforço no sentido de questionar as interferências oriundas da falta de consciência ou da própria decisão do indivíduo por não se preocupar em manter as distâncias necessárias entre o objeto de estudo, os resultados da investigação e as suas convicções, preferências, escolhas, motivos, interesses e abstrações. Para esse pensador, os obstáculos epistemológicos oriundos das tendências inerentes ao gênero humano, à subjetividade do indivíduo, aos acordos e consensos firmados, expressos por meio de uma linguagem convencionada, e produção de representações teóricas equivocadas da realidade são impedimentos ao conhecimento dos fatos tal como eles se configuram na realidade e a produção de afirmativas verdadeiras sobre o mundo existente. Com efeito, a exortação de Bacon prima pelo cuidado epistemológico, pela precisão das conclusões, pela produção do conhecimento fundado nos fatos, evitando, assim, “paralelismo, correspondências e relações onde não existem” (p. 23); ou, ainda, “ter por verdade o que prefere” (p.2). A metáfora dos ídolos é, em última instância, uma crítica contundente ao legado de conhecimento produzido até então e ao modo como foi produzido, indicando que, no geral, o Novo Organum é uma revisão crítica do saber existente e uma proposta de superação dos modelos de investigação. Em outras palavras, é um texto que materializa a emergência de um espírito de época que erige a existência como primado, ponto de partida e de chegada do conhecimento, que afirma a possibilidade de a natureza e a sociedade serem conhecidas e transformadas. Certamente, Bacon disponibiliza para a humanidade um legado que contribui, profundamente, para a consolidação do espírito científico, isto é, para uma consciência epistêmica que deseja apreender o mundo objetivo a partir dele próprio, da maneira como é ou está sendo. Por essa razão, sugerimos a leitura reflexiva dos fragmentos do Novo Organum que seguem. NOVO ORGANUM XLI Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. É falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe. XLII Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um – além das aberrações próprias da natureza humana em geral - tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza; seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo, preocupação e predisposto ou em ânimo equânime e tranqüilo; de tal forma que o espírito humano – tal como se acha disposto em cada um - é coisa vária, sujeita às múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universo. XLIII Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e ao consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras impostas de maneira imprópria e inepta bloqueiam espontaneamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias. XLIV Há, por fim, ídolos que imigram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas as que ora existem ou às filosofias e sitas dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, porque as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na sua universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência. Contudo, falaremos de forma mais ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano esteja acautelado. 15 BACON, Aforismo sobre a interpretação da natureza e o reino do homem. Livro I. In: Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Nova Atlântida. 4. ed., São Paulo: Nova Cultura, 1988. p. 21-22. (Coleção Os Pensadores) AUGUSTE COMTE E O PROGRESSO DO ESPÍRITO HUMANO Aproximadamente, após dois séculos da divulgação do Novo Organum, escrito por Bacon, Auguste Comte 6 publica o Curso de Filosofia Positiva, aprofundando e consolidando o espírito científico emergente, como o fundamento da epistemologia moderna. Assim como Bacon, Descartes e Galileu, Comte contribuiu, significativamente, para o desenvolvimento da ciência e do método científico, como o pressuposto necessário da produção do conhecimento verdadeiro sobre o mundo. A filosofia positiva, como costumava chamar, representava uma maneira de explicar a realidade natural e social, assentando-se na observação dos fatos. Diferentemente das filosofias de cunho teológico ou metafísico, a ciência não se interessava por questões relativas à investigação das causas primeiras e finais dos acontecimentos, fossem elas de natureza divina ou natural. Ao contrário, o foco de preocupação da filosofia positiva centrava-se no entendimento das condições de existência do fenômeno e na descoberta de sua legalidade objetiva. A inteligibilidade de um dado evento residia precisamente aí: “analisar com exatidão as circunstâncias de sua produção e vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de sucessão e de similitude” (p. 7). Por isso, a apreensão e a compreensão de um determinado ente exigiam o rigor da observação, da classificação e da descrição dos elementos constitutivos dessas condições, da articulação da série de fatos responsáveis pela produção concreta do ente investigado. Por essas e outras razões, Comte entendia que a filosofia positiva consubstanciava o estágio de desenvolvimento epistemológico mais avançado atingido pela espécie humana. Essa visão foi representada na metáfora dos três estados, que simboliza três modalidades históricas de filosofias ou, conforme denominei anteriormente, de epistemologias explicitadas no seu Curso de Filosofia Positiva. Sinteticamente, quero apenas destacar alguns dos enunciados mobilizados por Comte, contidos no rol de premissas que fundamentam a filosofia positiva. Em primeiro lugar, vale ressaltar que, diferentemente de Bacon, a crítica feita por Comte ao pensamento teológico e metafísico não se limitou a desqualificá-los como incapazes de explicar concretamente os entes e processos do mundo existente. Buscou situá-los nos seus respectivos momentos históricos, assim como no contexto evolutivo do espírito humano. Ao contextualizar a epistemologia teológica e a metafísica, inteligentemente, Comte desautoriza cada uma delas ao dizer que a primeira reflete a fase da infância do espírito humano; e a segunda, como intermediária, ponto de mediação, de passagem para a verdadeira e legítima filosofia, isto é, positiva, única em condições objetivas de construir explicações sobre os fatos por meio da observação dos próprios fatos. 16 6 Sobre a vida e a obra de Comte, ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Auguste_Comte. Em segundo lugar, Comte introduz a idéia de que somente se conhecem os fatos quando se considera a sua história. Aqui, duas observações são pertinentes. A compreensão que Comte tem da história firma-se no pressuposto da linearidade e do progresso. A visão linear e progressiva da história desconhece o retrocesso qualitativo dos fatos e das idéias. Além disso, ao entender que os fatos perdem sua inteligibilidade fora da história, Comte acaba por reconhecer, a seu modo, que a história é um dos constituintes das condições de existência dos fenômenos humanos. Nesse sentido, o método positivo, ao observar um fato determinado, não deveria investigá-lo isoladamente, mas sim, verificar a série de outros fatos particulares, anteriores aos examinados e vinculados a ele, integrados ao feixe de acontecimentos concretos produtor das condições de sua existência. O exame da anterioridade desses fatos, de suas conexões e ligações específicas com o ente estudado permite ao investigador explicar o fenômeno. Em terceiro lugar, quando Comte estabelece a diferença entre os três tipos de epistemologia, quando entende que cada uma epistéme somente tem sentido no contexto geral do desenvolvimento e progresso do espírito humano, ou, ainda, quando pressupõe que a explicação dos fatos exige a ligação entre diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, nota-se que ele recorre às categorias particular e geral como necessárias à produção do conhecimento acerca do mundo. Considerando essa perspectiva epistêmica, pode-se dizer que as condições de existência dos fatos - sejam eles naturais ou sociais - são compostas por meio de uma rede complexa de acontecimentos, processos e relações particulares e gerais que, não obstante estejam ligados também a outros eventos, necessariamente estão atrelados, interligados organicamente àqueles fatos delimitados como objetos de estudo. Por fim, resta-nos acrescentar que uma contribuição fundamental de Comte para o desenvolvimento da ciência foi sua compreensão de que a sociedade deveria se constituir um objeto de estudo. Segundo ele, todos os ramos do conhecimento estariam contemplados pela filosofia positiva quando, além da matemática, da astronomia, da física, da química e da fisiologia, fosse introduzido o campo do social. Nesse sentido, argumenta Comte (1991, p. 9): Eis a grande, mas evidentemente, única lacuna que se trata de preencher para constituir a filosofia positiva. Já agora que o espírito humano fundou a física celeste; a física terrestre, quer mecânica, quer química; a física orgânica, seja vegetal, seja animal, resta-lhe, para terminar o sistema de observação, fundar a física social. Tal é hoje em várias direções capitais, a maior e a mais urgente necessidade de nossa inteligência. Comte notava que a sociedade era um dos campos ainda não ocupados pela ciência. Não obstante a ascensão progressiva do espírito científico e de sua consumação como paradigma epistêmico dominante, as análises sobre a física social estavam impregnadas pelo espírito filosófico, teológico e metafísico. Isso exigia a inclusão das relações sociais entre os indivíduos e a sociedade no universo de interesse da ciência. Em outros termos, Comte defendeu a premissa de que a sociedade deveria ser estudada com o mesmo rigor dedicado à investigação da natureza. Vejamos, sinteticamente, o que ele (1991, p. 03-04) diz sobre cada uma delas. Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva, é indispensável ter, de início, uma visão geral sobre a 17 marcha progressiva do espírito humano, considerado em seu conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida por sua história. Estudando assim o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de atividade, desde o seu primeiro vôo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resultantes de um exame do passado. Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega, sucessivamente, em cada uma de suas investigações, três modos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico, finalmente, o método positivo. Daí três sortes de filosofias, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo: a segunda, unicamente destinada a servir de transição. No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. No estado metafísico, o espírito humano, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja experiência consiste, então, em determinar para cada um uma entidade correspondente. Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de se obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir. O sistema teológico chegou a mais alta perfeição de que suscetível quando substituiu, pela ação providencial de um ser único, o jogo variado de numerosas divindades independentes, que primitivamente tinha sido imaginado. Do mesmo modo, o último termo do sistema metafísico consiste em conceber, em lugar de diferentes entidades particulares, uma única grande entidade geral, a natureza, considerada como fonte exclusiva de todos os fenômenos. Paralelamente, a perfeição do sistema positivo à qual este tende sem cessar, apesar de ser muito provável que nunca deva atingí-la, seria poder representar todos os diversos fenômenos observáveis como casos particulares de um único fato geral, como a gravitação o exemplifica. 18 EMILE DURKHEIM E O ESTUDO DOS FATOS SOCIAIS 7 A emergência da sociedade, como campo de estudo, isto é, de investigação pautada no rigor metodológico da ciência, exigia, a um só tempo, o seu reconhecimento como uma espécie de disciplina, distinta das existentes e voltada para estudos sobre a natureza, e a necessidade de definição do que de fato seria o objeto específico desse novo ramo da ciência, inaugurado e denominado por Comte de Física Social. Vimos que, desde Bacon e Comte, a filosofia positiva entendia que o conhecimento verdadeiro é construído a partir da observação rigorosa dos fatos. Seguindo os passos dos seus antecessores, pautando-se no legado secular do Novo Organum e do Curso de Filosofia Positiva, Emile Durkheim assumiu a tarefa de contribuir para a formulação dos fundamentos metodológicos dessa nova ciência. Para ele, um dos passos centrais da constituição do campo de estudo sobre a sociedade consistia em determinar, com clareza e precisão, o objeto específico da Física Social, isto é, da Sociologia ou ciência da sociedade. Em outros termos, se a regra fundamental da ciência positiva era a de observar rigorosamente os fatos a fim de descrevêlos, classificá-los e conhecê-los, no caso da sociedade, qual seria o fato a ser observado? O que seria descrito e classificado? Perguntas como essas faziam com que Durkheim pensasse sobre a natureza desse novo fato, o social. Portanto, definir o fato social seria a tarefa principal de uma reflexão metodológica, seria a regra primordial do método sociológico. Durkhiem elaborou uma argumentação que, logo de saída, procura desconstruir uma perspectiva subjetivista - e até mesmo intersubjetiva - do conceito de fato social. Esse entendimento é expresso por meio de sua rejeição ao interesse social como o critério em torno do qual o significado de fato social teria uma precisão conceitual. Ele indaga: O que estaria fora do interesse da sociedade? Nada. Esse critério seria tão abrangente, tão genérico que abarcaria uma série de acontecimentos e ações ligadas a campos de estudos diversos, como o da biologia e o da psicologia. Para Durkheim, esse critério não seria pertinente, pois sua imprecisão, com efeito, geraria tanto a impossibilidade de se observar um fato determinado na sociedade quanto a perda da identidade do próprio campo de estudo da sociologia. Ora, se não são os aspectos sociais vinculados à subjetividade do indivíduo nem a intersubjetividade do grupo, o que define o fato social? Quais seriam, ao fim e ao cabo, as características indispensáveis à sua existência? Mantendo-se alinhado ao espírito científico e à tradição de sua época, Durkheim acaba por priorizar dois aspectos como fundantes do fato social, a saber: a exterioridade e a coercividade. Um fato é, em última instância, uma coisa, isto é, algo que existe independente da consciência do indivíduo e exterior a ela. Nesse sentido, são exemplos de coisas tanto o sol, a lua, as estrelas, o planeta, o mar, o vento, a luz, o tempo, o movimento, as plantas e os animas quanto as crenças, os costumes, a linguagem, a educação, a economia, a religião etc. Um e outro são coisas. Por isso, estão para além das vontades e dos desejos individuais. 7 http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89mile_Durkheim 19 A objetividade da forma e do conteúdo social confere à sociedade uma existência tão concreta e indiscutível que seria comparada à da própria natureza. Natureza e sociedade, nesse sentido, seriam fenômenos da mesma ordem: existem independentemente do assentimento, do consentimento e das consciências singulares e coletivas. Ora, se o fato social é uma coisa, isto é, existe de forma distinta da existência do indivíduo, ele pode ser observado e conhecido. A coisa é, para o observador, algo que não é ele. A coisa é algo exterior a ele, outro ser. Por isso, o fato social é visto como uma coisa. Em função disso, pode-se dizer que os papéis sociais, as crenças religiosas, os códigos morais, os signos sociais, as moedas não podem ser confundidos com os indivíduos que exercem os papéis sociais e fazem uso das produções culturais de uma dada sociedade. Além da exterioridade, outra característica fundante do fato social é a coercividade. Esse aspecto é facilmente identificado quando recusamos fazer algo que fuja dos parâmetros estabelecidos socialmente. O que acontece? Sentimos a força da sociedade sobre nós. A impositividade que o social exerce sobre o indivíduo, nesses termos, não tem um sentido de negatividade, a exemplo da violência. Se eu levo meu filho para ir ao cinema ou ao campo de futebol, compro um saco de pipoca e uma coca-cola para consumirmos durante o tempo do filme, ou do jogo, certamente ele não considerará esse acontecimento algo ruim, negativo. Ao contrário, se sentirá feliz. Entretanto, as ações de ir ao cinema ou ao campo de futebol, de comer pipoca ou de tomar coca-cola são tipos de ação que, independente do assentimento individual ou coletivo, exercem sobre mim, sobre o meu filho e todos de uma dada sociedade uma força determinada em função de sua aceitação e realização. Portanto, os fatos sociais são “maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais”, assim como de exercer “uma força imperativa e coercitiva” sobre o indivíduo “em virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não” (Durkheim, 1999, p. 3). É essa série de fatos que devem receber, para Durkheim, o adjetivo de social e constituir o objeto empíricoconceitual da Sociologia. O QUE É UM FATO SOCIAL? 20 Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, importa saber quais fatos chamamos assim. A questão é ainda mais necessária porque se utiliza essa qualificação sem muita precisão. Ela é empregada correntemente para designar mais ou menos todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade, por menos que apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social. Mas, dessa maneira, não há, por assim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser chamados sociais. Todo indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente. Portanto, se esses fatos fossem sociais, a sociologia não teria objeto próprio, e seu domínio se confundiria com o da biologia e da psicologia. Mas, na realidade, há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras ciências da natureza estudam. Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou de cidadão, quando executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que estão definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realidade deles, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu que os fiz, mas os recebi pela educação. Aliás, quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, as crenças e as práticas de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se elas existiam antes dele, é que existem fora dele. O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc. funcionam independentemente do uso que faço deles. Que se tomem um a um todos os membros de que é composta a sociedade; o que precede poderá ser repetido a propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais. Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não. Certamente, quando me conformo voluntariamente a ela, essa coerção não se faz ou pouco se faz sentir, sendo inútil. Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses fatos, e a prova disso é que ela se afirma tão logo tento resistir. Se tento violar as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver em tempo, ou para anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal, se tiver sido efetuado e for reparável, ou para fazer com que eu o expie, se não puder ser reparado de outro modo. Em se tratando de máximas puramente morais, a consciência pública reprime todo ato que as ofenda através da vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e das penas especiais de que dispõe. Em outros casos, a coerção é menos violenta, mas não deixa de existir. Se não me submeto às convenções do mundo, se, ao vestir-me, não levo em conta os costumes observados em meu país e em minha classe, o riso que provoco, o afastamento em relação a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coerção, mesmo sendo apenas indireta, continua sendo eficaz. Não sou obrigado a falar francês com meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas é impossível agir de outro modo. Se eu quisesse escapar a essa necessidade, minha tentativa fracassaria miseravelmente. Industrial, nada me proíbe de trabalhar com procedimentos e métodos do século passado; mas, se o fizer, é certo que me arruinarei. Ainda que, de fato, eu possa libertar-me dessas regras e violá-las com sucesso, isso jamais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar contra elas. E ainda que elas sejam finalmente vencidas, demonstram suficientemente sua força coercitiva pela resistência que opõem. Não há inovador, mesmo afortunado, cujos empreendimentos não venham a deparar com oposições desse tipo. Eis, portanto, uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos constituem, portanto, uma espécie nova, e é eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Essa qualificação lhes convém; pois é claro que, não tendo o indivíduo por substrato, eles não podem ter outro senão a sociedade, seja a sociedade política em seu conjunto, seja um dos grupos parciais que ela encerra: confissões religiosas, escolas políticas, literárias, corporações profissionais, etc. Por outro lado, é a eles só que ela 21 convém; pois a palavra social só tem sentido definido com a condição de designar unicamente fenômenos que não se incluem em nenhuma das categorias de fatos já constituídos e denominados. Eles são, portanto, o domínio próprio da sociologia. DURKHEIM, Émile. O que é fato social In: ______. As regras no método sociológico. São Paulo. Martins Fontes, 1999. p. 01-04. MAX WEBER 8 E AÇÃO SOCIAL Weber coloca o indivíduo e sua subjetividade no centro do objeto de estudo da sociedade. Segundo ele, somente entendemos os acontecimentos sociais, quando compreendemos os motivos pelos quais os indivíduos agem. Porém, isso não é tudo. Há, nesse processo, outro elemento, tão importante quanto o sentido da ação: aquele em função de quem o sujeito orienta sua ação. O motivo do sujeito e quem ele toma como referência são as duas características fundamentais do objeto de estudo. Diferentemente de Durkheim, que tomou como pressuposto da definição desse objeto a coisa, daí porque chamou de fato social, Weber toma como ponto de partida o indivíduo, definindo, portanto, o objeto de investigação da sociedade como sendo a ação social. Nem uma outra ação ou contato devem ser considerados como social. Social é, nessa ótica, um adjetivo restrito, exclusivo das ações, cujo sentido se orienta em função de terceiros. Quanto aos sujeitos em função dos quais agimos, Weber ressalta que eles podem fazer parte ou não do nosso cotidiano e da nossa história atual. A determinação do tempo, do espaço e do contexto da referência não é o aspecto central considerado por Weber na formulação de seu conceito de ação social. Não importa qual o lugar da história onde encontramos o indivíduo em função do qual orientamos nossa ação. O importante é que ele exista ou tenha existido. É ele, em detrimento do contexto em que se situa ou se situou, o fundamento da ação. É em função de um terceiro que agimos. Quanto ao sentido social da ação, Weber defende que ela pode ser de natureza racional e irracional. Cada uma se subdivide em dois gêneros: a racional, que se refere a fins e a valores; e a irracional, à emoção e à tradição. Um desdobramento do conceito de ação social e de sua tipologia encontra-se na análise das relações de dominação existentes no contexto social. Aqui, Weber também se diferencia de Durkheim, pois, enquanto este não entendia a conformação do indivíduo aos padrões sociais vigentes, como um processo cultural e político ruim, uma vez que há, segundo ele, necessidade de todo indivíduo adaptar-se à ordem vigente, imposta pela natureza coercitiva dos fatos sociais, Weber, por sua vez, considerava que certos tipos de relações sociais são, indiscutivelmente, pautados no horizonte da dominação, em que um sujeito busca intencionalmente controlar o outro. Nesse caso, estamos diante do exercício do poder de um sobre o outro, ou de um grupo sobre o outro, o que se caracteriza não por uma objetividade difusa e universal, que atinge a todos indistintamente, mas por uma ação subjetiva determinada, realizada por um 22 8 http://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Weber. ou mais indivíduos, ou por uma ação intersubjetivamente coletiva, deflagrada deliberadamente por grupos ou classes que se encontrem no controle legítimo da sociedade. A legitimidade do exercício do poder encontra-se na probabilidade de um número determinado de indivíduos se submeterem a um conjunto de regras e normas determinadas, por conta de se encontrarem razoavelmente motivados para aceitá-las e realizá-las. Os motivos que justificariam o estado de obediência de um indivíduo a outro, ou de um grupo a outro, seriam os que mencionamos anteriormente: racionais, associados a fins e a valores; e irracionais, relativos a emoções e tradições. Em função deles, Weber (1994, p. 141) identifica três tipos puros de dominação legítima: 1. de caráter racional: baseada na crença na legitimidade das ordens construídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a dominação (dominação legal), ou 2. de caráter tradicional: baseada na crença cotidiana na santidade das tradições vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições, representam a autoridade (dominação tradicional), ou, por fim, 3. de caráter carismático: baseada na veneração extraordinária da santidade, do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens, por esta, reveladas ou criadas (dominação carismática). Se, do ponto de vista conceitual, a referência e o motivo da ação social são características necessárias à construção epistemológica do objeto sobre o qual os estudos e as investigações sociais devem se debruçar, do ponto de vista concreto, tanto a referência quanto o sentido somente ganham inteligibilidade quando situados no contexto social e histórico que lhe é peculiar, a exemplo dos tipos de dominação. Pensemos na dominação de caráter racional. Esse tipo está diretamente relacionado a uma organização societária centrada no princípio da impessoalidade, o que predomina nas sociedades modernas, regidas, sobretudo, pelo poder do Estado democrático e de direito. O caráter pessoal da obediência, cujo teor caracteriza a dominação tradicional e carismática, é dissolvido no cenário da divisão política das competências e atribuições. Se consultarmos a nossa Constituição Federal de 1988, notaremos que ela distribui uma série de responsabilidades e prerrogativas a diferentes e diversos sujeitos e instituições. De modo que tanto o sujeito quanto as instituições somente podem fazer aquilo que está no âmbito de sua competência, não se confundindo, portanto, aquele que exerce a função (pessoa) com a função exercida (impessoal). Se considerarmos um movimento social, um partido político ou uma instituição religiosa, notaremos que a dominação centra-se, sobretudo, no carisma do líder. Do ponto de vista histórico, a dominação tradicional e a carismática são tipos de dominação que predominaram nas organizações societárias da antiguidade e da Idade Média. Na antiguidade, lembremo-nos do encantamento produzido por Platão, Aristóteles e Sócrates. Na Idade Média, pela liderança dos santos da Igreja. Do exposto, pode-se observar que o legado weberiano contribui para a compreensão de que a sociedade e sua história são feitas pela ação intencional de um indivíduo sobre outro e que o conteúdo do sentido que leva o indivíduo a agir somente pode ser razoavelmente entendido quando relacionamos o referido sentido a seu contexto histórico específico. Nesse sentido, a ação social será entendida quando investigamos sobre a subjetividade e a história do sentido que orienta a ação do indivíduo. 23 Com efeito, diferentemente de Durkheim, Weber entende que a relação social é definida como sendo eminentemente relações entre indivíduos, e não, entre indivíduo e coisa. Esse fenômeno social acontece mesmo quando entramos em contato com as coisas. As coisas, isto é, os bens e serviços, são tão-somente meios pelos quais os indivíduos se relacionam. CONCEITO DE AÇÃO SOCIAL 24 A ação social (incluindo omissão ou tolerância) orienta-se pelo comportamento de outros, seja este passado, presente ou esperado como futuro (vingança por ataques anteriores, defesa contra ataques presentes ou medidas de defesa para enfrentar ataques futuros). Os “outros” podem ser indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade indeterminada de pessoas completamente desconhecidas (“dinheiro”, por exemplo, significa um bem destinado à troca, que o agente aceita no ato de troca porque sua ação está orientada pela experiência de que muitos outros, porém desconhecidos e em número indeterminado, estarão dispostos a aceitá-lo também, por sua parte, num ato de troca futuro). Nem todo tipo de ação – também de ação externa – é “ação social” no sentido aqui adotado. A ação externa, por exemplo, não o é, quando se orienta exclusivamente pela expectativa de determinado comportamento de objetos materiais. Não o é, por exemplo, o comportamento religioso, quando nada mais é do que contemplação, oração solitária etc. A atividade econômica (de um indivíduo) unicamente o é na medida em que também leva em consideração o comportamento de terceiros. De maneira muito geral e formal isso já acontece, portanto, quando ela tem em vista a aceitação por terceiro do próprio poder efetivo de disposição sobre bens econômicos. De um ponto de vista material quando, por exemplo, durante o consumo, também leva em consideração os futuros desejos de terceiros, orientando-se por estes entre outros fatores, as próprias medidas para “poupar”. Ou quando, na produção, faz dos futuros desejos de terceiros a base de sua própria orientação etc. Nem todo tipo de contato entre pessoas tem caráter social, senão apenas um comportamento que, quanto ao sentido, se orienta pelo comportamento de outra pessoa. Um choque entre dois ciclistas é um simples acontecimento do mesmo caráter de um fenômeno natural. Ao contrário, já constituiriam “ações sociais”, mas tentativas de desvio de ambos e o xingamento ou a pancadaria ou a discussão pacífica após o choque. (...) A ação social, como toda ação, pode ser determinada: 1) de modo racional referente a fins por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como “condições” ou “meios” para alcançar fins próprios. Ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; de modo racional referente a valores: pela crença consciente do valor - ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independente do resultado. 3) de modo afetivo, especialmente emocional: por afetos ou estados emocionais atuais, 4) de modo tradicional: por costume arraigado. (...) Por “relação” social entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto ao seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência. A relação social consiste, portanto, completa e exclusivamente, na probabilidade de que aja socialmente numa forma indicável (pelo sentido), não importando, por enquanto, em que se baseia essa probabilidade. WEBER, Max. Ação social. In: Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. V. 1. 3. ed. Brasília: Editora da UNB, 1994. p.13-16. KARL MARX E FRIEDRICH ENGEL E A CENTRALIDADE DO TRABALHO Embora contemporâneos de Durkheim e de Weber e, portanto, partícipes do espírito científico da época, Marx e Engels 9 assentaram suas investigações sobre o mundo dos homens num fundamento social, histórico e, conseqüentemente, epistemológico diferente da perspectiva durkheimiana e da weberiana. Uma das principais contribuições desses estudiosos foi a defesa intransigente da centralidade do trabalho como atividade humana fundadora da sociedade. Os seres vivos, em geral, sofrem, obrigatoriamente, o enquadramento das condições postas pelo ambiente natural. Eles não criam os meios necessários a sua subsistência, limitam-se, simplesmente, à situação objetiva de estar no mundo, ajustando-se a ele, subtraindo dele a matéria-prima orgânica que funcionará como meio de reprodução de sua espécie. O homem age de outra maneira: dimensiona a natureza em função de suas necessidades vitais, transformando-a segundo a perspectiva da reprodução da vida singular do indivíduo, do grupo e da espécie. Graças ao trabalho, portanto, o homem se faz homem, modifica a natureza, cria as condições de sua existência. Uma das especificidades da relação entre o homem e a natureza encontra-se no uso de instrumentos produzidos com fins determinados: o arco, a flecha, o machado, o arado, a pólvora, a arma de fogo, o relógio, a máquina a vapor etc. A produção e a invenção de ferramentas ampliaram a capacidade humana de alterar a natureza e o curso da própria história humana. Para cada necessidade sentida, para cada matéria a ser transformada ou conhecida, um instrumento foi produzido, de acordo com as condições de desenvolvimento atingidas. No processo de trabalho, a necessidade orgânica que acionou a atividade produtiva dos homens em função do seu atendimento é a mesma que engendrou a reflexão sobre a condição humana e a busca das alternativas possíveis para solucionar os problemas emergentes do ato de viver. Com efeito, a intervenção sobre a natureza exigia o movimento concomitante da produção de instrumento e da elaboração do conhecimento, vinculando inexoravelmente um ao outro. O conhecimento é uma das forças produtivas fundamentais da transformação da natureza. Graças a ele, os instrumentos são produzidos, a natureza é transformada e as necessidades atendidas. Além disso, para Marx, a transformação da natureza implica, de um lado, a divisão social do trabalho, que inicialmente ocorre a partir do sexo, da idade, da experiência, da habilidade e, posteriormente, pelos critérios de especialização. Isso faz do trabalho uma atividade eminentemente social, resultando daí o entendimento de que o trabalho não é individual, solitário. Ele é sempre coletivo e social, quer no seu sentido imediato, quando um indivíduo singular realiza uma tarefa particular, quer no seu sentido temporal, quando o 9 http://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Marx. 25 26 que se faz no presente somente é possível graças ao desenvolvimento das ações singulares e coletivas das gerações passadas, criadoras das condições que viabilizam a atividade atual. De outro lado, o ato do trabalho gera um excedente que, nas sociedades primitivas, era usufruído por todos, e nas de classe, apropriado e acumulado por uma minoria. A apropriação privada do excedente da produção coletiva criou as condições do aparecimento da propriedade privada e, conseqüentemente, do surgimento das sociedades de classes e da desigualdade entre os homens, entre a cidade e o campo, entre os países. Em cada fase da história da humanidade, isto é, na Antiguidade, na Idade Média e na Modernidade, e do desenvolvimento das forças produtivas, encontram-se tipos de classes sociais diferentes: escravos e senhores, servos e amos, operários e burgueses. Para cada forma histórica de trabalho, um par de classes fundamental correspondente: trabalho escravo, trabalho servil e trabalho assalariado. Atualmente, vivemos sob a égide do trabalho assalariado. Nossa economia capitalista funda-se sobre a dualidade: burguesia e proletariado. Uma dualidade ontológica do sistema, que se traduz no estabelecimento de relações de exploração econômica e de dominação cultural e política específica ao sistema. Graças a esse processo, o capital é reproduzido, e o trabalho é alienado. A reprodução das relações de produção e, conseqüentemente, das condições culturais e políticas da exploração requer a presença do Estado como mediador dos interesses do capital. Nesse contexto, o Estado, o poder que possui e os aparelhos mediante os quais ele exerce o seu poder tornam-se espaços de luta e de conflito. A conquista do Estado é garantia da manutenção dos interesses de classes, seja no sentido do capital, seja do trabalho. Tendo em vista esse processo geral de constituição da sociedade, a história humana seria construída por meio do trabalho e, conseguintemente, por meios das lutas entre os grupos e as classes que disputam a propriedade dos meios de produção, o usufruto da riqueza e o controle político de sua reprodução. A luta pela superação da desigualdade, da exploração e da dominação política marca a história e move a produção de novas paisagens sociais. Excedente, apropriação privada, propriedade privada e classes sociais: eis uma série de desdobramentos da atividade do homem. Uma coisa que queremos ressaltar, aqui, com o destaque desses aspectos da visão marxiana, é que a história humana é feita pelos próprios homens. Em outros termos, a tese de que o homem é sujeito significa que é por meio de sua atividade concreta que a natureza é transformada, que os instrumentos são produzidos, que o conhecimento é elaborado, que a sociedade é constituída, que a história é feita. Nesse sentido, uma das premissas do pensamento marxista é de que não existe história sem homem e homem sem história, de que os acontecimentos sociais são produtos da atividade humana e de que os conhecimentos, elaborados segundo necessidades e possibilidades concretas, são eminentemente sociais e históricos. Portanto, história, sociedade, cultura e conhecimento não são dados pela natureza. A complexidade da sociedade exige uma investigação acurada sobre o mundo do trabalho, da cultura e da política, pois cada um dos acontecimentos produzidos em seu seio é uma “síntese de múltiplas determinações”. Embora cada campo tenha uma particularidade e complexidade própria, sua existência singular relaciona-se à do outro campo. Embora haja uma determinação recíproca entre trabalho, cultura e política, é o trabalho que é concebido como o complexo social fundador da sociabilidade humana. Por isso, atribui-se a ele um peso maior, uma prioridade ontológica com relação aos demais. Metodologicamente falando, isso significa dizer que o trabalho e as classes sociais são conceitos epistemológicos chaves para o entender e a explicação do modo de existência das relações sociais de uma determinada sociedade. A fim de ilustrar a tese da centralidade do trabalho e de seus desdobramentos, ou seja, da apropriação privada do excedente da produção coletiva, da origem das classes sociais e da luta empreendida entre os que desejam se tornar o grupo ou classe dominante, como motor da história e constituinte da organização das sociedades humanas, vejamos um fragmento do Manifesto do Partido Comunista, escrito por Marx e Engels em 1848. BURGUESES E PROLETÁRIOS A história de todas as sociedades que já existiram é a história de lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, chefe de corporação e assalariado; resumindo, opressor e oprimido estiveram em constante oposição um ao outro, mantiveram sem ininterrupção uma luta por vezes aberta - uma luta que todas as vezes terminou com uma transformação revolucionária ou com a ruína das classes em disputa. Nos primeiros tempos da história, por quase toda parte, encontramos uma disputa complexa da sociedade, em várias classes, uma variada gradação de níveis sociais. Na Roma antiga, temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos. Na Idade Média, senhores feudais, vassalos, chefes de corporação, assalariados, aprendizes, servos. Em quase todas estas classes, mais uma vez gradações secundárias. A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos das classes. Estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta no lugar das antigas. Nossa época - a época da burguesia – distingue-se, contudo, por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade se divide cada vez mais em dois grandes campos inimigos, em duas classes que se opõem frontalmente: a burguesia e o proletariado. Dos servos da Idade Média, surgiram os burgueses privilegiados das primeiras cidades; a partir destas primeiras cidades burguesas, desenvolveramse os primeiros elementos da burguesia. O descobrimento da América, a circunavegação da África prepararam o terreno para a recém-surgida burguesia. As Índias Orientais e os mercados chineses, a colonização da América, o comércio com as colônias, o aumento dos meios de troca e das mercadorias em geral deu [Sic] ao comércio, à navegação, à indústria um impulso nunca antes conhecido e, desse modo, um desenvolvimento rápido ao elemento revolucionário na sociedade feudal esfacelada. O sistema feudal ou corporativo, sob o qual a produção industrial era monopolizada por corporações fechadas, já não bastava mais para a demanda em crescimento dos novos mercados. O sistema de manufatura veio ocupar este posto. Os chefes de corporação foram afastados pela classe média manufatureira; a divisão do trabalho entre os vários grupos corporativos desapareceu frente à divisão de trabalho em cada oficina. 27 Nesse meio termo, os mercados continuaram sempre a crescer, a demanda sempre a aumentar. A manufatura já não era suficiente. Em conseqüência disso, o vapor e as máquinas revolucionaram a produção industrial. O lugar da manufatura foi tomado pela indústria gigantesca moderna; o lugar da classe média industrial, pelos milionários da indústria, líderes de todo o exército industrial, os burgueses modernos. A indústria moderna estabeleceu o mercado mundial, para o qual a descoberta da América havia aberto caminho. Este mercado desenvolveu enormemente o comércio, a navegação, a comunicação por terra. Este crescimento afetou novamente a extensão da indústria; e na mesma medida em que a indústria, o comércio, a navegação e as estradas de ferro se estendiam, a burguesia se desenvolvia, aumentava o seu capital e deixava para trás todas as classes provenientes da Idade Média. Vemos, portanto, como a burguesia moderna é, ela mesma, produto de um longo curso de desenvolvimento, de uma série de revoluções nos modos de produção e de troca. Cada passo do desenvolvimento da burguesia foi acompanhado por um avanço político correspondente. Uma classe oprimida sob a autoridade da nobreza feudal, uma associação autogovernada na comuna medieval. Aqui, uma república urbana independente (como na Itália e na Alemanha), ali, “terceiro estado” da monarquia sujeito a imposto (como na França). Depois, no período da manufatura propriamente dita, servindo seja à monarquia semifeudal ou à monarquia absoluta, como um contraponto à nobreza, e, na verdade, pedra fundamental das grandes monarquias em geral. A burguesia, afinal, com o estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, conquistou, para si própria, no Estado representativo moderno, autoridade política exclusiva. O poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Burgueses e proletários. In: O manifesto comunista. 8. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 09-12 SISTEMATIZAÇÃO: Organize sua leitura. Leia atentamente o tópico “A sociedade como objeto de estudo” e os respectivos textos complementares referentes a cada estudioso. Depois, elabore: a) um glossário que registre o significado de dois conceitos utilizados por cada um deles; e b) um questionário de perguntas e respostas sobre dois pontos que você considerou relevantes em cada um dos textos complementares. Concluída a tarefa, coloque o resultado do seu trabalho na página do moodle. 28 UNIDADE II A EDUCAÇÃO COMO FENÔMENO SOCIAL PARTICULAR Nesta Unidade de Estudo, faremos uma abordagem sobre dois pontos: a conceituação do fenômeno educativo e os fundamentos epistemológicos da educação. É indiscutível que a educação sempre esteve presente em todas as sociedades humanas. Ao longo da história, sempre houve quem refletisse, debatesse e dissesse algo sobre ela. Entretanto, somente com o aparecimento das ciências ditas humanas, é que, gradativamente, ela foi se tornando um objeto da observação sistemática e da análise científica de certos estudiosos. Se considerarmos, como dizia Comte, o desenvolvimento do espírito humano, entenderemos por que grande parte do que foi escrito e dito sobre a educação tenha sido feito sob a égide de uma perspectiva argumentativa de orientação filosófica e místicoreligiosa. Com efeito, a indagação filosófica e a religiosa são anteriores à investigação científica. Provavelmente, isso explique por que o conteúdo do universo das produções realizadas no âmbito desse horizonte liga o fenômeno educativo a uma série de significados e sentidos subjetivos, morais e idealistas. Com a Modernidade, e, mais precisamente, com o advento da ciência, uma das primeiras tarefas dos pesquisadores da educação foi a de desmistificá-la, ou seja, analisála, enquanto um acontecimento situado na ordem do mundo dos homens, sujeito ao acaso e à estrutura social, aos embates e aos conflitos de interesses, ao jogo, enfim, às relações sociais vigentes em uma dada sociedade. Isso exigiu deles o esforço em dois aspectos: na identificação da educação como um fenômeno social e histórico e na sua formulação conceitual, como uma atividade específica do gênero humano que nomeia e explica um fenômeno particular, inconfundível com outros existentes no universo de eventos produzidos socialmente. Partindo desse entendimento, conversaremos sobre essas duas dimensões da problemática da educação. A fim de complementar a discussão, foi selecionada uma série de fragmentos de textos de vários estudiosos, com o intuito de contribuir para a formulação da idéia da educação como um objeto de estudo particular. 1. CONCEITUANDO A EDUCAÇÃO 10 A palavra educação é definida como uma prática corriqueira dos indivíduos, em geral, e dos que militam no campo educacional: ensino e pesquisa, por exemplo. A cotidianidade e regularidade desse evento e a prática do ensino e da pesquisa sobre educação sinalizam que o termo tem uma referência concreta, ou seja, a significante educação nomeia um dado acontecimento do mundo social. Se a palavra “educação” evoca uma série de idéias a respeito de um referente determinado, conclui-se que ela não deve ser usada aleatoriamente para representar qualquer evento, atividade ou prática social. Ao contrário, ela tem uma particularidade semântica porque se relaciona precisamente a um aspecto singular da realidade social. 10 Esse tópico é a transcrição de um fragmento do artigo que escrevi (Carlos, 2006). 29 Há, portanto, nesse caso, uma correlação particular entre palavras, idéias e coisas: um signo determinado. Ao considerarmos isso, ou seja, o entrelaçamento entre o significante “educação” e seu referente, uma faceta social particular, pomos em funcionamento a linguagem de uma certa maneira, que rompe, em certa medida, com um modo de usar a língua: o polissêmico. Para ilustrar, pensemos no termo manga. Esse vocábulo incorpora vários significados: uma espécie de fruta (Lívia chupou a manga que estava na mesa.); uma parte da camisa (a manga da blusa de Lívia está suja) ou o ato de zombar (Luan manga de Lívia sempre que ela cai.). Observe-se que, nesse caso, a palavra ‘manga’ não está vinculada a apenas um referente. Sua semântica varia de acordo com o contexto em que é empregada. Como se vê, a perspectiva polissêmica da palavra permite-nos brincar com os signos, vinculando/desvinculando dos significantes seus significados e referentes convencionais. Permite, até mesmo, eliminar os próprios referentes, isto é, fazer das palavras algo que exista sem as coisas, uma espécie de simulacro. Podemos proceder da mesma maneira com a palavra ‘educação’? Quando vinculamos um significante determinado a um referente determinado, não. Nessa perspectiva, ao usarmos a palavra ‘educação’, transitamos numa região que faz a linguagem funcionar de uma certa maneira: o da referencialidade. Fazendo uso dessa função, a ciência concebe e emprega os termos enquanto conceitos: palavras ou série de palavras que servem para designar e explicar distintos aspectos da realidade social e natural. Pensemos nas palavras ‘marte’ e ‘rotação’. ‘Marte’ nomeia apenas um planeta. ‘Rotação’ designa e explica, unicamente, um tipo de movimento. Aqui, cabem duas observações. Primeiro: diferentemente de ‘manga’, ‘terra’ e ‘rotação’ nomeiam unicamente um aspecto da realidade. Nesse caso, ocorre uma associação singular entre um significante específico e um referente determinado. Portanto, ao pronunciarmos ou escrevermos ‘marte’ ou ‘rotação’, não pensamos em qualquer planeta ou movimento. Segunda observação: diferentemente de ‘terra’, a palavra ‘rotação’ designa um dado movimento do real e explica-o como sendo o movimento que a terra faz em torno de si mesma. Nesse caso, não acontece tão-somente a associação designativa entre um significante e um referente; há, também, um significado explicativo de um determinado movimento. Seria um grande equívoco, portanto, dizermos que o movimento da terra em torno do sol chama-se ‘rotação’. Os conceitos detêm a propriedade sígnica de designar e a de explicar os objetos referidos. Conceito não pode ser uma espécie de palavra-simulacro. Educação é uma palavra-conceito. Ela designa e explica uma determinada faceta da realidade social: a atividade intencional, deliberada e sistemática que os indivíduos realizam uns sobre os outros, tendo em vista a formação de uma conduta e consciência determinada. Uma maneira de esclarecer o caráter específico da atividade educativa encontrase na comparação com o conceito de socialização. Segundo Johnson (1997, p.212), socialização é “o processo através do qual indivíduos são preparados para participar de sistemas sociais” e [...] “que ocorre à medida que as pessoas adquirem novos papéis e se ajustam à perda de outros mais antigos”. Portanto, o conceito diz respeito ao conjunto de atividades sociais que visam inserir o indivíduo em um determinado grupo ou organização societária, de modo a tornar-se partícipe do seu padrão cultural vigente. 30 Sabemos que a aprendizagem desse conjunto de normas, valores, conhecimentos, práticas, concepções de mundo, costumes, rituais, crenças, interesses e necessidades societários resulta, em parte, da convivência existente entre os indivíduos, das trocas casuais e não planejadas que efetuam no curso do cotidiano e de sua história social e biográfica. Em última instância, a socialização configura-se como um processo genérico de aprendizagem e de subjetivação dos indivíduos. Diferentemente, a educação é um conceito que enfoca uma esfera da socialização, ou seja, um modo particular de inserção do indivíduo numa dada formação social. Portanto, se a socialização pode ser casual, não intencional, não sistemática, a educação não. Ao fim e ao cabo, a palavra ‘educação’ faz referência a uma série particular de atividades, práticas ou ações que visam socializar metodicamente os indivíduos, o que requer, necessariamente, intencionalidade, deliberação e sistematicidade, além de um modelo de homem socialmente desejado, portador de uma consciência e uma conduta específica. Assim, a educação acontece na escola, no lar, no partido, no sindicato, na fábrica, no templo, atingindo crianças, adolescentes, jovens, adultos ou pessoas portadoras de deficiência. Independente do seu formato, ou seja, do tipo de sujeito a ser constituído, do conteúdo a ser socializado, do procedimento a ser adotado, do lugar e do tempo de seu acontecimento, a atividade educativa será sempre uma socialização metódica. 11 REFLEXÃO: Repensando o senso comum. Pergunte para um pai, um professor e um amigo o que é educação. Anote as respostas. Depois compare cada uma delas com o que foi discutido nesse tópico e na aula que foi gravada sobre esse assunto. Agora redija um pequeno texto sobre tudo isso e envie para o ambiente Moodle. 2. FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO Estudamos, na Unidade I, que os fundamentos podem ser, basicamente, de duas naturezas: as condições concretas que viabilizam a existência de algo e as razões que justificam, explicam ou conferem sentido a um dado fenômeno. Neste tópico, objetivamos adentrar na segunda ordem de entendimento dos fundamentos. Para tanto, lançamos mão da contribuição propiciada pelas investigações de alguns estudiosos da educação, precisamente, Émile Durkheim, Karl Mannheim, Louis Althusser, Pierri Bourdieu e Paulo Freire. Teceremos algumas considerações gerais sobre parte de seu legado, que serão complementadas pela transcrição de alguns textos sobre a produção deles, assim como a leitura de algum material bibliográfico disponível no mercado, que poderá ser adquirido por aqueles que se interessarem em aprofundar o assunto. 11 Durkheim usou essa expressão na seguinte formulação: “a educação consiste numa socialização metódica das novas gerações” (p. 41). Consultar: DURKHEIM, Émile. Aeducação, sua natureza e função. In: Educação e sociologia. Trad. Lourenço Filho. 9. ed., São Paulo: Edições Melhoramentos, 1973. p. 33-58. 31 É comum encontrarmos o legado de conhecimento produzido pelos autores com quem dialogamos transitando em diversos campos das ciências sociais. No entanto, a literatura, em geral, sobretudo no campo da educação, tende a localizá-los, majoritariamente, no campo da Sociologia da Educação. O fato é que seus escritos e pesquisas formam um acervo de conhecimentos que, em si mesmo, é rico de possibilidades analíticas e epistêmicas e, por isso mesmo, objeto do desejo de apropriação de diferentes campos disciplinares. Uma análise da produção dos autores supra citados permite que identifiquemos pontos comuns, assim como aspectos heterogêneos que, na maioria das vezes, advêm do modo como situam a relação no contexto das relações sociais capitalistas. Em se tratando de pesquisas e análises de cunho predominantemente social e histórico, é evidente que, a depender da faceta da educação estudada, dos procedimentos teórico-metodológicos adotados e dos objetivos de pesquisa pretendidos, os resultados e as conclusões de seus estudos tendam a ressaltar este ou aquele aspecto do objeto investigado. Em linhas gerais, todos eles partem de um mesmo pressuposto: o de que a educação é um fenômeno social e histórico. Ou seja, ela tem uma existência concreta, objetiva no seio da realidade cotidiana, das relações societárias vigentes e da história presente ou passada da humanidade. EMILE DURKHEIM Emile Durkheim, por exemplo, defendia a tese de que a educação varia com o espaço e com o tempo e que, em cada sociedade, ela realiza um universo de interesses, visões de mundo, habilidades, competências requeridos, desejados e considerados necessários à própria existência do indivíduo, quanto da sociedade em geral. Na sua relação com a sociedade, a educação é vista como um processo metódico de formação das novas gerações pelas gerações mais velhas, segundo a ordem considerada legítima e vigente. Segundo suas palavras, “não há povo em que não exista certo número de idéias, sentimentos e práticas que a educação deve inculcar a todas as crianças, indistintamente, seja qual for a categoria social a que pertençam” (Durkheim, 1977, p. 40). A educação, nessa visão, é um meio de conservação da cultura existente, de sua história, tradição, trabalho, música, arte, ciência, religião etc. Enquanto tal, a educação tem uma existência objetiva, exterior à consciência individual, atuando sobre o indivíduo, formando sua subjetividade, de forma coercitiva e abrangente. Ela é, em última análise, um fato social. Daí porque ninguém pode escapar da educação. Tal modo de existir pode ser observado ao longo da história, em todas as sociedades humanas da Antiguidade e da Modernidade, a exemplo de Atenas, Roma e Grécia ou Inglaterra, França e Estados Unidos. Esse modo de conceber, de investigar e fazer educação é considerado conservador, pois acentua um papel social da educação relacionado única e exclusivamente com a manutenção da ordem social, da tradição e dos interesses vigentes em determinada sociedade. O educando é descrito como objeto, metodicamente submetido ao contexto social e histórico. O educador é posicionado como sujeito, que age sobre o educando segundo o que é determinado pelo meio em que vive. O conteúdo da educação é o que foi construído pelas gerações passadas como legado cultural. 32 A EDUCAÇÃO, SUA NATUREZA E FUNÇÃO (...) § 2 - Definição da educação Para definir a educação será preciso, pois, considerar os sistemas educativos que ora existem, ou tenham existido, compará-los e apreender deles os caracteres comuns. O conjunto desses caracteres constituirá a definição que procuramos. Nas considerações do parágrafo anterior, já assinalamos dois desses caracteres. Para que haja educação, faz-se mister que haja, em face de uma geração de adultos, uma geração de indivíduos jovens, crianças e adolescentes; e que uma ação seja exercida pela primeira, sobre a segunda. Seria necessário definir, agora, a natureza específica dessa influência de uma sobre outra geração. Não existe sociedade na qual o sistema de educação não apresente o duplo aspecto: o de, ao mesmo tempo, apresentar-se como uno e múltiplo. Vejamos como ele é múltiplo. Em certo sentido há tantas espécies de educação, em determinada sociedade, quantos meios diversos nela existirem. É ela formada de castas? A educação varia de uma casta a outra; a dos patrícios não era a dos plebeus; a dos brâmanes não era a dos sudras. Da mesma forma, na Idade Média, que diferença de cultura entre o pajem, instruído em todos os segredos da cavalaria, e o vilão, que ia aprender na escola da paróquia, quando aprendia. Parcas noções de cálculo, canto e gramática! Ainda hoje não vemos que a educação varia com as classes sociais e com as regiões? A da cidade não é a do campo, a do burguês não é a do operário. Dir-se-ia que essa organização não é moralmente justificável, e que não se pode enxergar nela senão um defeito remanescente de outras épocas, destinado a desaparecer... Mas qualquer que seja a importância destes sistemas especiais de educação, não constituem eles toda a educação. Pode-se dizer até que eles não se bastam a si mesmos; por toda parte, onde sejam observados, não divergem uns dos outros, senão a partir de certo ponto, para além do qual todos se confundem. Repousam assim numa base comum. Não há povo em que não exista certo número de idéias, sentimentos e práticas que a educação deve inculcar a todas as crianças, indistintamente, seja qual for a categoria social a que pertençam. Mesmo onde a sociedade esteja dividida em castas fechadas, há sempre uma religião comum a todas, e, por conseguinte, princípios de cultura religiosa fundamentais, que serão os mesmos para toda a gente... (...) A educação não é, pois, para a sociedade, senão o meio pelo qual ela prepara, no íntimo das crianças, as condições essenciais da própria existência. Mais adiante, veremos como ao indivíduo, de modo direto, interessará submeterse a essas exigências. Por ora, chegamos à fórmula seguinte: A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine. DURKHEIM, Emile. Educação, sua natureza e função. In: Educação e sociologia: com um estudo da obra de Durkheim, pelo prof. Paul Fauconnet. Trad. Lourenço Filho. 9. ed., São Paulo: Edições Melhoramento. p. 38-41 KARL MANHEIMM 33 Ao estudar as organizações e transformações históricas das sociedades modernas, Karl Mannheim conclui que a educação é um tipo de técnica social. “Por técnicas sociais refiro-me a todos os métodos de influenciar o comportamento humano de maneira que este se enquadre nos padrões vigentes de interação e organização sociais”, esclarece o autor (1964, p. 88). Sob esse ponto de vista, a educação seria uma ferramenta de controle social, de ajustamento do indivíduo no complexo contexto societário, em geral, e nos diversos agrupamentos particulares, constitutivos da sociedade, a exemplo da fábrica, do exército, da família, da igreja, do partido, do sindicato etc. Nota-se, aqui, como em Durkheim, o caráter conservador da educação no que tange à ordem social dominante. Além disso, defende que as transformações ocorridas da organização societária capitalista – como o processo de democratização, a forte presença da comunidade na definição das políticas públicas e o desenvolvimento científico e tecnológico - ampliaram o universo conceitual e a atuação social da educação. Esse processo foi registrado em seu livro Introdução à Sociologia da Educação, onde afirma, dentre outras coisas, o seguinte (1974, p. 52): Hoje sabemos que o método precisa variar de acordo com os assuntos, de acordo com as situações da aprendizagem, de acordo com a espécie de estudantes e de acordo com a profundidade de compreensão que se trata de conseguir. Além de tudo isso, tivemos de enfrentar recentemente o fato de que o próprio currículo precisa ser reavaliado e remobilizado, conforme mudam os tempos e se dissolvem as barreiras dos assuntos. O entendimento da educação como uma tecnologia social, que incide sobre o comportamento do indivíduo, elimina da educação sua dimensão revolucionária e transformadora. Na relação educação-sociedade, a educação não teria outra função a não ser a de afirmar a ordem vigente, quer controlando a subjetividade do indivíduo, conformando-a aos padrões desejados socialmente, quer qualificando-o profissional e intelectualmente para dirigir a sociedade, aperfeiçoando-a e perpetuando sua lógica e modo de existência. 1. 34 A EDUCAÇÃO COMO TÉCNICA SOCIAL (...) Por técnicas sociais refiro-me a todos os métodos de influenciar o comportamento humano de maneira que este se enquadre nos padrões vigentes de interação e organização sociais. A existência de técnicas sociais é particularmente evidente no exército, cuja eficiência repousa, principalmente, sobre a organização, o treinamento e a disciplina rígidos, e sobre formas específicas de auto-controle e obediência. Não apenas no exército, mas também na chamada vida civil, as pessoas têm de ser condicionadas e educadas para ajustarem-se aos padrões dominantes de vida social. O trabalho nas fábricas requer treinamento especializado em habilidades, comportamentos e hábitos; uma forma de disciplina e hierarquia; uma divisão bem definida do trabalho; e controle das inter-relações das pessoas com suas tarefas. O padrão dominante pode ser democrático ou autoritário; a educação serve a ambos os sistemas. Ao mesmo tempo, ela é apenas uma das técnicas sociais destinadas à criação do tipo desejado de cidadão (...) A educação não molda o homem em abstrato, mas em uma dada sociedade e para ela. 2. 3. 4. 5. 6. A unidade educacional fundamental nunca é o indivíduo, mas o grupo, que pode variar em extensão, objetivo e função.Com isso variarão os padrões predominantes de ação, aos quais terão de conformar-se os membros desses grupos. Os objetivos educacionais da sociedade não podem ser adequadamente entendidos quando separados das situações que cada época é obrigada a enfrentar e da ordem social para a qual eles são formulados. Para o sociólogo, códigos e normas não constituem fins em si mesmos, mas sempre a expressão de uma interação entre o ajustamento individual e grupal. O fato de as normas não serem absolutas, mas alterarem-se com a mudança da ordem social e auxiliarem na solução dos problemas com que a sociedade se defronta, não pode ser percebido a partir da experiência do indivíduo isolado. Para este, elas parecem decretos absolutos e inalteráveis, e sem essa crença em sua estabilidade elas não podem operar. Sua verdadeira natureza e função na sociedade, como uma forma de adaptação coletiva, revela-se apenas se acompanharmos a sua história através de muitas gerações, sempre as relacionando com a mudança do background social. Esses objetivos educacionais, em seu contexto social, são transmitidos à nova geração, juntamente com as técnicas educacionais vigentes. As técnicas educacionais, por sua vez, não se desenvolvem isoladamente, mas sempre como parte do desenvolvimento geral das “técnicas sociais”. Assim, a educação apenas será corretamente compreendida se a consideramos como uma das técnicas que influenciam o comportamento humano e como um meio de controle social. A menor mudança nessas técnicas e controles mais gerais reflete-se na educação em sentido restrito - ou seja, a processada no interior da escola. Quanto mais consideramos a educação do ponto de vista de nossa recente experiência, como apenas um dos muitos modos de influenciar o comportamento humano, mais evidente se torna que mesmo a técnica educacional mais eficiente está condenada a falhar, a menos que esteja associada às demais formas de controle social. (...) MANNHEIM, Karl. A educação como técnica social. In: PEREIRA, Luís, FORACCHI, Marialice M. Educação e sociedade: leituras de sociologia da educação. São Paulo: Nacional, 1964. p. 88-90. LOUIS ALTHUSSER Mantendo-se situado na mesma fronteira de entendimento, quanto à concreta relação entre educação e sociedade, Louis Althusser difere dos estudos de Durkheim e de Mannheim em vários pontos. É, precisamente, na diferença de sua análise que encontramos sua contribuição para a compreensão objetiva da relação educação-sociedade no contexto sócio-histórico da sociedade. Em síntese, pode-se dizer que a tese central defendida por Althusser é a de que a educação participa, ao seu modo, da reprodução das relações de produção do capitalismo. O que significa, em última análise, seu envolvimento com a reprodução das condições que viabilizam a produção do capital e, conseqüentemente, a exploração do trabalho. De que forma a educação contribuiria para a reprodução do capital e do sistema capitalista? Resumidamente, de duas maneiras: por meio da formação da mão qualificada para o mercado de trabalho e por meio da submissão do operário à ideologia burguesa. Duas maneiras que são, na verdade, duas facetas distintas de um mesmo movimento histórico. 35 A realização efetiva disso depende da conquista do poder do Estado, fato que permitirá o controle político dos aparelhos repressor e ideológico e de sua orientação no sentido de afirmar a dupla responsabilidade social da educação burguesa. Em suma, é por meio dos aparelhos que o Estado exerce o seu poder: a força e a violência física por meio do repressor; o convencimento e a produção do consenso, por meio do ideológico. Nesse ínterim, a escola é considerada como o aparelho ideológico dominante do Estado. Observa-se, portanto, que, para Althusser, a educação escolar tem uma função social negativa explícita, pois é por meio dela que a ideologia liberal é disseminada no seio das classes trabalhadoras e incorporada por elas como se fosse sua. Isso gera um estado de alienação e contradição profunda: o trabalhador aprende a pensar e a se sentir como burguês, a defender seus interesses, a lutar por eles, a conceber o mundo segundo sua ótica e posição, sendo, todavia, objetivamente trabalhador. O QUE SÃO APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO (AIE)? Eles não se confundem com o aparelho (repressivo) do Estado. Lembremos que, na teoria marxista, o Aparelho de Estado (AE) compreende: o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, etc, que constituem o que chamaremos a partir de agora de Aparelho Repressivo do Estado. Repressivo indica que o Aparelho de Estado em questão “funciona através da violência” - ao menos em situações limites (pois a repressão administrativa, por exemplo, pode revestir-se de formas não físicas). Designamos pelo nome de Aparelhos Ideológicos do Estado um certo número de realidades que apresentam-se [Sic]ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Propomos uma lista empírica que deverá necessariamente ser examinada em detalhe, posta a prova, retificada e remanejada. Com toda a reserva que esta existência acarreta podemos, pelo momento, considerar como Aparelhos Ideológicos do Estado as seguintes instituições (a ordem de enumeração não tem nenhum significado especial): AIE religioso (o sistema das diferentes Igrejas) AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e privadas) AIE familiar AIE jurídico AIE político (o sistema político, os diferentes partidos) AIE sindical AIE de informação (a imprensa, o rádio, a televisão, etc.) AIE cultural (Letras, Belas Artes, esporte, etc.) Nós afirmamos: os AIE não se confundem com os Aparelhos (repressivo) de Estado. Em que consiste a diferença? No primeiro momento, podemos observar que existe um Aparelho (repressivo) do Estado, existe uma pluralidade de Aparelhos Ideológicos do Estado. Supondo a sua existência, a unidade que constitui esta pluralidade de AIE não é imediatamente visível. Num segundo momento, podemos constatar que enquanto que o Aparelho (repressor) do Estado, unificado, pertence inteiramente ao domínio público, a maior parte dos Aparelhos Ideológicos do Estado (em sua aparente dispersão) remete ao domínio privado. As igrejas, os partidos, os sindicatos, as famílias, algumas escolas, a maioria dos jornais, as empresas culturais etc, etc, são privados. (...) 36 Mas vamos ao essencial. O que distingue os AIE do Aparelho (repressivo) do Estado é a seguinte diferença fundamental: o Aparelho Repressivo do Estado “funciona através da violência” ao passo que os Aparelhos Ideológicos do Estado “funcionam através da Ideologia”. ALTHUSER, Louis. O que são os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE)? In: ______ Aparelhos Ideológicos de Estado: notas sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado. 9. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.p. 67-69. PIERRE BOURDIEU Bourdieu adota os mesmos parâmetros de estudo de Althusser, a saber: a dualidade de classes do capitalismo, o caráter reprodutor da educação, a ação pedagógica como meio de exercício do poder; a centralidade da luta entre as classes etc. Entretanto, ao invés de focar sua investigação na ideologia, como fizera Althusser, ele se ocupa em pesquisar a materialidade das relações de dominação no âmbito da cultura e das relações de comunicação. Para o autor, as relações sociais são pautadas pelos interesses dos grupos e das classes dominantes, quer dizer, em função da ótica dos detentores do poder econômico e político, constituído pela propriedade do capital e pelo controle do Estado. Os grupos e as classes dominantes, econômica e politicamente, são os que dominam culturalmente a sociedade. São eles que difundem e impõem à maioria da população o universo simbólico e os significados correlatos, revestidos da legitimidade garantida pelo exercício da violência simbólica. A violência simbólica acontece por meio da ação pedagógica, realizada através da autoridade pedagógica responsável por desenvolver o trabalho pedagógico de uma instituição de ensino particular. Ação pedagógica, trabalho pedagógico e instituição de ensino são aspectos necessários ao exercício legítimo da violência simbólica. Entretanto, a efetivação dessa prática somente acontece graças a condições sociais determinadas, assentadas no domínio econômico e político, e ao estabelecimento de uma relação de comunicação, que viabilize a circulação do universo simbólico tido como legítimo. Ao fim e ao cabo, o que pretende o trabalho pedagógico realizado? A formação de um habitus, isto é, “um sistema de esquema de percepção, de pensamento, de apreciação e de ação” que seja durável (permanente), transferível (diverso) e exaustível (profundo). É por meio da constituição do habitus no indivíduo que a cultura dos grupos e das classes dominantes torna-se a cultura dominante da sociedade e em que a reprodução das condições de produção acontece. Nota-se, portanto, que a ação pedagógica, enquanto violência simbólica, acontece por meio de dois mecanismos: o da imposição da cultura dos grupos e classes dominantes sobre os grupos e classes dominadas; e o da dissimulação das relações de força, que viabiliza a inculcação arbitrária da cultura. A dissimulação desse processo e a imposição geram a alienação, condição cultural necessária à exploração de uma classe sobre a outra. Com Althusser e Bourdieu, aprendemos a relacionar criticamente a educação com a ideologia e as classes sociais, com o poder e a cultura, com o trabalho e a comunicação, com a luta e o conflito, com o Estado e seus aparelhos, com a sociedade política e civil. 37 Entretanto, o pêndulo da educação tendeu mais para a reprodução da ordem vigente do estatus quo, da concepção de mundo dos grupos e das classes dominantes. É bem verdade que, conforme dissemos em momentos anteriores, o resultado e as conclusões que ambos formularam atrelam-se aos procedimentos teórico-metodológicos que utilizaram. Mediados por essas ferramentas, capturaram faces e interfaces da educação e de sua relação com a sociedade capitalista, as quais evidenciam nada mais do que isso: faces e interfaces da educação, não a sua totalidade. Com efeito, assim como não devemos reduzir a educação às descobertas empreendidas por Durkheim e Mannheim, também não devemos restringi-la aos achados de Althusser e de Bourdieu. Cada um, a seu modo, conferiu visibilidade a certas dimensões sociais e históricas da educação. FUNDAMENTOS DE UMA TEORIA DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA 38 0. Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força. (...) 1. Do duplo arbitrário da ação pedagógica 1. Toda ação pedagógica (AP) é obviamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural. (...) 2. Da autoridade pedagógica 2. Enquanto poder de violência simbólica se exercendo numa relação de comunicação que não pode produzir seu efeito próprio, isto é, propriamente simbólico, do mesmo modo que o poder arbitrário que torna possível a imposição não aparece jamais em sua verdade inteira (no sentido da proposição 1.1), e enquanto inculcação de um arbitrário cultural realizando-se numa relação de comunicação pedagógica que não pode produzir seu efeito próprio, isto é, propriamente pedagógico, do mesmo modo que o arbitrário do conteúdo inculcado não aparece jamais em sua verdade inteira (no sentido da proposição 1.2), a AP implica necessariamente como condição social de exercício a autoridade pedagógica (AuP) e a autonomia relativa da instância encarregada de exercê-la. (...) 3. Do trabalho Pedagógico 3. Enquanto posição arbitrária de um arbitrário cultural que supõe a AuP, isto é, uma delegação de autoridade (prop. 1 e 2), a qual implica que a instância pedagógica reproduza os princípios do arbitrário cultura, imposto por um grupo ou uma classe como digno de ser reproduzido, tanto por sua existência quanto pelo fato de delegar a uma instância a autoridade indispensável para reproduzilo (por prop. 2.3 e 2.3.1), a AP implica o trabalho pedagógico (TP) como trabalho de inculcação que deve durar o bastante para produzir uma formação durável; isto é, um hábitus como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessação da AP e por isso de perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário cultural interiorizado. (...) 4. Do sistema de ensino 4. Todo sistema de ensino institucionalizado (SE) deve as características específicas de sua cultura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as condições institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são necessárias tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou as classes (reprodução social). (...) BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. Fundamentos de uma teoria da violência simbólica. In: A reprodução. Trad. Reynaldo Bairão. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 15-75. PAULO FREIRE Situado nesse campo de reflexão, análise, investigação e atuação, encontra-se o educador, filósofo, pesquisador e militante brasileiro Paulo Freire. A riqueza de seu legado deslocou o nosso olhar e pensar para a dimensão humanizadora e libertadora da educação. Sem perder de vista a construção do conhecimento propiciado por seus antecessores, o que é retratado na crítica empreendida à educação registrada no seu livro Pedagogia do Oprimido, ele ressalta o lado construtivo da educação e sua possibilidade humanizadora. Embora ali, em outros escritos, sem medir palavras e esforços, tenha feito uma análise acurada e contundente do modo tradicional e liberal de educar, denominado de educação bancária, também e com a mesma intensidade, dedicou-se ao estudo e à prática de um modo de educação que cumprisse a função social e política de elevar o homem oprimido à sua condição ontológica de ser humano em processo de humanização. Seus escritos estão grávidos da esperança na educação. Não uma esperança alienada e apaixonada, típicas dos idealistas e utópicos, otimistas e entusiastas que, movidos por um subjetivismo exacerbado, acabam dando exclusividade às faces e interfaces positivas da educação. Freire não atribui à educação um poder que ela, objetivamente, não tem por si só. Com efeito, uma das peculiaridades da educação é a de reproduzir a cultura, quer enquanto acervo das produções humanas quer enquanto arbítrio de um grupo e classe particular. Entretanto, a reprodução é contraditória, isto é, ela tanto pode manter o legado quanto transformá-lo; tanto pode priorizar a ideologia e a cultura das classes dominantes, seus interesses e concepção de mundo quando os das classes dominadas. A educação não é, em si mesma, boa ou má. Sendo social e histórica, ela é política, cultural e economicamente contraditória. E mais: é uma prática que pode ser empregada em função dos processos sociais de luta, de libertação e transformação das relações sociais de exploração e dominação existentes na sociedade. Nesse sentido, a educação tanto pode contribuir para a conservação ou reprodução dos padrões culturais vigentes quanto se dispor a serviço da humanização do homem e da construção de relações sociais eticamente fundadas. Em resumo, Freire primava, a um só tempo, pela crítica e pelo anúncio; pelo embate à educação bancária e pela defesa da educação problematizadora; pela luta contra a alienação e pela luta a favor da conscientização do povo. Enfim, esse caráter de não existir fora do jogo das relações sociais e da história particular de cada agrupamento humano desdobra-se no entendimento freireano de que a educação tem uma função social 39 determinada e uma maneira particular de contribuir para o desenvolvimento histórico da humanidade. EDUCAÇÃO E CONSCIENTIZAÇÃO A consciência crítica “é a representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica, nas suas correlações causais e circunstanciais”. “A consciência ingênua pelo contrário se crê superior aos fatos, dominando-os de fora e, por isso, se julga livre para entendê-los conforme melhor lhe agradar.” A consciência mágica, por outro lado, não chega a acreditar-se “superior aos fatos, dominando-os de fora”, nem “se julga livre para entendê-los como lhe agradar”. Simplesmente os capta, emprestando-lhes um poder superior, que a domina de fora e a que tem, por isso mesmo, de submeter-se com docilidade. É próprio desta consciência o fatalismo, que leva ao cruzamento dos braços, à impossibilidade de fazer algo diante do poder dos fatos, sob os quais fica vencido o homem. Por isso é que é próprio da consciência crítica a sua integração com a realidade, enquanto que a ingênua o próprio é sua superposição à realidade. (...) para a consciência fanática, cuja patologia da ingenuidade leva ao irracional, o próprio é a acomodação, ao ajustamento, à adaptação. Acontece, porém, que a toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, uma ação. Captado um desafio, compreendido, admitidas as hipóteses de resposta, o homem age. A natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. Se a compreensão é crítica, a ação também o será. Se é mágica, a compreensão, mágica será a ação. O que teríamos de fazer, uma sociedade em transição como a nossa, inserida no processo de democratização fundamental, com o povo em grande parte emergindo, era tentar uma educação que fosse capaz de colaborar com ele na indispensável organização reflexiva de seu pensamento. Educação que lhe pusesse à disposição, meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica... FREIRE, Paulo. Educação e conscientização. In: Educação como prática da liberdade. 29. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. p. 109-130. REFLEXÃO: Repensando nossa história escolar. Após ter lido sobre as contribuições dos autores estudados, volte ao seu passado, relembre sua história escolar: a maneira de ensinar, o conteúdo abordado, a relação professor-aluno, os textos utilizados, a organização escolar, as festas etc. Escolha um ou dois estudiosos e analise a relação entre a escola e a sociedade, contida na sua experiência escolar. Escreva um pequeno texto e disponibilize no seu diário virtual. 40 UNIDADE III EDUCAÇÃO, ESCOLA E CURRÍCULO NA SOCIEDADE BRASILEIRA Educação, escola e currículo são três aspectos que se relacionam, mas não se confundem. Vimos, na unidade anterior, que a educação é uma prática social intencional, deliberada e sistematizada, que visa atuar sobre o indivíduo e formar sua consciência e conduta. Assinalamos também que, nessa perspectiva, a educação pode ser realizada por diversos sujeitos em diferentes lugares e de várias maneiras. Isso significa dizer, de um lado, que a escola representa apenas uma das muitas formas de se fazer educação; de outro, que o currículo também é uma das múltiplas maneiras de organizá-la. Não foi à toa que Brandão (1988) abriu o seu livro, “O que é educação?”, com um tópico que traz o seguinte título: “Educação? Educações: aprender com o índio”. O enunciado contido nesse título problematiza a idéia da impossibilidade da existência de um só tipo de educação, quer a dos homens brancos, quer a da escola. O fato é que a educação é um fenômeno humano, isto é, social e histórico. Por isso mesmo é que ninguém escapa dela, e sua presença se faz sentir em lugares e tempos diferentes, sendo exercida por sujeitos distintos, orientados por estratégias e fins diversos. Nessa linha de raciocínio, a escola, enquanto espaço educativo, é uma invenção tardia da humanidade. Conforme nos lembra Brandão (idem, p. 35), Da maneira como existe entre nós, a educação surge na Grécia e vai a Roma, ao longo de muitos séculos da história de espartanos, atenienses e romanos. Deles deriva todo o nosso sistema de ensino e, sobre a educação que havia em Atenas, até mesmo as sociedades capitalistas mais tecnologicamente avançadas têm feito poucas inovações. Talvez estejam, portanto, entre os seus inventos e escolas, algumas das respostas as nossas perguntas. Esse modo de fazer educação não somente permaneceu como ganhou uma dimensão central na história presente das sociedades capitalistas. Sobre isso, defende Althusser (2003, p.80) que ela superou os espaços sociais de aprendizagem familiares e religiosos, tornando-se o aparelho ideológico do Estado dominante. Certamente, muitas destas Virtudes (modéstia, resignação, submissão de uma parte, cinismo, desprezo, segurança, altivez, grandeza, o falar bem, habilidades) se aprendem também nas Famílias, na Igreja, no Exército, nos Belos Livros, nos filmes, e mesmo nos estádios. Porém nenhum aparelho ideológico do estado dispõe durante tantos anos da audiência obrigatória (por menos que isso signifique gratuita...), 5 a 6 dias num total de 7, numa média de 8 horas por dia, da totalidade das crianças da formação social capitalista. 1. A EDUCAÇÃO ESCOLAR COMO DIREITO SUBJETIVO O enunciado da educação como direito de todo cidadão brasileiro foi uma das conseqüências da Proclamação da República, em 1889. Com a derrocada do Império, o Estado brasileiro foi erguido sobre dois novos pilares: o do direito e o da democracia. 41 Graças a eles, a educação deixou de ser privilégio de alguns e concessão do Rei, passando a ser um bem público. Entretanto, a garantia da universalização da escola implicou sua obrigatoriedade e gratuidade, o que somente poderia ser efetivado pela força jurídico-constitucional e política do Estado, fazendo da educação um direito público subjetivo do cidadão e um dever do Estado, e a organização de uma matriz curricular nacional que pudesse, a um só tempo, incluir o conjunto de conhecimentos, valores, competências e concepções liberais, quanto atingir toda a extensão nacional. As Constituições republicanas foram, gradativamente, incluindo a educação como um dos princípios fundamentais dos direitos humanos, o que forçou o Estado, a partir de fins da década de 1930, a organizar um sistema nacional de ensino, inicialmente, com a promulgação das Leis Orgânicas do Ensino Comercial, Secundário, Primário e Agrícola e, posteriormente, com a formulação das Leis de Diretrizes Básicas da Educação Nacional (1960, 1970, 1996). Na história da educação brasileira, esse processo de reconhecimento e de garantia jurídico-política do Estado foi uma conquista gradativa, que exigiu grande mobilização da sociedade civil. Um dos registros da luta a favor da educação como direito e da organização nacional de um sistema de ensino foi, sem dúvida, o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932. O Manifesto foi um documento escrito por vários intelectuais, políticos, governantes, educadores da época. Ele foi o registro público da insatisfação coletiva com relação à situação da educação escolar instalada após a Proclamação da República, em 1989: falta de um sistema escolar, ausência de formação profissional do educador, de fundamentação teórica da prática pedagógica, de continuidade das ações dos governos, enfim, da consciência nacional dos fins sociais da educação no que tange ao desenvolvimento do indivíduo e da Nação. As questões tratadas no Manifesto continuam atuais. TÍTULO III Do direito à educação e do dever de educar Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive, para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; III - atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino; IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII - oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindose aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola; 42 VIII - atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; IX - padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Art. 5º O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo. § 1º Compete aos Estados e aos Municípios, em regime de colaboração, e com a assistência da União: I - recensear a população em idade escolar para o ensino fundamental, e os jovens e adultos que a ele não tiveram acesso; II - fazer-lhes a chamada pública; III - zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola. § 2º Em todas as esferas administrativas, o Poder Público assegurará em primeiro lugar o acesso ao ensino obrigatório, nos termos deste artigo, contemplando em seguida os demais níveis e modalidades de ensino, conforme as prioridades constitucionais e legais. § 3º Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo tem legitimidade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2º do art. 208 da Constituição Federal, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente. § 4º Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade. § 5º Para garantir o cumprimento da obrigatoriedade de ensino, o Poder Público criará formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino, independentemente da escolarização anterior. Art. 6º É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos sete anos de idade, no ensino fundamental. Art. 7º O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino; II - autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público; III - capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição Federal. BRASIL. LDB n. 9394/96 REFLEXÃO: Correlacionando as premissas legais e a realidade local. Observe a situação da qualidade de ensino e da estrutura física das escolas públicas do município em que você mora e compare com o que determina a LDB de 1996. Elabore um comentário e disponibilize no fórum a ser criado na página do moodle sobre esse assunto. 43 2. EIXOS ARTICULADORES DO CURRÍCULO ESCOLAR: TRABALHO, CULTURA E CIDADANIA A proliferação e a capilarização da escola e, conseqüentemente, de sua força cultural, no cenário das sociedades atuais, como a brasileira, tornaram-se fundamentais para a reprodução das relações de produção capitalista e para a formação social do indivíduo que lhe é necessária. Isso significa dizer, em última instância, que a escola capitalista tem a responsabilidade de criar as condições de aprendizagem que propiciem a inserção do indivíduo singular no mundo do trabalho, da cultura e da cidadania liberal. Atualmente, o Estado brasileiro universalizou o ensino fundamental. Tem trabalhado no mesmo sentido, com relação ao ensino médio, e tem feito vários esforços a fim de ampliar o acesso das classes populares à universidade. Entretanto, o grande desafio encontra-se na oferta de um ensino público de qualidade. Pensar a qualidade do ensino público implica investimento na formação e profissionalização do educador, na criação de planos de cargos e salários dignos e de condições de trabalho favoráveis, na democratização da gestão pedagógica e no envolvimento dos pais e da comunidade na produção do projeto político-pedagógico da escola, assim como a organização de um currículo escolar compatível com as condições sociais e históricas da população brasileira. Ao defender a organização curricular da escola centrada na função social da transmissão do conhecimento sistematizado, Saviani, em seu clássico livro, “Pedagogia histórico-crítica”, denuncia o uso inadequado da escola como um lugar onde se faz de tudo, menos ensinar, fenômeno que descaracteriza o trabalho escolar. Argumenta o autor (2005, p.16): Não é demais lembrarmos que esse fenômeno pode ser facilmente observado no dia-a-dia das escolas. Dou apenas um exemplo: o ano eletivo começa na segunda quinzena de fevereiro e já em março temos a Semana da Revolução; em seguida a Semana Santa; depois, a Semana das Mães, as Festas Juninas, a Semana do Soldado, Semana do Folclore, Semana da Pátria, Jogos da Primavera, Semana da Criança, Semana do Índio, Semana da Asa etc., e nesse momento já estamos em novembro. O ano letivo encerra-se e estamos diante da seguinte constatação: fez-se de tudo na escola; encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação de conhecimentos sistematizados. Isso quer dizer que se perdeu de vista a atividade nuclear da escola, isto é, a transmissão dos instrumentos de acesso ao saber elaborado. 44 Evidente que Saviani não quis dizer que o conteúdo social das comemorações não tenha valor cultural e que sejam insignificantes do ponto de vista social e histórico. Ao contrário, sua denúncia revela a substituição do saber elaborado pela comemoração simples e pura, pelo espetáculo e entretenimento, negando, assim, aos estudantes, o acesso e a apropriação dos conhecimentos sistematizados sobre esses assuntos, o que impediria o entendimento crítico e uma participação mais consciente e significativa no evento. Embora Saviani tenha direcionado sua crítica ao fazer cotidiano dos professores, pedagogos e gestores escolares, a problemática do currículo, até fins dos anos 80, ainda não tinha adquirido a relevância devida pelos estudiosos brasileiros da educação. Essa foi uma idéia enunciada por Silva (1992), em seu livro “O que produz e o que reproduz em educação: ensaios de sociologia da educação”, mais precisamente no tópico em que tratou sobre “Currículo, conhecimento e democracia: as lições e as dúvidas de duas décadas”. Entretanto, em conformidade com as observações feitas por Saviani e apesar da inicial irrelevância dos estudos curriculares, como assinalou Silva, a maior parte dos problemas escolares está relacionada ao currículo. Nessa linha, afirma Silva (idem, p. 76): Apesar do pouco prestígio da área de currículo dentro do campo intelectual mais amplo da educação, a maior parte das questões educacionais pode ser traduzida numa discussão sobre criação, seleção e organização do conhecimento escolar, isto é, sobre currículo, o mesmo podendo-se dizer sobre a maior parte dos conflitos concretos em torno da organização do sistema escolar. No fundo, o que se discute sempre são questões relacionadas ao conteúdo e à forma do currículo escolar, mesmo quando a discussão parece estar muito distante dessa esfera de preocupações, quando se trata, por exemplo, do papel do Estado na educação. A partir dos estudiosos da educação, em geral, como Saviani, e dos de currículo, em particular, como Silva, podemos inferir que a qualidade do ensino vincula-se à melhoria do currículo escolar. O que consideramos, em linhas gerais, que está relacionado à organização do currículo em torno de três grandes eixos: o do trabalho, o do poder e o da cultura. As diretrizes curriculares nacionais atuais do ensino fundamental e médio, por exemplo, sugerem que os conhecimentos e as competências, desenvolvidos nos indivíduos pela escola, ao longo do processo de escolarização, sejam sedimentados em função desses eixos. Da Economia, aprendemos que o trabalho é atividade geradora da riqueza social; da Antropologia, que o homem produz o mundo da cultura, e a cultura faz o homem; das ciências políticas, que as relações sociais estabelecidas entre os indivíduos e destes com o grupo e/ou a sociedade, são mediadas pelo exercício do poder. Portanto, em função do acúmulo do conhecimento propiciado por esses e outros campos de conhecimento, parecenos razoável o entendimento de que o trabalho, a cultura e o poder são constituintes das condições de existência das sociedades. Com efeito, se perdemos de vista essas três dimensões da realidade humana, seja por questões de interesses ideológicos e políticos ou teórico-metodológicos, acabaremos por olhar a educação, a escola e o currículo de maneira descontextualizada, distante das necessidades e dos interesses concretos dos indivíduos, grupos, do país e de sua história. A fim de aprofundar essa questão, leiam o texto abaixo. TRABALHO A categoria “trabalho” é aqui entendida como um modo de sustentação e autopreservação do gênero humano, que se expressa nas transformações impostas pelo homem à natureza e às formações sociais e culturais historicamente construídas. Trata-se de conceito fundamental para a compreensão da formação e do fazer histórico da humanidade em toda a sua diversidade. Entende-se o trabalho na sua diversidade social, econômica, política e cultural, pois o trabalho não se refere somente às formas de produzir formalmente e historicamente aceitas nas diversas sociedades históricas, tais como a escravidão, a servidão e o trabalho assalariado, mas também ao trabalho 45 relacionado à esfera doméstica, à prática comunitária, às manifestações artísticas e intelectuais, à participação nas instâncias de representação políticas, trabalhistas, comunitárias e religiosas. Essas diferentes formas de produzir e organizar a vida individual e coletiva intercambiam-se com diversas perspectivas ou abordagens. Dentre elas podem-se destacar as de gênero (a participação das mulheres e dos homens nas relações entre trabalho formal, informal e doméstico); de parentesco ou de comunidade (posição dos membros na hierarquia da família e da comunidade relacionados a sua ocupação profi ssional); de geração (as transformações históricas na relação entre o trabalho formalmente aceito em uma sociedade e o trabalho infantil, além do trabalho como formação educativa nas dimensões professor/aluno, mestre/aprendiz, entre outras); e de poder (tensões e conflitos entre os diferentes agentes sociais, profissionais e políticos). PODER O poder pode ser entendido como o complexo de relações entre os sujeitos históricos nas diversas formações sociais e nas relações entre as sociedades. Articula-se com todos os conceitos presentes neste documento, pois as relações de poder permeiam o processo de construção do conhecimento histórico e são um dos fatores de significação que delimitam o que seria a consciência histórica, que marca os diversos modos da apreensão e da construção do mundo historicamente constituído e suas respectivas interpretações. Além disso, o exercício do poder encontra-se presente nos usos sociais que se fazem da História tanto para legitimar poderes quanto para execrar o passado de inimigos políticos, sociais ou de qualquer outra natureza. As relações de poder são exercidas nas diversas instâncias das sociedades históricas, como as do mundo do trabalho e as das instituições, como, por exemplo, as escolas, as prisões, as fábricas, os hospitais, as famílias, as comunidades, os Estados nacionais, as Igrejas e os organismos internacionais políticos, econômicos e culturais, os quais se transformam na sua relação com as formações sociais historicamente constituídas. É na inter-relação entre essas instituições (sociais, políticas, étnicas e religiosas) e nas relações de dominação, hegemonia, dependência, convencimento, submissão, resistência, convivência, autonomia e independência entre elas que se torna possível a compreensão de suas construções políticas como algo próprio da formação histórica do ser humano. Não se pode esquecer também o processo de invenção das tradições, que expressa muito bem as articulações entre mudanças e permanências no campo das relações políticas. Nesse aspecto, o conceito de poder facilita o entendimento da construção histórica do conceito de cidadania e do processo de constituição da participação política nas mais diversas instituições marcadas por consensos, tensões e conflitos revelados em toda a sua historicidade. 46 CULTURA A ampliação do conceito de cultura, fruto da aproximação das disciplinas História e Antropologia, enriquece o âmbito das análises, caminhando, de forma positiva, para a abertura do campo científico da História Cultural. O recurso à Filosofia, por sua vez, enriquece e amplia o conceito, especialmente no que se refere à idéia de cultura como formação advinda da “paidéia” (ligada à educação) e da cultura humanista, renascentista e iluminista. Na articulação dessas abordagens (histórica, antropológica e filosófica), o conceito de cultura pode alcançar maior abrangência e significado. A cultura não é apenas o conjunto das manifestações artísticas e materiais. É também constituída pelas formas de organização do trabalho, da casa, da família, do cotidiano das pessoas, dos ritos, das religiões, das festas. As diversidades étnicas, sexuais, religiosas, de gerações e de classes constroem representações que constituem as culturas e que se expressam em conflitos de interpretações e de posicionamentos na disputa por seu lugar no imaginário social das sociedades, dos grupos sociais e de povos. A cultura, que confere identidade aos grupos sociais, não pode ser considerada produto puro ou estável. As culturas são híbridas e resultam de trocas e de relações entre os grupos humanos. Dessa forma, podem impor padrões uns sobre os outros, ou também receber influências, constituindo processos de apropriações de significados e práticas que contém elementos de acomodação–resistência. Daí a importância dos estudos dos grupos e culturas que compõem a História do Brasil, no âmbito das relações interétnicas. O estudo da África e das culturas afro-brasileiras, assim como o olhar atento às culturas indígenas, darão consistência à compreensão da diversidade e da unidade que fazem da História do Brasil o complexo cultural que lhe dá vida e sentido. Ciências humanas e suas tecnologias/Secretaria de Educação Básica. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. p. 75-78. (Orientações curriculares para o ensino médio; volume 3) SISTEMATIZAÇÃO: Organize sua leitura. Elabore: a) um glossário que registre o significado dos conceitos trabalho, cultura e poder; e b) um questionário de cinco perguntas e respostas sobre esse ponto. Concluída a tarefa, coloque o resultado do seu trabalho na página do moodle. 3. LINGUAGEM, DISCURSO E ESCOLA Os termos dispostos neste tópico - o da linguagem, o do discurso e o da escola podem suscitar inúmeras reflexões, debates e estudos, seja no que diz respeito à singularidade de cada um, seja no que concerne às relações que se podem estabelecer entre eles. Aqui, desejamos tão somente assinalar, resumidamente, três aspectos contidos no enunciado: a) o da linguagem, como fenômeno humano mediador das relações entre os indivíduos; o do discurso, como dimensão operativa da linguagem; e o da escola, como espaço de apropriação e desenvolvimento crítico e competente do uso social da linguagem. Embora a linguagem não tenha uma materialidade tal como a de uma pedra, sua existência é tão concreta quanto a dela. Conceber o mundo sem sua presença seria semelhante a ver um quadrado sem lados ou um gato sem rabo. Pensar a linguagem dessa maneira pode nos conduzir a formular um problema sem resposta. Para tal raciocínio irreal, somente resta apelar para a imaginação. É óbvio que o mundo dos homens é um mundo objetivamente simbólico. A linguagem é um fato social. Sua materialidade se constitui de uma série de signos, por meio dos quais se realizam várias atividades culturais: nomear, classificar, descrever, explicar, registrar, expressar-se etc. Ela funciona como uma espécie de ponto de mediação entre 47 os homens e outros homens, e entre os homens e as coisas: organização do conhecimento, registro da memória histórica e comunicação entre os indivíduos. Uma conseqüência desse entendimento ocorre pelo reconhecimento de que não se deve restringir o sentido da linguagem apenas à série de signos lingüísticos: a palavra escrita ou falada. Lembremo-nos que os gestos, a pintura, o desenho, a escultura, a dança, o cinema, o teatro, o charge, a música etc são formas de linguagem. Portanto, a palavra, a imagem e o som formam uma trilogia que abarca uma variedade de tipos simbólicos. Outra conseqüência consiste em que devemos estabelecer a distinção entre linguagem e discurso. Se o ser da linguagem é o signo, o do discurso é uma série determinada de signos em funcionamento. A mobilização de um feixe de signos em função do uso social requerido em contextos distintos processa a transformação da linguagem em discurso. Pensemos, por exemplo, no signo lingüístico, na língua como um modo de sua existência e no discurso como uma maneira de experiência da existência. A depender do modo como se pratica a língua, podem-se produzir diferentes gêneros discursivos. Se a língua é empregada para expressar o conhecimento que organizamos sobre a realidade concreta, estamos diante de um discurso filosófico ou científico; se ela é acessada para comunicar sentimentos, sonhos e aspirações, o discurso produzido poderá ser do tipo literário ou utópico. Se, de outro lado, o signo lingüístico é mobilizado para reivindicar ou defender direitos públicos subjetivos, sobre a educação escolar de qualidade, por exemplo, o discurso elaborado será de cunho político. Por fim, se a língua é usada para codificar normas de conduta para o indivíduo ou uma formação social determinada, aciona-se um gênero discursivo que poderá ser de natureza jurídica ou moral. Por fim, queremos destacar que uma compreensão de linguagem como a que ventilamos aqui exige a organização de uma escola que seja capaz tanto de alfabetizar e de letrar o educando quanto de propiciar-lhe o desenvolvimento da competência analítica e produtiva dos gêneros discursivos historicamente acumulados. Isto é, a escola deve ser um espaço de aprendizagem consciente, crítico e criativo da linguagem, em suas múltiplas formas de existência. Entretanto, conforme assinalaram Saviani e Silva, o alcance desse objetivo está associado à especificidade histórica da educação escolar: a de ensinar a língua enquanto uma mediação da apropriação do conhecimento sistematizado. A apropriação inadequada da língua poderá fazer com que o educando não tenha um desempenho satisfatório na aprendizagem do conteúdo de diversas disciplinas escolares, a exemplo da matemática, da história, da geografia, da biologia etc. Do exposto, pode-se observar que a apropriação do signo lingüístico, em particular, e da linguagem, de forma geral, apresenta-se, objetivamente, como uma mediação necessária ao desenvolvimento do indivíduo e do país. Sem a construção social e histórica dessa mediação, a inserção efetiva do indivíduo no mundo do trabalho, da cultura e da política será extremamente prejudicada. Portanto, a linguagem é um dos aspectos fundantes da sociabilidade humana. 48 UMA CRISE NO ENSINO DA LÍNGUA É significativo verificar que o fenômeno que se tem designado “crise da linguagem”, definida como o uso inadequado e deficiente da língua materna e como uma decadência de seu ensino e aprendizagem, tenha surgido, em todos os países em que tem sido denunciado, contemporaneamente à aceleração do processo de democratização do ensino. As razões dessa contemporaneidade são de fácil compreensão, à luz das teorias apresentadas nos capítulos anteriores. O processo de democratização do ensino, respostas às reivindicações das camadas populares por mais amplas dificuldades educacionais, concretizouse em crescimento quantitativo e diversificação do alunado. A escola, que até então se destinava apenas às camadas socialmente mais favorecidas, foi dessa forma, conquistadas pelas camadas populares. Ora, exatamente porque, historicamente, sua destinação eram as classes favorecidas, a escola sempre privilegiou - e, a despeito da democratização do ensino, continua a privilegiar – a cultura e a linguagem dessas classes, (...) são diferentes da cultura e da linguagem das classes desfavorecidas. Não se tendo reformulado para seus novos objetivos e sua nova função, a escola é que vem gerando o conflito, a crise , que é resultado de transformações quantitativas – maior número de alunos – e, sobretudo, qualitativas – distâncias cultural e lingüística entre os alunos a que ela tradicionalmente vinha servindo e os novos alunos que conquistaram o direito de também serem por ela servidos. A escola não se reorganizou, diante dessas transformações que nela vem ocorrendo; nesse sentido, a “crise da linguagem” é, na verdade, uma crise da instituição escolar. Assim o problema que se coloca para a escola, em relação à linguagem, é o de definir o que pode ela fazer, diante o conflito lingüístico que nela se cria, pela diferença existente entre a linguagem das camadas populares, as quais conquistam cada vez mais, o direito de escolarização, e a linguagem que é instrumento e objetivo dessa escola, que é a linguagem das classes dominantes. SOARES, Magda. Uma crise no ensino da língua. In: Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Editora Ática, 1999. p. 68-69. REFLEXÃO: Analisando o sentido do texto Após ter lido o assunto tratado nesse tópico, leia atentamente o texto de Magda Soares, “Uma crise no ensino da língua”, e comente-o. Escreva o seu comentário no Fórum correspondente ao tema. 49 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS UNIDADE I BACON, Aforismo sobre a interpretação da natureza e o reino do homem. Livro I. In: Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. 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